11
No mês seguinte foi a guerra da casa de banho.
— A criança precisa de uma casa de banho decente — disse A-Mais-Velha, mal tinha entrado no pátio.
— Porquê? A que temos é indecente? — perguntou Mercúrio.
— O Sr. Mercúrio não se faça de desentendido: estou a dizer que as leis mandam que a criança tenha uma casa de banho com todos os requisitos.
— Requisitos? — exclamou o Diabo, que ia a passar no pátio, carregado com o guarda-roupa que precisava de ser lavado. — Ah, já sei, devem ser os primos dos «parâmetros»!
Deu uma grande gargalhada e entrou pela cozinha dentro.
— Eu não gosto de brincadeiras! — gritou então A-Mais-Nova, sempre tão calada, seguindo o Diabo com o olhar.
Até A-Mais-Velha se admirou.
Mas logo se recompôs:
— Vocês deviam ter, pelo menos, duas casas de banho.
— E temos — garantiu Mercúrio —, uma para o público, outra para o pessoal.
— E a criança pertence ao público ou ao pessoal? — perguntou A-Mais-Nova.
— A senhora agora por acaso até teve graça — exclamou Mercúrio. — É claro que a casa de banho para o público é só para o público, quer dizer, para as pessoas que vêm ver o espectáculo... É de lei. Como ter o bombeiro à porta... Como ter...
A-Mais-Velha cortou-lhe logo o discurso:
— Então deviam ter três. A criança não pode viver num lugar com uma casa de banho minúscula, e manifesta falta de higiene.
— Ora essa — berrou o Diabo, que regressava da cozinha para ir buscar mais roupa suja. — Mas qual falta de higiene?! A nossa casa de banho cheira a limpeza! Ora vá lá agora, e vai ver como lhe cheira àquele detergente que eles até anunciam na televisão, e que dizem que parece o campo em nossa casa... É esse que eu uso, porque faz bem à pele.
— Faz bem à pele? Mas vocês lavam-se com detergente?! — e A-Mais-Velha parecia nem acreditar no que tinha ouvido.
— Nós não, olha o disparate — disse o Diabo —, mas lavamos a roupa! E temos de ter cuidado com a pele das mãos, não é?
— E lavam a roupa na casa de banho??
— Claro. O tanque da cozinha não chega, porque isto é roupa que nunca mais acaba! São os fatos que usamos nos espectáculos, é a roupa que usamos cá fora, são os lençóis das camas, são as toalhas, são...
— E isso tudo na mesma casa de banho da criança?
— Não há outra.
— Pois tem de haver. E se não há, façam uma.
— E quem é que a paga? — perguntou Mercúrio.
Elas ficaram caladas e encolheram os ombros:
— Isso já não é da nossa conta.
— Da minha conta também não, que está a zero! «E afinai bem os sentidos...»
Pronto, vinha aí sermão.
Quando Mercúrio começava a usar as palavras que dizia em palco, era sinal de que vinha discurso.
— ... eu acho muita graça a todas as vossas exigências... Eu acho muito bem que vocês protejam as criancinhas desamparadas, palavras de honra que acho!, mas já pensaram no que tinha acontecido se vocês já existissem no tempo em que Jesus nasceu? Ia ser lindo! Estou mesmo a vê-las, entre os pastores, ali junto à manjedoura: «Ou a Senhora arranja uma casa de banho decente ou tiramos-lhe a criança! O quê? Animais mesmo ao pé da criança? Já viram o perigo que é? E o menino deitado em cima de palha? Já viram a falta de higiene? Ou arranjam isto ou tiramos-lhe a criança!»
Entretanto o pátio tinha-se enchido. As pessoas ouviam a voz de Mercúrio e iam ver o que se passava.
E todos faziam esforços terríveis para não desatarem à gargalhada.
Elas estavam furiosas. Por dentro e por fora.
— Já dissemos o que tínhamos a dizer — murmurou A-Mais-Nova.
— Realmente, foi mesmo uma sorte vocês ainda não existirem nessa altura — Mercúrio continuava no seu discurso. — Já viram? Jesus entregue a outra família... O que teria sido de nós?
— Não estou para ouvir blasfémias e heresias... — murmurou A-Mais-Nova.
— Já para não falar de requisitos e parâmetros... — murmurou o Diabo, enquanto elas saíam pelo portão, ameaçando voltar dali a dias.
— Muito bem deve andar o país, e muito bem tratadas devem andar todas as crianças para estas mulheres não nos largarem a porta! — exclamou Mercúrio assim que as viu atravessar a rua. — Não há semana nenhuma em que não inventem um problema qualquer para nos virem atazanar o juízo. Se elas fossem ver o que se passa ali na casa daquele tipo que está sempre bêbedo no café do Nunes e que nem as boas-tardes dá às pessoas... O miúdo dele anda sempre cheio de nódoas negras... Até faz dó...
— Eu cá acho é que A-Mais-Nova anda ali caidinha pelo Diabo... — disse Justina. — Quando entra, o olhar dela não sossega enquanto não o avista.
O Diabo é que não achava graça nenhuma a estas brincadeiras, até porque há muito que andava de amores com a Merenciana — embora Amâncio Vaz estivesse sempre a dizer-lhe que, lá por ser filho do patrão, ele que não pensasse que tinha a vida facilitada. O Diabo bem lhe dizia que já não era criança nenhuma, qualquer dia tinha mais idade para ter netos do que para ter filhos, que queria dar um jeito à sua vida, mas Amâncio Vaz não se deixava convencer tão facilmente. E a resposta era sempre a mesma: não era por ser filho do patrão que ele servia para marido da sua filha.