ANDREY

 

 

 

Andrey nunca tinha visto uma mulher tão bela. Não bela num sentido contemporâneo em que algum traço desproporcionado conferisse charme a uma cara ou tornasse famoso um ator. Não. Aquela mulher tinha uma espécie de graça oitocentista. A regularidade das suas feições combinava-se para criar o retrato perfeito: a oval delicada da face, os olhos azuis grandes, as sobrancelhas direitas e de cor clara, o nariz pequeno, a testa lisa. A face era espantosa, mas Andrey surpreendeu-se por descobrir que parecia não o afetar. Seria por estar apaixonado por Masha? Ou porque perfeição como aquela inspirava apenas admiração casta? Seria, provavelmente, uma patacoada. De acordo com as perguntas feitas por Fomin à vizinha de baixo, os sentimentos do padrasto de Masha não tinham sido nada castos.

– Menina Kuznetsova – começou. – Porque faltou ao seu encontro com o doutor Belov ontem?

Anna arqueou as sobrancelhas perfeitas apenas um pouco. Era evidente que o seu repertório de expressões faciais era limitado.

– Ele cancelou.

– Ligou-lhe?

– Sim. Bom... não. Ligou alguém com quem trabalha e disse que o Yury... o doutor Belov... estava ocupado na clínica. Disse-me que não poderia vir.

– Alguma vez tinha cancelado um encontro consigo?

Anna parou para pensar.

– Sim. Duas ou três vezes. Mas era sempre ele a fazê-lo. Não achei que confiasse o suficiente nos colegas para lhes dar o meu número de telefone, informando-os acerca desse... hmm... lado da vida dele. Chocou-me um pouco.

– E há quanto tempo... tinham estes encontros?

– Há cerca de dois anos – respondeu calmamente, afastando uma madeixa de cabelo brilhante da cara. Andrey não conseguia impedir-se de olhar. A beleza era realmente uma força de peso. – Fui paciente dele. – Sorriu, mostrando os dentes perfeitos. – Teve pena de mim.

Andrey não teve tempo para se surpreender antes de Anna o olhar nos olhos, perguntando:

– Aconteceu-lhe alguma coisa?

– Ele... – Andrey pigarreou. – Morreu. Foi assassinado ontem à noite. Sinto muito. – Andrey acreditou estar preparado para qualquer tipo de reação, de lágrimas cristalinas a um soluçar abafado. Mas a beleza surpreendeu-o. A sua face, até ali tão notavelmente imóvel, começou subitamente a estremecer como se tivesse um ataque. Abriu os lábios e contorceu a boca. As suas têmporas palpitaram. O seu queixo projetou-se para diante e voltou a recuar, enquanto as sobrancelhas se erguiam, enrugando a sua testa perfeitamente lisa como um fole de acordeão. O efeito era tão medonho que Andrey se levantou de repente, quase atirando a cadeira ao chão.

– Os meus medicamentos! – gemeu Kuznetsova com uma voz estranha e baixa e o maxilar hirto enquanto apontava um armário.

Andrey abriu o armário e viu-os imediatamente, um frasco no centro da prateleira mais abaixo. O rótulo continha um aviso severo: «APENAS COM RECEITA MÉDICA.»

– Trinta gotas – gemeu, sem fôlego. Andrey começou a contar gotas para dentro de um copo que esperava convenientemente perto. O tempo parecia suspenso. Andrey desligou a visão periférica. Não conseguia ver nada além das gotas de medicamento caindo uma a uma dentro do copo. Quinze. Dezasseis. Não podia enganar-se e não conseguia olhar para a visão aterradora que partilhava o espaço consigo.

Quando o medicamento ficou pronto, estendeu-lhe o copo e viu-a beber com lábios trémulos, recostando-se na cadeira. Andrey virou-se para a janela. O apartamento de Kuznetsova ficava no terceiro andar de um edifício velho e, da janela, via-se um jardim sossegado. Quantos restariam em Moscovo? «Terá sido caro», pensou, de repente. «O que fará na vida? Ou será apenas a esposa sortuda de um polícia corrupto?»

– Desculpe – disse finalmente uma voz calma atrás dele. – Não estava à espera disso. Já me devia ter habituado.

Andrey virou-se e viu que a beleza imaculada tinha sido restaurada.

– Foi tudo tão estranho. O telefonema, o facto de o Yury não ter cancelado pessoalmente o encontro. Sabia como era importante encontrarmo-nos pelo menos uma vez por semana. É provável que pense que era apenas o meu amante – disse ela, baixando um pouco a cabeça e rindo tristemente. – Mas também era o meu psicólogo. Tem cigarros?

Andrey acenou com a cabeça e tirou o maço do bolso.

Kuznetsova inalou o fumo de modo desconfortável.

– Não fumo muito. Mas o Yuri disse que não fazia mal depois de um ataque. Acalma-me. Bom... Foi o meu marido quem me levou à clínica. Nem sequer sabia a diferença entre psicólogos e psiquiatras. Para ele, eram todos médicos da cabeça. Pensava o mesmo. Pareceu-me tudo bem, fino, bonito e limpo. Não era um manicómio velho e assombrado. Mas o Yury... percebeu depressa que precisava de outro tipo de médico e não de um psicólogo. Tinha medo de mim. O meu marido também. – Kuznetsova voltou a rir. – Mas eu só tinha medo do meu marido. Seja como for, o Yury receitou um medicamento e terapia intensiva. O meu marido ficou com ciúmes. Achou que queria ir à clínica apenas para ver o Yury. E era verdade, mas o Yury não sabia. Resumindo, o meu marido proibiu-me de lá voltar, dizendo que mataria o Yury se fosse. Quando aconteceu, tinha deixado de ter medo de morrer. Por isso, o Yury ofereceu-se para continuar a tratar-me, mas noutro sítio além da clínica. Acho que não sabia realmente, no início, como as coisas acabariam.

– E o seu marido? Descobriu? Pelo que sei, ele...

– Sim, também é polícia. Mas não, nunca descobriu. Pedi o divórcio. Não quis deixar-me ir. Começou a vigiar-me como um cão de guarda. Um cão feroz e nervoso! Sabia – disse ela, baixando a voz – que tinha matado gente. Jurou que não, mas sentia-o! Não podia continuar a viver com ele. Antes de o Yury entrar na minha vida, tinha pensado em deixá-lo de outra maneira. Tentei o suicídio, mas apanhou-me sempre a tempo. Quando conheci o Yury, foi como se alguém acendesse a luz ao fundo do túnel. Desde que o visse pelo menos uma vez por semana, não tinha medo. Por isso, é difícil dizer o que significava isto para mim. Precisava dele como homem ou como médico? O Yury disse-me que já não precisava dele. Disse que estava melhor e que tinha aprendido a controlar-me.

Kuznetsova fez uma pausa.

– Agora, terei de testar essa teoria. – Olhou pela janela. Uma lágrima brilhante deslizou pela sua face perfeita. Parecia uma princesa de conto de fadas.

Andrey esperou mais alguns momentos antes de fazer a pergunta seguinte, a pergunta decisiva.

– Menina Kuznetsova, como posso contactar o seu marido? Ou melhor, o seu ex-marido.

– Seria difícil. – Um sorriso notável surgiu-lhe na cara.

– Posso procurá-lo no trabalho ou...

– Está em Vostryakovsky.

A princípio, Andrey não percebeu.

– O cemitério. O meu marido está morto. Morreu em serviço há ano e meio. Nunca me deu o tal divórcio. E nunca pretendeu fazê-lo. O Yury e eu não nos encontrávamos neste apartamento porque ficava longe de mais para ele. Além disso, partilhei esta casa com o meu marido e o Yury ficava desconfortável com coisas assim.

Andrey não disse nada. Um polícia capaz de assassinar alguém. Alguém com uma relação indireta com o padrasto de Masha. Avaliando pela desilusão que sentia, Andrey percebia a que ponto contara com aquela conversa para confirmar o seu novo indício. Levantou-se devagar e despediu-se.

Enquanto o acompanhava até à saída, a princesa fez mais um comentário, parecendo fazê-lo menos para Andrey do que para si mesma.

– Tinham os dois tanto medo por mim. Mas aqui estou, viva, e quase bem. Mas eles não. É tão surreal.