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O Natal era sempre um tempo complicado na Feira.

O grupo ficava muito desfalcado porque havia sempre um ou outro que de repente se lembrava que afinal tinha uma tia velha a viver na Beira, ou um primo direito com casa no Alentejo, ou um amigo de infância sozinho no Norte.

Podiam passar o ano inteiro a dizer mal deles, a lastimarem-se por a família nunca se lembrar de lhes fazer um telefonema, a recordar maldades e ingratidões e injustiças — mas bastava o primeiro som dos sininhos de Natal, e as lojas cheias de algodão a fingir neve, e anjinhos pendurados de todas as árvores, para esquecerem tudo e descobrirem que estavam a ser vítimas de intensos, prolongados, inevitáveis, incuráveis ataques de saudades.

«Ir à terra» passava a ser o sonho de quase todos.

Mercúrio não conseguia dizer que não, afinal o Natal era a festa da família — apesar de eles não terem família durante o resto do ano.

Como Teodora estava sempre a repetir, Mercúrio tinha um coração mole.

Os que ficavam tinham de acumular diversas personagens diferentes, e era então que mais se evidenciavam as qualidades de Mercúrio a fazer «teatro à moderna».

Para já, havia logo à entrada aquilo a que Mercúrio chamava o «nosso presépio vivo».

Desde o tempo do bisavô, aquele era um ritual que todos os anos se cumpria.

Teodora era Nossa Senhora.

(«Com esta idade, eu já devia fazer de Santa Ana... », resmungava ela sempre.)

Mercúrio era S. José.

Amâncio Vaz, o Tempo e o Diabo eram os três Reis Magos.

Merenciana era Maria Madalena.

Dinis Lourenço era o Filho Pródigo.

Doroteia era a Samaritana.

A minha mãe era o Anjo.

Marta-a-Mansa era a asninha de Belém.

E os restantes eram pastores e pastoras.

O Menino Jesus era sempre um boneco, fornecido pelo Sr. Li — porque Mercúrio dizia que era um perigo pôr ali uma criança, ainda apanhava uma pneumonia e morria, e lá vinham Elas («desta vez, enfim, com alguma razão...») e iam todos presos.

Às vezes havia alguém que se chegava junto dele e protestava ligeiramente:

— Ó patrão...

— Aqui não há patrões, estou farto de dizer!

— Ó Mercúrio...

— Sim?

— A gente só costuma pôr o Filho Pródigo naquela peça que fazemos na Páscoa!

Ou então:

— Mercúrio, o senhor desculpe mas... não é para lhe faltar ao respeito, nada disso... é só porque...

— Vá desembucha!

— Pronto, aí vai: quando eu andava na catequese...

— Sim?...

— ... acho que o filho pródigo, e a samaritana, e a Maria Madalena... quer dizer... acho que não entravam no presépio! Pelo menos quando eu andava na catequese, acho que não estavam lá... Mas agora não sei... Eles estão sempre a mudar tudo...

— Pois se não entravam, passam a entrar agora — rematava Mercúrio, e mais ninguém dizia nada.

O «nosso presépio vivo» podia ser visto por toda a gente do bairro durante a tarde — mas à noite todos largavam as fatiotas que tinham vestido e, apesar de estafados pelas muitas horas de pé (só Teodora tinha direito a um banquinho, sempre era a mãe da criança, e Merenciana estava sempre deitada, porque o burro era suposto ficar deitado ao lado do Menino), metiam-se na pele das personagens da Feira e subiam ao palco.

Era então que Justina, sempre preparada para tudo, e a única que sabia o papel de toda a gente, aproveitava para brilhar.

Houve um ano em que éramos tão poucos que, em dois domingos seguidos, Justina teve de fazer também de Leonarda, de Juliana, de Mónica, de Giralda e de Tesaura (a descobrirem as alegrias familiares na Guarda, em Bragança, em Castelo Branco, em Fornos de Algodres e em Corroios, respectivamente).

O que nem seria coisa complicada, pois todas elas falavam pouco, não fosse o caso de todas entrarem ao mesmo tempo em cena — e tratar-se da cena final.

— E agora? — perguntou Teodora a Mercúrio, quando foram contar os resistentes que não tinham ido à terra.

— Valha-me o meu avô marmelo... — murmurou Justina — essa cena só comigo, com a Teodora e a Merenciana não tem graça nenhuma! A graça é sermos uma data de mulheres no palco e depois cantarmos todas a cantiga final!

— Não tem graça, mas passa a ter! — exclamou Mercúrio.

E, em poucos segundos, com a ajuda do Diabo, que era muito bom de mãos, apareceram nas mãos de Justina uma série de máscaras de cartolina, pintadas de cores garridas, todas elas representando diferentes caras de mulheres.

— Pronto. Não tem nada que saber. Dizes as tuas falas e, quando for altura de Leonarda falar...

— ...«Vossa vida negra e parda!

Não lhe bastará...»

— começou logo Justina, mas Mercúrio cortou-lhe o discurso:

— Já sei que conheces as falas de toda a gente de cor e salteado, mas não é preciso dizê-las, senão nunca mais saímos daqui!

Justina calou-se.

— Estava eu a dizer — continuou Mercúrio — que de cada vez que tiver de falar uma personagem diferente, tu pões uma destas máscaras diante da tua cara, dizes as frases dela e pronto! Quando for Leonarda, pões esta máscara de mulher de cabelo preto e a rir; quando for a Mónica, pões esta de mulher loira; quando for a Giralda, pões esta de franja; para a Juliana enfias esta de olhos fechados, e para a Tesaura esta de olhos arregalados.

Fez uma pausa.

— Tá feito.

Teodora ainda não parecia muito convencida:

— E para a cantiga final? Para a apoteose?

Teodora gostava sempre muito dos finais das peças.

Dos finais de todas as peças.

A «apoteose», como costumava dizer.

Porque no final das peças — de todas as peças, fossem dramas ou comédias, escritas por Gil Vicente ou por Mercúrio — o grupo todo vinha à boca de cena e cantava uma cantiga, quase sempre acompanhado pelo público, que, se não sabia a letra, sabia bater palmas a compasso.

Quando o autor da peça não tinha escrito cantiga nenhuma, Mercúrio inventava uma letra e encaixava-a depois na música de alguma cantiga conhecida.

Mas na Feira Gil Vicente tinha-lhe poupado o trabalho: a própria peça rematava com uma cantiga, que o público já conhecia de cor, e que era a parte mais importante do espectáculo, com as nove mulheres em cena, cantando e bailando,

«Em Belém vila do amor

da rosa nasceu a flor...»

e o resto do grupo ao fundo do palco, tocando tambores e pandeiretas, e o público a acompanhar, em ritmo de valsa.

Coisa linda de se ver e ouvir.

— Vai parecer um palco muito vazio... Mesmo com as máscaras... — murmurava Teodora.

— Até porque as máscaras não bailam... — murmurava Merenciana.

— As máscaras não bailam, mas baila o público! — exclamou Mercúrio. — Fazemos sinal ao público para que suba ao palco, e baila toda a gente!

Marta-a-Mansa ficou feliz: era agora que iria dançar com o admirador desconhecido.

E toda a gente bailou.

Menos o admirador desconhecido, que, nesses dias, não pôs os pés na Feira.

— Também deve ter ido à terra... — murmurou Merenciana.

— Ou então é um tímido... — disse a minha mãe a rir.

Mas o público que não tinha ido à terra bailou até mais não poder.

E com tanto entusiasmo que em todas as sessões as máscaras de Justina acabavam pisadas no chão, e o Diabo tinha de voltar a fazer tudo para o espectáculo seguinte.

Com tanto entusiasmo que no dia seguinte a Dr.ª Paula não apareceu na farmácia, a Mariazinha só abriu a tabacaria já passava do meio-dia, e o café do Sr. Nunes esteve sempre de porta fechada.

Com tanto entusiasmo que o Diabo não se conteve, pediu Merenciana em casamento, e Amâncio Vaz disse que sim.