MASHA
A primeira coisa que Masha viu foi um ícone. Tinha o seu lugar de honra num canto, como a tradição ditava. Sobressaltou-se e trocou um olhar com Andrey, que foi suficientemente simpático para não dizer nada. Enquanto olhava em redor, as memórias desabaram sobre ela. Memórias da sua infância, dos dias em que ainda não tinha sido envenenada pela morte do seu pai.
Ali, à volta daquela mesa, tinham-se sentado juntos, limpando cogumelos que tinham encontrado na floresta. Irina ensinou-os a enfiar o tipo certo de cogumelo em fio branco grosso, pendurando-os sobre o fogão como uma fita de Natal para que secassem. E ali, naquele alpendre, a mamã tinha-se rido enquanto lavava os pratos do almoço com Nick-Nick numa tina. Na velha cadeira de baloiço, o papá tinha esticado as pernas e conversado com Irina, que cosia sempre alguma coisa, remendando ou bordando, ouvindo com inquietação o riso de Natasha vindo do alpendre, algo que Fyodor parecia nunca notar. As memórias eram tão vívidas que Masha quase esquecera porque tinham vindo. Olhou a fileira de cadeiras dobradas no alpendre e passou uma mão sobre o verniz do velho balcão. Suportava bugigangas de cerâmica, provavelmente herdadas dos pais de Irina. Um rapazinho com patins de gelo. Uma rapariguinha com esquis. Masha acreditou que conseguia mesmo lembrar-se de ouvir Irina dizer o quanto amava aquelas pequenas peças de encanto burguês, por mais kitsch que fossem. A mamã não compreendera, claro.
Um ruído arrastado arrancou-a ao torpor. Era Andrey, afastando a mesa pesada e erguendo o pequeno tapete de riscas garridas. Por baixo, o alçapão para a adega. Masha acenou com a cabeça. Também se lembrava da adega. Quando era pequena, ajudara Irina a trazer para cima frascos de cogumelos em picle e de compota.
Desceram para uma divisão que tresandava a bolor e a abandono. Masha bateu com o pé num frasco vazio, que tilintou na escuridão. Andrey puxou um fio e uma lâmpada débil pendurada iluminou a cave. As paredes estavam cobertas com prateleiras que, na infância de Masha, tinham estado repletas de provisões para o inverno, sacos de batatas e maçãs. Naquele momento, tudo o que decorava as prateleiras eram fileiras de frascos grandes e vazios. Havia espaços nas filas como dentes em falta.
– Pensei que... Tenho a certeza de que a adega era maior que isto. – A voz de Masha ecoou estranhamente naquele sítio empoeirado e negligenciado.
– Tudo parece maior quando somos pequenos – respondeu Andrey, soturno.
– Porque terá a mulher do Nick-Nick desistido da jardinagem? – Passou um dedo por um dos frascos poeirentos, pensativa. – Ficava tão excitada com as suas compotas e os seus picles! Não têm filhos, sabes, e...
– Chhhhh!
Andrey batia com os dedos por trás das prateleiras.
– Tens razão. A adega é mesmo muito maior do que parece. Ajuda-me.
Juntos, começaram os dois a tirar frascos das prateleiras. Quando ficaram completamente vazias, Andrey puxou, primeiro numa direção, depois na outra. O móvel cedeu, de repente, com um gemido, e abriu lentamente. O brilho doentio da lâmpada conseguia iluminar apenas alguns centímetros do espaço escondido do outro lado das prateleiras, uma divisão que não parecia nada empoeirada.
Andrey disse-lhe que esperasse e Masha obedeceu. Não queria ver o que havia ali dentro. Ansiava pelo conhecimento, como o seu pai costumava dizer, como um girassol alongando-se para o sol, mas percebia também que tinha chegado a uma certa fronteira, um limite. E essa fronteira passava ali, onde aquela luz débil tocava a escuridão profunda do outro lado da adega. Andrey puxou por uma lanterna e entrou. Masha sentou-se sobre um velho balde virado para esperar, esforçando-se para manter os olhos nos dedos empoeirados.
Durante algum tempo, a luz da lanterna dançou sobre uma parede apressadamente pintada de branco, mas Andrey encontrou outro interruptor, acendendo uma luz muito mais intensa e arrancando um mundo novo e brilhante à escuridão, governada por uma verdade impiedosa. Masha sentiu-se abandonada na escuridão. Naquele outro mundo, conseguia ver coisas nas paredes. Um mapa enorme da velha Moscovo pendurado ao lado de um mapa de Jerusalém. Ao lado desse, um mapa moderno com bandeiras vermelhas espetadas com cuidado. Masha engoliu em seco. Também tinha um daqueles e o seu tinha alfinetes exatamente nos mesmos sítios. Via a lente de uma câmara. Observaria as suas vítimas através daquela lente? Havia um enorme frigorífico profissional onde, aparentemente, Yelnik teria passado meio ano. Algumas ferramentas de carpintaria. Masha recordou, sobressaltando-se, a forma como a sua mãe costumava dizer ao seu pai que fosse mais como Nick-Nick, um homem dotado para o bricolage. «Mas tu, Fyodor, não conseguirias pregar um prego na parede da cozinha!» Mais atrás, uma bancada de trabalho simples e de aparência sólida. Masha não precisava de se aproximar mais para ver que estava coberta com manchas escuras.
– Vê isto. – Andrey aproximou-se de uma estante e puxou um volume fino. A Viagem de Sta. Teodora. Abriu o frigorífico. – Está desligado, mas tem o tamanho certo, sem dúvida – disse, retirando do interior algo que parecia um aquário.
– O que é isso? – perguntou Masha com voz trémula e sem se levantar do seu balde.
– Talvez uma incubadora de algum tipo? – Andrey virou a caixa de vidro com cuidado nas mãos. – Para alojar...
– Formigas. – Masha concluiu a frase com um sussurro. – Vamos sair daqui!
Andrey pegou num chicote com ponta de metal e voltou a pousá-lo.
– Sim, vamos – disse. – Vi o suficiente.
Tinha erguido a mão para apagar a luz quando Masha se levantou e disse:
– Espera!
Tentando não olhar em redor, atravessou a divisão escondida e, com um movimento rápido, arrancou da parede o mapa com os alfinetes vermelhos. Enrolou-o.
– Agora vamos – disse. Mas, a meio das escadas, não resistiu a olhar para trás, vendo o buraco negro onde estivera o esconderijo secreto. «Então era ali que estavas», disse a si mesma. A Jerusalém Celestial. Aqui mesmo nesta cave escura, para Nick-Nick... o seu Nick-Nick! A luz brilhara do alto e os anjos tinham cantado em coro. «Oh, Deus...» Subiu atabalhoadamente os últimos degraus, correu para fora da casa, debruçou-se sobre a vedação do alpendre e vomitou. A seguir, Masha sentou-se nos degraus durante muito tempo, arfando no ar gélido enquanto Andrey lhe cobria os ombros com um braço, tentando conter os tremores que lhe dilaceravam o corpo.
Quando entraram no carro, Masha quase parara de tremer. Olhou em silêncio o mapa enrolado no colo. Andrey ligou para a Petrovka e pediu-lhes que enviassem peritos forenses à dacha. Decidiu deixar escancaradas a porta da rua e a entrada da cave. Também pediu a Fomin que verificasse se Katyshev estava no seu gabinete. Não estava e não atendia o telefone. Masha ligou-lhe para o número de casa. Irina atendeu e disse que o marido não estava. Após uma pausa, perguntou:
– E como está a tua mãe?
Masha viu-se forçada a informar Irina acerca da condição da mãe e também da sua, esforçando-se para não colocar qualquer tipo de pergunta que a fizesse perceber o que se passava. Ouviu, submissa, os conselhos preocupados de Irina. («Precisas de descansar mais, Mashenka! Pelo menos oito horas de sono por noite. E experimenta um pouco de chá de menta ou camomila.») Era suficiente para fazer Masha pensar que, juntamente com o mundo inteiro, tinha, finalmente, perdido o juízo. Masha forçou-se a olhar o espelho retrovisor, vendo a floresta desaparecer atrás deles naquele início de ocaso. Havia uma única pessoa que sabia ser louca... mesmo que ele próprio não acreditasse.
Quando terminavam a conversa, Masha perguntou casualmente:
– Continuam a ir muito à vossa dacha?
Por um segundo, pensou que a chamada poderia ter caído. Mas Irina respondeu com voz triste.
– Sabes... Há muito que não vamos. Ele não tem tempo e não tem graça se for só eu. E o Nikolay diz que a casa está a cair aos bocados e nunca arranja tempo para a arranjar porque gasta toda a energia que tem a justiçar pessoas más. – Riu-se, desconfortavelmente, e Masha estremeceu ao perceber quão adequada era a descrição.
– Bom, Mashenka! Diz à tua mãe que mando cumprimentos e as melhoras rápidas – disse Irina. E desligaram.
– Portanto – disse Andrey. – Isso significa que o Katyshev não está por aqui. Achas que poderá saber que o identificámos?
– Não sei – disse Masha. – Mas acho que sim – acrescentou, com maior confiança.
Andrey olhou-a com preocupação.
– Se souber que o procuramos, poderá tentar fugir.
Masha abanou a cabeça.
– Não. Se souber que o procuramos, tentará acabar o que começou.
– Tens a certeza? – perguntou Andrey, olhando-a.
Masha riu-se, tristemente.
– Absoluta. Conheço o Nick-Nick. É muito meticuloso.