O emprego do fenol na técnica microscópica*
Há mais de quarenta anos o ácido carbólico, ou fenol, foi introduzido por Lister como agente principal do tratamento anti-séptico. Depois disso, essa substância, que então era pouco conhecida, atingiu grande popularidade, sendo considerada o anti-séptico par excellence. As propriedades tóxicas que correspondem à sua ação microbicida não podiam permanecer ignoradas. De fato, as soluções aquosas usuais de 2 a 5% podem tornar-se perigosas quando empregadas larga manu em spray ou irrigação de grandes cavidades. Porém, o estudo exato desse e de outros anti-sépticos demonstrou que a sua ação microbicida é muito inferior ao que se supunha geralmente, conduzindo primeiro à substituição do fenol por outros desinfe-tantes e, mais tarde, ao abandono da anti-sepsia em favor da assepsia. Todavia, o fenol continua a ser muito empregado como remédio caseiro e nem sempre com as precauções necessárias. Sendo facilmente obtido em toda parte, tornou-se de-ploravelmente comum o seu emprego para fins de suicídio.
É singular que tenham passado quase inteiramente ignoradas as grandes vantagens que o fenol oferece na técnica microscópica e, principalmente, no estudo de pequenos organismos com integumento opaco. Este fato é, talvez, devido à circunstância de ser essa substância considerada como altamente destruidora dos tecidos, graças à sua ação cáustica e aos efeitos especiais sobre a camada córnea da epiderme.
Eu mesmo só aos poucos cheguei a reconhecer as suas propriedades úteis, a seguir enumeradas.
Consultando a Encyclopedia da Technica Microscópica de Ehrlich, vemos que o fenol é citado só como mordente e como clarificador, mas apenas em mistura com outros líquidos menos tolerantes para a água.
Convém citar que o ácido piro-lenhoso e o creosoto já foram empregados, há mais tempo, na técnica microscópica; o primeiro como fixador e mordente, o segundo na qualidade de clarificador. O uso do ácido piro-lenhoso, que não oferece especiais vantagens, foi abandonado. Quanto ao creosoto é preciso distinguir o de origem vegetal – obtido da faia, que se compõe de uma mistura de guaiacol, cresol e outras substâncias -, e o de origem mineral, extraído do carvão de pedra, que contém fenol na proporção aproximada de 20%, em mistura com muitas outras substâncias. Ambos são certamente inferiores ao fenol puro no que respeita às qualidades desidratantes e clarificadoras. O emprego do creosoto mineral me sugeriu a ideia de substituí-lo pelo fenol puro e reconheci logo a enorme vantagem do último.
Antes de entrar na discussão dos diversos empregos do ácido fênico, seja-me permitido lembrar algumas das suas propriedades. O fenol puro é sólido na temperatura das habitações, mas tem um ponto de fusão baixo (cerca de 40%); cristaliza em agulhas brancas, que podem tornar-se vermelhas pela ação prolongada da luz e aparentemente sob a influência do vidro dos frascos. Pela adição de 10% de álcool ou glicerina obtém-se o ácido fênico líquido das farmácias, usado comumente em nossas pesquisas.
O fenol líquido como meio conservador
Pequenos espécimes zoológicos e botânicos podem ser indefinidamente conservados no ácido fênico, sem que apareça alteração em sua estrutura, depois de transferidos para outros meios, como sejam, o álcool, a glicerina, as soluções de formol etc. Não há turvação na transferência ao fenol (em excesso), quando os objetos estiverem em soluções aquosas, alcoólicas ou glicerinadas ou em glicerina pura. O mesmo se aplica ao maior número de outros reativos empregados na técnica microscópica. A transferência inversa, do fenol para os líquidos citados (em excesso), se faz com a mesma facilidade porque o fenol pode ser misturado com eles sem se turvar, a menos que tenha absorvido maior quantidade de água. Neste caso, pode turvar os óleos essenciais e as resinas, o que se evita intercalando uma passagem em fenol anídrico ou desidratante.
Poder penetrante do fenol líquido
O fenol líquido em excesso tem um poder penetrante muito acentuado. Os insetos pequenos (adultos e larvas), aracnídeos, vermes etc. são penetrados e desidratados em pouco tempo, como demonstra a transparência adquirida pelos tecidos. Os esqueletos quitinosos não formam um obstáculo; parece que a ação do fenol sobre a quitina é análoga à sua ação sobre a queratina. A substituição pelo fenol é ainda mais rápida quando se trata de objetos conservados em álcool.
O fenol como clarificador
O fenol líquido é um clarificador ideal. O seu índice de refração é superior ao da glicerina e talvez mesmo ao do bálsamo. Pode-se obter facilmente uma transparência completa de larvas de moscas e de vermes que tomam o aspecto de vidro.
O fenol tem a propriedade rara, senão única, entre os clarificadores, de não produzir uma retração dos objetos que, ao contrário, tornam-se geralmente mais túrgidos, de modo que os segmentos do abdome dos insetos, por exemplo, ficam muito mais distintos. Isto é de grande vantagem no estudo dos ovipositores e apêndices genitais, os quais parecem retraídos quando se empregam outros líquidos. Muitos órgãos internos, como por exemplo, os espermatocistos, aparecem claramente em razão de sua pigmentação mais intensa. O mesmo se dá com os ganchos maxilares e estigmas das larvas de moscas, sendo também admirável a nitidez com que se tornam perceptíveis pêlos, espinhos, unhas e outras partes externas mais pigmentadas. Os objetos que secaram no álcool, ficando aparentemente imprestáveis para qualquer exame, reassumem sua turgescência natural, podendo facilmente ser estudados. Se a turgescência for excessiva, é fácil corrigi-la pela adição de uma pequena quantidade de álcool, cuja ação é oposta à do fenol.
O fenol e o microtomo de congelação
O fenol liquefeito congela facilmente, assumindo uma consistência muito favorável, de modo que os objetos clareados por esse meio podem facilmente ser cortados no microtomo de congelação.
Os objetos corados em massa pelo carmim ou hematoxilina podem ser aproveitados, mas as cores da anilina são extraídas no fenol.
Está claro que o ácido fênico não tem vantagem para cortes em série; permite, porém, fazer, com grande facilidade, a divisão de pequenos objetos, simplificando assim o estudo e conservando ao mesmo tempo a imagem estereoscópica dos cortes mais espessos. Para fazer preparações de pequenos dípteros, tanto adultos como larvas e casulos, colocam-se eles na mesa de um microtomo de congelação por C02, de modo que o plano sagital se ache perpendicular à mesa; quando se trata de artrópodes, as pernas devem ficar viradas para cima; congela-se então, executando um corte sagital que divida o animal em duas metades, das quais cada uma inclui os apêndices de um lado do corpo. Estas metades são aproveitadas para preparações microscópicas e prestam-se muito melhor ao estudo do que o animal inteiro. Às vezes torna-se vantajoso separar a cabeça e colocá-la na posição mais apropriada. À seção sagital interessa apenas o resto do corpo. No caso de larvas, casulos e vermes é de utilidade a separação das extremidades cefálica e caudal, que são colocadas na posição mais favorável. O corpo pode ser dividido por dois ou três cortes longitudinais, que permitem estudar todas as estruturas, cutâneas e internas. Os cortes podem ser feitos por meio de um bisturi; prefiro, porém, usar as lâminas de navalhas de segurança Gillette.
Exemplos do emprego do fenol para o estudo de objetos opacos
Os objetos opacos, como as pulgas, os carrapatos e outros aracnídeos que não podem ser suficientemente clarificados pela glicerina ou pela gelatina glicerinada, ficam suficientemente transparentes quando tratados pelo fenol. As larvas dos blefarocerídeos, cujo integumento é completamente escuro e opaco, são clarificadas de tal modo que se distingue, por baixo da pele, as estruturas das peles da próxima muda, fato este de maior utilidade para a identificação das diferentes fases de evolução. Os moluscos pequenos podem ser clarificados a ponto de aparecer toda a anatomia interna. As suas conchas tornam-se admiravelmente transparentes. O uso do fenol é também indicado no estudo dos ovos que possuem uma casca opaca e no de organismos que contêm muita gordura de aparência leitosa, ou que estão cobertos por pêlos sedosos, como as espécies do género Trombidium.
Os objetos clarificados no fenol podem facilmente ser conservados em bálsamo. Convém transferi-los, primeiro, para nova solução a fim de retirar os restos de água, podendo de lá passá-los para essência de terebintina ou de cravo, antes de serem colocados no bálsamo. O fenol não se presta muito para preparações microscópicas fechadas (a menos de tratar-se de objetos muito finos) em razão de sua grande fluidez. Há, todavia, métodos que permitem o seu emprego, ficando reservado para o artigo posterior a sua descrição.
Inconvenientes
A principal desvantagem do fenol reside no fato de mudar de cor apenas depois de prolongada exposição à luz ativa. À medida que assume uma cor vermelha, torna-se menos transparente. As minhas tentativas de obstar essa alteração pela adição de outras substâncias não deram muito resultado; uma mistura com timol me parece retardar o processo, sem, porém, impedi-lo totalmente; melhor ainda é substituir o fenol corado por outro, fresco e ainda hialino, quando se quer examinar o objeto. Outro método consiste em mudar os objetos do fenol para outra substância clarificante, mas estas diminuem geralmente a turgescência ou são também sujeitas a mudar de cor com o tempo. Experimentei várias substâncias, que pareciam apropriadas, sendo impossível a obtenção de outras no período atual. Até hoje foi com o guaiacol que obtive o melhor resultado. Não pode substituir o fenol completamente porque a sua ação penetrante e desidratante é fraca, mas pode servir para conservar os objetos anteriormente clarificados pelo fenol.
Curioso é o fato de que as larvas de moscas, no período precedente à formação do casulo, em forma de barril, ficam escuras depois de estar algum tempo no fenol. Isto significa que o processo de enegrecimento que se dá na pele, por ocasião da formação do pupário durante a vida, dá-se também na pele morta conservada em fenol.
A segunda desvantagem do fenol é a sua ação sobre a pele humana, ação esta que pode, todavia, ser evitada pelo uso das precauções habituais no caso do emprego de substâncias corantes.
A pele humana, mesmo espessa como na palma da mão, é muito permeável ao ácido fênico, que já em quantidades pequenas, agindo durante certo tempo, pode produzir fenómenos gerais, que se manifestam por náusea, mal-estar e elevação da temperatura, como tive ocasião de experimentar duas vezes. A reabsorção do fenol é facilmente verificada pela cor característica que a urina assume algum tempo depois da emissão. O sulfato de sódio é considerado como antídoto do fenol, mas é duvidoso se agirá também sobre o fenol absorvido pela pele. As partes que estiveram em contato com o fenol puro ou apenas liquefeito podem ser lavadas com álcool ou soluções alcalinas.
Convém lembrar-se que o fenol líquido corre nas lâminas mais como álcool que como água, e que qualquer gotinha projetada ou levada com os dedos ao rosto deixa um sinal que leva alguns dias para desaparecer.
Conclusão
Os inconvenientes mencionados devem ser conhecidos a fim de serem evitados, o que não é difícil. Não são de natureza a contra-indicar o uso do fenol líquido como agente muito precioso para a técnica microscópica e, principalmente, em entomologia.
Recomendo-o, principalmente, para o xame de objetos naturalmente opacos que se tornam claros depois de breve embebição e para o estudo de objetos dessecados, voluntariamente ou por acidente. Para este fim creio que não tem rival, a não ser as suas modificações como o clorofenol, que não se recomendam por causa do cheiro muito ativo.