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À segunda-feira não havia espectáculo.

Era o dia que todos aproveitavam, como lá se dizia, «para irem tratar da vida».

O dia em que todos usavam o nome que era verdadeiramente seu. Alguns já quase se tinham desabituado dele.

Teodora contava que estava um dia na sala de espera do centro de saúde, para levar a vacina contra o tétano, e que só à quarta vez de ouvir uma voz no altifalante a chamar «Adelina Mascarenhas! Adelina Mascarenhas!» é que percebeu que estavam a chamar por ela.

— Adelina Mascarenhas... — murmurava ela. — Eu lembro-me lá que me chamo Adelina Mascarenhas...

Às segundas-feiras a minha mãe ia buscar-me à escola, logo a seguir ao almoço.

Era o único dia da semana em que eu não tinha escola da parte da tarde, e por isso era preciso aproveitar muito bem o tempo em que tinha a minha mãe só para mim.

Eu gostava de ver a minha mãe no palco, gostava de ver os seus olhos tão brilhantes, gostava de a ouvir dizer palavras que eu não entendia mas as outras pessoas entendiam, porque lhe batiam sempre muitas palmas.

Gostava de ouvir Mercúrio dizer que nunca se arrependera de a ter escolhido para Branca-a-Brava desde o dia em que ela lhes batera à porta.

Mas às vezes gostava de a ter um bocadinho mais só para mim.

Gostava que ela me falasse com palavras diferentes das que usava no palco.

Gostava que ela não fosse Branca-a-Brava, mas apenas a minha mãe.

Por isso era preciso aproveitar muito bem todos os minutos das segundas-feiras.

Ela fazia-me tranças, escolhia-me uma camisola lavada, coisa às vezes difícil de encontrar no meio da barafunda da roupa de toda a gente na Feira, e vestia-me as calças desbotadas do costume.

Uma vez, ia eu a vestir as calças quando saltou o botão da cintura.

A minha mãe foi buscar a caixa de costura, que estava numa daquelas prateleiras debaixo da Cocaína, e começou a pregar o botão no sítio donde ele tinha caído.

Foi então que se ouviu um grito de Teodora:

— Ó rapariga, mas que estás tu a fazer?

E, num segundo, Teodora correu para o meu lado, arrancou a agulha das mãos da minha mãe, agarrou-me bem de frente para ficar mais a jeito e não me picar e, à medida que ia cosendo o botão, murmurava

«em vida te coso

em vida te coso

em vida te coso»

três vezes, não mais, depois cortou a linha com os dentes e disse:

— Já está.

A minha mãe olhava para ela sem dizer nada.

— O quê? — exclamou Teodora. — Então não sabes o perigo que isto é?

— Perigo?...

Por momentos, a minha mãe deve ter pensado que Teodora já se tinha passado para a banda Delas. Ou seja, para a banda do Inimigo.

Então Teodora, já mais calma, explicou que era um perigo coser a roupa no corpo da pessoa, a roupa era para coser sem a pessoa lá dentro, no nosso colo, nas nossas mãos. Mas quando isso não acontecia, então tínhamos de dizer «em vida te coso», três vezes seguidas, para o azar ir para bem longe.

— Se não fazemos estas coisas — garantia Teodora — a morte pode chegar cedo e tomar conta de nós.

— Longe vá o agoiro! — exclamava a minha mãe.

Toda a gente na Feira era supersticiosa.

Quer dizer: assim que entravam na Feira, passavam a ser supersticiosos porque, como todos concordavam, ser actor e não ser supersticioso dava azar.

A minha mãe sorria sempre com as superstições de Teodora.

E de Mercúrio, e de Justina, e de Merenciana, e de quase todos.

Teodora dizia que a gente de teatro era toda assim, e que era preciso respeitar as crenças de cada um.

E, claro, contava logo ali meia dúzia de desgraças que ela jurava terem acontecido, exactamente porque se tinham ignorado os rituais.

— Se pregas um botão, ou arranjas uma bainha, ou coses seja o que for na roupa que a pessoa tem vestida, é certo e sabido que essa roupa vai ser a sua mortalha. Por isso tens de dizer «em vida te coso», para a vida sair vitoriosa!

Teodora dizia isso como se estivesse a declamar uma das suas falas na Feira.

(Que, por acaso, eram bem poucas, mas ela nunca se queixava, para que ninguém dissesse que a mulher do patrão queria ser mais que as outras.)

A minha mãe sorria, prometia que nunca iria esquecer, e depois colava-me as asas nas costas da T-shirt — e íamos dar um passeio.

— És a minha fada — murmurava — e todas as fadas têm asas. Para poderem voar para junto das pessoas que acreditam nelas. Porque as fadas existem para salvarem as pessoas que acreditam nelas.

Depois fazia uma festa no meu cabelo e rematava:

— Esta é a minha superstição. Não tenho outra.

O pior das segundas-feiras é que a minha mãe estava sempre cansada.

Às vezes gostava de me lembrar da minha mãe quando ainda não estava cansada, mas não consigo.

A minha mãe sempre esteve cansada.

E a tremer.

E com dores.

E a abrir frascos.

E a tomar remédios, muitos remédios, remédios a toda a hora. Tinha sempre um frasco de comprimidos que nunca largava.

E eu devia ter dado por isso.

Mas era muito pequena e, de resto, a minha mãe no palco era outra pessoa.

No palco não se dava por nada.

Nem pelo cansaço.

Nem pelo corpo sempre a tremer.

Nem pela pele sempre tão pálida.

Nem pelas dores.

No palco a minha mãe era Branca-a-Brava, sempre feliz, sempre alegre, com os olhos a brilharem muito, e esquecida de dores e de remédios.

Mas assim que ela passava para a vida das segundas-feiras, eu nem a reconhecia.

Pegava-me na mão, ajeitava-me as asas. Depois começava a procurar o telemóvel, que estava sempre em sítios improváveis, e enfiava-o, juntamente com os frascos de comprimidos, para dentro dos muitos bolsos das calças.

Nunca vi calças com tantos bolsos como as calças que a minha mãe usava às segundas-feiras.

Bolsos pelas pernas abaixo, a fazerem as vezes de carteira.

— Uma carteira só atrapalha as mãos — dizia ela muitas vezes — e pesa muito nos ombros.

Andávamos muito, por aquelas ruas íngremes do bairro, até que a Feira ficava para trás, e era como se entrássemos num outro país.

Um país estrangeiro onde as pessoas olhavam sempre muito para nós.

E havia quem se risse.

E havia quem encolhesse os ombros.

E havia quem franzisse as sobrancelhas e ficasse assim durante muito tempo sem dizer nada, com ar muito sério.

A minha mãe também encolhia os ombros e ria.

E andávamos, andávamos, andávamos.

Íamos quase sempre dar à mesma rua, e a minha mãe tinha de descansar, e então sentava-se num banco de madeira, mesmo em frente de um grande casarão cor-de-rosa, e no meio de uma placa cheia de automóveis estacionados.

Era uma rua como todas as outras, e nunca entendi por que é que a minha mãe acabava sempre lá a nossa caminhada das segundas-feiras.

Havia muitos gatos, alguns a saltarem de portões que a ferrugem esburacara, e ali andavam, à cata de comida que alguém deixava sempre para eles.

Era, de certeza, uma boa acção, mas a rua ficava imunda.

Às vezes a minha mãe enfiava a mão por um dos muitos bolsos das calças, tirava o telemóvel, e ficava muito tempo a olhar para ele. Ao princípio eu até pensei que ela estivesse a fazer algum jogo. A Leonarda tinha um telemóvel com uma data de jogos, e passava imenso tempo nisso.

Mas o telemóvel da minha mãe não tinha jogos. Ou, se tinha, ela não sabia jogar.

Olhava, olhava, carregava numas teclas — mas acabava por suspirar muito fundo, enfiava-o de novo para dentro de um dos bolsos, repetia «não aguento, não aguento» — e regressávamos.