Capítulo 5

UMA CRIANÇA REJEITADA

Melvig andava para cima e para baixo no pátio de Olwyn; as botas dando estalos ritmados e secos nas lajes do chão. Retrato da fúria justificada, seu rosto era uma máscara taciturna e raivosa. Olwyn tentou não se encolher quando o pai ergueu os olhos avermelhados para encará-la.

— Então, filha! — rosnou ele. — Explique de onde veio essa criança. É sua? Você traiu o nome de sua família, Olwyn? Ouvi os boatos menos de uma semana depois de você voltar.

Olwyn observava os passos do pai, que ia e vinha diante dela. Mesmo quando Melvig parou, velho e raivoso, a poucos centímetros do seu rosto, ela aguentou firme e não disse nada.

— Como viúva, você pode fazer o que quiser. Mas nem pense em me pedir ajuda quando o povo de Segontium virar o rosto para uma puta suja.

— Pai! — exclamou Olwyn, e cobriu com as duas mãos suas faces em fogo. — Não sou uma puta! Sou uma sacerdotisa de Ceridwen e sirvo à Mãe! Então, não pertenço a homem algum. Homem algum! Nem ao senhor! Não tem o direito de me acusar sem motivo!

— Se eu quisesse chamar você de vagabunda, quem ia me proibir? Ou é Branwyn quem está abrindo as pernas para um amante? — berrou Melvig, sua exasperação aumentando à medida que o rosto avermelhava. — Jamais me desdiga, mulher, pois não vou aguentar seus insultos.

— Meus insultos? Meus? O senhor me chama de puta, acusa minha filha de se comportar como uma vagabunda e é o senhor que se sente insultado? Está indo longe demais, pai. Eu nunca disse uma palavra ou ergui minha mão contra o senhor, mas está nos cobrindo de vergonha com todos os seus rompantes.

Os lábios de Melvig se torceram e ele xingou grosseiramente. Esticou a mão enorme, manchada pela idade, quase cobrindo o rosto de Olwyn com os dedos esticados e a empurrou com uma força que a fez tropeçar. Ela bateu com a cabeça na parede e caiu.

— Owlwa! — gritou uma vozinha. — Larga Owlwa!

Melvig parou, agachando-se instintivamente como um guerreiro sobre o corpo da filha. Sentiu uma ferroada na panturrilha, girou a mão enorme para se livrar do que o incomodava. Ao se virar, deparou com uma criança ainda engatinhando que o olhava, vermelha de raiva.

Confuso com a atitude combativa da criança e irritado com a pequena faca de comida que lhe espetara a perna, Melvig oscilou entre a extrema indignação e a diversão indulgente. Myrddion estava prestes a lançar seu corpo vigoroso contra o peludo e velho rei, embora ainda mal pudesse controlar suas próprias funções corporais. Olwyn sacudiu a cabeça, aturdida, e lutou para levantar.

— Myrddion! Vem cá, meu amor. Vem com a Olwyn!

Abriu os braços. A criança passou por Melvig e lançou o corpo esbelto contra o peito dela.

— Então, foi a criança — retrucou o rei, embora sua raiva parecesse se esvair com o lento fio de sangue escorrendo da panturrilha ferida. — É esse o bastardo? Pelo menos tem colhões, considerando-se que vive numa casa de mulheres e gregos.

— Este é Myrddion Merlinus, consagrado ao Deus Sol desde que nasceu e aceito pelas serpentes da Mãe antes de saber andar — Olwyn falou o mais formalmente possível, esperando dar a Myrddion uma ilusão de status. — Como pode ver, é um bonito menino.

— Mas de quem é ele? Quando vai me responder, mulher? — A astúcia invadiu a expressão do pai. — Você não é covarde ou mentirosa; no seu jeito quieto, se o filho fosse seu, você confessaria. Então, deve ser de Branwyn!

O modo definitivo com que Melvig pronunciou a frase fez gelar o sangue da filha. Se o pai acreditasse que Myrddion fosse seu filho, talvez isso lhe detivesse a mão. Mas um filho bastardo da neta não teria a mesma sorte. Nunca! O rei exigiria vingar-se da ofensa feita à sua honra.

Enquanto ela começava a implorar ao pai que fosse sensato, Melvig gritou por Plautenes, que veio correndo.

— Encontre minha neta e traga-a para mim agora. Entendeu? Não quero ficar esperando pela vontade dela. Se for preciso, arraste a menina até aqui!

Quando Plautenes concordou e se virou para cumprir a ordem, Melvig gritou que queria vinho e algo para comer. Olwyn viu uma centelha de contrariedade atravessar o rosto macio e sem rugas do criado. Melvig também o percebeu.

— Por que você tem esses pederastazinhos na sua casa? — murmurou ele, quando Plautenes saiu. — Sem dúvida, há um monte de criados Ordovice para servi-la.

Olwyn levantou o queixo, manteve Myrddion perto de si e tentou responder ao pai sem acirrar ainda mais seu temperamento. Quando o rei dos Deceangli estava irritado, frequentemente tomava decisões das quais se arrependia depois de algum tempo de reflexão.

— Pai, Plautenes não é pederasta. Nem Crusus. E não se interessam por crianças. Apenas se amam como marido e mulher. Já há muito pouco amor nesse mundo, pai, e eles tomam conta muito bem de mim e dos meus.

Olwyn notou que o pai engendrava uma resposta abrasiva quando Branwyn entrou no átrio por entre as colunas. Ela se aproximou do avô e inclinou a cabeça respeitosamente, mas o efeito se perdeu quando a garota esboçou um leve sorriso irônico. Melvig franziu a testa.

— Explique-se, Branwyn! De onde veio esse bebê? Quem foi seu amante?

— Ele não é um bebê! — Branwyn olhou gelidamente para o avô e duas vontades teimosas e egocêntricas se chocaram, desferindo fagulhas. — É filho de um demônio e é amaldiçoado. Não tocarei nessa criatura; portanto pode matá-lo se quiser, meu avô. Não vou chorar por ele.

— Branwyn! — gritou Olwyn, horrorizada.

— Você não é normal, garota! — retrucou Melvig.

— Não sou normal? Um demônio disfarçado de belo rapaz entrou no meu quarto e me estuprou. Falava uma linguagem diabólica, tanto que nem sei o seu nome. Detesto essa criatura como detesto a semente que ele plantou em mim. Se eu não sou normal, o que é então essa... coisa que minha mãe ama mais do que a mim?

Mãe, salve-nos, pois Branwyn está louca e devorada pelo ódio. Os pensamentos de Olwyn eram caóticos, mas estava também atônita ante a dureza e o gelado autocontrole da filha. A garota era uma estranha que parecia censurar a mãe por alguma traição que Olwyn jamais entenderia.

— Um demônio! — repetiu Melvig com escárnio. — É uma surpresa que ele tenha o equipamento para gerar.

— Mais do que suficiente, avô. O demônio foi cruel e determinado em me destruir por meio de seu filho. Duvide de mim se quiser, mas essa criança vai trazer má sorte para Segontium.

Subitamente, Melvig riu.

— Seu filho já fez o máximo que podia para me matar. Tem um braço forte para alguém tão pequeno. E um olho atrevido. Estou quase gostando do bastardinho.

— Ele quis me proteger, pai — Olwyn explicou, enquanto implorava mudamente à filha para ajudá-la. — Myrddion não tinha ideia do que estava fazendo. É só uma criança, e juro que não há mal algum nele.

O pai riu alto, achando graça, e Branwyn sorriu friamente. O garoto franziu a testa e se torceu nos braços de Olwyn para encarar seus acusadores. Até Melvig sentiu os olhos grandes e negros da criança fixados nele. O olhar de Myrddion era tão direto que o rei se sentiu intensamente examinado e julgado desprovido de qualquer elemento essencial. Ao fitar Branwyn, o olhar da criança estreitou-se em desagrado e em algo semelhante ao desprezo, se com menos de dois anos fosse capaz de emoções tão complexas.

Uma cautelosa batida na porta do outro lado da colunata avisou-os de que o criado voltara com vinho, cerveja e os pequenos bolos de mel que Melvig tanto apreciava. O sensível Plautenes lera a infelicidade por detrás da boca polpuda e dos olhos escuros da patroa, e correu até a cozinha.

— Ouvi vozes altas, Crusus, e a patroa estava à beira das lágrimas. Juro que a jovem patroa observava o terror da mãe com uma satisfação maldosa. Ah! Essa garota é fria como um rio no inverno! Estaríamos todos bem melhores se ela tivesse morrido no parto.

Crusus tapou a boca do companheiro com a mão, com uma careta de horror.

— Pelo amor dos deuses, Plautenes! Cuidado. O rei não gosta muito de nós, e, se ouvir suas opiniões, vai mandar que nos estrangulem. Só espero que meus pastéis adocem seu gênio.

Crusus era um cozinheiro hábil. As guloseimas desceram facilmente pela garganta de Melvig, ajudadas pelo melhor vinho de Olwyn. O rei estalou os lábios com entusiasmo e até sorriu para Myrddion, quando achava que ninguém estava olhando.

Depois de ter andado um pouco por ali e bebido alguns copos de vinho a mais, Melvig tomou uma decisão. Esta foi judiciosa e não agradou a ninguém exceto ele, mas resolveu todos os seus problemas.

— Bem, Branwyn, decidi que você me contou a verdade. Então, vou fazer com que a história de sua violação por um ser não humano se espalhe por onde deve ser ouvida. Que o mundo acredite que o bastardo é filho de um demônio, já que a mãe jurou que é. Assim, como você está manchada, mas não teve culpa, vou lhe arranjar um marido adequado antes do verão. Ou concorda com minha vontade ou enfrenta a morte, está ouvindo?

Qualquer triunfo ou alegria de Branwyn pelo fato de o avô sancionar sua história do demônio foi varrida do rosto da jovem. Sua expressão tornou-se vazia e sem forma, como se sua personalidade tivesse sido la­vada pela água ante a ideia de seu casamento iminente. Melvig viu os lábios da neta começando uma recusa e a interrompeu.

— Se me desobedecer, estará se arriscando muito. Não pense que vou mandar matá-la, porque eu não a puniria de modo tão leve pela desobe­diência. Que tal ficar trancafiada pelo resto da vida? Ou melhor, talvez seja banida só com as roupas do corpo. Violação por um demônio é algo suave se comparado à vida de uma mulher pobre e sem amigos.

Olwyn implorou à filha, com os olhos, que ficasse em silêncio. Branwyn abaixou o olhar amotinado e fez uma profunda reverência.

— Quanto a você, filha, estou magoado com seu subterfúgio. Como viúva, você tem vivido uma vida voluntariosa e agradável, mas esses dias terminaram. Vai poder escolher entre maridos adequados em reconhecimento à sua vida imaculada no passado. Mas também vai se casar de novo, queira ou não.

De modo sábio, Olwyn mordeu os lábios, mas não disse nada. Afagou Myrddion estreitamente, e a fatigada criança, que começara a chupar o polegar com aflição, abraçou-a pelo pescoço.

— Quanto ao bastardo, ele pode viver... Mas só porque mostra coragem, o que me diverte num menino. Vamos deixar que todos os homens e as mulheres da vila saibam de quem ele é filho, para que fiquem alertas a qualquer ameaça contra as almas dos pios. Se ele crescer selvagem, voluntarioso ou mau será condenado à morte, para a segurança do povo. Bem! Onde está seu cozinheiro?

Enquanto Melvig se dirigia à cozinha a fim de aterrorizar a criadagem que ali trabalhava, Olwyn soluçava no ombro de Myrddion. A criança tinha um cheiro doce e fresco, como relva cortada depois da chuva noturna, com um toque de leite quente. Olwyn respirou o menino como se pudesse escondê-lo em segurança em seu ventre que envelhecia, enquanto Branwyn replicava o choro de dor da mãe.

— Ah, Branwyn — murmurou Olwyn. — Não será tão ruim, querida. Meu pai pode ser severo e impiedoso, mas não é cruel. Vai encontrar para você um homem que a trate bem; talvez um dia você possa, com o tempo, vir a gostar dele. Eu não conhecia seu pai quando nos casamos, mas descobri que ele era gentil e compreensivo. Acabei por amá-lo tanto que, mesmo agora, a ideia de casar com outro homem me entristece muito.

Branwyn ergueu a cabeça. Olwyn recuou ante a ausência de estima no olhar da filha.

— Não sou você, mãe. Não vou me casar com homem algum!

— Você não tem escolha — suspirou Olwyn. — Por que está tão zangada comigo?

— Onde estava quando eu precisei de você? — Branwyn começou numa voz baixa e implacável que aos poucos foi aumentando de volume e paixão. — Notou como eu estava perturbada depois que o demônio me violou? Não! E por que me levou para a casa de tia Fillagh? Para se salvar da raiva do meu avô. Depois, defendeu esse produto torto de um demônio, essa coisa! Essa criatura odiosa! Você o ama! Gosta mais dele do que de mim. Espero que ele o mate da mesma forma que me matou.

Olwyn fitou a filha mudamente. Nunca entendera Branwyn, mas a amava com uma profundidade quase cega. Quase. Enquanto olhava o rosto bonito e contorcido da filha, foi surpreendida pela revelação de como gostava pouco de Branwyn sob a camada de amor que sentia.

Ela que vá, pensou Olwyn enquanto abraçava Myrddion apertado. Sabia que perdera irrecuperavelmente a filha; a deusa, porém, dera-lhe uma segunda chance através dos olhos quietos e amorosos do neto.

— Ah, Branwyn, você vai sofrer por sua arrogância e pela feiura que mora em seu coração. Pode me odiar, se lhe faz bem, pode me xingar se sua vida fica mais fácil com alguém para detestar. Mas, até que ame algo ou alguém mais do que a si mesma, você ainda pertence ao seu demônio.

Seis meses depois, Melvig deixava-se banhar pelos primeiros raios de sol da primavera, contemplando o estreito em direção a Mona. O sol dava a seu rosto um pouco de calor, fazendo a pele brilhar e avermelhando o cabelo grisalho para combiná-lo com os fios de cor em sua barba. Sentia-se expansivo e bem-sucedido, tendo negociado sem sangue a tempestade que se abatera sobre a família.

Lidar com Branwyn exigira força.

Ela o tinha amaldiçoado, usando palavras que Melvig jamais imaginara que uma garota de quinze anos conhecesse. Branwyn cuspiu e chutou, mas nem o pretendente nem o avô se deixaram abalar. O jovem guerreiro escolhido para casar com Branwyn anteviu instantaneamente as possibilidades de sua posição. De família empobrecida, casar-se com uma descendente direta do rei dos Deceangli cimentaria sua riqueza pela vida inteira.

— Deixe essa vaquinha tola se contorcer e xingar — dissera ele à sua mãe depois do primeiro e nada auspicioso encontro com a noiva. — Logo, ela será minha; então vou lhe ensinar os deveres do casamento. Preciso de sua ajuda, mãe, pois a garota foi mimada a vida inteira.

A mãe ficara tão extasiada quanto o filho.

— Lembre-se, Maelgwn, a garota foi violada por um demônio, pelo menos é isso que dizem os boatos. Claro que está manchada. Como não estaria? Claro que vou ajudá-lo a ensinar-lhe os deveres para com seu marido nesta casa, mas você tem de ser firme, entendeu? Precisa domá-la como a um cavalo, e forçá-la a aceitar o freio.

Desde o início, Branwyn ficara aterrorizada por baixo das cuspidas e dos arranhões. Via em Maelgwn um pouco do homem que a perseguia em seus pesadelos. Sob certas luzes, ele parecia mais alto, com olhos e cabelos mais negros, fazendo com que Tritão voltasse para ela outra vez, prome­tendo mortificação e dor. Ouvia a voz de Maelgwn através do véu de uma lembrança de terror; assim, o rosto largo e comum do prometido se desfigurava, assumindo os traços de Tritão; depois, voltava a ter o próprio rosto, numa mudança enlouquecedora que a enchia de horror.

Ignorando a crescente loucura da neta, Melvig estava muito contente com o casamento arranjado. Maelgwn, finalmente, casou-se com Branwyn, embora ela tenha ficado amarrada e amordaçada durante a cerimônia, com a permissão do marido. Depois, Branwyn foi carregada para Tomen-y-mur, onde Maelgwn tinha uma propriedade decadente que manteria a neta do rei ocupada por anos seguidos. Melvig esfregou as mãos, aprovando, ao pensar como a rebelde Branwyn fora finalmente reduzida à obediência.

Maelgwn não era um monstro. Apenas um filhinho de mamãe que jamais se libertara do excessivo amor materno. A primeira noite do casamento foi uma grotesca simulação de amor, em que Branwyn lutou como uma mulher possuída. A mãe dele o avisara de que a nora não seria aquiescente até ter um filho. Assim, o leito nupcial testemunhou estupros sucessivos, embora Maelgwn vomitasse a rica comida do banquete de casamento quando forçado a amarrar os braços da noiva para abrir suas pernas.

Durante o dia, Branwyn era obrigada a trabalhar como uma criada de cozinha sob as ordens da sogra, até que o ódio escavou profundamente sua natureza inflexível. A jovem aguardava, sabendo que o demônio e sua semente a tinham trazido para aquele lugar. Sabia também, com a total certeza dos loucos, que o dia de sua vingança chegaria.

Olwyn aceitara o pretendente mais jovem apresentado pelo pai. Eddius era o filho mais novo de uma família de linhagem romana, o que o tornava um noivo menos adequado do que seus colegas guerreiros. Melvig imaginou, incorretamente, que Olwyn escolhera o homem mais jovem porque ela teria superioridade em status, riqueza e experiência.

Mas o rei estava errado. Cada pretendente fora cuidadosamente avaliado por um único critério — sua reação a Myrddion. Somente Eddius sorri-ra para o garoto e o suspendera nos braços fortes. Somente Eddius atirara o garoto para cima até que Myrddion estourasse numa cascata de risos. Olwyn viu-se conquistada sem precisar de uma palavra bonita ou de uma promessa vazia.

Quanto a Myrddion, todo o mundo sabia então de onde vinha esse estranho neto. Melvig sorrira de modo apreciativo. Branwyn e Olwyn tinham sido espertas nas mentiras, pois quem antagonizaria voluntariamente um demônio ao matar seu filho? Ao mesmo tempo, quem seguiria o filho de um demônio ou ergueria uma espada em sua defesa? Melvig assegurara que Myrddion jamais perturbaria os legítimos reis dos ­Deceangli ou dos Ordovice, simplesmente afirmando que Branwyn falara a verdade sobre o pai do menino.

Ela estava, então, grávida de novo, assim como sua mãe, e Melvig se congratulava com a própria esperteza.

— Então, é o fim desse pequeno drama — disse Melvig alto para o vento. — Com sorte, Olwyn e sua ninhada não causarão mais problemas enquanto eu estiver vivo.

Os anos se passaram lentamente, cada estação mesclando-se à seguinte. Myrddion foi atraído pelas praias perto de Segontium do mesmo modo que Branwyn. As tempestades cobriam as areias com destroços marinhos e com o tesouro de conchas, peixes, estranhas madeiras retor­cidas e os restos de navios naufragados. Como a mãe, o garoto criava grandes fantasias sobre si mesmo como herói enquanto buscava alívio de sua dolorosa solidão. Olwyn tivera um filho, seguido por outro, e, com dois bebês para cuidar, restava-lhe pouco tempo para o neto, embora jamais cessasse de amá-lo.

Pouca coisa escapava ao olhar esperto e penetrante de Myrddion. Sua grande inteligência erguia barreiras entre ele e o mundo, as quais às vezes resistiam inclusive à enorme capacidade de amar de Olwyn. As constantes perguntas do garoto e suas agudas percepções deixavam a ela e Eddius sem palavras, preocupados que Myrddion murchasse sem companhia para estimular seu intelecto em formação.

O garoto também não conseguia juntar-se aos jogos e às brincadeiras de batalha das outras crianças de Segontium. Desde que fora obrigado a raciocinar, Myrddion viu-se forçado a entender que era diferente e assustador. As crianças da aldeia lhe lançavam insultos até que o sangue do garoto lhe subia à cabeça.

— Bastardo! Semente do demônio! Bastardo! Demônio!

Quando olhou na caçamba de água deixada para os cavalos e viu seu rosto moreno cercado por uma juba selvagem de cabelos negros, ­Myrddion se perturbou tanto que desfez o reflexo com a mão.

Feio! Feio e amaldiçoado!

Com sensibilidade habitual, Olwyn notou o incomum silêncio do neto e sua profunda depressão. De coração opresso, reconheceu os sinais de uma raiva crescente. Então, lembrou-se do aviso de Fillagh e da praga posterior de Branwyn.

— Só o amor pode derrotá-lo e torná-lo humano — exclamara Fillagh, os olhos cheios de advertência.

Olwyn jurara amar tanto Myrddion que a rejeição de Branwyn a ele não teria importância. Porém, naquele momento, aparentemente tinha.

— Myrddion, querido, venha cá.

O vigoroso garoto hesitou um pouco, mas a instintiva antena de Olwyn percebeu a dúvida momentânea. Então, abriu os braços, e ­Myrddion correu para eles, acolhido pelo calor da avó.

— Por que está tão perturbado, meu querido? Eu sei que está, franzindo essas sobrancelhas pretas. — Aninhou-o contra o corpo e sentiu o garoto relaxar.

— Sou feio! — gemeu Myrddion com a voz abafada, e Olwyn pôde sentir as lágrimas dele através de seu peplo.

O garoto fez uma pausa. Mostrava intensa infelicidade.

— O que é bastardo, Olwyn? Por que as outras crianças me odeiam?

A avó suspirou e beijou o cabelo espesso e lustroso do neto. Tristonha, procurou as palavras que mostrariam a esse estranho menino quanto era realmente amado.

— Você não é feio, Myrddion. É lindo. As crianças da aldeia o invejam porque você é mais alto do que elas, e muito mais forte e atraente do que jamais serão. Como poderia a Mãe rejeitá-lo quando ela nos tem todos perto do coração porque lhe pertencemos? E avó Ceridwen o ama porque você é o menino dela. As crianças acham que podem magoá-lo e por isso gritam essas mentiras. — Ela se afastou um pouco e pôde ver o rosto rebelado e cheio de dúvidas de Myrddion. — Bastardo é alguém cujo pai não se conhece, meu amor. Seu pai é um desconhecido, é verdade, mas não fique escutando essas fofocas bobas. Olwyn sempre lhe dirá a verdade.

Então, explicou ao menino quão profundamente Branwyn fora ferida, e por quê. Numa linguagem simples, contou sobre a violação na praia, enquanto Myrddion questionava os motivos da falta de amor de sua mãe por ele.

— Sabe como seu peito se aperta quando os meninos da aldeia lhe gritam coisas cruéis? Imagine esse sentimento, só que maior, como se seu peito apertasse a cada minuto do dia, por todos os dias. Então, imagine que, tendo sido tão ferido assim, lhe pedissem para amar alguém parecido com a pessoa má que lhe causou tanta dor. Sua mãe não aguenta ficar sempre com medo; portanto, prefere não ver você e se recusa a amá-lo. Sua pobre mãe enlouqueceu um pouco com as lembranças de um homem muito ruim, Myrddion. Ela não pode evitar o que sente.

Abraçou o neto mais uma vez, ouvindo o pequeno suspiro de conforto e aceitação de Myrddion.

— Portanto, meu querido, a culpa não é sua. Um homem mau fez você, mas eu também o fiz, assim como Branwyn e o avô Melvig, que é um rei. E, bem no início, também a avó Ceridwen, que veio com a Mãe e suas serpentes para mostrar quanto as duas o amam. Nunca se esqueça, querido menino, de olhar abaixo da superfície e não julgar uma pessoa pelo que dizem. O que fazemos e o que somos é o que importa.

Assim, Myrddion aprendeu sua primeira e maior lição, enquanto Olwyn se desviava das piores consequências da mentira sobre o nascimento dele.

Mas ele não era apenas alguém que sofria por medo e solidão. Era também uma criança raivosa, especialmente quando acuada. Certo dia, depois de meses de xingamentos e deboches, a criatura raivosa que coexistia com seu eu racional irrompeu de seu esconderijo como um lobo a atacar. Com os olhos avermelhados de fúria, Myrddion atirou-se ao garoto maior, batendo com os dois punhos na carne nua a seu alcance.

As crianças menores gritaram e fugiram do moinho no qual ­Myrddion se transformara. Com pés, mãos e até com os dentes, o garoto atacou o maior de seus atormentadores com uma ferocidade animal. Os garotos maiores deram mais golpes do que receberam, fazendo com que ­Myrddion logo estivesse coberto de ferimentos e sangue. Mas, mesmo quando um menino grosseiro, quatro anos mais velho do que Myrddion, quebrou deliberadamente o polegar do garoto de seis, este, enraivecido, atingiu-o com um soco certeiro da mão machucada. Embora logo se visse soterrado por uma massa de braços e pernas que chutavam, Myrddion não mostrou sinal algum de submissão até que Eddius entrou no meio das crianças, puxando o garoto pela túnica rasgada.

— Que vergonha, meninos! Que vergonha! Cinco contra um é injusto, e Myrddion tem a metade do tamanho de vocês. — Os meninos da aldeia abaixaram a cabeça, constrangidos ante a censura do adulto.

— Foi ele quem começou! — murmurou o garoto maior, limpando um longo fio de sangue da boca. — Ele afrouxou meu dente!

— Qual é sua idade, Brynn? Dez anos? Onze? Que vergonha, Brynn! Seu pai devia manter você ocupado na forja dele se você não age como um bom celta. E você, Fyddach, seu pai é um guerreiro em Canovium. O que ia achar se o visse batendo num garoto que é metade do seu tamanho?

A maioria dos garotos acusados arrastou os pés e abaixou a cabeça, humilhada. Fyddach, porém, era feito de material mais duro e ergueu agressivamente o queixo.

— Ele é o filho de um demônio, senhor, e todos sabem disso. Ele não deve se misturar com quem é melhor, devia ficar longe de nós. Não queremos ele por perto nem gostamos dele. Já dissemos a ele para ficar longe. Então, ele não pode se queixar se o xingamos de nomes que são verdadeiros. Ele é bastardo e filho de demônio. Até o rei diz isso.

Eddius soltou um suspiro exasperado e segurou melhor a túnica de Myrddion. Os olhos da criança estavam vermelhos de mágoa e fúria.

— Ouçam, seus jovens tolos. Myrddion nasceu em berço melhor do que o de qualquer um de vocês e mostra duas vezes mais coragem. Como lhes tratará quando for adulto e ganhar sua espada? Já pensaram nisso, filhos de ferreiros, pescadores e comerciantes? Não, claro que não. E, se o pai dele é um demônio, imaginem o que ele poderá fazer com vocês quando dominar os poderes dele. Certamente, não pensaram nisso! Agora, tratem de ir embora, e, se eu pegar vocês machucando esse garoto de novo, vou curtir o couro de vocês com a parte sem gume de minha espada.

Os meninos correram, aliviados, mas palavras de deboche ainda flutuaram às costas de Eddius e Myrddion na brisa da manhã.

— Agora, rapaz, deixe-me ver os danos. Ah, sua avó vai me matar quando vir esses machucados, seu menino tolo.

Estalando a língua e sacudindo a cabeça, Eddius arrastou Myrddion ao poço comunal, colocou-o num degrau de ardósia e usou um retalho da túnica do garoto para limpar seus muitos cortes e machucados.

— Idiota! — murmurou sorrindo.

Era difícil zangar-se com Myrddion. O rosto carismático e cativante do garoto atraía as pessoas.

— Você podia se machucar feio, Myrddion. De qualquer modo, vamos ter de ir à curandeira para consertar esse polegar quebrado. E, por esse corte profundo no seu braço, algum daqueles garotos devia ter uma faca. Olwyn vai ficar preocupada.

— Desculpe — disse o garoto, sentindo-se culpado. — Perdi a paciência quando ficaram me xingando. O que há de errado em ser bastardo, Eddius? A avó explicou que o fato de meu pai ser quem é não me faz bom ou mau, só eu posso escolher quem serei. Mas como saber com certeza se meu pai não era um demônio? Ai!

— Seu polegar está quebrado. Venha, Myrddion! Aperte esse pano contra o braço e procure não chorar. Lágrimas sempre atiçam os fanfarrões.

Os lábios do garoto tremeram, mas ele mordeu a língua com força, engolindo as lágrimas por detrás da dor. Encarou Eddius; parecia tão alto e forte que Myrddion desejou que ele fosse seu pai.

— O senhor não está me dizendo a verdade. Por que as pessoas não dizem a verdade?

— Porque a mentira é mais fácil, rapaz. Às vezes, quando nos pegam fazendo algo errado, e a gente sabe que é errado, a tentação de dar uma desculpa é muito forte; assim, ninguém se zanga com você.

Eddius tinha vinte e nove anos, dois a menos que sua extraordinária mulher, e todos os dias agradecia aos deuses a sorte de tê-la como esposa. Myrddion era tão agradável e maduro que não era difícil tratá-lo como um pequeno adulto. Eddius passou a mão bronzeada pelo cabelo cor de areia e encarou o garoto com afetuosa exasperação. Ajoelhou-se perto dele ao lado do poço, esquecido dos olhares de um grupo de mulheres que ostensivamente dali retiravam água, mas, na verdade, queriam ouvir tudo que valesse a pena.

— Segundo sua mãe, ela foi violada por um demônio disfarçado como um belo jovem. Ela depois contou a provação a Olwyn e revelou que o animal quase não falava a nossa língua. Lembra-se do que eu disse sobre as desculpas? Tudo o que Branwyn fez de errado foi desobedecer à mãe e ir sozinha à praia, mesmo sabendo que não devia. Mas, para responder à sua pergunta: você nunca vai saber com certeza que seu pai não é um demônio, porque há muitos homens maus no mundo. Até o dia de hoje, sua pobre mãe odeia todos os homens, até o marido, e se recusa a cuidar das filhas; tudo por causa de um homem mau.

Triste, Myrddion tinha lágrimas nos olhos. Eddius lhe deu um rápido abraço para mostrar seu amor pelo menino.

— Dentro da concha de ouro no seu pescoço está o anel de seu pai. Sua mãe entregou o anel a Olwyn, dizendo que o demônio tinha lhe dado o objeto. Parece que pertenceu à mãe do demônio, que a matou ele próprio. É, eu sei... Se sua mãe disse a verdade, seu pai é uma criatura horrível, embora eu não saiba dizer se é um demônio ou não. Além do anel do demônio, há outro dentro da concha, um anel muito antigo e especial. Foi encontrado nos campos de seu tio-avô Cletus, e serviu como bulla a você quando foi consagrado ao senhor da luz. Quando você for homem, espero que use o anel romano com a pedra do sol-fogo. Seu nome é ­Myrddion por causa do sol. Você pode ser bastardo, mas seu nascimento e sua linhagem o destinam à grandeza. — Eddius pôs o braço nos ombros de Myrddion. — E nós amamos você, garoto, como todo o mundo sabe. Pouco importa as crianças da aldeia.

Era quase meio-dia.

O sol impiedoso no cabelo empoeirado do menino revelava seu brilho intenso de asa de corvo e um toque de azul. Os olhos de Myrddion, magoado pelo que lhe era dito, apelavam especialmente para a natureza solidária de Eddius. A criança lutava para entender a crueldade da violência de muito tempo atrás. Bem mais sábio que seus anos, Eddius viu que o garoto assimilava o conceito de violação e assassinato, sentindo-se ainda mais manchado por sua origem.

— Como filho dos deuses, essa história deve livrar você de sentir qualquer culpa pelo que seus pais fizeram. Talvez um dia você encontre seu pai e descubra seus ancestrais.

Myrddion concordou com a cabeça com seriedade adulta.

— Então, os garotos da aldeia não mentiram. Sou a semente de um demônio.

— E você acha que é mau? Será que sua avó pode amar uma criatura cruel vinda do Caos? Não. Você é Myrddion e é amado — sorriu para o jovem pupilo. — Mas agora precisamos ir à curandeira, senão Olwyn vai me bater com uma panela de ferro até minha cabeça zumbir.

Abalado, Myrddion riu educadamente ao pegar a mão que Eddius lhe estendia e levantou com cuidado.

— Você foi muito corajoso hoje, Myrddion — acrescentou Eddius suavemente. — Tive orgulho de você.

— Perdi a paciência — murmurou o garoto. — Eu podia ter machucado um dos meninos, e isso seria errado.

— É você quem ainda está sangrando — rebateu Eddius com um sorriso. — Eram muitos contra um, então foi justo.

Os dois caminharam pelas ruas estreitas de pedras redondas que levavam à periferia da comunidade. Ao fim de um empoeirado caminho, uma isolada cabana cônica separava-se das outras por um lago de água salobra rodeado de aveleiras e tojos floridos e espessos. Uma fina trilha de fumaça subia de um orifício no telhado coberto de relva. Nenhum outro sinal de habitação era visível para Myrddion. Na frente do chalé bem fechado por uma porta pesada, grandes vasos continham diversas plantas e sementes, enquanto muitas ervas, familiares ou estranhas, cresciam numa horta bem cuidada junto a uma das paredes de ardósia sem reboco. Sobre um suporte, vários cortes de couro secavam e se enrijeciam ao sol. As narinas sensíveis de Myrddion reconheceram o aroma de peixe defumado vindo de uma pequena cabana por trás do chalé, com relva no telhado.

— Olhe, Myrddion. A curandeira tem colmeias. O pessoalzinho das abelhas fornece mel a ela em troca de casas sólidas para morar.

Eddius apontou duas colmeias cônicas feitas de palha trançada dispostas em mesinhas acima do chão para proteger as colmeias de predadores grandes e pequenos. Os olhos curiosos de Myrddion avistaram outras hortas de legumes, tinas com gerânios em pequenos tumultos vermelhos, macieiras, várias nogueiras e um pequeno cercado onde uma vaca e seu bezerro recém-nascido pastavam sob um telheiro protetor. O nariz do menino registrou que perto dali porcos grunhiam e rolavam na lama, enquanto galinhas cacarejavam, procurando sementes de grama atrás do chalé. Até o som de patos vinha do lago. Myrddion arregalou os olhos, surpreso, quando alguém irrompeu de um atalho entre o tojo espesso e as amoreiras silvestres.

— Eddius. O que traz você à minha porta, rapaz?

Só a cadência da voz indicava que a figura se aproximando era uma mulher. O tom era melodioso, doce e suave como mel novo, e Myrddion abriu a boca de prazer ante sua música. A curandeira tinha os cabelos muito longos e cheios de folhas, gravetos e pedacinhos de palha, o que deixava seu rosto quase obscurecido. As tranças selvagens eram cinza-ferro, assim como as roupas, em várias camadas sobre a forma gorducha. A mulher se lançou para frente com seus pés extraordinariamente pequenos e deu tapinhas no braço de Eddius com dedos também pequenos e gorduchos.

— Entre! Entre! Estou vendo que o jovem senhor andou guerreando, digamos. Vamos consertá-lo logo, não é, Budica?

Myrddion sacudiu a cabeça, confuso. Quem era Budica? Como se respondesse à pergunta não formulada, um grande cão vira-lata saiu das amoreiras e postou-se, ofegando e sorrindo, junto à dona.

— Budica, este é Eddius, Senhor do Estreito de Mona — disse a curandeira com total seriedade. — E o rapaz é neto da esposa dele, ­Myrddion, acho eu, que veio até nós para ser curado.

A cadela pareceu fazer um aceno de cabeça para os novos conhecidos e lambeu hesitante a mão livre de Myrddion. O menino enrubesceu e se arriscou a alisar de leve a testa larga e chata da cachorra, que se contorceu contente.

— Budica gosta de você — a curandeira sorriu satisfeita, enfiando um pedaço de barbante pelo buraco na porta até que esta se abrisse para o escuro interior do aposento único. — Entrem! Entrem!

A curandeira pôs-se a tirar as camadas de roupa de lã enquanto atiçava um fogo central, mexia o conteúdo de uma grande panela de ferro num tripé sobre carvões e apontava um banco de madeira posto junto ao fogo. A cada camada de roupa removida, o rosto da mulher ficava mais visível, embora fosse grande a obscuridade da cabana depois do sol brilhante do meio-dia de um final de primavera.

— Muito bem, jovem Myrddion! Vamos ver o que você fez consigo mesmo.

O garoto parecia tão espantado quanto um jovem cervo captado pela luz da tocha de um caçador.

— Mas ainda não me apresentei a você, não é? Puxa, eu seria capaz de esquecer minha cabeça se não estivesse pregada no corpo. Eu me chamo Annwynn, um nome muito nobre para uma mulher tão comum. Não tenho tesouro nem caldeirão de abundância, e não sou parenta da deusa Ceridwen, embora a lenda diga que você é, jovem. Não, Annwynn é apenas uma curandeira. E feliz por servir como pode. Agora tire a roupa até os quadris, amor, e fique perto do fogo para eu poder vê-lo melhor.

Myrddion olhou para Eddius. O guerreiro concordou com a cabeça, num leve sorriso. Enquanto o garoto se despia, Annwynn ocupava-se no pequeno aposento, pegando objetos de cerâmica e jarros de madeira, uma pequena caixa feita de madeira de pereira, trapos macios e um recipiente com algo de cheiro maravilhoso, especialmente quando ela lhe acrescentava água quente de um estranho recipiente que pendia de um gancho no tripé sobre o fogo.

— Hidromel doce e quente — explicou ela em poucas palavras, passando a caneca a Eddius, que bebericou com suspeição. O amplo sorriso que se abriu no rosto dele ao provar o sabor da bebida fez Annwynn rir, deliciada. — Alguns dizem que a velha Annwynn tem mágica nos dedos. Outros a chamam de feiticeira. Mas ela faz um bom hidromel, não é, meu bravo senhor?

— É muito bom — respondeu Eddius, estendendo suas longas pernas ante o fogo.

— E quanto a você, jovem Myrddion. Vejo que é um garoto bonito, mas está machucado. Felizmente, tenho um bom olho para dar pontos.

Myrddion era jovem, mas não tinha nada de tolo. Ao ouvir que seu braço seria costurado como a bainha de uma túnica, ergueu os olhos para a curandeira. Ao fazer isso, todas as suas dúvidas se dissiparam.

Annwynn o encarou, e Myrddion sentiu o cheiro de maçãs maduras que vinha dela. Seu rosto era quase redondo sob a grenha que ela afastava do rosto, amarrando-a atrás com uma tira colorida de pano. De faces rosadas e redondas sob as maçãs do rosto baixas, mesmo seus olhos pareciam protuberantes e azuis demais para serem verdadeiros. Os espessos semicírculos negros das sobrancelhas lhe davam uma expressão de permanente surpresa. A ingênua bondade daqueles olhos tão aber­-tos desarmava imediatamente quem a olhasse.

Seu nariz curto e arrebitado terminava numa nítida bola, levando os outros a esconderem um sorriso ao notá-lo. Abaixo daquele nariz de palhaço, havia uma boca delicada e cheia, naturalmente úmida e vermelha. Nem mesmo seus pequenos dentes regulares ameaçavam, já que uma brecha entre os dois da frente acrescentava suavidade e um humor inofensivo ao efeito total. No centro do queixo redondo, escavava-se uma covinha, enquanto outras nos cantos da boca aumentavam a atratividade daquele rosto. A curandeira levava os outros a sorrir mesmo quando o coração deles pesava de dor e perda.

Annwynn estava com mais de quarenta anos, uma considerável meia-idade para uma mulher. Entretanto, nenhum cidadão de Segontium podia contar uma curiosidade sobre o passado dela. A curandeira surgira na cidade uns doze anos antes, e se tornou rapidamente valiosa por seu conhecimento de ervas, sua jovialidade e a habilidade como parteira.

Pegando uma agulha de um azeitado pedaço de couro, Annwynn colocou-a numa pequena tigela de água quente e vasculhou sua caixa de pereira em busca de outro pacote misterioso. Com um gritinho de triunfo, extraiu dela uma bola de fios muito finos feitos de intestinos de animal. Myrddion arregalou os olhos quando ela tirou do pacote uma estreita vareta de ferro, menos larga do que uma pena, e colocou-a no fogo.

— Você é corajoso, jovem Myrddion? Preciso lhe dar suco de papoula? Ou consegue ficar firme enquanto eu cauterizo esse corte? Se a faca que fez esse corte era de um garoto da aldeia, devia estar muito suja. Se não estiverem totalmente limpos, os ferimentos apodrecem; então, vou lavar o seu com água limpa — sorriu para Myrddion. — Garoto corajoso, você nem estremece! É, sangrou bastante, mas preciso ter certeza. Senão, você vai se arrepender muito.

— Posso ser corajoso — murmurou Myrddion. — Mas preciso entender o que está fazendo.

Annwynn riu até chacoalhar a barriga.

— Olhe só, ele é bem maduro para a idade, senhor Eddius! Fala como um pequeno juiz, e não como um garoto. Que maravilha!

E riu até toda a sua carne estremecer. Myrddion a observava, fascinado pela cena. Não percebeu que Annwynn removera a vara de ferro do fogo até sentir uma queimadura súbita e extrema no ferimento. Teria feito um movimento de recuo, mas Annwynn o agarrara com o outro braço; assim, viu-se imobilizado contra o corpo gordo dela. A cauterização foi rápida, mas Myrddion sentiu tudo e observou tudo, os olhos atraídos para a vareta de ferro cor de cereja a lhe sondar o ferimento.

— Por que você... Cauretizou? — perguntou ele, esforçando-se para se lembrar da palavra.

Quando Annwynn afastou a vareta do ferimento, libertou os braços do garoto.

— A palavra certa é cauterizar. Você é estudioso, criança?

Myrddion confirmou com a cabeça.

— É usada para queimar os humores ruins que fazem a carne apodrecer. Muitos curandeiros não acreditam nesses humores, mas eu sim, e meus pacientes quase sempre vivem. Meu professor foi um velho judeu nascido em Damasco, fosse lá onde isso fosse. Sabia ler muito bem, mas eu não sei; de onde eu vim, não ensinam nada às meninas.

Enquanto falava, suas mãos não paravam um segundo. Myrddion percebeu que ela enfiara uma agulha com fio através de sua carne, unindo as duas partes do ferimento e dando um pequeno nó. Embora doesse, ele estava fascinado.

— De onde você vem, Annwynn? — perguntou sem erguer os olhos dos dedos dela.

— Eu? Ah, venho de lá longe no sul, de Portus Lemanis, onde os navios mercantes chegam da Gália. É um lugar onde o mundo inteiro chega e parte do mar. Que coisa, criança, você me faz falar como ninguém. Pronto! Acabou. Apenas três pontinhos bem feitos. Acho que ficará uma pequena cicatriz, mas você não vai ligar para isso.

Annwynn pegou um jarro de madeira no qual havia uma espessa substância marrom de cheiro estranho. Usando uma pequena pá, besuntou o ferimento abundantemente com o creme e, então, ainda sem tocar nele mais do que o necessário, enfaixou o braço do garoto com um velho trapo limpo.

Myrddion observou a bandagem improvisada com suspeita.

— Não pense que os humores ruins vão entrar no seu ferimento por causa de um pano sujo. Eu fervo esses trapos por meio dia e os seco ao sol. Está satisfeito, meu jovem senhor?

Myrddion enrubesceu.

Por meia hora, Annwynn espalhou seu creme marrom nas esfoladuras e nos hematomas, cobriu os cortes e então pôs uma tala no polegar quebrado do garoto. Ela o machucou um pouco, mas Myrddion estava tão deslumbrado com tudo que Annwynn fazia que apenas mordeu os lábios ao sentir dor.

— Sua noite vai ser bem ruinzinha. Por isso, estou dando a Eddius um pouco de suco de papoula com hidromel para ajudar você a dormir. —Deu uns tapinhas de leve no rosto do garoto e o ajudou a se vestir, devido ao polegar na tala. — Volte daqui a dois dias para eu verificar se o ferimento ainda está limpo e cicatrizando.

Budica os acompanhou até a porta. Ao se curvar para alisar suas orelhas, Myrddion sentiu os maltratados músculos reclamarem e se contraiu. Enquanto isso, Annwynn procurava freneticamente alguma coisa num baú no canto. Com um grito de entusiasmo, pegou um pequeno objeto, foi depressa à porta e entregou-o a Myrddion.

— Isso é por sua coragem, queridinho! É a coruja da deusa e representa o caçador e a sabedoria. É você, meu jovem senhor.

Myrddion contemplou a pedra que enchia a palma de sua mão. Alguém se dera ao trabalho de esculpir dois semicírculos no objeto, que se encontravam para formar a sugestão de um bico. Dentro dos dois semicírculos, círculos menores tinham sido riscados para imitar olhos rudimentares. Pigmento branco sublinhava o desenho entalhado para acentuar a semelhança com uma coruja.

— Obrigado — disse o garoto. — Vou guardá-la para sempre.

— Não vai não. Mas a coruja protegerá você e nunca o deixará — respondeu Annwynn enigmaticamente. Depois, chamou a cadela e fechou a porta do chalé.

Enquanto Myrddion seguia Eddius ao longo do caminho para a vila, o garoto lutava para ordenar os pensamentos. Sentia-se exausto e com dor, e a relva longa e áspera acima da praia prendia-se às suas sandálias, fazendo-o tropeçar e cair. Eddius viu que o garoto sofria ao se levantar; então, ergueu-o nos braços fortes. Contra sua vontade, Myrddion sentiu a cabeça pender. Muito antes de avistarem a vila, o garoto adormeceu pesado no ombro de Eddius.

O marido de Olwyn sorriu enquanto continuava a andar, suportando o corpo esbelto de Myrddion sem dificuldade. Tinha dois filhos seus e os amava profunda e visceralmente com paixão. Mas Myrddion ligava-se de modo estranho à mente de Eddius. O guerreiro pensou consigo, no atalho arenoso sobre a praia, que o garoto provavelmente eclipsaria até o bisavô, o rei dos Deceangli. Havia nele algo que prometia grandeza.

Eddius suspirou.

A baía era uma ampla extensão de areia, com ondas rendilhadas e águas profundas e escuras onde se erguia a ilha de Mona, toldada por nuvens de chuva e por sua própria história sangrenta. Myrddion abriria caminho ali, à sombra da tragédia, ou viajaria para mais longe do que Eddius poderia imaginar?

Quando suas sandálias pisaram o pavimento de pedra do pátio da frente da vila, ele sacudiu os ombros e acordou o garoto.

— Chegamos, Myrddion. É hora de contar o que aconteceu para Olwyn.

Bem longe dali, Ygerne gritava de agonia nos momentos finais do parto. Num jorro de sangue e muco, a menininha, com a membrana amniótica sobre o rosto, foi expulsa para um mundo cruel e pouco acolhedor. Depois de lavada e enfaixada a criança, Ygerne ergueu os braços para receber a primeira filha com lágrimas de pura alegria.

— Morgana! Eu a chamarei de Morgana, pois ela é toda minha felicidade e esperança — chorou Ygerne, as lágrimas misturando-se ao suor do parto. — Agora, levem-na ao pai, o rei Gorlois, e lhe digam que tem uma bonita filha que trará distinção à sua casa.

As criadas correram para obedecer a ela, mas a velha parteira ficou onde estava, examinando a membrana da criança. E, diante daquela aberração da natureza, ela estremeceu. Crianças nascidas com essa marca sofriam de um dom de profecia e, segundo a superstição, nunca se afogavam. A velha não gostava de tocar numa criança tão encharcada em magia feminina.

— Cuide desse capuz de pele, senhora — murmurou para Ygerne. — As lendas dizem que, se uma membrana dessas cair nas mãos erradas, quem nasceu com ela morrerá; ou no mínimo estará em poder de quem a possuir.

Ygerne pegou a coisa feia e a escondeu entre as almofadas.

— Esteja certa de que ficará bem escondida, bondosa parteira. Pois juro que nada vai fazer mal à minha filha. Nem nesta vida nem na próxima. Obrigada, boa mulher, pela ajuda e pelo conselho.

— Não é nada, Lady Ygerne, nada — protestou a parteira. Mas, quando deixou o castelo no dia seguinte, sentiu-se libertada de uma prisão. E jurou com todas as forças que Tintagel jamais veria sua sombra de novo.