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Mas um dia Elas voltaram, e disseram que assim não podia ser, que Elas eram a Lei, e aquilo era contra a Lei, que a minha mãe até podia ir presa ou pagar uma multa, e que eu tinha de entrar para uma escola.
— É que o ensino é obrigatório, tá a ver? — disse A-Mais-Velha.
— Ninguém a ensina melhor do que nós... — disse Mercúrio. — Aposto que nenhum dos palhaços... sem ofensa, claro... Quero eu dizer, perguntem lá a essas crianças que andam na escola se elas sabem quem foi o Gil Vicente, e depois venham falar comigo...
— Não é uma questão de saber quem foi ou não foi Gil Vicente, tá a ver?
— Ai não? Então é uma questão de quê?
— O senhor sabe.
— O que eu sei é que ela sabe ler, sabe escrever, sabe contar, até sabe cantar em brasileiro, e sabe quem foi Gil Vicente. Isso é que eu sei. Digam-me lá o que é que ela vai fazer à escola?
— Por favor não nos torne as coisas mais difíceis... — murmurou A-Mais-Nova.
— Ir à escola é obrigatório e acabou-se — disse A-Mais-Velha —, e se não for a bem é a mal. Veja lá se quer que a criança vos seja retirada e entregue a outra família? Até porque os senhores não têm nenhuns direitos sobre ela!
— Ai não exageres, isso também era de mais... — choramingou A-Mais-Nova ao ouvido Da-Mais-Velha.
Se olhar matasse, o olhar Da-Mais-Velha tinha ali cometido o crime do século.
— Cala-te e deixa-me trabalhar! Sei muito bem o que estou a fazer!
Então mandou a minha mãe «tratar da papelada», e pedir tudo com urgência se não queria pagar multa. Estavam as duas com cara muito séria.
— Veja lá se quer que a criança lhe seja retirada! — repetiu muitas vezes.
E a cara da minha mãe ficava branca, ainda mais branca do que era costume, e as mãos começavam a tremer.
Às vezes a minha mãe tremia muito.
E não era faz-de-conta, como no palco.
Era mesmo a sério, e sem direito a palmas.
Então, e contra a vontade de toda a gente, lá me levaram para a escola.
No primeiro dia foi A-Mais-Velha e A-Mais-Nova que me foram buscar à Feira, logo de manhã, e me levaram — se calhar com medo que eu não fosse.
Apesar de ser muito cedo (e toda a gente se deitava sempre muito tarde...), todos apareceram ao portão a dizer-me adeus.
Parecia que eu ia partir para muito longe, ou fazer uma viagem donde ninguém sabia se iria regressar.
— Credo, a miúda só vai à escola! — resmungou A-Mais-Velha. — Não vai emigrar para o Brasil!
Nos outros dias combinou-se que seria a minha mãe, ou a Justina, ou a Teodora, ou o Amâncio Vaz, enfim, o que estivesse mais acordado àquela hora e não corresse o risco de se enganar na rua ou de atravessar fora das passadeiras.
Na escola, passava o dia a ouvir histórias parvas, a recortar e colar bonecos, ainda por cima com umas tesouras muito pequeninas e que não cortavam nada.
Queixei-me.
— Estas tesouras não prestam. As da Feira não são assim.
— Qual feira? — perguntou um miúdo sentado ao meu lado.
Não respondi.
— A minha tia costuma ir à Feira de Carcavelos — disse uma miúda —, é essa?
— E a minha mãe vai à Feira do Livro mas é no Dia da Criança.
— Mas afinal, que tesouras queres tu? — perguntou a professora.
(A-Mais-Nova tinha-me dito muito baixinho, logo no primeiro dia e antes de me deixarem ali sozinha, «estás a ver? aquela é a tua professora! tens de fazer tudo o que ela mandar!»)
— Tesouras. Tesouras como deve ser. Isto não é uma tesoura. Uma tesoura é grande, pesa nas mãos, tem uns bicos compridos, e temos de ter muito cuidado porque podemos cortar-nos ou picar-nos, e depois fazemos sangue, e depois sujamos os adereços. E a Teodora está sempre a dizer que é muito difícil tirar nódoas de sangue dos adereços.
— O que são adereços? — perguntou um deles, mas ninguém se deu ao trabalho de lhe responder.
Porque, de repente, ficou tudo mudo a olhar para mim.
— Tu mexes em tesouras grandes lá em casa ? — perguntou a professora.
— Mexo. Toda a gente mexe.
— E na tua casa onde é que as tesouras grandes estão guardadas?
A professora falava muito baixinho e pronunciava muito bem cada sílaba, como se tivesse medo que eu não a percebesse.
— Estão no meu quarto.
— No teu quarto? — e a professora abriu ainda mais os olhos.
— Sim, no meu quarto — respondi.
E acrescentei:
— Mesmo por baixo da cocaína.
Foi então que a professora começou a tremer, a tremer, e a repetir «ó valha-me Deus, ó valha-me Deus, ó valha-me Deus», como se fosse uma deixa a que alguém tinha de responder mas, pelos vistos, ninguém respondia.
Depois começou a abanar furiosamente a cabeça, saiu da sala a correr e foi telefonar.
No dia seguinte, tinha eu acabado de chegar da escola quando Elas voltaram a aparecer na Feira.
Quando se aborrecia, a professora ia sempre telefonar.
Assim que as viu ao portão, Mercúrio nem esperou que elas batessem:
— Mau... O que é que falta agora? Se calhar agora querem que a miúda vá para a Universidade, é?
A-Mais-Velha atacou logo:
— Sr. Mercúrio, é verdade que há droga nesta casa?
Mercúrio até ficou gago de raiva:
— Droga?! Droga nesta casa?!
Depois lá se recompôs:
— Ah, drogas! Evidentemente que há drogas: tintas, vernizes, colas, diluentes, acetona...
— Cocaína, Sr. Mercúrio. Sabemos que há cocaína nesta casa. Ou o senhor nos leva imediatamente ao local, ou chamamos já a polícia, tá a ver?
— Cocaína?! Mas vocês endoideceram?
— E sabemos que a esconde no quarto onde a criança dorme.
Mercúrio cada vez entendia menos do que elas diziam.
— Cocaína?? No quarto onde a...
E de repente Mercúrio deu a maior gargalhada que alguma vez me lembro de lhe ter ouvido.
— Cocaína!!! Ah! Ah! Ah! Cocaína no quarto onde... Ah! Ah! Ah!... onde a criança dorme! Essa é boa, palavra de honra, essa é mesmo muito boa!
Elas é que não estavam para graças:
— Sr. Mercúrio, ou nos leva imediatamente ao quarto ou nós chamamos já a polícia! — disse A-Mais-Velha.
Mercúrio não conseguia parar de rir:
— Chamem! Por acaso até gostava de ver a cara da polícia no momento da...
— ... da apreensão da mercadoria — disse logo A-Mais-Nova.
— Exactamente! Diz muito bem! Da apreensão da mercadoria!
Nova gargalhada de Mercúrio.
— Sr. Mercúrio, não estamos a brincar! Foi a criança, tá a ver?, foi a criança que disse à professora que as tesouras estavam ao pé da cocaína.
— E, como o senhor sabe, as crianças nunca mentem... — disse logo, em tom muito suave, A-Mais-Nova.
— Ai não mentem?... «Mentiras, vinte e três mil», lá diz o Gil Vicente!
— Não se desvie do assunto! — a voz Da-Mais-Velha era ameaçadora. — Leve-nos ao...
— Ao local do crime... — terminou A-Mais-Nova, sob o olhar furioso da outra.
Mercúrio deu outra gargalhada.
— Levo, claro que levo, só tenho pena de não levar também a polícia, a GNR, o guarda-nocturno, o arrumador dos carros, e o fiscal das obras...
Entrou pela porta da cozinha, com as duas atrás dele, olhando para tudo.
Atravessou o corredor, abriu a porta do fundo, que dava para o quarto onde eu dormia com a minha mãe, e carregou no interruptor da parede.
— Ora então façam favor de entrar... Uma casa às ordens... Estejam à vossa vontade...
Fez uma espécie de vénia, enquanto as duas cravavam os olhos num enorme cartaz, vermelho e negro, com a cara de uma mulher com um chapéu de aba enorme que só deixava ver um olho — e que cobria metade da parede diante da minha cama.
A toda a largura e em letras garrafais:
MALDITA COCAÍNA
Em cima, em letras mais pequenas:
TEATRO POLITEAMA
E em baixo, em letras quase invisíveis:
Espectáculo de Filipe La Féria
Por baixo do cartaz, várias prateleiras onde se amontoavam caixas e caixotes, que guardavam objectos diversos que era sempre conveniente ter à mão.
Tesouras, por exemplo.