Biologia das águas torrenciais e encachoeiradas*

Supõe-se geralmente que os organismos da água doce sejam derivados dos marinhos, passando pela estadia intermediária na água salobra. Esta explicação adapta-se bem aos peixes, vermes, moluscos e celenterados, mas não aos insetos, muito mal representados no mar e bastante bem na água doce, onde vivem principalmente as suas primeiras fases. Os organismos de água doce são mais abundantes em valas, pântanos e lagos de água parada que na água corrente, onde o seu número diminui à medida que a força da corrente e a frequência das enxurradas aumentam. Uma corrente moderada pode ser vencida por natação, por exemplo, pelos peixes e crustáceos que para o repouso procuram remansos e esconderijos mais protegidos e que não precisam fixar-se, ou pela locomoção por meio de pernas ou, às vezes, por ventosas que servem também para a fixação no repouso. Onde o fundo é formado por terra, alguns fanerógamos dos géneros Ranunculus e Potamogeton conseguem fixar-se pelas raízes em águas com bastante correnteza, mas de pouco fundo, abandonando os caules e folhas ao movimento das águas como os fucóideos no mar. Há também muitas plantas palustres como as canas e juncos que lá se observam.

Nos rios, riachos e córregos encachoeirados e torrenciais com leito de pedras e nos próprios saltos e quedas que deslizam sobre os rochedos e paredões de pedra, as condições parecem proibir uma vida orgânica fixa permanente. Entretanto, existem algumas espécies vegetais e animais que, em parte de sua vida, se adaptam tão bem a estas condições que não podem ser conservadas vivas em água parada e pouco agitada. As algas, encontradas nestas condições, não foram ainda bastante estudadas e tampouco os musgos, mas há uma família de fanerógamos já assaz conhecida que cresce quase exclusivamente nestas condições especiais e assim serve de suporte, se não de alimento, às formas animais de que trataremos mais tarde. São as podostemonáceas, muito bem representadas no Brasil.

A parte montanhosa do Brasil é muito rica em águas encachoeiradas e durante os meus estudos sobre simuliídeos e blefarocerídeos (cujas larvas podem viver apenas em águas muito agitadas) tive ocasião de familiarizar-me com esta fauna, formada principalmente por larvas de insetos tricópteros, plecópteros e dípteros e estudar algumas questões que logo se apresentam.

Um dos primeiros impulsos para o estudo da fauna riacófila (como se pode chamar a fauna das águas torrenciais) foi dado pelos trabalhos de Fritz Mueller, que descreveu larvas de blefarocerídeos e tricópteros que vivem nestas condições, como também uma larva de psicodídeos com o nome de Maruina. Viu também a larva de um coleóptero do género Psephenus. Em botânica a família Podostemaceae foi bem estudada por Tulasne e Warming em material brasileiro. Outras larvas e ninfas riacófilas, pertencentes aos géneros Simulium e Blepharocera, foram estudadas especialmente na América do Norte por Johannsen. Eu fiz observações extensas sobre blefarocerídeos e simuliídeos, cujas larvas vivem exclusivamente em águas encachoeiradas e torrenciais ou pelo menos agitadas.

A primeira questão que se apresenta é de saber como os organismos riacófilos conseguem manter-se no meio das correntes fortes e contínuas, ainda aumentadas pelas cheias e enxurradas frequentes. As diatomáceas que existem nestas condições podem colar-se por meio de seus pedúnculos gelatinosos. Outras algas também podem estar grudadas nas pedras onde cai água em pequeno volume. As podostemonáceas têm discos de adesão e, muitas vezes, todo o corpo vegetal forma uma espécie de talho aderente à pedra e pode ser confundido com musgos. Em outras espécies o corpo vegetal é dividido em ramificações tão finas que oferecem pouca resistência às águas em que flutuam.

Os animais que vivem abertamente em águas torrenciais se mantêm por diferentes meios. O seu corpo é geralmente pequeno e muitas vezes achatado. Pode fixar-se no substrato, seja por meio de seda, seja por meio de ventosas. Este último modo de adesão é o mais perfeito e exclui a locomoção.

Nas partes das torrentes que têm a correnteza mais mansa e o fundo lodoso as larvas de tabanídeos, leptídeos e outros dípteros podem penetrar neste e atingir um tamanho relativamente grande. Onde há pedras maiores, as situações mais protegidas, embaixo delas, ou no lado não exposto à corrente, são procuradas por larvas de plecópteros, neurópteros e tricópteros. As larvas dos plecópteros (perlídeos) têm o corpo achatado, mas bastante resistente, e pernas bem desenvolvidas com as quais correm rapidamente sobre as pedras, retiradas da corrente. As larvas de tricópteros vivem pela maior parte dentro de casulos das formas mais diversas que fixam seguramente nas pedras por meio de seda que resiste a correntes fortes. A parte anterior do corpo, com as pernas bem formadas, pode sair do casulo e arrastá-lo quando não é fixado. Algumas espécies tecem teias em forma de funil debaixo da água que lembram certas aranhas. Os neurópteros da família Sialidae têm larvas muito grandes e fortes que vivem nas águas correntes com pedras soltas, debaixo das quais se abrigam. Muitas das larvas que vivem na água corrente são predatórias sobre outras, principalmente sobre as dos Simuliidae, cujas ninfas fixadas constituem uma presa fácil. As larvas de dípteros não têm pernas articuladas, mas apenas pernas falsas que servem para locomoção. Entre estes aparece um novo meio de fixação muito eficaz que consiste em ventosas, adaptadas de modo a não impedir a locomoção.

Há duas famílias de dípteros cujas larvas vivem exclusivamente em água muito agitada e mesmo nas correntes violentas de cachoeiras e saltos menores que caem de bastante altura. São os simuliídeos e os blefarocerídeos. Estes últimos têm levado a adaptação das larvas ao ponto de aparecerem fixadas na pedra lisa no meio de uma corrente que as leva longe no momento que são destacadas, de modo que se precisa recorrer a vários expedientes para recolhê-las, como já descrevi num trabalho sobre o assunto. Estas larvas não são somente bastante achatadas, mas o seu aparelho de fixação consiste em meia dúzia de ventosas, situadas na face ventral. Esta fixação é tão eficaz que basta a metade das ventosas para resistir à corrente, o que permite uma locomoção lateral, lenta, mas perfeitamente eficaz. Preferem a pedra bem lisa para fixar-se. Os casulos são fixados e imobilizados por aposição total da face ventral, de preferência embaixo de saliências que diminuem um pouco a força da corrente e lá esperam até serem expostas em tempo seco pela diminuição da água. Quando se desvia a água, as larvas, antes imóveis, metem-se em movimento lateral para procurar um lugar irrigado. Geralmente preferem os rios onde a camada de água é pouco alta, mas na ocasião de enchentes podem ficar e viver a bastante profundidade. Fixam-se de preferência em lajes e paredões, aproximando-se bastante de uma posição vertical, ao contrário das larvas de simuliídeos que nos degraus das cachoeiras procuram as partes mais horizontais.

As larvas dos simuliídeos não são achatadas, mas têm dois meios de fixação que permitem a locomoção. Na extremidade da cauda têm uma ventosa que basta para a fixação definitiva. No tórax há uma perna falsa, munida de outra ventosa na extremidade, cuja ação alternativa permite às larvas caminhar como as lagartas das geometridas, formando com o corpo um arco ou uma alça. Além disso, têm a faculdade de produzir fios de seda que lhes permitem fixar a parte anterior do corpo e deixar-se levar pela corrente até achar um ponto apropriado para a fixação das ventosas. A seda serve também para fazer um casulo em forma de cartucho de papel, fixado pela ponta e aberto em cima, em que a larva se transforma em ninfa. Geralmente vivem em grupos e de preferência fixadas em substâncias vegetais: juncos, galhos pendentes de plantas ripícolas, folhas coriáceas e ramos secos que encalham entre as pedras que formam as pequenas cachoeiras. Poucas espécies, entre elas o Simulium pertinax que mais persegue o homem, fixam-se em lajes formando colónias densas, unidas por fios de seda. Duas espécies escolhem podostemonáceas do tipo Ligea para se fixar. Uma destas abunda nos pilões da cachoeira de Pirapora. No repouso as larvas são fixadas apenas pela ventosa terminal. O corpo acha-se em vibração contínua, mas conserva uma posição que se aproxima da vertical. Em aquários, nos quais cai um jato de água, vão todas fixar-se no lugar do choque mais forte.

Há ainda duas espécies de larvas que se fixam por via pneumática e têm o corpo muito achatado. Umas pertencem a uma Psychodidae do género Maruina e têm ventosas como os blefarocerídeos. A outra pertence a um coleóptero semiaquático do género Psephenus. Nestes, todo o corpo forma uma única ventosa, contendo a face ventral com três pares de pernas. A face dorsal parece-se com um escudo oval. Estas duas espécies de larvas encontram-se de preferência em pedras, irrigadas por uma camada fina de água. Nestas condições se pode também encontrar os girinos de batráquios que se mantêm apenas pela adesão da face ventral, e sabem trepar usando principalmente a musculatura da cauda. São adaptados a este género de vida e não se encontram na água parada.

Entre os moluscos de água doce há várias espécies que vivem em água corrente e podem mesmo invadir as cachoeiras. Fixam-se pela sola da pá nas pedras ou em vegetais, mas não mostram fenómenos de adaptação especial.

A segunda questão a respeito da fauna riacófila refere-se à alimentação dos organismos. Algumas das espécies são predatórias e carnívoras como muitos tricópteros, que fazem grandes estragos nas colónias de larvas e ninfas de simuliídeos e as larvas do género neuróptero Corydalus. Outras se alimentam de matérias vegetais vivas ou mortas, que encontram no fundo e nas margens das águas ou nas crostas que cobrem as pedras. Mesmo nas lajes aparentemente limpas pode haver muitas diatomáceas que se observam até cobrindo larvas de Psephenus e blefarocerídeos. Misturadas com diatomáceas, encontra-se também desmidiáceas e fios de algas verdes. As larvas Simulium têm escovas em forma de leque que servem para facilitar a alimentação por meio de detrito que se encontra mesmo nas águas puras, mas principalmente na ocasião das enxurradas. Em tais ocasiões o conteúdo intestinal das larvas de borrachudos, geralmente cor de húmus, pode tornar-se vermelho se a água contém barro desta cor. O número de organismos que enchem o intestino, sem escolha, com qualquer detrito, lama ou terra que só em parte pode ser aproveitado, é enorme entre os invertebrados e compreende também quase todas as larvas de batráquios, das quais parte pertence à fauna riacófila e algumas podem fixar-se em pedras por meio da boca ou por órgãos adesivos.

Indagando agora sobre os processos de respiração, estes devem ser adaptados à água, mesmo nas espécies que na forma adulta respiram por traquéias o ar ambiente. Nas formas que vivem fixadas nas águas torrenciais, há um desenvolvimento de apêndices moles e ramificados que correspondem a brânquios sanguíneos. Nos blefarocerídeos há um par em cada anel de larva; nos simuliídeos há apenas um apêndice bastante grande e ramificado que pode ser recolhido pelo orifício anal. Nos tricópteros há órgãos semelhantes e os casulos permitem a passagem de uma corrente contínua de água. Nas ninfas que formam um estado de transição para o inseto perfeito, os órgãos de respiração são variados, mas diferentes das larvas e das dos adultos. Uma respiração na superfície da água não existe nestas larvas.

Surge agora a questão: quais serão as vantagens e desvantagens da vida nas águas torrenciais e da adaptação especial para esta. A água nestas condições é mais fresca, mais pura e mais arejada, além de ser mais constante, e os organismos acostumados e adaptados a estas condições mal suportam a sua falta. Dão-se perfeitamente bem em água muito fria, mas não suportam as temperaturas elevadas que a água parada apresenta em climas e estações quentes e debaixo da ação dos raios solares. Também evitam mais facilmente a dessecação completa, a que não podem resistir. Pode-se contestar a pureza em tempo de enchentes, mas quando as águas se turvam, isso não é o resultado de contaminação e putrefação. O arejamento é devido à mistura mecânica com ar que se dissolve mais facilmente na água mais fresca. Quando conservamos apenas úmidas ou debaixo de uma camada fria de água, as larvas de riacófilas resistem mais tempo que debaixo de alguns centímetros de água parada. A pressão mecânica que sofrem na água torrencial é difícil de apreciar, mas parece favorável. Entretanto, o arejamento e a agitação produzida por bolhas de ar, sucedendo-se rapidamente nas águas de cultura artificial, pode substituir, pelo menos por algumas espécies menos exigentes, o uso de uma corrente contínua de água.

A vida na água torrencial me parece proteger os blefarocerídeos contra parasitas internos e inimigos externos. Nos simuliídeos observa-se larvas de Mermis e microsporídeos numa pequena proporção dos indivíduos. Piores inimigos são certas larvas de tricópteros que penetram nas suas colónias.

Somando tudo, a vida nas águas torrenciais só se tornou possível por adaptação especial que se limitou a poucos grupos. Estes, todavia, já produziram um número regular de espécies.

Considerando que a fauna da água muito agitada é formada principalmente por larvas aquáticas que devem se transformar em adultos com asas e respiração aérea, vale a pena indagar como se faz a passagem de um meio para outro. Nos tricópteros e dípteros, a união dos sexos é de observação difícil, mas indubitavelmente tem lugar fora da água. Os adultos, frequentemente observados perto da água corrente, podem, entretanto, afastar-se bastante em procura de alimentação. Os ovos são depositados perto ou dentro da água. As observações, posto que muito deficientes, indicam vários modos para a penetração das larvas novas no meio aquático. Os leptídeos do género Atherix depositam os ovos em folhas de planta ripícolas e as larvas deixam-se cair na água, onde afundam. Encontrei muitas posturas em folhas de Hedychium coronarium que abunda na margem de águas correntes. Certos tabanídeos talvez procedam de modo análogo. Nas torrentes sem vegetação os ovos são postos sobre pedras secas ou apenas úmidas no meio ou ao lado da água e não perto da superfície desta que na primeira enchente, embora pequena, eles ficam banhados. Isto se dá, provavelmente, com certos simuliídeos, com os blefarocerídeos e com Maruina. Num simuliídeo europeu observou-se que a fêmea pode pôr os ovos debaixo da água, descendo pela haste de uma planta, mas isto certamente não é regra geral. Os Psephenus adultos foram encontrados por mim, reunidos em grupos, debaixo da água, em remansos de torrentes, de modo que podem fazer cópula e postura debaixo da água.

A ecdise dos riacófilos alados com pupas fixas se dá, na regra, quando estas forem expostas ao ar, na ocasião de uma seca. Esperando por esta, os simuliídeos e blefarocerídeos já adultos e com o tegumento endurecido podem esperar nas ninfas e pupas durante meses, o que explica que em certas estações não são observados em vida livre e em outras ocasiões aparecem em número enorme. A ecdise se faz rapidamente; às vezes, mas excepcionalmente, os simuliídeos podem sair ainda debaixo da água que não os molha. Não mostram o estado tenero, observado em tantos outros insetos logo depois da ecdise, mas podem voar imediatamente.

Para as espécies de metamorfose incompleta que vivem em águas agitadas, mas não destituídas de vegetação, o problema da ecdise é mais fácil, porque as ninfas podem subir em plantas como juncos, apenas parcialmente submersos, até alcançar o ar livre, onde o adulto pode descansar até que os tecidos do inseto transformado tenham endurecido bastante para permitir-lhe voar.

À medida que a intensidade da corrente diminui, a fauna dos arroios e rios torna-se mais rica em espécies que se assemelham às da água parada. A necessidade de disposições especiais para resistir à força da corrente desaparece e a fauna mostra apenas as adaptações gerais para a vida na água doce.