Zoologia médica. Caracteres anatômicos e morfológicos dos mosquitos da família Culicidae*
Os mosquitos pernilongos, também conhecidos pelos nomes muriçocas e carapanã, pertencem à classe dos dípteros, caracterizada por duas asas, dois balancins e uma tromba suctória, e à sub-ordem de nematóceros veros, cujas antenas têm muitos artículos compridos. Os Culicidae ou culicídeos, como costumamos dizer em português, reconhecem-se pelas asas cobertas de escamas e a tromba pungitiva que falta aos gêneros Corethra, Corethrella, Sayomyia e Mochlonyx, hoje em dia considerados como uma família separada: Corethridae ou Culicimorphae. As larvas dos culicídeos vivem na água, como também as ninfas, que são móveis, mas não se alimentam. Antes da metamorfose ficam cheias de ar e bóiam, de modo que a imago pode sair por uma fenda dorsal do integumento ninfal.
Os ovos podem ser depositados em lugares altamente secos, mas acima da água ou periodicamente inundados. Todavia, na regra são depositados na superfície da água, onde bóiam por meio de uma câmara de ar. Podem ser isolados, ocupando uma posição horizontal, ou reunidos, como cartuchos, em forma de canoa, sendo então a sua posição vertical. Neste caso, as larvas se formam com a cabeça para baixo, saindo na água por ocasião da ecdise.
Nas espécies que freqüentam as habitações humanas, a evolução pode ser muito rápida, durando pouco mais de uma semana em tempo de calor. Sendo as circunstâncias pouco favoráveis ou tratando-se de outras espécies, pode ser bastante demorada.
As larvas, que se formam rapidamente nos ovos, respiram água por meio de apêndices branquiais ou ar por estigmas posteriores, colocados na superfície dorsal na subfamília das anofelinas ou dentro de um tubo respiratório nos outros mosquitos. As larvas alimentam-se geralmente de detritos ou de pequenos organismos aquáticos, mas algumas espécies, caracterizadas por mandíbulas muito fortes, vivem à custa de outros organismos, incluindo larvas da mesma ou de outra espécie.
As larvas das espécies domésticas são encontradas em qualquer depósito de água de gasto ou de água de chuva como bacias, moringas, caixas d'água, talhas, tanques de jardim e mesmo em latas e garrafas com a água de chuva. Os mosquitos palustres criam-se em águas estagnadas ou de pouca correnteza, com vegetação aquática, e nas lagoas e brejos, alimentados pelas enchentes dos rios. Os mosquitos da mata vivem nos depósitos de água, encontrados em buracos de árvores, e, entre nós, principalmente nas águas contidas em bromeliáceas e taquaras.
Os culicídeos adultos (Fig. 5 e 6) apresentam um dimorfismo bem acusado que permite distinguir os dois sexos à primeira vista. Os caracteres sexuais secundários observam-se nas antenas, nos palpos, nas partes bucais e nas unhas; os primitivos aparecem no exame na parte posterior do abdome.
Como em todos os dípteros, o corpo dos culicídeos mostra três segmentos principais, a cabeça, o tórax e o abdome.
A cabeça (Fig. 1-4) é formada por maior número de segmentos, tão estreitamente ligados que são indicados apenas pelos apêndices que a eles correspondem. A sua forma é subglobar ou hemisférica, sendo a parte mais plana virada para trás e ligada ao tórax por um pescoço fino. Possui dois grandes olhos compostos, separados apenas por um vértice estreito, mas não há vestígio de ocelos. Por trás dos olhos vê-se um occipício triangular e abaixo desta a nuca. As antenas são colocadas em uma chanfradura dos olhos que assim se tornam reniformes; a parte situada entre eles chama-se a fronte e diante dela percebe-se o clípeo, de forma semicônica. Abaixo deste salienta-se a tromba, tendo de cada lado um palpo maxilar. O resto da face é formada por duas bochechas ou genae. Abaixo da tromba existe a região mental e abaixo da nuca a gula. Nos mosquitos os olhos compostos ocupam a maior parte do lado inferior da cabeça, estando em contato na linha mediana.
As antenas dos culicídeos são formadas por 14 artículos nas fêmeas e 15 nos machos, sendo o basal achatado e discóide e os outros alongados. São revestidos de pêlos dispostos em verticilos, geralmente mais curtos nas fêmeas, que têm as antenas apenas pilosas, e mais compridos nos machos, cujas antenas aparecem plumosas. Este caráter permite distinguir os sexos na quase totalidade dos mosquitos; e só em algumas espécies de menor importância não existe diferença bem marcada.
Os palpos maxilares variam em comprimento, forma e número de artículos. As espécies com os palpos compridos nos dois sexos (Anophelinae e Megarhininae) podem chamar-se macropalpae, as com palpos curtos nos dois sexos micropalpae, as com (Dendromyia etc.), cabendo a designação heteropalpae às que têm os palpos compridos nos machos e curtos nas fêmeas (Culicinae).
Quando os palpos são compridos podem ter cinco artículos, o que parece o máximo normal. Em conseqüência de fusão mais ou menos completa ou de supressão, o número pode ser reduzido até dois, como se observa nos palpos curtos. Mesmo nos palpos, compridos nos dois sexos, os dos machos diferem dos das fêmeas.
A tromba tem um comprimento variável, mas é sempre assaz comprida. Nas Megarhininae é curvada na parte apical e nos machos de Limatus mostra um ângulo no meio. Nas outras espécies é reta, mas, sendo muito fina, pode aparecer um pouco arcada em exemplares secos.
O labium não se distingue nos dois sexos e o seu integumento corresponde ao resto do corpo. As partes incluídas são formadas de quitina lisa, de cor ocrácea, e variam um pouco na sua forma, segundo a sua adaptação. As mandíbulas faltam a todos os machos e as fêmeas que não sugam sangue. Na extremidade da tromba percebem-se duas válvulas, chamadas labellos que correspondem aos palpos labiais. As maxilas que são sempre presentes têm a base unida à do palpo maxilar correspondente. Na hipofaringe percebe-se um duto salivar comum.
O tórax, como em todos os dípteros, é formado por três segmentos unidos. O do meio (mesotórax) ocupa quase toda a região dorsal, terminando no escutelo trilobado ou em forma de crescente. Do protórax aparecem apenas os lóbulos umerais no aspecto dorsal; do metatórax vê-se na linha mediana um segmento semiovalar, o metanoto; geralmente glabro ou com um feixe terminal de cerdas curtas; raras vezes apresenta algumas escamas chatas. Outras cerdas aparecem no mesonoto e principalmente na margem do escutelo. As asas e os alteres nascem nas partes laterais dos mesonoto e metanoto. As pernas são dispostas do lado ventral, correspondendo cada par a um dos segmentos torácicos.
O abdome é composto por nove segmentos. A sua forma é geralmente cilíndricocônica, mas pode ser achatado no sentido dorso-ventral ou bilateral, em maior ou menor extensão. No oitavo segmento abre-se o orifício anal; o nono corresponde às partes genitais exteriores em forma de dois lóbulos laterais na fêmea (Fig. 8) e de duas pinças no macho (Fig. 7). A estrutura destas e dos apêndices acessórios no macho é aproveitada na sistemática, mas não pode ser apreciada quando se dispõe apenas de fêmeas, que são obtidas com maior facilidade. Felizmente, estas podem ser perfeitamente determinadas pelos caracteres próprios aos dois sexos.
Nas asas dos culicídeos distinguimos uma face superior e outra inferior, a margem anterior ou costa, ligando a base com o ápice, e a margem posterior, mostrando uma franja de escamas mais compridas e uma incisão perto da base. As nervuras carregam fileiras de escamas de formas variadas, geralmente mais curtas e largas nas fileiras internas.
As veias ou nervuras longitudinais são as seguintes: a nervura costal que forma a margem de toda a asa, sendo, todavia, mais fina na margem posterior. Por trás desta percebe-se a primeira nervura longitudinal ou subcostal que entra na costal antes do ápice. Dela nasce a segunda longitudinal, cuja bifurcação contém no ápice desta, pouco antes da bifurcação, a terceira, que é simples; a sua parte basal forma um ângulo obtuso e parece-se com uma nervura transversal supernumerária, em oposição à transversal normal que liga a terceira nervura longitudinal à quarta. Esta nasce da base, conforme a regra, e acaba numa segunda bifurcação. Perto do meio é ligada pela segunda nervura transversal ao ramo superior da quinta que mostra uma terceira bifurcação, muito longa. Nasce da base, como também a sexta longitudinal ou nervura anal que, depois de um trajeto um tanto sinuoso, termina sem bifurcação na parte média da margem posterior. Em poucas espécies há indicação de uma sétima longitudinal ou nervura axilar.
Na sistemática aproveita-se a posição das nervuras transversais entre si e com as das hastes basais.
Sobre as pernas dos mosquitos bastam poucas palavras. Os segmentos são os já descritos para os dípteros, mas relativamente finos e compridos. O primeiro tarso (também chamado metatarso) tem um comprimento aproximado ao da tíbia, os outros são muito menores. O último possui um par de unhas que podem ser simples ou compostos e fornecem caracteres sexuais e específicos. Algumas espécies de mosquitos, aliás sem importância prática, têm, nas pernas, muitas vezes num par só, uns tufos laterais de pêlos ou escamas alongadas que lhes dão uma semelhança com remos e as tornam muito conspícuas.
Escamas. Os mosquitos são quase inteiramente revestidos de escamas que faltam apenas excepcionalmente ao dorso do abdome e do tórax. O clípeo, os halteres, o metanoto e as antenas são geralmente desprovidos de escamas, mas podem ser parcialmente ou inteiramente revestidos de escamas brilhantes. As unhas nunca mostram escamas, como, aliás, em todos os insetos.
As escamas podem ser consideradas como pêlos modificados, para os quais mostram muitas transições. As escamas dos mosquitos parecem-se com os dos lepidópteros e mostram grandes variações nas suas formas. Quando são chatas, são geralmente apostas e muitas vezes imbricadas. Em certas regiões, como no noto e muitas vezes no occipício, pode haver escamas alongadas e curvadas em vários sentidos, sendo salientes ou erguidas. Algumas vezes formam tufos laterais no abdome; outras vezes no tórax, nas antenas e nas pernas.
Para designar a forma das escamas convém usar as expressões empregadas nas descrições de folhas e pétalas. Assim se pode falar em escamas lineares, lanceoladas, oblanceoladas, ovais e obovais, obtriangulares etc. A expressão fusiformes, muitas vezes empregada para escamas elípticas pontiagudas, não é muito correta, mas compreende-se que se trata apenas da projeção de um fuso. Estas escamas, muitas vezes, são estreitas, compridas e curvadas ou torcidas. Outras vezes as escamas têm a parte apical truncada ou terminando em duas ou três pontas. Assim teremos escamas em forma de pá ou espátulas.
Uma forma característica é a obtriangular estreita com ápice um tanto arredondado que lembra a forma de um leque dobrado. Caracteriza as asas de Culex. Escamas obovais pouco largas encontra-se nas asas de Taeniorhynchus. Cyclolepidopteron têm escamas em balão, obovais e muito largas. As Mansonias têm escamas que eu denominei securiformes e Blanchard escamas em estandarte. São assimétricas, correspondendo a um oboval largo com um dos lados obliquamente truncado na metade apical. Para substituir a descrição pode-se também falar em escamas de Culex, Taeniorhynchus, Mansonia etc.
As escamas podem ter uma cor própria, geralmente branca, ocrácea ou escura, como se verifica bem examinando uma asa de Mansonia titillans com a luz incidente. As escamas de cor dourada, bronzeada, verde e azul não têm pigmento próprio e o matiz varia com a incidência da luz, de modo que a mesma escama pode aparecer ora branca, ora azul celeste etc. Como nas asas das borboletas brilhantes do gênero Morpho trata-se de cores de interferência ou de lâminas finas. Estas escamas brilhantes, não observadas nas espécies européias, encontram-se de preferência em mosquitos fitófilos.
A anatomia interna (Fig. 7 e 8) dos culicídeos corresponde às regras já expostas para os dípteros em geral. Há, todavia, alguns pontos que merecem ser salientados.
O sangue absorvido passa da tromba na cavidade faríngea e desta pelo esôfago ao ventre quelífero que se dilata enormemente. Os divertículos do esôfago (que podem ser em número de três) não se enchem com sangue. As glândulas salivares dos mosquitos são bastante desenvolvidas e ocupam a região ântero-inferior do tórax. Há, de cada lado, lóbulo médio mais curto, cujas células mais escuras parecem produzir a secreção tóxica e irritante, inoculada na ocasião da picada. Dos dois lados deste há um tubo maior comprido e mais claro; às vezes um destes tubos se bifurca.
As glândulas reconhecem-se facilmente pelo tubo excretório, reforçado por anéis quitinosos e lembrando uma traquéia. Os três tubos de um lado se unem num tubo comum, que mais acima se une ao do outro lado. Na malária os esporozóides acumulam-se nas glândulas salivares, principalmente na parte do meio, o que permite reconhecer os mosquitos infectantes. Os esporocistos são encontrados sobre a parede do intestino quelífero, adiante dos tubos de Malpighi. Nestes pode-se observar o desenvolvimento das larvas da Filaria immitis do cão e nos músculos torácicos das larvas da Filaria bancrofti. As larvas maduras, para passar ao hospedador definitivo, procuram a bainha da tromba, formada pelo labium.
As larvas dos mosquitos (Fig. 9) passam por algumas mudas, mas os vários instares não mostram diferenças maiores. Apenas os pentes de espinhos são mais desenvolvidos nas larvas adultas que se conhecem facilmente pelo tamanho e pelo desenvolvimento do olho ninfal que corresponde ao olho composto. As larvas menores têm apenas olhos simples.
Nas larvas, sempre ápodes, distinguimos a cabeça, três anéis torácicos completamente unidos numa massa torácica e nove anéis abdominais.
A cabeça é formada por uma cápsula quitinosa subesférica, achatada em sentido dorso-ventral, ou subquadrangular quando vista de cima. é geralmente glabra, com poucas cerdas maiores, que podem ser compostas ou tomar a aparência de espinhos, o que distingue o gênero Uranotaenia. Há duas antenas mais ou menos desenvolvidas e com indicação de segmentação. Na extremidade há alguns espinhos e pêlos sensitivos; no meio pode haver um tufo lateral de cerdas ramificadas. Os palpos são poucos desenvolvidos. As mandíbulas e maxilas da larva são feitas para mastigação, movendo-se em sentido horizontal. No lado interno são dentadas e munidas de pentes ou escovas no lado externo que servem para estabelecer uma correnteza na direção da boca. Embaixo desta o lábio inferior forma uma placa ímpar, mais ou menos triangular, com dente maior no meio e uma série de dentes laterais. Esta placa labial ou mental é um dos órgãos mais característicos. Na margem anterior da cabeça há, de cada lado, um pequeno órgão que geralmente tem a forma de uma cerda, mas em duas espécies basta para a identificação das larvas, porque numa parece-se com uma papila composta e na outra com um cristal de Charcot. O comprimento destes estylos preoraes e a distância da sua base também fornecem bons caracteres.
As cerdas, ou quetas, do tórax indicam a sua composição de três segmentos e são as únicas partes bem diferenciadas. O tórax pode ser mais largo que a cabeça, ou mais estreito, como em muitos Culex.
Os segmentos abdominais formam anéis um tanto convexos no meio. O penúltimo carrega um sifão respiratório de forma e comprimento muito variável, cuja estrutura basta para caracterizar o maior número de espécies. Nas Culicinae têm pentes de espinhos compostos e cerdas, muitas vezes em feixes, que formam caracteres adicionais. Nas Anophelinae o sifão respiratório falta ou é completamente rudimentar. O último segmento, também chamado anal, forma um ângulo com o resto do corpo. Além de pentes de espinhos e cerdas costuma mostrar umas quatro lâminas membranáceas que servem de brânquias hemáticas. Têm a forma de triângulos, às vezes muito alongados.
As ninfas de culicídeos (Fig. 10) são constituídas por um cefalotórax volumoso e um abdome de nove anéis, terminado por dois folíolos caudais que funcionam como remos e que podem ser substituídas por tufos de cerdinhas. A pele, na sua maior extensão, é glabra e o revestimento se reduz a poucas cerdas curtas, isoladas ou em feixes.
O cefalotórax bastante alto é comprimido lateralmente, de modo a formar um disco vertical assaz grosso, cuja forma, um tanto irregular, é destinada a agasalhar a cabeça e o tórax da imagem com apêndices e extremidades dobrados para baixo. Estes se tornam mais distintos quando a ecdise se aproxima. No princípio da fase ninfal só se percebe o olho composto e, no lado dorsal dos apêndices, ocos que lembram pequenos chifres de forma variada. Substituem o tubo respiratório da larva garantindo o acesso do ar. Os seus caracteres morfológicos permitem certas conclusões a respeito do adulto; é, contudo, mais simples fazer a determinação da imagem depois da ecdise. Esta pode demorar oito dias em algumas espécies maiores, porém geralmente se observa já dois ou três dias depois da transformação da larva.
Os ovos mostram muitas variações que, todavia, não são de importância prática.
Fig.1 – cabeça do macho; Fig. 2 – cabeça da fêmea de Anopheles maculipennis 18x; Fig. 3 – cabeça do macho; Fig. 4 – cabeça da fêmea de Culex pipiens 24x; Fig. 5 e 6 – macho e fêmea de Stegomya argentea (sin. taeniata, fasciata e calopus), 6x; Fig.7 – orgãos sexuais do macho de Aedes 30x; Fig. 8 – extremidade abdominal da fêmea de Anopheles 50x; Fig. 9 – larvas de Anopheles (horizontal) e Culex (inclinada). 6x; Fig. 10 – ninfa de Culicídae 10x. As figuras 3 e 4 são copiadas de figuras de Carroll, o resto de originais de Eysell.