Larva da espécie Anopheles (Myzomyia) lutzi.
Desenhada por Castro e Silva, a ilustração foi publicada no trabalho de Antônio Gonçalves Peryassú, intitulado “Os Anophelineos do Brasil”. Publicação extraída dos Archivos do Museu Nacional, v.XXIII.
Ver PERYASSÚ. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1921.Larva of the species Anopheles (Myzomyia) lutzi.
Drawn by Castro e Silva, the illustration was published in “Os Anophelineos do Brasil” (Anophelinae in Brazil) by Antônio Gonçalves Peryassú.
Nota preliminar sobre os insetos sugadores de sangue observados nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro*
A importância dos insetos e aracnídeos hematófagos para a transmissão de processos parasitários localizados no sistema vascular foi demonstrada, em primeiro lugar, pela evolução das filárias do sangue humano no mosquito e pela transmissão da febre do Texas por meio dos carrapatos. Em seguida, foi descoberta a transmissão da malária pelos Anopheles e da nagana pela mosca tsé-tsé, e tornou-se provável que os tripanossomos dos ratos sejam transmitidos pelas pulgas e os espirilos da febre recorrente pelos percevejos. Finalmente, veio a demonstração importante do papel dos Stegomyia na transmissão da febre amarela. Assim, fica justificada a conclusão de que muitas outras moléstias causadas por parasitas do sangue, como sejam filárias, piroplasmas e tripanossomos, observados tanto no homem como em animais domésticos ou selvagens, sigam o mesmo modo de propagação por insetos sanguessugas. Disso resulta, para todos os observadores perspicazes, a importância do estudo dos animais hematófagos e dos seus hábitos para a indagação dos meios de transmissão de muitas moléstias infecciosas e,principalmente, das observadas nos países quentes.
À exceção de poucos vermes da família dos hirudíneos e de poucos morcegos, os animais sanguessugas pertencem todos à classe dos artrópodes. Destes, apenas os carrapatos são aracnídeos, pertencendo o resto aos insetos. Deixando de lado os percevejos, entre os quais há poucas espécies hematófagas, os outros insetos sugadores de sangue são todos dípteros, a menos que se considere as pulgas ou afanípteros como ordem diferente. Em todos os casos, só os dípteros fornecem um número maior – de espécies que se alimentam com sangue vermelho e quente – do que o resto do reino animal. Considerando a necessidade de bem conhecer esses parasitas temporários,a fim de apreciar a sua aptidão para propagar processos infecciosos, dedicamonos,de alguns anos para cá, ao estudo dos nossos dípteros sanguessugas.
Em primeiro lugar, tratava-se de conhecer e distinguir as espécies ocorrentes entre nós. Esse problema já ofereceu bastantes dificuldades, porque neste assunto a literatura clássica e mais importante datava de 50 para 70 anos, sendo difícil de obter. Das descrições existentes, grande parte eram deficientes e, talvez, a terça parte das espécies, entre as quais algumas muito vulgares, não eram registradas por nome científico. Não somente encontramos maior número de espécies indígenas do que esperávamos, mas, além dessas, havia várias outras ali introduzidas. Sofrendo também este estudo muitas interrupções por outros trabalhos, a solução dessas questões levou muito tempo e ainda não está completamente terminada. Todavia, já chegamos a um ponto em que os resultados são bastante completos para permitir a orientação que pretendemos dar por meio desta comunicação.
Nos nossos trabalhos fomos muito ajudados por contribuições de vários médicos,naturalistas e pessoas dedicadas a estudos entomológicos. Pessoalmente fizemos muitas excursões com o fim de fazer coleções e fomos muito ajudados pelo pessoal deste Instituto em colecionar e cultivar as várias espécies. Mas, como uma coleção um tanto completa precisa de contribuições vindas de muitos pontos diversos e, principalmente, também dos outros estados do Brasil, dos quais apenas dois são representados nas nossas coleções, teríamos muito prazer em adicionar novos nomes à lista dos contribuidores; todavia, julgamos possuir já a maioria das espécies conhecidas e novas, aproximando-se o número total de 150.
A maior parte dos dípteros hematófagos só procura os animais de sangue quente de vez em quando, e só com o fim de subtrair sangue; mas alguns da família dos pupíparos habitam por muito tempo entre os pêlos ou penas dos hospedadores,conservando, todavia, a faculdade de locomoção rápida, que lhes permite trocar de hospedador. O mesmo se observa nas pulgas, e este fato facilita muito a propagação das moléstias por meio desses parasitas temporários.
Os dípteros dividem-se em nematóceros, com antenas compridas de muitas articulações, e braquíceros, com antenas curtas de poucos artículos. Aos primeiros corresponde o tipo dos mosquitos pernilongos, ao segundo o das moscas.
Entre os nematóceros mencionaremos, em primeiro lugar, os culicídeos, mais conhecidos pelo nome de pernilongos ou mosquitos. De mais de 40 espécies observadas entre nós, apenas duas são cosmopolitas nas zonas bastante quentes e duas outras foram também observadas em outros continentes; as demais são limitadas ao continente americano e a algumas ilhas vizinhas.
Quando principiamos os nossos estudos, apenas a metade dessas espécies eram conhecidas; as outras ou só foram observadas por nós, ou foram encontradas simultaneamente em outros países na ocasião das investigações instituídas pelo governo inglês. Os resultados destas acham-se publicados numa monografia editada pelo British Museum e incluem as nossas observações.
Mais ou menos a metade dos nossos culicídeos atacam o homem com freqüência e energia: somente poucos podem ser considerados inócuos, por serem raros e pouco dados a picar.
As nossas espécies podem ser divididas em domésticas, palustres, e silvestres.As larvas de todas elas vivem na água; as das domésticas em águas de chuva ou de gasto abandonadas dentro ou perto das casas, onde também são encontrados os insetos perfeitos, que evitam os lugares inabitados. As larvas das espécies palustres freqüentam as águas de inundação, lagoas ou brejos, e os adultos só procuram as casas quando estas são vizinhas. A esse grupo pertencem quase todos os Anopheles transmissores do impaludismo. Os mosquitos silvestres, entre os quais há um Anopheles, depositam os seus ovos na base das folhas de plantas epífitas da família das bromeliáceas e as larvas se desenvolvem aí. A esse grupo pertence a terça parte das nossas espécies, ao das palustres a metade, sendo o resto representado por espécies domésticas ou de hábitos mistos.
Aos nematóceros pertencem também os borrachudos, espécies de Simulium,das quais somente uma foi descrita com nome científico; encontramos mais três,das quais uma não ataca o homem. As outras são ávidas de sangue, mas se limitam a certas regiões, de preferência as de terreno acidentado e rico em água corrente. Isto se explica pelo fato de as larvas viverem nas pequenas cachoeiras formadas por água corrente e pura.
Os dípteros conhecidos pelos nomes de pólvora, maruim ou mosquitinhos do mangue são nematóceros e pertencem ao gênero Ceratopogon. Possuímos duas espécies não determinadas, das quais a maior é encontrada principalmente na zona marítima, enquanto a menor freqüenta as matas úmidas.
Ambas são muito ávidas de sangue. Julgamos provável que existam mais espécies em condições análogas.
Há mais um mosquito sanguessuga encontrado em lugares úmidos e conhecido em alguns pontos pelo nome índio de birigui. Pertence ao gênero Phlebotomus,sendo a espécie não descrita. As larvas destes últimos três mosquitos não são conhecidas, mas devem viver em lugares úmidos ou propriamente na água.
Entre os braquíceros, ou moscas hematófagas, o grupo maior e mais importante é formado pelos tabanídeos ou mutucas. Temos umas oitenta espécies, quase todas dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Destas, 10 a 15% não foram ainda descritas, mas faltam-nos também várias espécies já conhecidas. Pode-se estimar que nesta zona não haja menos de cem espécies diferentes, das quais o maior número pode ocasionalmente atacar o homem, mas somente poucas o perseguem com insistência.
As demais atacam de preferência os cavalos e, entre elas, provavelmente serão encontrados os propagadores da peste das cadeiras. As larvas das mutucas vivem muito, escondidas na terra ou no fundo da água; as das nossas espécies são completamente desconhecidas.
Há mais duas espécies de moscas bastante parecidas com a mosca doméstica comum, mas de hábitos hematófagos; pertencem ao gênero Stomoxys. Uma espécie,Stomoxys calcitrans, é cosmopolita; a outra julgamos ser a Stomoxys melanogaster Wiedemann da Europa meridional.
Ambas devem ter sido introduzidas com cavalos, aos quais atacam de preferência e de cujo esterco se alimentam as larvas.
Finalmente, existem entre nós várias espécies de pupíparos ou hipoboscídeos.As suas larvas vivem por dentro do corpo da fêmea, a qual, em lugar de um ovo,deposita uma pupa ou casulo já formado, do qual depois de poucos dias sai outra mosca perfeita.
Não observamos nenhuma espécie em nossos mamíferos maiores, mas conhecemos algumas de pássaros, sendo a mais conhecida a Lynchia lividicolor Leach dos pombos domésticos. Nas corujas encontramos uma Olfersia e temos também a Ornithomyia erythrocephala, parasita de vários passarinhos. Encontramos uma espécie de pupíparos em morcegos e recebemos a mesma e mais três outras do Sr.Ernesto Young, residente em Iguape.
Finalmente, observamos umas sete espécies de pulgas, das quais pelo menos três procuram o sangue humano. Os ratos têm uma espécie provavelmente idêntica ao bicho do pé do homem e mais duas outras: o Pulex pallidus e uma Typhlopsylla, mas são também atacados pelo Pulex serraticeps, a pulga do cachorro.Esta e a do homem, o Pulex irritans, são os mais suspeitos de servirem de instrumento de propagação da peste bubônica.
Os primeiros estádios das pulgas são passados no chão, em lugares mais ou menos ricos em resíduos animais.
Concluindo o nosso resumo, temos assim perto de 50 espécies de mosquitos e mais do dobro de moscas que se alimentam de sangue quente. Acedem algumas espécies de pulgas e pelo menos uma de percevejos. Quando todas as espécies forem conhecidas, o seu número deve exceder a 150 e talvez alcançar a 200.Considerando que a maior parte delas não tem sido estudada com relação à propagação de moléstias parasitárias, reconhecemos que existe aqui um vasto campo de investigações para o futuro.