MASHA

 

 

 

– O diretor Ursolovich não está! – disse a secretária desagradada a Masha. – Devia ter ligado primeiro.

– Mas o horário diz...

Irritada, Masha voltou a descer, amaldiçoando-se por ter atravessado a cidade em vão. Ursolovich limitava o cumprimento do horário às suas aulas. Os alunos não eram, claramente, a prioridade. Masha começara por se orgulhar de a ter aceitado como orientanda, mas, com o passar das semanas e dos meses, infiltrou-se na sua mente o pensamento sedicioso de que talvez fosse melhor ter um orientador menos famoso, alguém menos ocupado a escrever manuais e artigos e voando para conferências em Princeton. Afinal, não escrevia a sua tese para ele, pela nota ou para...

Masha estacou de repente. Pela porta aberta da cantina da universidade, além dos funcionários entediados da cozinha, avistou Ursolovich curvado sobre uma mesa junto à janela.

– Desculpe interromper – disse, aproximando-se da sua mesa. – Tentei encontrá-lo no seu gabinete.

Ursolovich virou-se para ela com um naco de sandes enchendo-lhe uma bochecha.

– Bebuma’ávena de ‘á – murmurou-lhe, antes de voltar a virar-lhe as costas.

Obediente, Masha comprou um chá e um pãozinho e regressou, com a cabeça preenchida pela certeza deprimente de que Ursolovich a castigaria por interromper o seu repasto, como tinha feito a outro dos seus orientandos. O pobre coitado cambaleou do seu gabinete pálido e trémulo, largando páginas soltas cobertas com tinta vermelha e praticamente fugindo pelo corredor.

– Não posso comer com alguém sentado a olhar para mim – disse-lhe Ursolovich quando ela se instalou na cadeira a seu lado.

Procurou na sua pasta velha e retirou o dossiê dolorosamente familiar. A seguir, limpou distraidamente os dedos a um guardanapo de papel e começou a folhear a sua tese. Masha segurou a chávena de chá com força. Os seus dedos tinham ficado brancos. As margens do seu manuscrito estavam limpas de comentários.

– Bom trabalho, Karavay – disse, finalmente, erguendo os olhos míopes e quase sem pestanas. – Com algum trabalho, conseguirá transformá-lo numa dissertação doutoral. Mas não planeia seguir uma carreira académica, não é?

Masha abanou a cabeça.

– Dir-lhe-ia isto. – Ursolovich recostou-se na cadeira. – O tema é realmente muito... invulgar. Bastante peculiar, diria.

Os olhos atentos de Ursolovich fixavam-se na face de Masha e, de repente, sentiu-se pouco à vontade.

– Sabe mais sobre este... hmm... tópico do que eu. Mais do que qualquer pessoa na instituição inteira, na verdade. Este tipo de conhecimento – bateu com uma mão no dossiê – não é algo que se possa adquirir com um ano de formação. Ou mesmo com dois. Talvez se alguém se debruçasse sobre ele durante cinco anos, no mínimo. O que significa que esta tese está na sua cabeça desde que iniciou o curso. Diga-me, minha cara. O que torna este assunto tão atraente para uma rapariga de vinte e três anos?

Masha sentiu-se corar.

Ursolovich inclinou-se subitamente sobre a mesa e perguntou-lhe, baixando a voz:

– Então não acredita neles?

Masha enfrentou o olhar de Ursolovich pela primeira vez e, num lampejo, este recordou a cor dos olhos de Fyodor. Tinham sido exatamente como os dela, de um verde muito claro, uma cor rara e muito fria. A semelhança era espantosa. Tinha as mesmas maçãs do rosto angulosas, a boca forte e traçada numa linha atraente. E também o olhar dela era, decididamente, um traço familiar dos Karavay. Era como se olhasse Fyodor enquanto as engrenagens giravam dentro da sua cabeça.

– Ouça. – Reduziu a voz a um sussurro, mesmo que não houvesse ninguém em redor. – Independentemente de quem tenha sido, esqueça isto! Não desperdice a sua vida a tentar compreender. E lembre-se disto: Fyodor não voltará.

Masha estremeceu, mas Ursolovich afastou o olhar, fechou o dossiê e continuou noutro tom.

– Tenho mais algumas perguntas e sugestões acerca do trabalho, sobretudo em termos de estrutura. Há uma folha agrafada à bibliografia. Muito bem. Pode ir.

Masha acenou afirmativamente, murmurando algo inaudível que poderia ser um agradecimento, guardando o dossiê na mala e quase correndo para a saída.

– Onde é o seu estágio? – perguntou Ursolovich enquanto partia.

Masha parou, hirta.

– Na Petrovka – respondeu, mantendo a voz calma.

Ursolovich fungou e virou a cara. «É escusado», pensou. «Nunca esquecerá isto. Igual ao seu pai!» Quem acreditaria que, por trás daquele olhar inocente, daquela testa lisa, daquelas madeixas de cabelo cor de palha estudiosamente presas atrás de uma orelha rosada, se esconderia um monstro tão bizarro, como algo saído de um quadro de Goya.

 

*

 

Masha saiu da cantina, mantendo os olhos fixos à sua frente, com o queixo erguido e tentando com toda a sua força não permitir que qualquer excesso de humidade, como teria dito o seu pai, lhe escapasse dos olhos. Mas a humidade acumulava-se, impelida pela impotência e por uma raiva pueril. Como poderia ter-se desmascarado de modo tão estúpido? Em que pensava para revelar um segredo que não confiava, sequer, aos seus amigos, ao seu diário ou até à sua mãe? Porque não decidira escrever o seu trabalho sobre qualquer outro assunto mais inocente? Um assunto como... Mas, nisto, Masha vacilou. Porque, para ela, havia apenas um assunto.

Ursolovich disse que trabalharia naquilo há cinco anos, pelo menos. Cinco? Seriam dez. A tese da Masha começara a ganhar forma na sua cabeça quando tinha doze anos, a idade em que as rapariguinhas arrumam de vez as suas bonecas. E com que começavam a brincar nesse momento?