MASHA
Masha acordou com frio. Não se tinham dado ao trabalho de acender a salamandra na noite anterior, contentando-se, em vez disso, com o aquecedor, o que fora um erro. Encostou-se tanto a Andrey quanto conseguia, aquecendo contra ele um pé gelado e colocando-lhe uma mão gelada debaixo do braço. Tinham dormido a noite toda, unidos como peças de um puzzle estranho. Mas, por volta das duas da manhã, Andrey levantou-se para desligar o aquecedor, não querendo arriscar um incêndio e, de manhã, a pequena bolha de calor gerada pela combinação dos seus corpos tinha-se dissipado. Masha abdicou finalmente daquele esquecimento abençoado que tinha forjado com a respiração suave de Andrey na sua face. Chegara o momento de se levantar e pensar.
Com cuidado para não o acordar, Masha esticou as pernas e pousou os pés no chão frio antes de voltar a erguê-los, tremendo. Mas pensar em ligar o aquecedor na cozinha e no casaco velho que Andrey lhe emprestara na noite anterior deram-lhe coragem. Masha saiu da cama, pegou numa pequena pilha de roupa e correu para a cozinha, onde Marilyn Monroe já esperava, preparado. O rafeiro olhou distraidamente enquanto a namorada do seu dono vestia uma T-shirt e calças de ganga em tempo recorde, acrescentando uma camisola e o casaco também do seu dono. A seguir, com um gemido satisfeito, calçou as meias de lã do dono, que secavam diante da salamandra desde o inverno anterior.
Depois, a nova dona de Marilyn desapareceu novamente no quarto e regressou com o aquecedor. Pôs a chaleira ao lume... e abriu o frigorífico! Marilyn Monroe não conseguia esperar mais. Levantou-se e foi pressionar o flanco contra as pernas da dona, para o caso de ter esquecido que havia um pobre cão faminto em casa. E a dona, que era uma boa alma, ainda não estragada por um dono severo, ofereceu-lhe logo um par de salsichas. Olhou, pensativa, enquanto Marilyn as engolia, fazendo o máximo de barulho possível e, a seguir, deu-lhe outra. Marilyn tentou lidar com aquela com um pouco mais de sofisticação por respeito pela senhora. A seguir, foi esperar mansamente junto à porta da rua. E a dona percebeu-o. Abriu e deixou-o sair para correr um pouco.
Enquanto Masha via o cão marcar um novo caminho pelo pátio gelado, não pensava em nada. Limitou-se a deixar os olhos interiorizar o nevoeiro fora da janela, a massa escura de sebes que separavam a pequena cabana da seguinte e o silêncio completo. Ouvia apenas os passos abafados de Marilyn sobre as folhas recentemente caídas e húmidas e o som do seu focinho curioso a roçar a erva que a geada deixara estaladiça.
A chaleira a ferver puxou-a de volta para a realidade enquanto a tampa mal encaixada saltava. A tampa aterrou com estrondo no chão de madeira e rebolou pela cozinha. Um estalar no quarto disse a Masha que, apesar dos seus cuidados, acordara Andrey. Franziu a testa, culpada. Viu-o passar por ela, parecendo adorável apenas com as calças de ganga vestidas, com os olhos ainda meio fechados. Não conseguiu impedir-se de estender as mãos para ele, pressionando o corpo aquecido pelo sono contra o seu, por um segundo. Mas Andrey, tentando suprimir um bocejo, murmurou qualquer coisa sobre precisar de tomar banho antes de deixar que alguém se aproximasse dele. Pouco depois, o chuveiro exterior improvisado gorgolejava agressivamente no alpendre e Masha ouvia-o uivando e gritando como uma criança.
Rindo-se, pôs a mesa com quase tudo o que tinham trazido na noite anterior do supermercado aberto vinte e quatro horas: iogurte, queijo e presunto.
Alguns minutos depois, Andrey regressou, completamente acordado. Beijou-a na face e verteu um pouco de água quente sobre os grãos na sua nova cafeteira turca. No dia anterior, num bizarro frenesim doméstico, tinha comprado até café adicional para o futuro.
Quando o café ficou pronto, sentaram-se à mesa. Masha aqueceu as mãos com a caneca. Andrey preparou para si uma sandes de presunto. Olharam-se com estranheza. O seu primeiro pequeno-almoço juntos. Andrey pousou a sandes e estendeu a mão sobre a mesa, com a palma voltada para cima. Masha sorriu e colocou a sua mão na dele.
– Vai ficar tudo bem – afirmou Andrey com a confiança de alguém que tinha dormido bem e acordara bem-disposto.
Masha acenou com a cabeça e insistiu com o olhar que voltasse a comer o pão com presunto.
Andrey riu-se.
– Achas que sou o Marilyn Monroe? – perguntou, dando uma enorme dentada e bebendo um gole da caneca.
– Estava a pensar – começou Masha. E parou.
– Sim?
– Pensava que não devia ter tratado o Innokenty daquela maneira. Tive tanto medo. Primeiro, o meu padrasto... – Apertou um pouco mais a caneca. – Depois, levaram a minha mãe para o hospital e o Kenty falou-me da família. E todas aquelas fotografias... – Ergueu o olhar para ele. Mas nada disso tem significado real, Andrey! Conheço muito bem o Kenty. Teria de estar doida para o considerar suspeito de homicídio! Por maior que seja o chavão, é verdade que não faria mal a uma mosca. Acreditas em mim?
Andrey acenou com a cabeça.
– Sempre soube que algo na sua família era invulgar. Mas isso nunca importou. Tive vergonha de lhe perguntar por eles quando éramos miúdos. De perguntar algo como: «Porque são os teus pais tão estranhos?» Se tivesse perguntado, ter-me-ia dito a verdade. Mas não tive curiosidade suficiente. Estava demasiado obcecada com os meus pequenos demónios. E escolheu o pior dia possível para me revelar o seu segredo. Quanto às fotografias... – Masha baixou o olhar e passou o garfo sobre um desenho na toalha.
– Parece-me claro o que significam – referiu Andrey, suspirando.
– Sim – concordou Masha em voz baixa. – Suponho que terei sabido, de certa forma, mas nunca quis admitir. Estava tão feliz por o ter como amigo, mas, de um certo ponto de vista, aproveitava-me do que sentia por mim. Eu... Bom, para ser franca, fui uma má amiga. Uma terrível amiga! – Masha olhou Andrey tristemente.
Limpou a boca com a mão e fez outra sandes.
– É inútil martirizares-te, Masha. Ontem, foi a tua mãe e, hoje, foi o Innokenty. Pensa nisso. Era impossível que fosses uma boa amiga. Não podemos ser amigos de alguém que nos ama. Porque a nossa amizade nunca lhes dará o que querem realmente. Por isso, magoamo-los, por mais que tentemos evitá-lo. Mas o Kenty é um rapaz crescido e tomou as suas decisões acerca da vossa relação. Teve muitas oportunidades para te dizer que te amava e para ver como responderias. Para te tentar conquistar ou coisa do género.
Masha riu-se, subitamente.
– Ou coisa do género – imitou-o. – Que queres dizer com isso?
– Bom – começou Andrey, puxando-a pela mão até a sentar no colo. – Por exemplo...
Masha acenou com a cabeça, pensativa.
– Certo. Todos sabemos como me cortejaste durante muito tempo e com grande esforço.
– Interessa-me mais o resultado do que o processo – sussurrou-lhe Andrey ao ouvido.
– Hm-hm. O Kenty ficaria horrorizado se soubesse como foi fácil.
– Não, não és fácil. És apenas... muito seletiva.
E, com aquela declaração impetuosa, Andrey beijou-a.