Prólogo
— Não tenho estrutura para viver contigo.
Disse ele.
Ela ouviu, claro que ouviu.
Até repetiu a palavra:
— Estrutura...
E sorriu, porque ele nunca utilizava palavras dessas.
Complicadas.
Como se estivesse a ler um discurso.
Ou a falar com o patrão.
Ela ouviu mas não disse nada.
Pensou que ele dizia aquilo por dizer, e que aquelas palavras podiam ser complicadas mas não eram importantes.
Ao princípio, ela também não queria viver com ele.
Ao princípio, a única coisa que ela queria era que ele a abraçasse muito.
Que lhe dissesse que nunca tinha gostado de ninguém como gostava dela.
Que a levasse ao cinema e a deixasse enfiar a cabeça no seu ombro, e chorar muito quando o filme acabava mal, e os heróis eram infelizes para sempre.
Era tão bonito ser infeliz para sempre no cinema.
A música de fundo tinha muitos violinos e harpas, começava muito baixinho, um leve sussurro e nada mais, mas depois crescia, crescia, e entrava no coração das pessoas, e o coração das pessoas ficava muito apertado, e saíam da sala a acreditar no amor eterno que as esperava cá fora.
Mas cá fora esperava-a apenas uma rua cheia de gatos, com os passeios sujos dos restos de comida que as velhas lá punham para eles. E um casarão de paredes cor-de-rosa, mas cinzento por dentro.
Cá fora as vizinhas ficavam do lado de lá dos vidros da janela acenando-lhe, para que ela visse que elas a tinham visto.
Ela não queria pertencer àquelas ruas, àquelas vizinhas, àqueles gatos, àquela vida.
Nem sequer ao casarão cor-de-rosa, sempre tão escuro, com as janelas que não se abriam nunca, e pó acumulado sobre os móveis, os quadros, os tapetes, os mármores, os pais.
Parecia que a casa inteira lhe vigiava os passos, as palavras, os gestos, os silêncios.
— A que horas chegas, Maria Augusta?
— Com quem vais sair, Maria Augusta?
— Com quem estavas ao telefone, Maria Augusta?
— Estás muito calada... Alguma deves ter feito, Maria Augusta!
— Se eu sei que me escondes alguma coisa, Maria Augusta!
Por isso, no dia em que ele entrou na sua vida, ela teve a certeza de que tudo iria ser diferente.
Ele chegava, ela esquecia tudo.
Olhava para ele e nem se sentia cansada.
Sempre tão cansada, sempre com tanto frio.
— Nasceste com sangue fraco... — dizia-lhe a mãe muitas vezes. — Herdaste isso da família do teu pai, claro.
O pai ouvia e não dizia nada.
O pai nunca dizia nada. Metia-se na biblioteca, entre as garrafas de cristal e os charutos, e as pessoas esqueciam-se dele.
E ele esquecia-se das pessoas. Até dela.
E ela olhava para tudo e para todos e esperava que alguma coisa importante rompesse por dentro dos seus dias.
Até que ele apareceu.
Agora ela saía de casa, entrava no café onde ele a esperava, e esquecia tudo.
Conseguia até esquecer a telefonia sempre em altos berros.
E as moscas a passearem nas mesas pouco limpas, porque não havia dinheiro para pagar a empregados.
E o cheiro a aguardente, a rebuçados para a tosse, a bolos da véspera esfarelando-se nas mãos das velhas do bairro.
Esquecia tudo, tudo, tudo.
Mesmo as palavras estranhas que, de repente, ele começou a dizer.
Ela abanava a cabeça e sacudia-as para muito longe.
Eram tão mentirosas, as palavras.
E tão complicadas.
Ela olhava para ele e não pedia mais nada senão as suas mãos no seu cabelo, o cheiro do seu after-shave a misturar-se com o cheiro do seu perfume.
Não pedia mais nada senão que ele a levasse para muito longe dali.
Por isso nem ouvia as palavras.
Por muito que ele as repetisse.
Como agora.
Nesta manhã em que ela tem uma coisa muito importante para lhe dizer.
Uma coisa que — ela tem a certeza — o vai fazer muito feliz.
Estavam sentados, como sempre, à mesa do café, a música também como sempre aos berros no rádio sobre o balcão.
Ela tinha pedido a meia-de-leite, ele não tinha pedido nada, e olhava apenas para a porta e para o balcão e para o tecto e para as outras mesas, como se ela nem estivesse na sua frente.
Ela sabe que tem de escolher muito bem as palavras.
Que tem de lhe dizer, antes de mais nada, que talvez ao princípio a vida vá ser difícil, mas...
— Não tenho estrutura para viver contigo. que tudo se há-de resolver, e que...
— Não tenho estrutura para viver contigo. o principal é gostarem muito um do outro, e que isso...
— Não tenho estrutura para viver contigo. resolve todas as dificuldades, ela vai deixar o sonho («a loucura», diz a mãe) do teatro, e há-de arranjar emprego e...
— Não tenho estrutura para viver contigo. não importa o que os outros dizem porque...
— O quê??
De repente percebeu que ele estava a falar.
Que, enquanto ela sonhava com as belas palavras que lhe iria dizer antes de lhe dar a grande notícia, ele falava, falava, ele repetia sempre a mesma frase, a mesma estranha, inexplicável, assustadora frase:
— Eu não tenho estrutura para viver contigo.
Só agora ela tinha entendido.
Ficaram ambos em silêncio, olhando-se.
— E isso quer dizer exactamente o quê? — perguntou ela, soletrando as palavras muito baixinho, como se de repente até a sua própria voz lhe metesse medo.
Ele olhou para o tecto, para as moscas, para as velhas nas outras mesas, e encolheu os ombros:
— Quer dizer isso mesmo. Que não estou preparado para viver contigo, para ter uma família, para criar responsabilidades.
Outro silêncio.
— Acho que ainda sou muito novo. E tu também és muito nova. E a tua família é muito diferente da minha, nunca me iriam aceitar... Para quê arranjar já problemas? Temos é que gozar a vida... conhecer outras pessoas... O meu pai casou aos 40 e ainda foi muito a tempo... .
Mais um olhar pelas manchas do tecto.
— O meu irmão que vive na Suíça ligou-me. Quer que eu vá para o pé dele. Parece que tem lá um óptimo trabalho para mim. E a gente não pode desperdiçar estas oportunidades, não é?
Esperou que ela respondesse e então lá deixou de olhar para o alto, decidindo-se finalmente a encará-la de frente.
— Não é? — repetiu.
Mas na sua frente havia apenas uma cadeira vazia.