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Esta era a história que contava Mercúrio (bisneto do Sr. Vicente Mascarenhas) para explicar como se tinha chegado ali.

Da primeira geração já não havia, evidentemente, ninguém vivo.

Mas todos, de uma maneira ou de outra, estavam ligados ao grupo dos fundadores — todos eles com direito a fotografias emolduradas, colocadas nas paredes das escadas.

Mesmo que o grupo representasse outras peças, o Auto da Feira estava sempre em cena aos domingos.

Para o bairro, era um ritual.

Tão importante como a missa.

O futebol.

A cerveja e os matraquilhos no café do Sr. Nunes.

E, supersticioso como todos os Vicentes antes dele, Mercúrio ordenara há muito que, enquanto a peça se representasse, todos os que nela entrassem seriam chamados pelo nome das personagens que interpretavam, mesmo que tivessem outros nomes nas peças que interpretavam nos outros dias da semana.

Nem o pobre do rafeiro sem dono, e cheio de mazelas, que um dia lhes apareceu no pátio escapou desse destino: mas como na Feira não entrava cão nenhum, Mercúrio valeu-se do seu papel de encenador e decretou que uma das personagens, de seu nome Amâncio Vaz, iria passar sempre a entrar em cena acompanhado do cão.

E com ele partilharia o nome.

— Não quero ter nome igual ao do cão... — resmungou Amâncio Vaz.

— Então junta-lhe um apelido... — disse Mercúrio, a rir.

Foi assim que nasceu Amâncio Canito.

Aos encenadores todas as liberdades eram permitidas.

De resto, aquele já não era bem, bem, o Auto da Feira do tempo do primeiro Vicente Mascarenhas.

E muito menos do tempo de Gil Vicente.

Digamos que, se Gil Vicente voltasse à terra e entrasse ali, teria alguma dificuldade em reconhecê-lo.

Ou melhor: reconhecer o texto que havia para lá do que ele tinha escrito há mais de 400 anos — porque nesse Mercúrio não mexia:

— Palavra de escritor é sagrada!

Mas, se não mexia no texto, fazia-lhe alguns acrescentos...

— Os tempos mudam, temos de os acompanhar. — foi como ele se justificou no dia em que decidiu incluir, a meio da peça, um chinês.

— Ó meu pai! — exclamou o Diabo —, um chinês numa peça de Gil Vicente?!

— Que é que tem? Não me digas que no tempo de Gil Vicente não havia chineses?

— Chineses havia. Mas estavam todos na China!

— Este veio ouvir o fado e ficou.

— Ó meu pai, não brinque!

— Nem pai nem mãe, é assim que eu quero, é assim que se faz.

Mercúrio era um grande democrata.

Aproveitando uma altura em que Marta-a-Mansa perguntava

«Dizei, senhores de bem,

nesta tenda que vendeis?»

e antes que o Serafim respondesse

«Esta tenda tudo tem;

vede vós o que quereis,

que tudo se fará bem.»

tal como, há mais de 400 anos, vinha no texto, Mercúrio pôs o Sr. Li Yuan — dono do Palácio Imperial, que ficava na esquina e onde havia de tudo — a puxar pela saia de Marta-a-Mansa e a dizer muito baixinho

«e o que não houver aqui

há ali na loja do Li.»

O Palácio Imperial tinha aberto há pouco tempo, era preciso fazer, como ele repetia muitas vezes, «política de boa vizinhança».

O público apoiou a ideia, e era uma chuva de aplausos de cada vez que o Sr. Li Yuan entrava em cena, em passinho miúdo e sempre a fazer muitas vénias.

E assim como acrescentava texto, Mercúrio também ordenava e desordenava a encenação.

Ora se entrava pela direita ora se entrava pela esquerda.

Ora se subia para cima de uma cadeira ora se dizia o texto sentado no chão.

Ora se declamava a meio do palco ora no fundo.

Mas do que a assistência gostava mais, mais, era das noites em que Mercúrio decidia imitar peças que tinha visto na televisão.

— Hoje é à moderna... — dizia ele a seguir ao jantar.

— Ai valha-me o meu avô marmelo... — murmurava Justina.

Quando era «à moderna» ninguém sabia exactamente o que podia acontecer.

Era o que viesse à cabeça de Mercúrio.

Normalmente mandava os actores todos para o meio dos espectadores.

Ou mandava os espectadores fazerem coro com as falas dos actores. Repetindo cada fala três vezes, como num ritual.

E os espectadores sentiam-se muito importantes, como se, naquela noite, também fizessem parte do elenco.

Eu ainda mal me equilibrava nas pernas quando comecei a entrar nas noites de teatro «à moderna».

Ia atrás da minha mãe e as pessoas riam muito

«a miúda tem futuro!»

porque eu às vezes cantava, e tropeçava e caía, e então a minha mãe dizia coisas que não estavam na peça mas não fazia mal, porque ninguém dava pela diferença.

Nas noites «à moderna» entrava toda a gente, mesmo que isso não viesse escrito na peça.

— Há sempre lugar para mais um mancebo ou uma virgem — dizia Mercúrio.

Eu gostava muito da palavra «mancebo», mesmo sem saber o seu significado.

E acho que muitos também não sabiam, mas não se importavam muito com isso, devia ser a mesma coisa que «virgem» mas em homem.

Quem fazia de «mancebo» ou de «virgem» sabia apenas que tinha de ficar na fila ao fundo do palco, ao lado de Branca-a-Brava e de Marta-a-Mansa, caladinhos que nem ratos.

Às vezes isso era difícil, porque havia quem ali chegasse pela primeira vez, não conhecesse o texto, e desatasse a rir pelo meio.

Para evitar essas coisas, de vez em quando Mercúrio tinha o cuidado de os prevenir:

— Oiçam lá, ó seus palhaços...

(Mercúrio gostava muito de palhaços, por isso nunca dizia isto para os ofender, e por isso eles nunca se ofendiam.)

— ... quando vocês ouvirem dizer que Deus anda no céu a vender o gado, e Nossa Senhora a tratar dos carneiros, nada de risinhos parvos, tá entendido? ó senão vai tudo para a cozinha e não entra ninguém!

Um ou outro ainda refilava:

— Ó... ó... Sr. Mercúrio...

— Mercúrio. Aqui sou só Mercúrio.

— Pois... tá bem... Mas... não é chato dizer isso? — Isso o quê?

— Isso... De Nosso Senhor andar... a vender gado... E se o Sr. Padre cá vem?

— Que venha. Por acaso até cá vem muita vez!

— E... não se importa ... de... de ouvir estas coisas?

Às vezes Mercúrio perdia a paciência:

— Ó seus palhaços...

(Às vezes aqui já era para ofender um bocadinho, mas não muito)

— ... este texto foi escrito por Gil Vicente, ouviram?, por Gil Vicente! Metam isto nas vossas cabeças!

— Ó... ó...

— Que é que foi agora?

— E... e... e esse Gil... é aqui do bairro?

— Tirem-me estes palhaços da minha frente, que eu ainda faço alguma asneira! — gritava então Mercúrio, correndo pela plateia fora.

(Aqui é que já era mesmo para ofender.)

É claro que Elas nunca entenderam isto.

Mas, se alguém me pedisse uma definição de paraíso, eu teria logo respondido: a Feira.

Mesmo que Elas abanassem a cabeça e não acreditassem.

Ainda hoje.

Acho mesmo que o único lugar para onde ainda me apetece fugir é para junto deles todos.

Ou de quem lá esteja agora.

Mas quando Elas vieram e me levaram, eu era ainda pequena para definir fosse o que fosse.

Tinha as asas descoladas, o suor caía do meu cabelo, ainda com algumas madeixas azuis, e não entendia por que razão a minha mãe não respondia a nada do que eu lhe perguntava.

Lembro-me de chegar muito perto dela e de repetir:

— Em vida te coso

em vida te coso

em vida te coso

— três vezes, como Teodora um dia me ensinara.

Mas não tinha acontecido nada.

Foi então que Elas abanaram muito a cabeça e A-Mais-Nova disse:

— Coitadinha, seja para onde for que a gente a leve, vai-lhe parecer o paraíso...

Mas eu era muito pequena.

E nem devia saber que coisa era essa de paraíso.