MASHA
– Ficas no carro – disse-lhe Andrey.
Beijou-a com lábios tensos. A seguir, tirou uma arma do porta-luvas e saiu. Havia menos luzes ali e anoitecera por completo. Alguns turistas vagueavam pela praça, na colina que descia de São Basílio até ao Moskva, onde o rio passava junto ao Kremlin. Masha sentava-se, aterrada, enquanto o ar dentro do carro ficava gradualmente mais frio.
«Talvez devesse ligar a Anyutin? Porque foi o Andrey sozinho? Ou talvez tenha ligado a alguém mal saiu do carro e o sítio esteja já cercado? Nesse caso, porque não tiraram estes estrangeiros todos da área?»
Masha sentiu que o tempo teria parado. Olhou em redor. Era um ponto de encontro óbvio, se pensasse bem. O cenário perfeito para o último ato daquele pesadelo. A muralha do Kremlin parecia mais alta ali do que em qualquer outro sítio. A rua fluía como uma onda, numa curva larga, até ao rio, coroada no ponto mais elevado da ladeira pela Catedral de São Basílio. O edifício estava intensamente iluminado e, dali, parecia uma casa de gengibre intrincada. Era um local preferido para adolescentes e turistas que vinham tirar fotografias, o tipo de sítio onde era possível reduzir uma cidade complexa e espantosa a uma bela fotografia cheia de brilho.
Enquanto Masha olhava a muralha da fortaleza antiga, quase negra na noite, pensou na forma como a história de qualquer cidade, de qualquer ponto no mapa onde tivessem vivido pessoas em proximidade durante séculos, era uma história de sangue e crueldade. Os seres humanos eram criaturas impiedosas. Se todo o sangue derramado nas ruas dessas antigas cidades se erguesse acima do empedrado das ruas, todos andaríamos submersos até aos tornozelos, talvez até aos joelhos. E não voltaríamos a aceitar viver numa cidade porque, de todas as cidades na criação, apenas uma estava livre de pecado... e nunca ninguém a vira. A Cidade de Deus, a Jerusalém Celestial.
Um telefone tocou e Masha percebeu, horrorizada, que era o telefone de Andrey. Tinha-o deixado no tabliê, o que significava que não podia ligar a ninguém para pedir ajuda. E significava também que estava sozinho na escuridão, caçando um assassino que o esperava nalguma sombra da muralha da fortaleza!
Com um movimento rápido, Masha pegou no telefone, saiu atabalhoadamente do carro e, como um pequeno pássaro caído do ninho, olhou em todas as direções, impotente. O telefone parou de tocar e não conseguia ver Andrey em parte alguma. As pessoas passavam a correr, empenhadas nos seus assuntos e, de repente, quis inspirar profundamente o ar frio e húmido do rio e gritar a todos eles: «Saiam daqui! Salvem-se!» Ao invés, expirou de modo superficial e irregular e começou a procurar o número de Anyutin na lista de contactos do telefone.
– Mashenka – disse, então, uma voz baixa e, por uma fração de segundo, suspirou de alívio. Graças a Deus, Nick-Nick estava ali! Saberia o que fazer. Mas, a seguir, lembrou-se e estacou.
Estava atrás dela. Masha achou que conseguia mesmo cheirar o seu hálito de velho.
– Mashenka – repetiu, com uma voz que lhe parecia simultaneamente carinhosa e completamente repelente. – O teu papá ficaria tão orgulhoso de ti. Sempre foste uma rapariga muito esperta e muito teimosa. – Uma gargalhada baixa demonstrava como parecia agradado consigo mesmo. – E sempre acreditei que tu e eu nos encontraríamos, um dia, aqui, no fim da minha viagem. Não sentia qualquer vontade de aqui estar sozinho. Mas estava certo de que me procurarias! O Fyodor também confiou em mim no início, compreendes? Mas, naquela noite, começou a fazer perguntas. Antes mesmo de lhes responder, soube. Conhecia-me tão bem, o Fyodor! Éramos melhores amigos! Mais ninguém conseguiu perceber as minhas mentiras, mas ele sempre soube!
Masha cerrou os dentes e virou-se para ele. Nick-Nick estava de pé com as mãos enfiadas nos bolsos da sua velha gabardina rasgada. Masha lembrava-se dela. Tê-la-ia há uns quinze anos. Nick-Nick sorriu-lhe. Era um sorriso cansado e triste.
– Tu... – Masha não conseguiu acabar a frase.
– Sim, Mashenka. Matei-o. Não com as minhas mãos, claro. As pessoas que me tinham subornado mataram-no. Compreendes. – Tentou aproximar-se mais ainda dela, mas Masha afastou-se. – Era uma época em que tudo estava tão confuso, Masha. Havia tanta pobreza, tanto caos. Económico, político, moral. Sentia-me perdido e confuso.
– O papá não se sentia confuso! – gritou Masha, com olhos cheios de lágrimas. E esticou o queixo com determinação. Que fazia, falando com ele, defendendo o seu pai perante um monstro? Mas não conseguia evitar. Esperara aquela conversa desde os seus doze anos.
– Não, o teu pai não se sentia confuso – concordou Nick-Nick e a sua face contorceu-se dolorosamente. – O Fyodor sempre teve moral sólida. Mas eu só descobri a minha mais tarde, quando encontrei Deus. Encontrei paz, Masha. Tornei-me um homem diferente.
– Um homem diferente? – A voz de Masha ficava mais aguda e, enquanto falava, ouvia-se outra voz, parecendo saída de um filme mau.
– Quieto!
Andrey estava a cinco passos de distância, apontando a arma à cabeça de Katyshev.
Nick-Nick segurou Masha por um ombro e puxou-a para ele. Sentiu a arma fria contra a têmpora.
– Calma! – disse Katyshev. – Ainda não chegámos ao fim, jovem. Pousa a arma. Pousa-a! – gritou. E Masha viu Andrey colocando lentamente a pistola no chão. – Mãos atrás da cabeça! – ordenou Katyshev. Masha ouviu a mudança na sua voz. Conhecia de cor cada entoação sua, mas aquele novo tom, com a histeria que o contagiava, era completamente desconhecido. Uma onda de horror dominou-a.
– Vejamos – disse Katyshev. E Masha sentiu o aço tremendo-lhe contra a testa. – Onde estávamos? Tornei-me juiz. Já não conseguia tolerar os devassos ou presenciar o seu desrespeito pelas leis. Não conseguia! Eram todos mentirosos! Tanto os que fingiam fugir como os que os perseguiam. Sim, pequei! E nenhum tribunal terreno conseguirá algum dia fazer justiça!
A sua voz tornava-se ainda mais aguda. Uivava e vibrava no ar gélido. Katyshev passou a língua pelos lábios.
– O único tribunal justo é o tribunal do juízo celestial. Um anjo e um demónio coexistem dentro de nós! Em seu nome, condenei os culpados a serem lançados às profundezas da perdição. – Riu-se, placidamente, arrepiando Masha. – Mas seria um fraco juiz, sim, se não conseguisse julgar-me a mim mesmo. Não passarei a nona portagem, o Tormento da Injustiça. Aqui são punidos os juízes injustos que absolvem os culpados e culpam os inocentes para alcançarem os seus fins egoístas. O meu destino é o inferno e morrerei aqui, na Ladeira de Vasilevsky, símbolo da boca flamejante infernal!
Com força surpreendente, o velho que fora outrora o melhor amigo do seu pai, empurrou Masha para diante. Esta cambaleou e caiu diretamente nos braços de Andrey. Katyshev retirou um pequeno frasco do seu bolso esfarrapado e, enquanto Andrey corria para ele, tão lento, tão incrivelmente lento, os seus dentes romperam o vidro frágil que continha a morte. Caiu sobre o pavimento, com o corpo sucumbindo a espasmos descontrolados. Viu Masha curvando-se sobre ele e passou o seu último segundo de vida a olhar fixamente aqueles olhos claros, tão parecidos com os de Fyodor. Nas suas profundezas, viu apenas pena desmedida.
A seguir, veio o silêncio. Os gritos cessaram, tal como o zumbido dos carros que passavam, as sirenes próximas e alguma música distante. O cheiro a asfalto molhado dissipou-se, tal como o odor das folhas caídas e da gasolina. Os apartamentos novos na cobertura de edifícios desapareceram da margem oposta do rio e o próprio rio desapareceu, juntamente com as torres altas de tijolo do Kremlin. Mas, com tudo isso, desapareceram também todos os problemas, todas as máculas, todo o sofrimento. Todos os queixumes e lamentos humanos.
E parecia-lhe que, do vazio cristalino que o rodeava, novas e altas muralhas se erguiam, lenta e triunfalmente, cintilando com um fogo frio.