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Na noite em que eu nasci, a minha mãe estava na Feira, de braço dado com Marta-a-Mansa.

Naquele dia tinha acordado muito maldisposta, mas trabalho era trabalho, e ela sabia que Justina só esperava o mínimo sinal de fraqueza da parte dela para saltar e apanhar o seu lugar.

Branca-a-Brava era um grande papel.

Por isso Justina estava sempre a refilar:

— Só digo duas palavras... Quem é que alguma vez vai reparar em quem só diz duas palavras?

— Todas as mulheres falam pouco nesta peça! — respondia-lhe Mercúrio.

— Com o mal dos outros posso eu bem... — refilava ela.

Mas nesse dia a má disposição da minha mãe não abrandava.

Então foi ter com Mercúrio e disse:

— Hoje acordei pior. Se calhar era melhor adiarmos.

Mas a minha mãe já devia saber que Mercúrio tinha sempre muito em que pensar, e coisas importantes para resolver, e nunca se preocupava com estas ninharias:

— Adiar? Estás doida? — exclamou ele. — E o que é que se dizia às pessoas?

— Então... dizia-se que eu... Então... que eu...

E de repente explodiu:

— Então, as pessoas que olhem para mim! Não são precisas muitas explicações! Ou são?

Mercúrio tentou acalmá-la:

— Vais ver que não é nada... Já na semana passada também te sentiste pior, e afinal não aconteceu nada.

— E o teu tempo ainda não chegou! — gritou Doroteia, do fundo da cozinha.

A minha mãe respirou muito fundo.

Se calhar eles tinham razão.

Se calhar eram apenas aquelas dores que iam e vinham, e nada mais do que isso.

E tudo começou à hora certa.

As pessoas sentaram-se, começaram todas a tossir, que é sempre o que as pessoas guardam para fazer nestas alturas, e esperaram.

Mas como Mercúrio não queria que o acusassem de ser insensível aos problemas dos outros (e como a minha mãe não entrava logo no princípio), chamou o Serafim e pediu-lhe que arranjasse uma esteira e umas almofadas, para que ela pudesse ficar deitada enquanto não chegava a sua vez.

E a minha mãe lá ficou, de olhos fechados, a tentar disfarçar as dores que não passavam — até àquela altura em que Amâncio Vaz, do fundo do palco, em voz muito forte, disse para o seu companheiro Dinis Lourenço:

— «Mete-te nessa silveira

que eu daqui hei-de espreitar!»

Era a deixa.

A deixa a que a minha mãe, em noites normais, imediatamente respondia, dirigindo-se a Marta-a-Mansa:

— «Pois casei em má hora,

E com tal marido...»

Mas passaram-se segundos e não se ouviu nada.

Amâncio, com voz ainda mais forte, repetiu:

— «Mete-te nessa silveira

que eu daqui hei-de espreitar!!»

Nada.

— «QUE EU DAQUI HEI-DE ESPREITAR!»

A voz de Amâncio era um trovão em noite de tempestade.

O pessoal já estava todo a rir, até porque a maioria já sabia o texto de cor.

E então começaram a fazer coro com ele e a bater palmas a compasso:

— QUE EU DAQUI HEI-DE ESPREITAR!

QUE EU DAQUI HEI-DE ESPREITAR!

QUE EU DAQUI HEI-DE ESPREITAR!

Mercúrio começou a não gostar da brincadeira, e fez um sinal para Marta-a-Mansa, que estava ao lado da minha mãe, a fazer-lhe festinhas na mão e a abaná-la.

Então de repente a minha mãe levantou-se, muito pálida, gotas de suor a escorrerem pela cara abaixo, as mãos a ampararem a barriga.

Ainda conseguiu virar-se na direcção de Marta-a-Mansa e balbuciar:

— «Pois casei... em má...»

Mas já não foi capaz de dizer mais nada.

Ou melhor, curvou-se o mais que pôde e berrou:

— Chamem uma ambulância!!

As pessoas desataram a dar mais palmas, e a gritar em coro

— Chamem uma ambulância!

Chamem uma ambulância!

Chamem uma ambulância!

porque pensaram que aquilo era assim mesmo, que aquela era uma das noites em que Mercúrio decidia fazer teatro moderno, e lhes pedia que repetissem em coro o que os actores diziam no palco. Geralmente três vezes.

O Diabo ainda perguntou, aos berros:

— Há algum médico na sala?

— Serralheiro, serve? — respondeu alguém da assistência, e logo todos desataram a rir.

Então o Serafim, meio atarantado, pediu o telemóvel para chamar os bombeiros, mas ninguém o encontrava, porque o telemóvel estava sempre a ser largado por toda a gente nos lugares mais incríveis, e teve de pedir um emprestado ao público.

Mercúrio achou melhor descer o pano, trazer mais umas almofadas para a minha mãe ficar mais confortável, e veio à boca de cena explicar às pessoas que era melhor voltarem para suas casas porque, naquela noite, a Feira ficava por ali.

Mas as pessoas não arredaram pé.

— Era o que faltava! — disseram. — Não vamos daqui embora sem isto ter acabado!

Sentaram-se todos diante da cortina fechada, e lá foram passando a tarde, ainda mal refeitos das emoções da véspera, em que o Benfica empatara com o Bayer Leverkusen

«Ó pá aquele golo do Kulkov!»

«Ó pá, então e o do Abel Xavier?»

«E o do João Pinto, hã? Se não fosse o golo do João Pinto?»

«Tá bem, mas o do Kulkov, pá, eu cá se fosse religioso até dizia que tinha sido milagre!, o jogo mesmo, mesmo, mesmo a acabar e o gajo, tunfas!»

e ouvindo, por detrás da cortina, os berros da minha mãe, as asneiras que o Diabo ia dizendo pelo meio, Amâncio Canito a ladrar que nem um louco, Teodora a dar ordens a toda a gente, e os passos das pessoas de um lado para o outro.

Felizmente foi tudo muito rápido e sem problemas.

Quando a ambulância chegou, eu já tinha nascido.

No meio de uma chuva de palmas e com toda a gente a gritar:

— Viva Branca-a-Brava! Viva Branca-a-Brava!

E, uma semana depois, já ela me levava, dentro da alcofa, embrulhada numa data de cobertores por causa das correntes de ar.

A minha mãe pegava numa asa e Marta-a-Mansa pegava na outra, e as pessoas achavam muita graça, embora não percebessem muito bem o sentido daquilo, porque no palco a minha mãe passava o tempo a queixar-se do homem que tinha lá em casa, mas nunca ninguém falava em criança nenhuma.

Mas a minha mãe tinha medo de me deixar sozinha, dentro da alcofa, lá atrás, entre os andaimes e as tábuas e os pregos e as latas de tinta, e as correntes de ar, e o Amâncio Canito ainda sem perceber quem era aquela coisa estranha, e as pessoas todas a entrar e a sair.

E disse a Mercúrio que ou levava a criança com ela para o palco ou a carreira de Branca-a-Brava acabava já ali.

Nesse momento nem sequer pensou em Justina.

(E, diga-se em seu abono, Justina também não pensou em aproveitar-se disso.)