ANDREY

 

 

 

Andrey mal conseguiu apanhá-la enquanto caía. Masha ficou-lhe nos braços, pálida e com os olhos revirados.

– Ei! Alguém me ajude! – gritou Andrey.

Funcionários da clínica correram com uma maca e Andrey atabalhoou-se a tentar explicar que a mãe de Masha já ali estava enquanto lhes ia mostrando o crachá. Disse que a mãe de Masha era amiga de Nadya, com o nome saltando-lhe da memória como uma bola de pingue-pongue, mesmo que Masha o tivesse referido apenas de forma passageira. Graças a Deus, a própria Nadya veio até eles e esbofeteou Masha na face, tentando reanimá-la. Andrey ficou ali, boquiaberto como um idiota, com a vergonha latejando-lhe na cabeça como uma enxaqueca. Acompanhou os homens que carregavam a maca até um enorme elevador.

De repente, Masha acordou e soluçou.

– Que me está a acontecer?

– Desmaiaste – disse Nadya. – Estiveste sob enorme stresse. A tua mãe tem uma cama vazia no seu quarto. Vamos instalar-te lá durante o resto do dia para descansares.

Andrey engoliu em seco e apertou a mão de Masha. Como resposta, sentiu um aperto ligeiro.

– Volto esta tarde – disse Andrey com voz rouca. – Que posso trazer-te?

– Nada. – Masha fechou os olhos. – Não preciso de nada.

– O melhor amigo dela morreu – disse Andrey a Nadya quando saíram do quarto.

– Meu Deus. – Cobriu a boca com uma mão. – Suponho que não poderá ser uma coincidência.

– Não, não é – respondeu Andrey, abanando a cabeça. – É o terceiro homicídio de alguém que lhe era próximo, todos seguidos. Penso que... penso que será um momento horrível para ela. Vai culpar-se pelo que aconteceu.

– Mas isso é um disparate! – exclamou Nadya.

Andrey forçou um sorriso, acenou com a cabeça e saiu da clínica.

 

*

 

Ocorreu-lhe uma ideia muito simples. Não parara de o atormentar desde a noite anterior. Andrey precisava apenas de um dia para a confirmar ou mesmo meio dia, se todos o deixassem em paz. Atribuiu tarefas a cada membro da equipa do Colecionador de Pecados. Pediu a um homem que fosse ao quartel onde os soldados tinham morrido, enviou outro para interrogar testemunhas no Parque da Vitória e pediu a outro ainda que pesquisasse os associados mais próximos da mulher do governador.

Poderia ter atribuído umas centenas de outras tarefas urgentes, mas todas tinham o mesmo objetivo derradeiro. Precisava que cada membro do grupo lhe saísse da frente, afastando da cabeça todos os problemas secundários. Ignorou mesmo um telefonema de Anyutin (blasfémia)! Aliviado por encontrar o gabinete finalmente vazio, trancou a porta por dentro, puxou o fio do telefone da ficha na parede e, com um gesto determinado, varreu os papéis, cartões de visita e dossiês acumulados sobre a sua secretária. A seguir, expirou e debruçou-se sobre os dossiês do caso do Colecionador que lhe tinham sido entregues no dia anterior. Passou os documentos que continham até chegar às fotografias do pedaço de carne perfurado que tinha sido o padrasto de Masha.

Esmiuçou cada ficheiro. Precisava de apurar a ligação entre o assassino e os mortos. Como teriam as vítimas atraído a atenção do Colecionador de Pecados? E se Innokenty estivesse certo e os Velhos Crentes não tivessem qualquer envolvimento? Na verdade, os Velhos Crentes passavam a estar fora de questão, não era? Innokenty fora queimado como herege, afinal, e quem aplicava os castigos pertenceria a outro campo. Kenty poderia ter estado no exército? Ou poderia ter sido sujeito a investigação criminal? Era óbvio que o assassino não era um amador e, por isso, Kenty teria, de alguma forma, captado a atenção de profissionais: os colegas de Andrey nas forças de defesa e segurança.

O verboso Dobroslav Ovechkin tinha, outrora, sido acusado de um crime menor, safando-se com pena suspensa. O julgamento ocorrera a oitocentos metros dali, no Tribunal Distrital. Depois, houve Julia Tomilina, que testemunhou em tribunal contra o seu ex-amante. Alexander Solyanko, acusado por um colega de responsabilidade pelas drogas que foi acusado de possuir. Sem referir Kolyan, o bêbado, que teria sido preso uma ou duas vezes por qualquer esquadra. Andrey desabotoou o botão de cima da camisa e abriu uma janela. E se estivesse noutro beco sem saída? E se desperdiçasse tempo enquanto a pobre Masha estava sedada na clínica?

Mas forçou-se a controlar a sua ânsia de correr para algum lado, qualquer que fosse, fazendo alguma coisa, qualquer coisa, rapidamente. Precisava de ser metódico. De manter o controlo. Não olharia para o relógio, apenas para aquele dossiê, página após página. O arquiteto amnistiado. O ladrão reincidente. Turina e os incontáveis subornos que aceitou. Mas... Yelnik! O assassino que retiraram do Moskva. Que lhe tinha dito aquele miúdo desgraçado, aquele outro Andrey, na aldeia de Yelnik? Andrey estacou. Recordou o gabinete de Anyutin e a primeira conversa de ambos acerca do Colecionador de Pecados. E a mais recente.

Andrey compreendeu tudo em simultâneo. Deu um salto e pegou no casaco. Precisava de ver Masha. Mas, antes disso, precisava de provar a sua teoria além de qualquer dúvida. Desceu até à receção, entregou a sua chave e assinou o livro. Pediu para ver a lista de saídas do dia em que o padrasto de Masha tinha morrido. Ali estava o nome de Anyutin e, a seu lado, uma assinatura rápida executada com precisão militar e a hora em que entregara as suas chaves. Andrey correu para fora do edifício. Percebeu que recomeçara a respirar. Depois daquilo, podia ir até Masha.

 

*

 

Masha estava deitada com a cara virada para a parede. Não dormia e a sua mãe também não. Mas também não falava. Os olhos de Natasha estavam inchados de chorar e, quando Andrey entrou e disse olá, fixou nele um olhar que lhe gelou o sangue. Pôs uma mão no ombro de Masha e viu-a virar-se devagar e tentar sorrir.

– Alguma novidade? – perguntou ela.

Andrey olhou a cama de Natasha. Sem uma palavra, a mulher mais velha levantou-se e saiu do quarto.

– Sei quem é, Masha – disse-lhe Andrey, mesmo que, durante o percurso, não tivesse tido a certeza de querer contar-lhe a história inteira.

– Sabes? – Masha ergueu-se um pouco sobre as almofadas.

– Calma. Não te enerves – disse ele. A seguir, arrependeu-se imediatamente do cliché da recomendação.

Masha franziu a testa e semicerrou os olhos.

– Não estou doente, Andrey. Aguento. Se descobriste quem é e planeias fazer alguma coisa sem mim, nunca te perdoarei. Percebes? Tenho de estar lá quando o apanhares. Pela Katya, pelo meu padrasto... – As lágrimas brilharam-lhe nos olhos. – E pelo Kenty.

– Está bem – concordou Andrey. – Veste-te. Vamos sair da cidade.

– Para onde vamos? – perguntou Masha, enfiando a camisola.

– Para a dacha do teu amigo Katyshev.

Masha franziu a testa.

– Como sabes que o Nick-Nick tem uma...

– Calculei – respondeu Andrey, esboçando um sorriso triste.

– Mas não sei onde é! Estive lá pela última vez antes da morte do meu pai. Lembro-me de um pequeno regato e de uma floresta, mas nem sequer me lembro do nome da estação de comboio.

– A aldeia chama-se Narino, junto à autoestrada de Kaluga. Casa número doze, creio. Fica do outro lado da floresta. Tens razão nisso.

Masha e Andrey viraram-se. Natasha atravessava-se na porta, tão pálida como a sua camisa de dormir branca e o roupão de turco da mesma cor.

– Mamã. – A voz de Masha soava trémula.

Mas Natasha olhava Andrey nos olhos.

– Vão. Vão agora, antes que escureça.

Conseguiram sair rapidamente de Moscovo, mas Masha não disse nada, olhando fixamente para diante.

– Porquê? – perguntou, por fim, quando Andrey passou os limites da cidade.

– Desde a morte do teu padrasto e desde a Katya, tenho feito a mim mesmo uma pergunta: porque te escolheu a ti? – começou Andrey. – Porque teceu a sua teia à tua volta, especificamente, e porque parece atuar para ti? Como se estivesse a exibir-se para ti ou coisa parecida. Nunca te ocorreu a mesma pergunta?

– Bom – disse Masha, lentamente. – Pensei que fosse por ter uma perceção da forma como opera.

– Essa história da perceção é uma treta, Masha. É metafísica, vidência. – Andrey parecia irritado. – Não acredito que não percebemos quando o teu padrasto morreu! Ele sabia que tinhas sido tu a perceber. Só tu tinhas estabelecido uma ligação entre os homicídios. Percebeste o motivo dele, ligaste os locais do crime à Jerusalém Celestial, encontraste a Viagem de Sta. Teodora pelas Portagens. Fizeste isso tudo, Masha!

– O Innokenty ajudou – disse ela, baixando a voz.

– Para! – Bateu com uma mão no volante, tentando controlar-se. Estava furioso, mas não com Masha.

– Muito bem – disse ela. – E então?

– Então que te tornaste extremamente interessante para o assassino!

Masha empalideceu e virou-se para a janela.

– Há algum tempo que sei isso. Ainda ontem te disse que tudo isto é culpa minha.

– És uma idiota tão grande! – Andrey não conseguiu evitar. – És tão esperta, mas és uma idiota tão grande! Pensa! Quem sabia que foste tu a relacionar os homicídios com a Jerusalém Celestial?

– Muita gente. Não grites, por favor.

Andrey inspirou profundamente durante algumas vezes e segurou o volante com mais força.

– Desculpa. Porra! A resposta esteve sempre à nossa frente e cambaleávamos como gatinhos cegos, distraídos por todas as nossas teorias rebuscadas. Muita gente? Não era assim tanta, Masha. – Olhou-a. Masha continuava a olhar pela janela, vendo as casas rurais desfilar junto à estrada. – Lembras-te? A nossa equipa de investigadores não sabe quem descobriu o quê. Só cinco pessoas sabiam com certeza. Tu, eu...

– O Innokenty, o Anyutin... e o Nick-Nick.

– Sim, Masha. O teu amigo Nick-Nick. O procurador público Katyshev, que se interessou por este caso desde o primeiro momento. Katyshev, que disse ao Anyutin, quando estivemos juntos pela última vez, que talvez devêssemos deixar o assassino acabar o que começou!

– Isso é uma loucura, Andrey – contrapôs Masha com voz rouca. – Queria dizer apenas que não pode fazer nada porque o sistema judicial...

– Exatamente! Recorda o perfil psicológico que fizemos. Que tu fizeste. O mais provável é que o assassino trabalhe na justiça e terá estado no exército. O Katyshev esteve no exército, não esteve?

Masha acenou com a cabeça sem dizer nada.

– E este desejo doentio de fazer justiça pelas próprias mãos? Tu própria me disseste que essa é a marca do missionário maníaco! Quem melhor para nos julgar a todos do que o Senhor Procurador em pessoa?

Andrey calou-se. Puxou por um cigarro e abriu a janela. Via Masha pelo canto do olho e sentia que começava a acreditar nele.

– E há mais uma coisa. Passei a tarde a rever os ficheiros dos casos do Colecionador de Pecados, tentando encontrar uma ligação. Como encontra o assassino os seus pecadores? Ainda não sabia se seria o meu chefe, o Anyutin, ou o Katyshev. Os dois encaixavam bastante bem. Depois, percebi. Todas as vítimas tinham passado pelos tribunais, de uma forma ou de outra.

Passaram por uma placa: «Bem-vindos a Narino.»

– Vira à direita ali à frente – disse Masha com voz baixa.

Andrey acenou com a cabeça. Virou e abrandou.

– Sabes como percebi que estava no rumo certo?

Masha continuou a olhar a estrada rural em silêncio.

– Lembrei-me do dia em que visitei a casa de campo do Yelnik. Tinha o Andreyka, o tonto da aldeia, a trabalhar para ele. O miúdo não tinha visto o assassino, só o carro. Mas disse uma coisa a que, inicialmente, não prestei atenção. No dia em que desapareceu, o Yelnik mandou embora o Andreyka, dizendo-lhe que um amigo vinha visitá-lo, um homem muito importante a quem o Yelnik devia a vida. Masha, lembras-te de quem foi o procurador no último julgamento do Yelnik? O procurador que, alegadamente, não teve provas suficientes para condenar?

Pararam diante da última casa na rua principal e Andrey desligou o motor. Masha virou-se para ele, erguendo teimosamente o queixo como uma criança.

– Continuo sem acreditar. O Nick-Nick era o melhor amigo do meu pai e amava a minha mãe. – Masha abriu a sua porta e olhou Andrey. – E se for o Anyutin?

Andrey abanou a cabeça.

– Verifiquei e não pode ter sido ele. Um visitante não identificado tocou à campainha às quatro e meia, quando o teu padrasto estava naquele apartamento que alugou para o seu... hmm... encontro habitual. Mas o Anyutin esteve no gabinete até às oito. Os registos confirmam-no. Não é uma garantia, eu sei. Por isso não lhe disse nada sobre o Katyshev.

Caminharam os dois pelo limiar da floresta. O chão estava escorregadio com folhas caídas e musgo. Andrey pegou na mão de Masha para que não escorregasse. Estava molhada ao toque, mas a sua cara parecia calma e focada e Andrey sentiu-se aliviado. Sabia que dar trabalho árduo ao cérebro de Masha a distrairia de outros pensamentos mais sombrios. Subitamente, Masha parou de andar. À sua frente, tinham uma velha vedação de madeira, com lascas de tinta antiga caindo.

– É isto – sussurrou Masha. – A dacha do Nick-Nick. Acho que o portão fica ali.

Contornaram a cabana com cuidado. Tudo estava silencioso. Fizera frio suficiente durante os dias anteriores para os donos das dachas em redor serem forçados a regressar à cidade e também não havia muitos residentes locais por perto. Apenas fumo erguendo-se de uma chaminé ou duas no extremo oposto da aldeia. Andrey tentou arrombar o portão trancado com o ombro, mas Masha introduziu uma mão fina entre as tábuas e abriu o fecho por dentro. Virou-se para Andrey.

– Lembras-te do que disse? «Abre. Sou eu!»

– Lembro-me – disse Andrey. – O teu padrasto não conhecia o Anyutin, mas conhecia o Nick-Nick. O assassino desceu do piso de cima e tocou à campainha. Quando o teu padrasto perguntou quem era, o assassino nem sequer precisou de dizer o nome. Sabia que seria reconhecido.

Masha engoliu em seco.

– Não estão aqui. Vi a mulher do Nick-Nick hoje no hospital. Veio visitar a minha mãe. Tinha uma nódoa negra no braço. – Masha abanou a cabeça em desespero. – Sei que os assassinos em série também abusam frequentemente dos familiares, mas talvez ela se tenha magoado sozinha, de alguma forma? Tens a certeza de que é ele e não o Anyutin? Quer dizer... – disse Masha, fixando nele olhos suplicantes. – O Nick-Nick nunca foi religioso. Teria sabido se fosse!

– Queres esperar cá fora?

– Não podemos entrar sem mandado – referiu Masha, mas Andrey já se tinha aproximado da porta, erguendo uma mão e fazendo surgir por magia uma chave escondida. Com um simples movimento do pulso, destrancou a porta. Abriu-se com um guincho e Masha seguiu-o para dentro.