A principal característica do pensamento histórico propriamente dito não é o “mobilismo” (ideia principal da fluidificação ou relativização histórica de todas as formas de vida), mas o pleno endosso de certa impossibilidade: depois de uma verdadeira ruptura na história, não podemos simplesmente voltar ao passado ou ir em frente como se nada tivesse acontecido – ainda que o façamos, a mesma prática adquirirá um significado radicalmente diferente. Adorno deu um bom exemplo disso com a revolução atonal de Schoenberg: depois que ela aconteceu, é óbvio que foi (e é) possível continuar compondo da maneira tradicional, mas a nova música tonal perdeu a inocência, porque é “mediada” pela ruptura atonal e por isso funciona como sua negação. É por essa razão que existe um irredutível elemento do kitsch nos compositores tonais do século XX, como Rachmaninov – certo apego nostálgico ao passado, algo falso, como o adulto que tenta manter viva a criança ingênua dentro de si. E o mesmo vale para todos os outros domínios: com o surgimento da análise filosófica de Platão das noções, o pensamento mítico perdeu sua imediaticidade, qualquer retomada é falsa; depois da cristandade, retomadas do paganismo tornam-se simulacros nostálgicos.
Escrever, pensar ou compor como se não tivesse ocorrido um rompimento é mais ambíguo do que parece e não pode ser reduzido a uma negação não histórica. Certa vez, Badiou escreveu que o que o unia a Deleuze era o fato de ambos serem filósofos clássicos, para os quais Kant, a ruptura kantiana, não aconteceu. Seria realmente assim? Isso talvez valha para Deleuze, mas não para Badiou1. E isso está muito claro na maneira como cada um lida com o Eventoa. Para Deleuze, o Evento é de fato o Um cosmológico pré-kantiano e gera uma multitude, razão pela qual é absolutamente imanente à realidade; já o Evento badiouiano é uma ruptura na ordem do ser (realidade fenomenal constituída transcendentalmente), a intrusão de uma ordem (“numenal”) radicalmente heterogênea, de modo que estamos claramente em um espaço (pós-)kantiano. É por isso que podemos definir a filosofia sistemática de Badiou (desenvolvida em sua última obra-prima, Logiques des mondes [Lógicas dos mundos]) como um kantismo reinventado para a época da contingência radical: em vez de uma realidade constituída transcendentalmente, temos uma multiplicidade de mundos, cada um delineado por sua matriz transcendental, uma multiplicidade que não pode ser mediada/unificada em um único enquadramento transcendental mais amplo; em vez de uma lei moral, temos a fidelidade ao Verdade-Evento que é sempre específico com respeito a uma situação particular de um Mundo.
Não seria o idealismo especulativo de Hegel o caso exemplar dessa impossibilidade propriamente histórica? Ainda é possível ser hegeliano depois da ruptura pós-hegeliana com a metafísica tradicional, que ocorreu mais ou menos simultaneamente ao trabalho de Schopenhauer, Kierkegaard e Marx? Depois de tudo isso, não haveria algo de inerentemente falso na defesa de um “idealismo absoluto” hegeliano? Qualquer reafirmação de Hegel não será vítima da mesma ilusão anti-histórica, contornando a impossibilidade de ser hegeliano depois da ruptura pós-kantiana, escrevendo como se tal ruptura não tivesse ocorrido? Aqui, no entanto, devemos complicar um pouco mais as coisas: em determinadas condições, podemos e devemos escrever como se não tivesse havido uma ruptura. E que condições são essas? Dito de maneira simples e direta: quando a ruptura em questão não é verdadeira, mas falsa; quando é, na verdade, uma ruptura que suprime a ruptura verdadeira, o verdadeiro ponto da impossibilidade. Minha aposta é que foi exatamente isso que aconteceu com a ruptura pós-hegeliana antifilosófica “oficial” (Schopenhauer-Kierkegaard-Marx): embora se apresente como uma ruptura com o idealismo incorporado em seu clímax hegeliano, ela ignora uma dimensão crucial do pensamento de Hegel; em última instância, ela resulta em uma tentativa desesperada de levar adiante o pensamento, como se Hegel não existisse. Tudo o que resta dessa ausência de Hegel, portanto, é preenchido obviamente com a ridícula caricatura de Hegel como o “idealista absoluto” que “possuía o conhecimento absoluto”. Desse modo, a reafirmação do pensamento especulativo de Hegel não é o que talvez pareça ser – uma negação da ruptura pós-hegeliana –, mas a geração dessa mesma dimensão cuja negação sustenta a ruptura pós-hegeliana em si.
Desenvolveremos essa questão no que se refere a O avesso da dialética, de Gérard Lebrun, publicado postumamente. Trata-se de uma das tentativas mais convincentes e contundentes de demonstrar a impossibilidade de ser hegeliano hoje – e, para Lebrun, “hoje” significa sob o signo de Nietzsche2.
Lebrun reconhece que não se pode “refutar” Hegel: o maquinário de sua dialética é tão oniabrangente que nada é mais fácil para Hegel do que demonstrar triunfalmente como todas essas refutações são inconsistentes, do que voltá-las contra si próprias (“não se pode refutar uma doença ocular”, diz Lebrun em consonância com Nietzsche). A mais absurda dessas refutações críticas é, sem dúvida, a ideia evolucionista-marxista padrão de que existe uma contradição entre o método dialético de Hegel – que demonstra como cada determinação fixa é varrida pelo movimento da negatividade, como cada forma determinada encontra sua verdade em sua aniquilação – e o sistema de Hegel: se o destino de todas as coisas é extinguir-se no eterno movimento da autossuprassunção, não aconteceria o mesmo com o próprio sistema? Não seria o próprio sistema de Hegel uma formação temporária, historicamente relativa, que será superada pelo progresso do conhecimento? Ninguém que considere convincente esse tipo de refutação deve ser levado a sério como leitor de Hegel.
Então, de que maneira podemos ir além de Hegel? A solução de Lebrun segue o caminho da filologia histórica de Nietzsche: devemos trazer à luz as escolhas lexicais “eminentemente infrarracionais”, fundamentadas no modo como os seres vivos enfrentam as ameaças a seus interesses vitais. Antes de Hegel pôr em movimento seu maquinário dialético – que “engole” e eleva todo conteúdo a sua verdade, destruindo-o em sua existência imediata –, uma complexa rede de decisões semânticas já foi imperceptivelmente tomada. Ao revelar essas decisões, começamos a “desvendar o avesso da dialética. Ela também é parcial. Ela também oculta seus pressupostos. Ela não é o metadiscurso que pretendia ser em relação às filosofias de ‘entendimento’”3. O Nietzsche de Lebrun é decididamente anti-heideggeriano: para Lebrun, Heidegger refilosofa Nietzsche ao interpretar a vontade de poder como um novo princípio primeiro. Mais que nietzschiana, a abordagem de Lebrun pode parecer foucaultiana: o que ela visa é uma “arqueologia do conhecimento hegeliano”, sua genealogia nas práticas concretas de vida.
Mas seria a estratégia “filológica” de Lebrun suficientemente radical em termos filosóficos? Não resultaria em uma nova versão da hermenêutica historicista ou, antes, da sucessão foucaultiana da episteme epocal? Isso não torna incompreensível – ou ao menos legitima – a refilosofização que Heidegger faz de Nietzsche? Quer dizer, deveríamos levantar a questão do status ontológico do “poder” que sustenta as configurações “filológicas” particulares – para o próprio Nietzsche, é a Vontade de Poder; para Heidegger, é o jogo abissal do “existir” que “lança” diferentes configurações epocais da abertura [disclosure] do mundo. De todo modo, não se pode evitar a ontologia: a hermenêutica historicista não pode ser autossuficiente. A história do Ser de Heidegger é uma tentativa de elevar a hermenêutica histórica (não historicista) diretamente à ontologia transcendental: para Heidegger, não há nada por trás ou subjacente ao que Lebrun chama de escolhas semânticas infrarracionais, elas são o fato/horizonte derradeiro do nosso ser. Heidegger, no entanto, deixa em aberto o que poderíamos chamar de questão ôntica: em toda a sua obra, há alusões obscuras a uma “realidade” que persiste e é anterior a sua abertura ontológica. Ou seja, Heidegger não equipara de modo nenhum a abertura epocal do Ser com qualquer tipo de “criação” – ele reconhece repetidas vezes como fato não problemático que, até mesmo antes de sua abertura epocal ou fora dela, as coisas de alguma forma “são” (persistem), embora ainda não “existam” no pleno sentido do ser aberto “enquanto tal”, como parte de um mundo histórico. Mas qual é o status dessa persistência ôntica fora da abertura ontológica4?
De uma perspectiva nietzschiana, há mais nas decisões semânticas “infrarracionais” do que o fato de que toda abordagem à realidade tem de se basear em um conjunto preexistente de “prejuízos” hermenêuticos, ou, como diria Heidegger, em certa abertura epocal do ser: essas decisões efetuam a estratégia pré-reflexiva vital da Vontade de Poder. Para tal abordagem, Hegel continua sendo um pensador profundamente cristão, um niilista cuja estratégia básica é reacondicionar um defeito profundo, o recuo da vida em toda a sua dolorosa vitalidade, como um triunfo do Sujeito absoluto. Isso significa que, do ponto de vista da Vontade de Poder, o conteúdo efetivo do processo hegeliano é uma longa história de derrotas e recuos, de sacrifícios da autoafirmação vital: muitas vezes, é preciso renunciar ao engajamento vital como ainda demasiado “imediato” e “particular”. A passagem de Hegel do Terror revolucionário para a moral kantiana é exemplar nesse sentido: o sujeito utilitário da sociedade civil, o sujeito que quer reduzir o Estado a um guardião de sua segurança privada e de seu bem-estar, tem de ser esmagado pelo Terror do Estado revolucionário, que pode aniquilá-lo a qualquer momento por absolutamente nenhuma razão (o sujeito não é punido por algo que ele fez, por algum ato ou conteúdo particular, mas pelo próprio fato de ser um indivíduo independente, em oposição ao universal). Esse Terror é sua “verdade”. Sendo assim, como passamos do Terror revolucionário para o sujeito moral de Kant, autônomo e livre? Por meio daquilo que, em uma linguagem mais contemporânea, poderíamos chamar de identificação total com o agressor: o sujeito deveria reconhecer no Terror externo, nessa negatividade que ameaça constantemente aniquilá-lo, o próprio cerne de sua subjetividade (universal); em outras palavras, deveria identificar-se plenamente com ele. A liberdade, portanto, não é a liberdade de um Senhor, mas a substituição de um Senhor por outro: o Senhor externo é substituído pelo interno. O preço dessa identificação é obviamente o sacrifício de todo conteúdo “patológico” particular – o dever deveria se realizar “em nome do dever”.
Lebrun mostra que essa mesma lógica vale para a linguagem: “Estado e linguagem são duas figuras complementares da realização do Sujeito: num e noutra, o sentido que eu sou e o sentido que digo medem-se segundo o mesmo sacrifício, imperceptível, do que na ilusão da imediatez parecia ser o nosso ‘si’”5.
Hegel estava certo ao apontar repetidas vezes que, quando falamos, estamos sempre no universal – o que significa que, com sua entrada na linguagem, o sujeito perde suas raízes no mundo vivido concreto. Em termos mais patéticos, posso dizer que, no momento em que começo a falar, deixo de ser o eu sensualmente concreto, pois sou apanhado em um mecanismo impessoal que sempre me faz dizer algo diferente do que eu queria dizer – ou, como costumava dizer o primeiro Lacan, eu não estou falando, estou sendo falado pela linguagem. Essa é uma das maneiras de entendermos o que Lacan chamou de “castração simbólica”: o preço que o sujeito paga por sua “transubstanciação” do ser agente de uma vitalidade animal direta para ser um sujeito falante cuja identidade é mantida à parte da validade direta das paixões.
Uma leitura nietzschiana discerne com facilidade nessa reversão do Terror em moral autônoma uma estratégia desesperada de transformar a derrota em triunfo: em vez de lutar heroicamente por nossos interesses vitais, declaramos antecipadamente a rendição total e abandonamos todo conteúdo. Lebrun, nesse ponto, sabe muito bem como é injustificada a crítica geral a Hegel, segundo a qual a reversão dialética da negatividade total em uma nova positividade mais elevada, da catástrofe em triunfo, funciona como um tipo de deus ex machina, tolhendo a possibilidade de que a catástrofe possa ser o resultado final do processo – o conhecido argumento baseado no senso comum: “E se não houver nenhuma reversão da negatividade em uma nova ordem positiva?”. Esse argumento não leva em conta o principal, ou seja, que é exatamente isso que acontece na reversão hegeliana: não há uma reversão real da derrota em trinfo, mas apenas uma alteração puramente formal, uma mudança de perspectiva, que tenta se apresentar como triunfo. O ponto defendido por Nietzsche é que esse triunfo é falso, um truque barato de mágica, um prêmio de consolação pela perda de tudo o que faz a vida valer a pena: a verdadeira perda da vitalidade é suplementada por um espectro sem vida. Na leitura nietzschiana de Lebrun, Hegel, portanto, aparece como uma espécie de filósofo cristão ateu: assim como a cristandade, ele localiza a “verdade” de toda realidade terrena finita em sua (auto)aniquilação – a realidade atinge sua verdade somente na autodestruição e por meio dela; diferentemente da cristandade, Hegel sabe que não há Outro Mundo no qual seremos recompensados por nossas perdas na terra: a transcendência é absolutamente imanente, o que há “além” da realidade finita não é nada mais que o processo imanente de sua autossuperação. O nome que Hegel dá a essa imanência absoluta da transcendência é “negatividade absoluta”, como deixa exemplarmente claro na dialética entre Senhor e Escravo: a segura identidade particular/finita do Escravo é abalada quando, ao experimentar o medo da morte durante o confronto com o Senhor, ele sente o sopro da força infinita da negatividade; através dessa experiência, o Escravo é forçado a aceitar a falta de valor de Si mesmo:
Essa consciência sentiu a angústia, não por isto ou aquilo, não por este ou aquele instante, mas sim através de sua essência toda, pois sentiu o medo da morte, do senhor absoluto. Aí se dissolveu interiormente; em si mesma tremeu em sua totalidade; e tudo que havia de fixo, nela vacilou.
Entretanto, esse movimento universal puro, o fluidificar-se absoluto de todo o subsistir, é a essência simples da consciência-de-si, a negatividade absoluta, o puro ser-para-si, que assim é nessa consciência.6
Então, o que o Escravo ganha em troca por renunciar a toda a riqueza de seu Si particular? Nada – ao superar o Si terreno, o Escravo não atinge um nível mais elevado de Si espiritual; tudo o que tem de fazer é mudar sua posição e reconhecer no (que lhe parece) poder opressivo de destruição que ameaça obliterar sua identidade particular a negatividade absoluta que forma o núcleo de seu próprio Si. Em suma, o sujeito tem de se identificar plenamente com a força que ameaça exterminá-lo: o que temeu ao temer a morte foi o poder negativo de seu próprio Si. Desse modo, não há reversão da negatividade em grandeza positiva – a única “grandeza” aqui é essa negatividade em si. Ou, com respeito ao sofrimento, a ideia de Hegel não é que o sofrimento causado pelo trabalho alienante da renúncia seja um momento intermediário que deve ser pacientemente suportado enquanto esperamos alcançar nossa recompensa no fim do túnel – não há prêmio ou lucro no fim de nossa paciente submissão, o sofrimento e a renúncia são sua própria recompensa; tudo o que temos de fazer é mudar nossa posição subjetiva, renunciar ao apego desesperado ao nosso Si finito, com seus desejos “patológicos”, purificar nosso Si rumo a sua universalidade. Também é dessa maneira que Hegel explica a superação da tirania na história dos Estados: “Diz-se que a tirania é subvertida pelo povo por ser indigna, vergonhosa etc. Na verdade, ela desaparece simplesmente por ser supérflua”7. Ela se torna supérflua quando as pessoas não precisam mais da força externa do tirano para renunciar a seus interesses particulares, quando se tornam “cidadãos universais”, identificando diretamente o núcleo de seu ser com essa universalidade. Em suma, as pessoas não precisam mais do senhor externo quando são educadas a cumprir elas mesmas a tarefa da disciplina e da subordinação.
O anverso do “niilismo” de Hegel (todas as formas finitas/determinadas de vida atingem sua “verdade” na autossuperação) é seu oposto aparente: dando continuidade à tradição metafísica platônica, ele não está pronto para atribuir plenos poderes à negatividade, isto é, sua dialética, em última análise, é um esforço para “normalizar” o excesso da negatividade. Já para o último Platão, o problema era como relativizar ou contextualizar o não-ser como um momento subordinado do ser (o não-ser é sempre uma falta particular/determinada do ser, medida pela plenitude que ele não efetiva; não há não-ser enquanto tal, há sempre somente, por exemplo: o “verde” participa do não-ser por não ser “vermelho” ou qualquer outra cor). Nessa mesma linha, a “negatividade” hegeliana serve para “proscrever a ideia de uma diferença absoluta” ou “não-ser”8: a negatividade é limitada à obliteração de todas as determinações finitas/imediatas. O processo da negatividade, portanto, não é apenas um processo negativo da autodestruição do finito: ele chega a seu télos quando as determinações finitas/imediatas são mediadas/mantidas/elevadas, postas em sua “verdade” como determinações ideais conceituais. O que resta depois que a negatividade faz seu trabalho é a parúsia da estrutura conceitual ideal. O que falta aqui, do ponto de vista nietzschiano, é o não afirmativo: o não do jubiloso e heroico confronto com o adversário, o não da luta que visa a autoafirmação, não a autossuprassunção.
Isso nos traz de volta à incompatibilidade entre o pensamento de Hegel e todo tipo de “mobilismo” evolucionista ou historicista. A dialética de Hegel “não envolve de modo algum o reconhecimento da irresistível força do devir, a epopeia de um fluxo que leva tudo consigo”:
A dialética hegeliana costumava ser comparada – ainda que superficialmente – a um mobilismo. E decerto é verdade que a crítica da fixidez das determinações pode suscitar a convicção de um processo dialético infinito: o ser limitado tem de desaparecer de novo e sempre, e sua destruição estende-se ao próprio limite de nossa visão [...]. No entanto, nesse nível, ainda estamos lidando com um simples continuar (Geschehen), ao qual não se pode conferir a unidade interna de uma história (Geschichte).9
Reconhecer isso, rejeitar o tema do “mobilismo” do eterno fluxo do Devir que dissolve todas as formas fixas, é o primeiro passo rumo à razão dialética em sua incompatibilidade radical com a ideia presumivelmente “profunda” de que tudo provém do Caos primordial e é novamente engolido por ele, uma forma de Sabedoria que persiste desde as cosmologias antigas até o “materialismo dialético” stalinista, ele próprio incluso. A forma mais popular de “mobilismo” é a visão tradicional de Hegel como o filósofo da “eterna luta”, popularizada pelos marxistas, de Engels a Stalin e Mao: a conhecida noção “dialética” da vida como um eterno conflito entre reação e progresso, velho e novo, passado e futuro. Essa visão beligerante, que advoga nosso engajamento com o lado “progressivo”, é totalmente estranho a Hegel, para quem “tomar partido” como tal é ilusório (posto que unilateral por definição).
Tomemos a luta social em sua forma mais violenta: a guerra. O que interessa a Hegel não é a luta como tal, mas como a “verdade” das posições envolvidas surge através dela, ou melhor, como as partes em guerra são “reconciliadas” por meio da destruição mútua. O verdadeiro significado (espiritual) da guerra não é o horror, a vitória, a defesa etc., mas o surgimento da negatividade absoluta (morte) como Senhor absoluto, que nos lembra da falsa estabilidade de nossa vida organizada e finita. A guerra serve para elevar os indivíduos a sua “verdade”, fazendo-os renunciar a seus interesses particulares e identificar-se com a universalidade do Estado. O verdadeiro inimigo não é o inimigo com quem lutamos, mas nossa própria finitude – lembramos aqui a áspera observação de Hegel de como é fácil proclamar a fatuidade de nossa existência finita sobre a terra e como é difícil aceitá-la quando é imposta por um soldado inimigo que invade nossa casa e começa a retalhar nossa família com um sabre.
Em termos filosóficos, a questão sustentada por Hegel diz respeito à primazia da “autocontradição” sobre o obstáculo externo (ou o inimigo). Não somos finitos e autoinconsistentes porque nossa atividade é sempre contrariada por obstáculos externos; somos contrariados por obstáculos externos porque somos finitos e inconsistentes. Em outras palavras, o que o sujeito engajado numa luta percebe como inimigo, o obstáculo externo que ele tem de superar, é a materialização da inconsistência imanente do sujeito: o sujeito que luta precisa da figura do inimigo para sustentar a ilusão de sua própria consistência, sua identidade depende de sua oposição ao inimigo, tanto que a vitória (definitiva) resulta em sua própria defesa ou desintegração. Como Hegel costuma dizer, ao lutar contra o inimigo externo, combatemos (sem nos dar conta) nossa própria essência. Portanto, longe de celebrar a luta engajada, a questão em Hegel é antes que toda posição conflituosa, toda tomada de partido, tem de se basear numa ilusão necessária (a ilusão de que, uma vez aniquilado o inimigo, atingirei a plena realização de meu ser). Isso nos leva ao que seria uma noção propriamente hegeliana de ideologia: má compreensão da condição de possibilidade (daquilo que é um constituinte inerente de nossa posição) como condição de impossibilidade (como um obstáculo que impede nossa plena realização) – o sujeito ideológico é incapaz de apreender o fato de que toda a sua identidade depende do que ele percebe como obstáculo perturbador. Essa noção de ideologia não é apenas um exercício mental abstrato: ela condiz perfeitamente com o antissemitismo fascista como forma mais elementar de ideologia – e ficamos tentados até a dizer: como ideologia enquanto tal, kat’ exochen. A figura antissemita do Judeu, o intruso que perturba e corrompe a harmonia da ordem social, é, em última análise, uma objetivação fetichista, um substituto, em troca da “inconsistência” da ordem social em si, em troca do antagonismo imanente (“luta de classes”) que gera a dinâmica de sua instabilidade.
O interesse de Hegel no “conflito dos opostos” é, portanto, o do observador dialético neutro que percebe a “Astúcia da Razão” presente na luta: um sujeito engaja-se na luta, é derrotado (via de regra, em sua própria vitória), e essa derrota o leva a sua verdade. Aqui, podemos medir com clareza a distância que separa Hegel de Nietzsche: a inocência do heroísmo exuberante que Nietzsche quer ressuscitar, a paixão do risco, do pleno engajamento na luta, da vitória ou da derrota, tudo isso é ausência – a “verdade” da luta surge somente na derrota e pela derrota.
É por essa razão que a acusação marxista da falsidade da reconciliação hegeliana (já feita por Schelling) passa ao largo do problema. De acordo com essa crítica, a reconciliação hegeliana é falsa porque ocorre apenas na Ideia, ao passo que os antagonismos reais persistem – na experiência “concreta” da “vida real” dos indivíduos, que se apegam a sua identidade particular, o poder do Estado permanece uma compulsão externa. Nisso reside o ponto crucial da crítica do jovem Marx ao pensamento político de Hegel: este apresenta a monarquia constitucional moderna como um Estado racional, em que os antagonismos são reconciliados, como um Todo orgânico em que qualquer constituinte encontra, ou pode encontrar, seu lugar apropriado, mas com isso ele ofusca o antagonismo de classes que persiste nas sociedades modernas, gerando a classe trabalhadora como a “não-razão da Razão existente”, como a parte da sociedade moderna que não tem nela nenhuma parte devida, como sua “parte de nenhuma parte” (Rancière).
O que Lebrun rejeita nessa crítica não é seu diagnóstico (a reconciliação proposta é desonesta, uma “reconciliação forçada” [erpresste Versöhnung] – título de um dos ensaios de Adorno – que ofusca a persistência dos antagonismos na realidade social), ao contrário: “o que é admirável nesse retrato do dialético desonesto por cegueira é que se supõe que ele poderia ser honesto”10. Em outras palavras, em vez de rejeitar a reconciliação hegeliana como falsa, Lebrun rejeita a própria noção de reconciliação dialética por ser ilusória e renuncia à demanda de uma reconciliação “verdadeira” em si. Hegel tinha plena consciência de que a reconciliação não alivia o verdadeiro sofrimento e os antagonismos – sua afirmação no prefácio do Filosofia do direito é que deveríamos “reconhecer a rosa na cruz do presente”; ou, nos termos de Marx, na reconciliação não mudamos a realidade externa para que corresponda a uma Ideia, mas reconhecemos essa Ideia como a “verdade” interna da realidade miserável em si. A acusação de Marx de que, em vez de transformar a realidade, Hegel apenas propõe uma nova interpretação dela, não capta de certo modo o sentido exato da questão – é como bater em uma porta aberta, pois, para Hegel, para passarmos da alienação para a reconciliação, não devemos mudar a realidade, mas o modo como a percebemos e nos relacionamos com ela.
Essa mesma ideia é subjacente à análise de Hegel da passagem do trabalho para o pensamento no subcapítulo sobre o Senhor e o Escravo na Fenomenologia do espírito. Lebrun tem toda a razão ao enfatizar, contra Kojève, que Hegel está longe de celebrar o trabalho (coletivo) como o lugar da autoafirmação produtiva da subjetividade humana, como o processo de vigorosa transformação e apropriação dos objetos naturais, sua subordinação aos objetivos humanos. Todo pensamento finito continua preso à “falsa infinidade” do processo sem fim da (trans)formação da realidade objetiva que sempre resiste à plena apreensão subjetiva, de modo que o trabalho do sujeito nunca é feito: “enquanto uma atividade agressiva desenvolvida por um ser finito, o que o trabalho mais afirma é a impotência do homem para tomar posse plenamente da natureza”11. Esse pensamento finito é o horizonte de Kant e Fichte: a interminável luta prático-ética para superar tanto os obstáculos externos quanto a própria natureza interna do sujeito. Suas filosofias são as filosofias da luta, ao passo que, na filosofia de Hegel, a postura fundamental do sujeito para com a realidade objetiva não é a do engajamento prático, do confronto com a inércia da objetividade, mas a do “deixe estar”: purificado de sua particularidade patológica, o sujeito universal é seguro de si, sabe que seu pensamento já é a forma da realidade, portanto pode se recusar a impor seus projetos sobre a realidade, pode deixar que a realidade seja como ela é.
É por essa razão que meu trabalho chega cada vez mais perto da verdade quanto menos eu trabalho para satisfazer minha necessidade, ou seja, para produzir objetos que vou consumir. É por isso que a indústria que produz para o mercado é espiritualmente “mais elevada” que a produção realizada para suprir as próprias necessidades: na produção de mercado, eu fabrico objetos sem nenhuma relação com minhas necessidades. A forma mais elevada de produção social é, portanto, a de um comerciante: “o comerciante é o único a portar-se relativamente ao bem como um perfeito sujeito universal, e o objeto já não lhe interessa em absoluto por sua presença estética ou valor de uso, mas apenas enquanto ‘contém o desejo de outro’”12. E é pela mesma razão que, para chegarmos à “verdade” do trabalho, devemos abstrair gradualmente o objetivo (externo) que ele se esforça para realizar.
O paralelo com a guerra é apropriado aqui: da mesma maneira que a “verdade” da luta militar não é a destruição do inimigo, mas o sacrifício do conteúdo “patológico” do Si particular do guerreiro, sua purificação no Si universal, a “verdade” do trabalho como luta com a natureza também não é a vitória sobre a natureza, compelindo-a a servir a metas humanas, mas a autopurificação do trabalhador em si. O trabalho é ao mesmo tempo a (trans)formação dos objetos externos e a autoformação/educação (Bildung) disciplinar do próprio sujeito. Nesse ponto, Hegel celebra precisamente o caráter alienado e alienante do trabalho: longe de ser uma expressão direta de minha criatividade, o trabalho me força a submeter-me à disciplina artificial, a renunciar a minhas tendências imediatas mais profundas, a me alienar do meu Si natural:
O desejo se reservou o puro negar do objeto e por isso o sentimento-de-si-mesmo, sem mescla. Mas essa satisfação é pelo mesmo motivo, apenas um evanescente, já que lhe falta o lado objetivo ou o subsistir. O trabalho, ao contrário, é desejo refreado, um desvanecer contido, ou seja, o trabalho forma.13
Como tal, o trabalho prefigura o pensamento, atinge seu télos no pensamento que não mais trabalha em uma coisa externa, mas já é sua própria coisa, ou não mais impõe sua forma subjetiva/finita na realidade externa, mas já é em si a forma finita da realidade. Para o pensamento finito, o conceito de um objeto é mero conceito, a meta subjetiva que realizamos quando, a título de trabalho, nós o impomos sobre a realidade. Para o pensamento especulativo, ao contrário, ele já é em si objetivo – exprime a forma conceitual objetiva do objeto. É por isso que o Espírito interno, seguro de si, “não mais precisa formar/moldar a natureza e torná-la espiritual para fixar o divino e tornar externamente visível sua unidade com a natureza: na medida em que o livre pensamento pensa a exterioridade, ele pode deixá-la como ela é (kann er es lassen wie es ist)14.
Essa repentina reversão retroativa do ainda-não para o já-é (jamais atingimos um objetivo de maneira direta – passamos do esforço para realizar um objetivo para o súbito reconhecimento de que ele já foi realizado) é o que distingue Hegel de todas as espécies de tropos historicistas, inclusive a censura crítica marxista de que a reconciliação ideal hegeliana é insuficiente, pois deixa a realidade (a verdadeira dor e o sofrimento) do jeito que é, e que o que é preciso é a efetiva reconciliação por meio de uma transformação social radical. Para Hegel, a ilusão não é a da “falsa reconciliação” forçada, que ignora as divisões persistentes; a verdadeira ilusão está em não ver que, naquilo que nos aparece como o caos do devir, o objetivo infinito já está realizado: “no finito não podemos experimentar ou ver que o fim foi verdadeiramente alcançado. A plena realização do fim infinito é somente suprassumir a ilusão [Täuschung, engano] de que o fim não foi ainda realizado”15.
Em suma, o engano máximo reside na incapacidade de ver que já temos aquilo que estamos procurando – como os discípulos de Cristo à espera de sua reencarnação “real”, cegos para o fato de que o coletivo deles já era o Espírito Santo, a volta do Cristo vivo. Justifica-se, portanto, que Lebrun tenha notado que a reversão final do processo dialético, como vimos, longe de envolver a intervenção mágica de um deus ex machina, é uma reviravolta puramente formal, uma mudança de perspectiva: a única coisa que muda na reconciliação final é o ponto de vista do sujeito – o sujeito endossa a perda, reinscreve-a como seu triunfo. Reconciliação, portanto, é menos e, ao mesmo tempo, mais que a ideia-padrão de superar um antagonismo: menos porque nada “realmente muda”, e mais porque o sujeito do processo é privado de sua própria substância (particular).
Vejamos um exemplo inusitado: no fim do clássico filme de faroeste Rio vermelho, de Howard Hawk, acontece uma virada “psicologicamente infundada”, que em geral é considerada um simples ponto fraco do roteiro. O filme inteiro segue na direção de um confronto apoteótico entre Dunson e Matt, um duelo de proporções quase míticas, predeterminado pelo destino, como um conflito inexorável entre duas posições subjetivas incompatíveis. Na cena final, Dunson se aproxima de Matt com a determinação de um herói trágico, cego de ódio, marchando para a própria ruína. A troca brutal de socos que se segue interrompe-se inesperadamente quando Tess, que está apaixonada por Matt, dá um tiro de revólver na direção dos dois e grita: “Qualquer idiota de pouca inteligência pode ver que vocês se adoram”. Há uma rápida reconciliação: Dunson e Matt conversando como velhos companheiros. A “transição de Dunson como a encarnação da fúria, como o próprio Aquiles, para a doçura e a luz, rendendo-se feliz a Matt [...] é de tirar o fôlego por sua rapidez”16. Robert Pippin tem razão em detectar por trás dessa falha técnica do roteiro uma mensagem mais profunda:
a luta pelo poder e pela supremacia a que assistimos [...] foi uma espécie de teatro de sombras [...] uma fantasia amplamente representada por Dunson para se justificar. Nunca houve uma luta suprema, uma ameaça real de luta até a morte. [...] a luta mítica a que assistimos é em si o resultado de certa automitologização [...] um quadro narrativo fantástico que também se desmitologiza diante de nós.17
É desse modo que se dá a reconciliação hegeliana – não como um gesto positivo de resolução ou superação do conflito, mas como a descoberta retroativa de que nunca houve de fato um conflito sério, os dois oponentes sempre estiveram do mesmo lado (mais ou menos como a reconciliação de Fígaro e Marcelina em As bodas de Fígaro, quando são unidos pela descoberta de que são mãe e filho). A retroatividade também explica a temporalidade específica da reconciliação. Lembraemo-nos do paradoxo do processo de pedir desculpas: se magoo alguém ao dizer algo indelicado, o mais apropriado é pedir sinceras desculpas, e o mais apropriado seria que o outro dissesse algo como: “Obrigado, agradeço muito, mas não me ofendi, sei que você não quis dizer isso, portanto você não me deve desculpas!”. Obviamente, a questão é que, apesar do resultado final, ainda assim devemos passar por todo o processo de pedir desculpas. O “você não me deve desculpas” só pode ser dito depois que eu tiver pedido desculpa, de modo que, apesar de “nada acontecer” formalmente e o pedido de desculpa ser proclamado desnecessário, ganha-se algo no fim do processo (talvez até uma amizade se salve)18.
Talvez esse paradoxo nos dê uma pista para entender as voltas e reviravoltas do processo dialético hegeliano. Tomemos a crítica de Hegel ao Terror revolucionário jacobino, entendido como um exercício na negatividade abstrata da liberdade absoluta que, sendo incapaz de se estabilizar em uma ordem social concreta, tem de acabar na fúria da autodestruição. Devemos ter em mente que, na medida em que estamos lidando com uma escolha histórica (entre o caminho da “França” de permanecer no catolicismo, e por isso ser obrigada a se engajar no Terror revolucionário, e o caminho da “Alemanha” da Reforma), tal escolha envolve exatamente o mesmo paradoxo dialético elementar que aquele, também da Fenomenologia do espírito, entre as duas leituras de “o Espírito é um osso” que Hegel ilustra com a metáfora fálica (falo como órgão de inseminação ou falo como órgão de micção): a questão não é que, em contraste com a mente empirista vulgar que só enxerga a micção, a atitude propriamente especulativa tenha de escolher a inseminação. O paradoxo é que escolher a inseminação é a maneira infalível de errar: não é possível escolher de imediato o “verdadeiro significado”; em outras palavras, temos de começar fazendo a escolha “errada” (a micção) – o verdadeiro significado especulativo só surge por meio da leitura repetida, como efeito secundário (ou produto derivado) da primeira leitura “errada”19.
O mesmo vale para a vida social, em que a escolha direta da “universalidade concreta” de um mundo vivido ético particular só pode terminar em uma regressão à sociedade orgânica pré-moderna, que nega o direito infinito da subjetividade como característica fundamental da modernidade. Como o cidadão-sujeito de um Estado moderno não pode mais aceitar sua imersão em um papel social particular que dê a ele um lugar determinado dentro do Todo social orgânico, o único caminho para a totalidade racional do Estado moderno passa pelo Terror revolucionário: poderíamos extirpar cruelmente as restrições da “universalidade concreta” orgânica pós-moderna e afirmar de maneira plena o direito infinito da subjetividade em sua negatividade abstrata.
Em outras palavras, o propósito da análise de Hegel acerca do Terror revolucionário não é a compreensão um tanto óbvia de que o projeto revolucionário envolvia a afirmação unilateral da Razão Universal abstrata, e como tal foi condenado a perecer na fúria autodestrutiva, sendo incapaz de transpor sua energia revolucionária para uma ordem social estável; o propósito de Hegel é antes destacar o enigma do motivo por que, apesar do fato de o Terror revolucionário ter sido um impasse histórico, temos de passar por ele para chegar ao Estado racional moderno.
Aqui também, portanto, temos de fazer algo (propor uma apologia, representar um reino do Terror) para ver que ele é supérfluo. Esse paradoxo é sustentado pela distinção entre as dimensões “constatativa” e “performativa” da fala, entre o “sujeito do enunciado” e o “sujeito da enunciação”: no nível do conteúdo enunciado, toda a operação é insignificante (por que fazer – pedir desculpas, superar pelo Terror – se é supérfluo?); contudo, essa ideia baseada no senso comum esquece que somente o gesto supérfluo “errado” cria as condições subjetivas que possibilitam que o sujeito realmente veja por que o gesto é supérfluo. Só é possível dizer que meu pedido de desculpas é desnecessário depois que eu pedir desculpas; só é possível perceber que o Terror é supérfluo e destrutivo depois de passar por ele. O processo dialético, portanto, é mais refinado do que parece: a noção corrente é que só podemos chegar à verdade final pelo caminho do erro, de modo que os erros ao longo do caminho não sejam simplesmente descartados, mas “suprassumidos” na verdade final, preservados nela enquanto momentos seus. Essa noção evolucionista do processo dialético diz que o resultado não é apenas um cadáver, ele não subsiste sozinho, na abstração do processo que o engendra: nesse processo, diferentes momentos surgiram primeiro em sua forma imediata unilateral, enquanto a síntese final os reúne como suprassumidos, mantendo seu núcleo racional. O que falta nessa ideia é que os momentos prévios são preservados precisamente como supérfluos. Em outras palavras, apesar de os estados precedentes serem realmente supérfluos, precisamos de tempo para chegar ao ponto a partir do qual podemos ver que eles são supérfluos.
Como devemos contra-atacar o diagnóstico dessa “doença chamada Hegel”, centrado na reversão dialética como gesto formal vazio de apresentar a derrota como vitória? A primeira observação que se impõe é que interpretar as escolhas semânticas “infrarracionais” como estratégias para enfrentar os obstáculos à afirmação da vida já é em si uma escolha semântica “infrarracional”. Contudo, mais importante é notar que tal interpretação perpetua sutilmente uma visão estreita de Hegel, uma visão que oblitera dimensões importantes de seu pensamento. Não seria possível interpretar a sistemática “suprassunção” hegeliana de toda e qualquer forma de consciência ou de vida social como uma descrição de todas as possíveis formas de vida, com suas “escolhas semânticas” vitais e seus antagonismos inerentes (“contradições”)20? Se existe uma “escolha semântica” subjacente ao pensamento de Hegel, ela não é a aposta desesperada de que, retroativamente, seremos capazes de contar uma história oniabrangente, significativa e consistente, em que cada detalhe será situado em seu lugar apropriado, mas, ao contrário, a certeza estranha (comparável à certeza do psicanalista de que o reprimido sempre voltará, de que um sintoma sempre arruinará toda figura de harmonia) de que, com toda figura de consciência ou forma de vida, as coisas sempre “darão errado” de alguma maneira, de que toda posição sempre gerará um excesso que pressagiará sua autodestruição.
Isso não significaria que Hegel não defende uma “escolha semântica” determinada, posto que, para ele, a única “verdade” é o processo infindável de “geração e corrupção” das “escolhas semânticas” determinadas? Sim, mas com a condição de não concebermos esse processo no sentido “mobilista” comum.
De que maneira, então, o pensamento verdadeiramente histórico rompe com esse “mobilismo” universalizado? Em que sentido preciso ele é histórico e não apenas a rejeição do “mobilismo” em nome de um Princípio eterno, livre do fluxo de geração e corrupção? A chave está no conceito de retroatividade que concerne ao próprio núcleo da relação entre Hegel e Marx: esta é a principal razão por que devemos retornar de Marx a Hegel e decretar uma “reversão materialista” do próprio Marx.
Para tratar dessa questão complexa, partirei da noção de Gilles Deleuze de um passado puro: não o passado para o qual as coisas presentes passam, mas um passado absoluto, “em que todos os eventos, inclusive aqueles que naufragaram sem deixar rastros, são armazenados e lembrados como seu desaparecer”21, um passado virtual que já contém as coisas que ainda são presentes (um presente pode se tornar passado porque, de certa maneira, ele já é, ele pode se perceber como parte do passado – “o que fazemos agora é [terá sido] história”). “É pelo elemento puro do passado, como passado em geral, como passado a priori, que tal antigo presente é reprodutível e que o atual presente se reflete.”22 Isso significa que o passado puro envolve uma noção totalmente determinística do universo no qual tudo que está para acontecer (por vir), todo desdobramento espaço-temporal atual, já faz parte de uma rede virtual imemorial/atemporal? Não, e por uma razão muito precisa: porque “o passado puro tem de ser todo o passado, mas também tem de ser passível de mudança por meio da ocorrência de todo presente novo”23. Não foi ninguém menos que T. S. Eliot, o grande conservador, que formulou de maneira clara, pela primeira vez, essa ligação entre nossa dependência da tradição e nosso poder de mudar o passado:
Ela [a tradição] não pode ser herdada, e se alguém a deseja, deve conquistá-la através de um grande esforço. Ela envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico, que podemos considerar quase indispensável a alguém que pretenda continuar poeta depois dos 25 anos; e o sentido histórico implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença; o sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura europeia, desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu próprio país têm uma existência simultânea e constituem uma ordem simultânea. Esse sentido histórico, que é o sentido tanto do atemporal quanto do temporal e do atemporal e do temporal reunidos, é que torna um escritor tradicional. E é isso que, ao mesmo tempo, faz com que um escritor se torne mais agudamente consciente de seu lugar no tempo, de sua própria contemporaneidade.
Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. Entendo isso como um princípio de estética, não apenas histórica, mas no sentido crítico. É necessário que ele seja harmônico, coeso, e não unilateral; o que ocorre quando uma nova obra de arte aparece é, às vezes, o que ocorre simultaneamente com relação a todas as obras de arte que a precedem. Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada: e desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são reajustados; e aí reside a harmonia entre o antigo e o novo. Quem quer que haja aceito essa ideia de ordem, da forma da literatura europeia ou inglesa, não julgará absurdo que o passado deva ser modificado pelo presente tanto quanto o presente esteja orientado pelo passado. E o poeta que disso está ciente terá consciência de grandes dificuldades e responsabilidades. [...]
O que ocorre é uma contínua entrega de si mesmo, tal como se é num dado momento, a algo que se revela mais valioso. A evolução de um artista é um contínuo autossacrifício, uma contínua extinção da personalidade.
Resta aqui definir esse processo de despersonalização e sua relação com o sentido da tradição. É nessa despersonalização que a arte pode ser vista como próxima da condição de ciência.24
Quando Eliot diz que, para estimar um poeta, “é preciso situá-lo [...] entre os mortos”, ele dá um exemplo preciso do passado puro de Deleuze. E quando escreve que “a ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada: e desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são reajustados”, ele formula claramente nada menos que a ligação paradoxal entre a completude do passado e nossa capacidade de mudá-lo de maneira retroativa: precisamente porque o passado puro é completo, cada nova obra restabelece seu inteiro equilíbrio. É dessa maneira que devemos ler a crítica de Kafka à noção do Dia do Juízo como algo que vai chegar no fim dos tempos: “É somente nosso conceito de tempo que nos possibilita chamar o Dia do Juízo Final por esse nome; na realidade, trata-se de uma corte sumária numa sessão perpétua”. Cada momento histórico contém seu próprio Juízo no sentido de seu “passado puro”, que atribuiu um lugar a cada um de seus elementos, e esse Juízo está sendo constantemente reescrito. Vejamos a expressão precisa de Borges a propósito da relação entre Kafka e sua multiplicidade de precursores, desde os autores chineses antigos até Robert Browning:
Em cada um desses textos, em maior ou menor grau, encontra-se a idiossincrasia de Kafka, mas, se ele não tivesse escrito, não a perceberíamos; vale dizer, não existiria. [...] cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro.25
Da mesma maneira, uma revolução radical faz (o que antes apareceu como) o impossível e assim cria seus próprios precursores – essa talvez seja a definição mais sucinta do que é um ato autêntico. Tal ato deveria ser propriamente localizado na trilogia (que reflete estranhamente a “trindade europeia” do inglês, do francês e do alemão): acting out, passage à l’acte, Tat-Handlung (neologismo de Fichte para o gesto fundador da autoposição [self-positing] do sujeito, em que a atividade e seu resultado se sobrepõem totalmente). Acting out é um acesso histérico dentro do mesmo grande Outro; passage à l’acte suspende destrutivamente o grande Outro; Tat-Handlung rearranja-o retroativamente. Nas palavras de Jacques-Alain Miller, “o status do ato é retroativo”26: um gesto “terá sido” um ato, torna-se um ato se, em suas consequências, é bem-sucedido ao perturbar e rearranjar o “grande Outro”. A solução propriamente dialética do dilema “Está mesmo lá, na fonte, ou fomos nós que lemos esse sentido na fonte?” é esta: está lá, mas só podemos perceber e declarar isso retroativamente, da perspectiva do presente27.
Um dos procedimentos comuns da crítica desfetichizadora e desreificadora é condenar (o que aparece como) uma propriedade direta do objeto percebido enquanto “determinação reflexiva” do sujeito (do observador): o sujeito ignora que seu olhar já está incluído no conteúdo percebido. Um exemplo da teoria recente: o desconstrucionismo pós-estruturalista não existe (em si, na França), pois foi inventado nos Estados Unidos por e por meio do olhar acadêmico norte-americano com todas as suas limitações constitutivas28. Em suma, uma entidade como “desconstrucionismo pós-estruturalista” (termo não usado na França) passa a existir somente para um olhar que não conhece os detalhes da cena filosófica na França: esse olhar une autores (Derrida, Deleuze, Foucault, Lyotard...) que simplesmente não são percebidos como parte da mesma episteme na França, assim como o conceito de filme noir pressupõe uma unidade que não existe “em si”. E, da mesma maneira, o olhar francês, ignorante da tradição ideológica do populismo anticombo individualista norte-americano, e passando por lentes existencialistas, confunde a postura heroico-cínica, pessimista-fatalista do herói noir com uma atitude socialmente crítica. Da mesma maneira, a percepção norte-americana inscreveu os autores franceses no campo da crítica cultural radical, conferindo a eles, portanto, uma postura crítica social feminista etc. que, na maioria dos casos, está ausente na própria França. Desse modo, assim como o filme noir não é uma categoria do cinema norte-americano, mas sobretudo uma categoria da crítica do cinema francês e (posteriormente) da historiografia do cinema, o “desconstrucionismo pós-estruturalista” não é uma categoria da filosofia francesa, mas em primeiro lugar uma categoria da (má) recepção norte-americana dos terroristas franceses designados como tal.
Entretanto, esse é apenas o primeiro passo no nível da reflexão (externa). No passo seguinte e crucial, essas determinações subjetivas são desenvolvidas de maneira precisa não como meramente “subjetivas”, mas como afetando simultaneamente a “coisa em si”. A noção de “desconstrucionismo pós-estruturalista”, embora resulte de uma perspectiva estrangeira limitada, extrai de seu objeto invisíveis potenciais para quem está diretamente engajado nele. Nisso reside o derradeiro paradoxo dialético da verdade e da falsidade: às vezes, a visão aberrante que confunde uma situação a partir de sua perspectiva limitada pode, por conta dessa mesma limitação, perceber o potencial “reprimido” da constelação observada. E, além disso, a má percepção externa pode algumas vezes ter uma influência produtiva sobre o “original” em si que foi mal percebido, forçando-o a se tornar consciente de sua própria verdade “reprimida” (supostamente a noção francesa de noir, embora seja resultado de uma má percepção, teve uma forte influência nos últimos cineastas norte-americanos). A recepção norte-americana de Derrida não seria um exemplo supremo dessa produtividade da má percepção externa? Por mais que tenha sido claramente uma má percepção, ela não teve uma influência retroativa, porém produtiva, no próprio Derrida, forçando-o a enfrentar de maneira mais direta as questões ético-políticas? Nesse sentido, a recepção norte-americana de Derrida não teria sido uma espécie de phármakon, um suplemento do próprio Derrida “original” – uma falsa mácula venenosa, que distorce o original, mas ao mesmo tempo o mantém vivo? Em suma, estaria Derrida tão “vivo” hoje, se não fosse pela má percepção norte-americana de sua obra?
Nesse aspecto, Peter Hallward comete um erro no excelente Out of this World29, em que ressalta somente o aspecto do passado puro como campo virtual em que o destino de todos os eventos atuais é selado de antemão, pois “tudo já está escrito” nele. Nesse ponto, em que vemos a realidade sub specie aeternitatis, a liberdade absoluta coincide com a necessidade absoluta e seu puro automatismo: ser livre significa deixar seguir livremente o fluxo com a/na necessidade substancial. Esse tópico reverbera nos debates cognitivistas atuais sobre o problema do livre-arbítrio. Compatibilistas como Daniel Dennett têm uma solução elegante para as reclamações dos incompatibilistas a respeito do determinismo30: quando os incompatibilistas reclamam que nossa liberdade não pode ser combinada com o fato de que todos os nossos atos fazem parte da grande corrente do determinismo natural, secretamente fazem uma suposição ontológica injustificada: primeiro, assumem que nós (o Si, o agente livre) estamos de certo modo fora da realidade, depois se queixam de se sentir oprimidos pela noção de que a realidade em seu determinismo os controla totalmente. Isso é o que há de errado na noção de sermos “aprisionados” pelas correntes do determinismo natural: dessa forma, nós obliteramos o fato de que fazemos parte da realidade, de que o conflito (possível, local) entre nossa aspiração “livre” e a realidade externa que resiste a ela é um conflito inerente na realidade em si. Quer dizer, não há nada de “opressivo” ou “constrangedor” em relação ao fato de nossas aspirações íntimas serem (pre)determinadas: quando nos sentimos cerceados em nossa liberdade pela pressão da realidade externa, tem de haver algo em nós, um desejo ou uma aspiração, que é cerceado – mas de onde surgem tais aspirações se não dessa mesma realidade? De maneira misteriosa, nosso “livre-arbítrio” não “perturba o curso natural das coisas”, é parte integrante desse curso. Para nós, ser “verdadeiramente” e “radicalmente” livres implicaria não haver conteúdo positivo envolvido em nosso ato livre – se não quisermos que nada “externo” e particular ou dado determine nosso comportamento, isso “envolveria sermos livres de todas as partes de nós mesmos”31. Quando um determinista afirma que nossa escolha livre é “determinada”, isso não significa que nosso livre-arbítrio seja de alguma maneira limitado, que somos forçados a agir contra nossa vontade. O que é “determinado” é a própria coisa que queremos fazer “livremente”, isto é, sem sermos cerceados pelos obstáculos externos.
Voltando a Hallward: embora esteja certo ao enfatizar que, para Deleuze, a liberdade “não é uma questão de liberdade humana, mas de libertação do humano”32, de mergulhar totalmente no fluxo criativo da Vida absoluta, a conclusão política que ele extrai disso parece fácil demais:
A implicação política imediata dessa posição [...] é bastante clara: uma vez que um modo livre, ou mônada, não é nada além daquele que eliminou sua resistência à vontade soberana que opera através dele, segue-se que quanto mais absoluto for o poder do soberano, mais “livres” são aqueles sujeitos em relação a ele.33
Mas nesse aspecto não estaria Hallward ignorando o movimento retroativo sobre o qual insiste Deleuze, isto é, que esse passado puro eterno que nos determina plenamente é em si sujeito à mudança retroativa? Somos, portanto, simultaneamente menos livres e mais livres do que pensamos: somos inteiramente passivos, determinados pelo passado e dependentes dele, mas temos liberdade para definir o escopo dessa determinação, para (sobre)determinar o passado que nos determinará. Aqui, Deleuze está surpreendentemente próximo de Kant, para quem somos determinados pelas causas, porém determinamos (podemos determinar) retroativamente quais causas nos determinam: nós, sujeitos, somos passivamente afetados por motivações e objetos patológicos; mas, de maneira reflexiva, temos o poder mínimo de aceitar (ou rejeitar) sermos afetados dessa maneira, ou seja, determinamos retroativamente as causas que podem nos determinar ou, pelo menos, o modo dessa determinação linear. A “liberdade”, portanto, é inerentemente retroativa: em sua forma mais elementar, não é um simples ato que, do nada, inicia uma nova ligação causal, mas é, ao contrário, um ato retroativo de determinação da ligação ou sequência de necessidades que nos determinará. Aqui, deveríamos dar um toque hegeliano a Espinosa: a liberdade não é simplesmente “necessidade reconhecida/conhecida”, mas necessidade reconhecida/assumida, a necessidade constituída/efetivada por meio desse reconhecimento. Portanto, quando Deleuze se refere à descrição de Proust da música de Vinteuil que persegue Swann – “como se os artistas, em vez de simplesmente tocar a frase, tivessem executado os ritos necessários para que ela aparecesse” –, ele está evocando a ilusão necessária: gerar o evento-sentido é algo vivenciado como evocação ritualística de um evento preexistente, como se o evento já estivesse lá, esperando nosso chamado em sua presença virtual.
A principal implicação filosófica da retroatividade hegeliana é que ela solapa o reino do princípio da razão suficiente: esse princípio só é válido na condição de causalidade linear, quando a soma das causas passadas determina um evento futuro – retroatividade significa que o conjunto de razões (passadas, dadas) nunca é completo e “suficiente”, posto que as razões passadas são retroativamente ativadas pelo que é, dentro da ordem linear, seu efeito.
É claro que o que ressoa diretamente neste tópico é o tema protestante da predestinação: longe de ser um tema teológico reacionário, a predestinação é um elemento-chave da teoria materialista do sentido, desde que a interpretemos segundo a linha da oposição deleuziana entre o virtual e o atualb. Ou seja, a predestinação não significa que nosso destino é selado em um texto real que existe desde sempre na mente divina; a tessitura que nos predestina pertence ao passado eterno puramente virtual que, como tal, pode ser retroativamente reescrito por nossos atos. Na predestinação, o destino é substancializado em uma decisão que precede o processo, de modo que o fardo das atividades individuais não é constituir de maneira performativa seu destino, mas descobrir (ou adivinhar) seu destino preexistente. O que é ofuscado, portanto, é a reversão dialética da contingência em necessidade, ou seja, o modo como o resultado de um processo contingente assume a aparência de necessidade: as coisas, retroativamente, “terão sido” necessárias.
Esse talvez tenha sido o resultado derradeiro da singularidade da encarnação de Cristo: ela é um ato que muda radicalmente nosso destino. Antes de Cristo, éramos determinados pelo Destino, aprisionados no ciclo do pecado e do castigo; mas o apagamento de nossos pecados passados, representado por Cristo, significa precisamente que seu sacrifício muda nosso passado virtual e assim nos liberta. Quando Deleuze escreve que “minha ferida existia antes de mim, nasci para encarná-la”, essa variação sobre o tema do gato de Cheshire e seu sorriso, de Alice no país das maravilhas (o gato nasceu para encarnar o sorriso), não estaria fornecendo uma fórmula perfeita para o sacrifício de Cristo – Cristo nasceu para encarnar sua ferida, para ser crucificado? O problema está na leitura teleológica literal dessa proposição: como se as ações de uma pessoa simplesmente efetivassem seu destino atemporal-eterno inscrito em sua ideia virtual:
A única tarefa real de César é tornar-se digno dos eventos para os quais foi criado para encarnar. Amor fati. O que César faz efetivamente não acrescenta nada ao que ele é virtualmente. Quando César atravessa efetivamente o Rubicão, isso não envolve nenhuma deliberação ou escolha, pois simplesmente faz parte da expressão inteira e imediata da “cesaridade”, simplesmente desenrola ou “desdobra algo que desde sempre estava contido na noção de César”.34
Mas e a retroatividade de um gesto que (re)constitui esse passado em si? Talvez esta seja a definição mais sucinta do que é um ato autêntico: em nossa atividade costumeira, nós apenas seguimos efetivamente as coordenadas (virtuais-fantasmáticas) de nossa identidade, ao passo que um ato propriamente dito envolve o paradoxo de um movimento real que (retroativamente) muda as coordenadas “transcendentais” virtuais do ser de seu agente – ou, em termos freudianos, ele não só muda a atualidade de nosso mundo, como também “move seu submundo”. Desse modo, temos um tipo reflexivo de “desdobramento da condição sobre o dado para o qual ela era a condição”35: enquanto o passado puro é a condição necessária para nossos atos, nossos atos não só criam uma nova realidade atual, mas também mudam retroativamente essa mesma condição.
Isso nos leva à ideia deleuziana de signo: as expressões atuais são signos de uma Ideia virtual que não é um ideal, mas antes um problema. O senso comum nos diz que há soluções verdadeiras e falsas para todos os problemas; para Deleuze, ao contrário, não há soluções definitivas para os problemas, as soluções são simplesmente tentativas repetidas de lidar com o problema, com seu impossível-real. Os problemas em si, e não as soluções, é que são verdadeiros ou falsos. Cada solução não só reage a “seu” problema, mas define-o retroativamente, formula-o de dentro de seu próprio horizonte específico. Por essa razão, o problema é universal e as soluções ou respostas são particulares. Deleuze, nesse ponto, aproxima-se surpreendentemente de Hegel: para este, a Ideia de Estado, digamos, é um problema, e cada forma específica do estado (república antiga, monarquia feudal, democracia moderna...) simplesmente propõe uma solução, redefinindo o problema em si. A passagem para o próximo estado “mais elevado” do processo dialético ocorre exatamente quando, em vez de continuar procurando uma solução, nós problematizamos o problema em si, abandonando seus termos – por exemplo, em vez de continuar procurando um Estado “verdadeiro”, nós abandonamos a própria referência ao Estado e procuramos uma existência comunal além do Estado. Um problema, portanto, não é apenas “subjetivo”, não é apenas epistemológico, não diz respeito apenas ao sujeito que tenta resolvê-lo; ele é ontológico stricto sensu, inscrito na coisa em si: a estrutura da realidade é “problemática”. Isto é, a realidade atual só pode ser apreendida como uma série de respostas a um problema virtual – por exemplo, na leitura de Deleuze da biologia, o desenvolvimento do olho como órgão deve ser entendido como uma solução para o problema de como lidar com a luz. E isso nos leva de volta ao signo: a realidade atual aparece como um “signo” quando é percebida como resposta a um problema virtual. “O problema e a questão não são determinações subjetivas, privativas, marcando um momento de insuficiência no conhecimento. A estrutura problemática faz parte dos objetos e permite apreendê-los como signos.”36
Isso explica a estranha maneira como Deleuze opõe signos e representações: para o senso comum, uma representação mental reproduz diretamente o modo como uma coisa é, ao passo que um signo simplesmente aponta para ela, designando-a como um significante (mais ou menos) arbitrário. (Na representação de uma mesa, eu “vejo diretamente” uma mesa, ao passo que seu signo simplesmente aponta para a mesa.) Para Deleuze, ao contrário, as representações são mediatas e os signos são diretos, e a tarefa do pensamento criativo é “fazer do próprio movimento uma obra, sem interposição; [...] substituir representações mediatas por signos diretos”37. As representações são figuras dos objetos enquanto entidades objetivas desprovidas de suporte ou apoio virtual, e nós passamos da representação para o signo quando conseguimos discernir um objeto que aponta para seu fundamento virtual, para o problema em relação ao qual ele é uma resposta. Em poucas palavras, toda resposta é um signo de seu problema. Isso nos leva à noção de Deleuze do “vidente cego”: cego para a realidade atual, sensível somente para a dimensão virtual das coisas. Deleuze recorre a uma metáfora maravilhosa de uma aranha desprovida de olhos e ouvidos, mas infinitamente sensível a tudo que ressoa através de sua rede virtual. Na paráfrase de Hallward:
Formas atuais ou constituídas deslizam pela rede sem causar nenhuma impressão, pois a rede é feita para vibrar apenas em contato com formas virtuais ou intensivas. Quanto mais efêmero e molecular for o movimento, mais intensa será sua ressonância na rede. A rede responde aos movimentos de uma multiplicidade pura antes que ela tome qualquer forma definida.38
Isso nos coloca diante do problema central da ontologia de Deleuze: como se relacionam o virtual e o atual? “As coisas atuais expressam Ideias, mas não são causadas por elas”39. A noção de causalidade é limitada à interação de processos e coisas atuais; por outro lado, essa interação também causa os entes virtuais (sentido, Ideias): Deleuze não é idealista, Sentido para ele é sempre uma sombra ineficaz estéril que acompanha as coisas atuais. O que isso significa é que, para Deleuze, gênese (transcendental) e causalidade são coisas totalmente opostas: elas se dão em diferentes níveis.
As coisas atuais têm uma identidade, ao contrário das virtuais, que são puras variações. Para que expresse algo, uma coisa atual tem de mudar – tornar-se algo diferente –, ao passo que a coisa virtual expressa não muda – o que muda é apenas sua relação com outras coisas virtuais, outras intensidades e Ideias.40
Como essa relação muda? Somente por meio das mudanças nas coisas atuais que expressam Ideias, pois todo o poder gerativo reside nas coisas atuais: as Ideias pertencem ao domínio do Sentido, que é “apenas um vapor movendo-se no limite das coisas e das palavras”; como tal, o Sentido é “o Ineficaz, estéril incorpóreo, privado de seu poder de gênese”41. Pensemos em um grupo de indivíduos lutando pela Ideia de comunismo: para entender sua atividade, temos de levar em conta a Ideia virtual. Mas essa Ideia é, em si, estéril, não tem causalidade própria: toda causalidade reside nos indivíduos que a “expressam”.
A lição que deve ser tirada do paradoxo básico do protestantismo (como é possível que uma religião que ensina a predestinação tenha sustentado o capitalismo, a maior explosão de atividade e liberdade humanas da história) é que a liberdade não é nem necessidade apreendida (a vulgata de Espinosa a Hegel e os marxistas tradicionais) nem necessidade negligenciada/ignorada (a tese das ciências cognitivas e do cérebro: liberdade é a “ilusão do usuário” da nossa consciência, que não tem ciência dos processos bioneurais que a determinam), mas uma Necessidade que é pressuposta como/e desconhecida/desconhecível. Sabemos que tudo é predeterminado, mas não sabemos o que é nosso destino predeterminado, e é essa incerteza que direciona nossa incessante atividade. A infame declaração de Freud de que a “anatomia é o destino” poderia ser interpretada segundo essa linha como um juízo especulativo hegeliano em que o predicado “converte-se” em sujeito. Ou seja, seu verdadeiro significado não é o significado óbvio, o alvo-padrão da crítica feminista (“a diferença anatômica entre os sexos determina diretamente os diferentes papéis sociossimbólicos de homens e mulheres”), mas seu oposto: a “verdade” da anatomia é “destino”, em outras palavras, uma formação simbólica. No caso da identidade sexual, uma diferença anatômica é “suprassumida”, transformada no meio de aparição/expressão – mais precisamente, no suporte material – de determinada formação simbólica.
É dessa maneira que deveríamos diferenciar historicidade propriamente dita de evolução orgânica. Nesta, um Princípio universal diferencia-se lenta e gradualmente; como tal, continua sendo o impassível fundamento subjacente e oniabrangente que unifica a movimentada atividade dos indivíduos que lutam, o processo interminável de geração e corrupção que é o “círculo da vida”. Na história propriamente dita, ao contrário, o Princípio universal está preso em uma luta “infinita” consigo mesmo; ou seja, a luta é, a cada vez, uma luta pelo destino da própria universalidade. Na vida orgânica, os momentos particulares estão em luta uns com os outros, e por meio dessa luta o Universal se reproduz; no Espírito, o Universal está em luta consigo mesmo.
É por isso que os momentos eminentemente “históricos” são aqueles marcados por grandes colisões, em que toda uma forma de vida é ameaçada, quando as normas culturais e sociais estabelecidas não mais garantem um mínimo de estabilidade e coesão; nessas situações abertas, uma nova forma de vida tem de ser inventada, e é nesse ponto que Hegel localiza o papel dos grandes heróis. Eles atuam em uma zona pré-legal, apátrida: sua violência não é limitada pelas regras morais, eles impõem uma nova ordem com a vitalidade subterrânea que estilhaça todas as formas estabelecidas. Segundo a doxa usual sobre Hegel, os heróis seguem paixões instintivas, seus verdadeiros motivos e objetivos não são claros para eles mesmos, eles são instrumentos inconscientes de uma necessidade histórica mais profunda e dão origem a uma nova forma de vida espiritual. No entanto, como aponta Lebrun, não devemos imputar a Hegel a noção teleológica tradicional de uma mão invisível da Razão puxando as cordas do processo histórico, seguindo um plano estabelecido de antemão e usando as paixões dos indivíduos como instrumentos para sua implementação. Primeiro, como o significado de seus atos é a priori inacessível aos indivíduos que os realiza, inclusive aos heróis, não existe uma “ciência da política” capaz de predizer o curso dos eventos: “ninguém jamais terá direito a se declarar depositário do Saber-de-Si do Espírito”42, e essa impossibilidade “protege Hegel do fanatismo da ‘responsabilidade objetiva’”43. Em outras palavras, não há lugar em Hegel para a figura marxista-stalinista do revolucionário comunista que entende a necessidade histórica e se põe como o instrumento de sua implementação. Contudo, é crucial acrescentarmos mais um elemento: se apenas afirmamos essa impossibilidade, continuamos “concebendo o Absoluto como Substância, não como Sujeito” – continuamos presumindo que existe um Espírito preexistente que impõe sua Necessidade substancial na história enquanto aceita que o conhecimento dessa Necessidade nos seja negado. Para sermos consistentemente hegelianos, no entanto, precisamos dar mais um passo crucial e insistir que a Necessidade histórica não preexiste ao processo contingente de sua efetivação, isto é, que o processo histórico é, em si, “aberto”, indeterminado – essa mistura confusa “gera sentido na medida em que se revela”:
São os homens, e somente eles, que fazem a História, ao passo que o Espírito é o que nesse fazer se explicita. [...] Não se trata mais, como nas teodiceias ingênuas, de encontrar uma justificativa para cada acontecimento. No momento mesmo, nenhuma harmonia celeste se faz escutar, ante o ruído, o furor. Porém, uma vez que o tumulto se recolheu, se fez passado, uma vez que o acontecido (o que adveio) se converteu em concebido, é lícito dizer, numa palavra, que “o curso da História” já se delineia um pouco mais. Se a História progride, é para quem olha para trás; se é progressão de uma linha de sentido, é por retrospecção. [...] a “Necessidade-Providência” hegeliana é tão pouco autoritária que mais parece aprender, com o curso do mundo, o que eram os seus desígnios.44
É assim que deveríamos ler a tese de Hegel de que, no curso do desenvolvimento dialético, as coisas “tornam-se aquilo que são”: não que um desdobramento temporal simplesmente efetive uma estrutura conceitual atemporal preexistente – essa estrutura conceitual é em si o resultado de decisões temporais contingentes. Vejamos o caso exemplar de uma decisão contingente cujo resultado definiu a vida inteira do agente: a travessia do Rubicão feita por César:
Não basta dizer que atravessar o Rubicão seja parte de uma noção completa de César. Deveríamos dizer que César é definido pelo fato de ter atravessado o Rubicão. Sua vida não segue um roteiro escrito no livro de alguma deusa: não existe um livro que já conteria as relações de César com a vida, pela simples razão de que sua vida em si é esse livro e que, a cada momento, um evento é em si sua própria narrativa.45
Mas por que então não poderíamos dizer que simplesmente não existe nenhuma estrutura conceitual atemporal, tudo o que existe é um desdobramento temporal gradual? Aqui encontramos o paradoxo propriamente dialético que define a historicidade verdadeira como oposta ao historicismo evolucionista, e que, muito tempo depois, foi formulado no estruturalismo francês como a “primazia da sincronia sobre a diacronia”. Tal primazia foi comumente interpretada como a negação derradeira da historicidade no estruturalismo: um desenvolvimento histórico pode ser reduzido ao desdobramento temporal (imperfeito) de uma matriz atemporal preexistente de todas as combinações/variações possíveis. Essa noção simplista da “primazia da sincronia sobre a diacronia” ignora a afirmação propriamente dialética feita há muito tempo, entre outros, por T. S. Eliot (ver o longo trecho citado anteriormente), com respeito ao modo pelo qual cada fenômeno artístico verdadeiramente novo não só designa uma ruptura com todo o passado, como também muda esse mesmo passado retroativamente. Em cada conjuntura histórica, o presente não é só presente, mas também engloba uma perspectiva sobre o passado imanente a ele. Depois da desintegração da União Soviética, por exemplo, a Revolução de Outubro não é mais o mesmo evento histórico: não é mais (do triunfante ponto de vista capitalista liberal) o começo de uma nova época progressista na história da humanidade, mas o começo de um desvio no curso da história que chegou ao fim em 1991.
Essa é a lição fundamental do anti-“mobilismo” de Hegel; a dialética não tem absolutamente nada a ver com a justificação historicista de uma política ou prática particular em determinado estágio do desenvolvimento histórico, uma justificação que pode ser inutilizada depois em um estágio mais “elevado”. Em reação à revelação dos crimes de Stalin no XX Congresso do Partido Comunista Soviético, Brecht observou que o mesmo agente político que antes desempenhara um papel importante no processo revolucionário (Stalin) agora se tornava um obstáculo a ele, e exaltou esse fato com um insight propriamente “dialético” – portanto deveríamos rejeitar essa lógica. Na análise dialética da história, ao contrário, cada “estágio” novo “reescreve o passado” e deslegitima retroativamente o estágio anterior.
De volta a César: depois de ter atravessado o Rubicão, sua vida precedente apareceu de uma nova maneira, como uma preparação para seu papel histórico-mundial posterior, ou seja, foi transformada em parte de uma história de vida totalmente diferente. Isto é o que Hegel chama de “totalidade” e o estruturalismo chama de “estrutura sincrônica”: um momento histórico que não é limitado ao presente, mas inclui seu próprio passado e futuro; em outras palavras, o modo como o passado e o futuro aparecem para e a partir desse momento. A principal implicação de concebermos a ordem simbólica como uma totalidade é que, longe de reduzi-la a um tipo de a priori transcendental (uma rede formal, dada de antemão, que limita o escopo da prática humana), deveríamos seguir Lacan e nos concentrar no modo como os gestos da simbolização são entrelaçados no processo da prática coletiva e incorporados nele. O que Lacan elabora como “duplo movimento” da função simbólica vai muito além da teoria-padrão da dimensão performativa da fala, como desenvolvida na tradição desde J. L. Austin até John Searle:
a função simbólica apresenta-se como um duplo movimento no sujeito: o homem faz de sua ação um objeto, mas para ela devolver em tempo hábil seu lugar fundador. Nesse equívoco, que opera a todo instante, reside todo o progresso de uma função em que se alternam a ação e o conhecimento.46
O exemplo histórico evocado por Lacan para esclarecer esse “duplo movimento” está indicado em suas referências ocultas: “primeiro tempo, o homem que trabalha na produção em nossa sociedade inclui-se na categoria dos proletários; segundo tempo, em nome desse vínculo, ele faz greve geral”47. A referência (implícita) de Lacan nesse ponto é História e consciência de classe, de Lukács, obra marxista clássica de 1923 cuja aclamada tradução francesa foi publicada em meados da década de 1950. Para Lukács, a consciência é oposta ao mero conhecimento de um objeto: o conhecimento é externo ao objeto conhecido, ao passo que a consciência é, em si, “prática”, um ato que muda o próprio objeto. (Uma vez que o trabalhador “inclui-se na categoria dos proletários”, isso muda sua própria realidade: ele age de maneira diferente.) O sujeito faz algo, considera-se (declara-se) aquele que o fez e, tendo essa declaração como base, faz algo novo – o momento próprio da transformação subjetiva ocorre no momento da declaração, não no momento do ato. Esse momento reflexivo da declaração significa que cada elocução não só transmite um conteúdo, mas ao mesmo tempo determina como o sujeito se relaciona com esse conteúdo. Até mesmo os mais realísticos objetos e atividades sempre contêm essa dimensão declarativa, que constitui a ideologia da vida cotidiana.
No entanto, Lukács continua demasiado idealista quando propõe uma simples substituição do Espírito hegeliano pelo proletariado enquanto Sujeito-Objeto da História: Lukács não é aqui necessariamente hegeliano, mas um idealista pré-hegeliano48. Somos até tentados a falar da “reversão idealista de Hegel” realizada por Marx: em contraste com Hegel, que a posteriori sabia muito bem que a coruja de Minerva levanta voo apenas ao anoitecer – que o Pensamento segue o Ser (por esse motivo, para Hegel, não pode haver um insight científico sobre o futuro da sociedade) –, Marx reafirma a primazia do Pensamento: a coruja de Minerva (filosofia contemplativa alemã) deveria ser substituída pelo canto do galo gaulês (pensamento revolucionário francês), anunciando a revolução proletária (no ato da revolução proletária, o Pensamento precederá o Ser). Portanto, Marx vê no tema hegeliano da coruja de Minerva uma indicação do positivismo secreto da especulação idealista de Hegel: este deixa a realidade como é.
A réplica hegeliana é que o atraso da consciência não implica um objetivismo simplista que afirma que a consciência está presa em um processo objetivo transcendente. Os hegelianos aceitam a noção de Lukács da consciência como oposta ao mero conhecimento de um objeto; o que é inacessível à consciência é o impacto do próprio ato do sujeito, sua própria inscrição na objetividade. É claro que o pensamento é imanente à realidade e a modifica, mas não como uma autoconsciência totalmente autotransparente, não como um Ato ciente de seu próprio impacto. Não obstante, o próprio Marx chega perto desse paradoxo da retroatividade não teleológica quando, a propósito da noção de trabalho, ele afirma em seus Grundrisse:
as próprias categorias mais abstratas, apesar de sua validade para todas as épocas – justamente por causa de sua abstração –, na determinabilidade dessa própria abstração, são igualmente produto de relações históricas e têm sua plena validade só para essas relações e no interior delas.
A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica da produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos escombros e elementos edificou-se, parte dos quais ainda carrega consigo como resíduos não superados, parte [que] nela se desenvolvem de meros indícios em significações plenas etc. A anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro lado, os indícios de formas superiores nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quando a própria forma superior já é conhecida.49
Em resumo, parafraseando Pierre Bayard, podemos dizer que o que Marx quer dizer aqui é que a anatomia do macaco, embora formada mais cedo que a anatomia do homem, de certa forma plagia por antecipação a anatomia do homem. No entanto, a questão permanece: o pensamento de Hegel abriga tal abertura para o futuro, ou o fechamento de seu Sistema o tolhe a priori? Apesar das aparências enganadoras, devemos dizer que sim, o pensamento de Hegel é aberto para o futuro, mas precisamente por causa de seu fechamento. Ou seja, a abertura de Hegel para o futuro é uma negativa: é articulada em suas declarações negativas/limitadoras, como a famosa afirmação da Filosofia do direito de que o sujeito “não pode saltar além de seu tempo”. A impossibilidade de nos apropriarmos diretamente do futuro é fundamentada no próprio fato da retroatividade que torna o futuro imprevisível a priori: não podemos subir em nossos ombros e nos ver “objetivamente”, da maneira como nos enquadramos na tessitura da história, porque essa tessitura é repetida e retroativamente rearranjada. No campo teológico, Karl Barth ampliou essa imprevisibilidade até o Juízo Final, enfatizando que a revelação final de Deus será totalmente incomensurável em relação a nossas expectativas:
Deus não está oculto de nós; Ele está revelado. Mas o que e como deveríamos ser em Cristo, e o que e como o mundo será em Cristo no fim do caminho de Deus, na irrupção da redenção e da conclusão, é que não nos é revelado; isso, sim, está oculto. Sejamos honestos: não sabemos o que dizemos quando falamos da volta de Cristo no julgamento, e da ressurreição dos mortos, da vida e da morte eternas. Que tudo isso estará associado a uma revelação pungente – uma visão comparada à qual toda a nossa visão presente terá sido cegueira – é demasiado atestado nas Escrituras para que sintamos o dever de nos preparar. Pois não sabemos o que será revelado quando a última venda for retirada de nossos olhos, de todos os olhos: como contemplaremos uns aos outros e o que seremos uns para os outros – a humanidade de hoje e a humanidade de séculos e milênios atrás, ancestrais e descendentes, maridos e esposas, sábios e tolos, opressores e oprimidos, traidores e traídos, assassinos e vítimas, Ocidente e Oriente, alemães e outros, cristãos, judeus e pagãos, ortodoxos e hereges, católicos e protestantes, luteranos e reformados; sob que divisões e uniões, que confrontos e conexões cruzadas os lacres de todos os livros serão abertos; quanta coisa nos parecerá pequena e sem importância; quanta coisa só então parecerá grande e importante; para que surpresas de todos os tipos devemos nos preparar.
Também não sabemos o que a Natureza, como cosmos em que vivemos e continuamos a viver aqui e agora, será para nós; o que as constelações, o mar, os amplos vales e colinas que hoje vemos e conhecemos dirão e significarão.50
Com essa observação torna-se claro como é falso, como é “demasiado humano”, o medo de que os culpados não sejam devidamente punidos – aqui, em particular, temos de abandonar nossas expectativas: “Estranha cristandade, cuja ânsia mais urgente parece ser que a graça de Deus um dia se mostre demasiadamente irrestrita entre os vivos, que o inferno, em vez de povoado por tantas pessoas, mostre-se vazio!”51. E a mesma incerteza vale para a própria Igreja – ela não possui um conhecimento superior, é como um carteiro que entrega a correspondência sem ter ideia do que ela diz: “A Igreja transmite da mesma maneira que um carteiro transmite a correspondência; não se pergunta à Igreja o que ela pensa estar desencadeando com isso, ou o que faz com a mensagem. Quanto menos manipulá-la e quanto menos marcas dos próprios dedos nela deixar, mais a estará passando simplesmente como a recebeu – e melhor será”52. Só existe uma certeza incondicional nisso tudo: a certeza de Jesus Cristo como nosso salvador – o que é um “rígido designador”, que permanece o mesmo em todos os mundos possíveis.
Sabemos apenas uma coisa: Jesus Cristo é também o mesmo na eternidade, Sua graça é toda e completa, preservada ao longo do tempo até a eternidade, até o novo mundo de Deus que existirá e será reconhecido de maneira totalmente diferente, é incondicional e por isso certamente não tem nenhuma ligação com purgatórios, sessões de tortura ou reformatórios após a morte.53
Não admira que Hegel tenha formulado essa mesma limitação a propósito da política: sobretudo como comunistas, devemos nos abster de qualquer imaginação positiva sobre a futura sociedade comunista. É claro que estamos nos apropriando do futuro, mas a maneira como fazemos isso só se tornará inteligível quando o futuro estiver aqui; portanto, não deveríamos depositar muita esperança na busca desesperada dos “germes do comunismo” na sociedade atual.
Será negativa a última consequência de nossa percepção do “efeito de retroversão”? Devemos limitar, ou mesmo rejeitar, ações sociais ambiciosas, posto que, por razões estruturais, elas sempre levam a resultados não intencionais (e, como tais, potencialmente catastróficos)? Temos de fazer mais uma distinção aqui: entre a “abertura” da contínua atividade simbólica que está aprisionada no “efeito de retroversão”, com o significado de cada um de seus elementos decididos retroativamente, e o ato em um sentido muito mais forte do termo. No primeiro caso, as consequências não intencionais de nossos atos são simplesmente devidas ao grande Outro, à complexa rede simbólica que sobredetermina (e por isso desaloja) seu significado. No segundo caso, as consequências não intencionais surgem da falha do grande Outro, ou seja, da maneira como nosso ato tanto se baseia no grande Outro quanto o desafia e transforma radicalmente. A percepção de que o poder de um ato propriamente dito é criar retroativamente suas próprias condições de possibilidade não deveria nos fazer recear admitir aquilo que, antes do ato, aparece como impossível: somente dessa forma nosso ato toca o Real. Talal Asad, redarguindo à crítica de Judith Butler de que não está claro com que fim, moral ou político, ele se empenha em explorar e problematizar as noções liberais de liberdade e justiça, dá uma belíssima resposta hegeliana:
Não se pode dar uma resposta abstrata a essa questão porque são exatamente as implicações das coisas ditas e feitas em diferentes circunstâncias que tentamos entender. [...] deveríamos estar preparados para o fato de que aquilo que temos como alvo no pensamento pode ser menos significante do que aquilo a que chegamos no fim. [...] no processo do pensamento, deveríamos estar abertos para acabar em lugares que não estavam previstos – quer gerem satisfação ou desejo, desconforto ou horror.54
Somos livres somente contra o fundo dessa não transparência: se pudéssemos prever totalmente as consequências de nossos atos, nossa liberdade seria apenas “necessidade conhecida” de modo pseudo-hegeliano, pois consistiria em livremente escolher e querer o que sabemos ser necessário. Nesse sentido, liberdade e necessidade seriam plenamente coincidentes: ajo livremente quando sigo conscientemente minha necessidade interna, os incitamentos que descubro em mim mesmo como minha verdadeira natureza substancial. Mas se esse é o caso, estamos retrocedendo de Hegel a Aristóteles, pois não estamos mais lidando com o sujeito hegeliano que produz (“põe”) seu próprio conteúdo, e sim com um agente empenhado em efetivar seus potenciais imanentes, suas “forças essenciais” positivas, como afirma o jovem Marx em sua crítica profundamente aristotélica de Hegel. O que se perde aqui é a dialética da retroatividade constitutiva de sentido, da contínua (re)totalização retroativa de nossa experiência.
É difícil manter essa abertura para a contingência radical – nem mesmo um racionalista como Habermas conseguiu fazê-lo. Seu interesse tardio pela religião rompe com a preocupação liberal tradicional com o conteúdo humanista, espiritual etc. que está oculto na forma religiosa. O que lhe interessa é essa forma em si: em particular entre aqueles que de fato acreditam fundamentalmente e estão dispostos a arriscar a própria vida por suas crenças, exibindo a energia bruta e o compromisso incondicional ausentes na anêmica postura cético-liberal – como se o influxo desse engajamento incondicional pudesse revitalizar a dessecação pós-política da democracia. Habermas responde aqui ao mesmo problema que Chantal Mouffe enfrentou com seu “pluralismo agonístico” – nomeadamente, como reintroduzir a paixão na política. Contudo, não estaria ele, portanto, engajado em uma espécie de vampirismo ideológico, sugando a energia dos crentes ingênuos sem estar preparado para abandonar a própria postura secular-liberal, de modo que a crença plenamente religiosa retém uma espécie de Alteridade fascinante e misteriosa? Como Hegel mostrou a propósito da dialética do Iluminismo e da fé na Fenomenologia do espírito, a oposição entre o Iluminismo formal e as crenças fundamental-substanciais é falsa, trata-se de uma posição ideológico-existencial inatingível. O que deveria ser feito é assumir plenamente a identidade dos dois momentos opostos, exatamente o que o “materialismo cristão” apocalíptico pode fazer: unir a rejeição da Alteridade divina e o compromisso incondicional.
No entanto, é nesse mesmo ponto – depois de reconhecer a ruptura radical de Hegel com a teodiceia metafísica tradicional e admitir a abertura de Hegel em relação ao porvir – que Lebrun dá seu passo decisivo. Sua estratégia nietzschiana fundamental é, em primeiro lugar, admitir a natureza radical da destruição da metafísica tradicional em Hegel e, em segundo lugar, em um passo crucial, demonstrar que esse sacrifício radical do conteúdo metafísico preserva a forma mínima da metafísica. Obviamente, as acusações à teodiceia de Hegel são insuficientes: não existe um Deus substancial que escreve o roteiro da História antecipadamente e observa sua realização; a situação é aberta, a verdade surge somente pelo processo de seu desdobramento etc. – mas o que Hegel sustenta, não obstante, é a pressuposição muito mais profunda de que a coruja de Minerva levanta voo na medida em que o crepúsculo cai sobre os eventos do dia, de que no fim há sempre uma história para ser contada, uma história que (de modo tão “retroativo” e “contingente” quanto quisermos) reconstitui o Sentido do processo anterior. Do mesmo modo, com respeito à dominação, Hegel é obviamente contra toda forma de dominação despótica, portanto a crítica de seu pensamento como divinização da monarquia prussiana é ridícula; entretanto, sua afirmação da liberdade subjetiva tem uma condição: é a liberdade do sujeito que sofre uma violenta “transubstanciação” do indivíduo preso em sua particularidade para o sujeito universal que reconhece no Estado a substância de seu próprio ser. O anverso do espelho dessa mortificação da individualidade como preço a ser pago pelo advento do sujeito universal “verdadeiramente” livre é que o poder do Estado mantém sua autoridade plena – o que muda é que essa autoridade (assim como em toda a tradição a partir de Platão) perde seu caráter tirânico-contingente e torna-se um poder justificado racionalmente.
Desse modo, a questão é se Hegel busca ou não de fato uma estratégia desesperada de sacrificar todas as coisas, todo o conteúdo metafísico, a fim de salvar o essencial, a forma em si (a forma de uma reconstrução racional retrospectiva, a forma da autoridade que impõe no sujeito o sacrifício de todo conteúdo particular etc.). Ou será que o próprio Lebrun, ao fazer esse tipo de crítica, põe em prática a estratégia fetichista do je sais bien, mais quand même... (“Sei bem que Hegel leva até o fim a destruição das pressuposições metafísicas, mas ainda assim...”)? A resposta para esse tipo de crítica toma a forma de uma pura tautologia que marca a passagem da contingência para a necessidade: haverá uma história para ser contada se houver uma história para ser contada. Ou seja, se, devido à contingência, uma história surge no fim, então essa história aparecerá como necessária. Sim, a história é necessária, mas sua necessidade é em si contingente.
Não obstante, não há uma ponta de verdade na postura crítica de Lebrun? Será que Hegel não pressupõe de fato que, por mais contingente e aberta que seja a história, uma história consistente sempre pode ser contada depois do evento? Ou, em termos lacanianos, não seria o edifício inteiro da historiografia hegeliana baseado na premissa de que, não importa quão confusos sejam os próprios eventos, um sujeito suposto saber surgirá no fim, transformando de maneira mágica o sem sentido em sentido, o caos em uma nova ordem? Lembremo-nos simplesmente aqui sua filosofia da história, com uma narrativa da história mundial como a história do progresso da liberdade... E não é verdade que, se há uma lição a ser tirada do século XX, é que todos os fenômenos extremos que ocorreram nesse período não podem ser unificados em uma única narrativa filosófica abrangente? Simplesmente não podemos escrever uma “fenomenologia do espírito do século XX”, unindo o progresso tecnológico, o advento da democracia, a fracassada experiência comunista, os horrores do fascismo, o fim gradual do colonialismo... Por que não? É realmente assim? E se pudéssemos e tivéssemos de escrever precisamente uma história hegeliana do século XX – essa “era dos extremos”, como diz Eric Hobsbawm – como uma narrativa global delimitada por duas constelações epocais que partisse do (relativamente) longo período de paz da expansão capitalista (de 1848 a 1914), cujos antagonismos subterrâneos eclodiram com a Primeira Guerra Mundial, e terminasse na contínua “Nova Ordem Mundial” global-capitalista, que surgiu depois de 1990 como um retorno a um novo sistema oniabrangente que sinaliza um tipo de “fim da história” hegeliano, mas cujos antagonismos já anunciam novas explosões? Não seriam as grandes reversões e inesperadas explosões do confuso século XX, suas numerosas “coincidências dos opostos” – a reversão do capitalismo liberal em fascismo, a reversão ainda mais estranha da Revolução de Outubro em pesadelo stalinista – a própria matéria privilegiada que parece requerer uma leitura hegeliana? O que Hegel teria feito da luta atual do liberalismo contra a fé fundamentalista? Uma coisa é certa: ele não teria simplesmente tomado o partido do liberalismo, mas teria insistido na “mediação” dos opostos55.
Por mais convincente que pareça, o diagnóstico crítico de Lebrun sobre a aposta hegeliana de que sempre há uma história para contar é mais uma vez insuficiente: Lebrun deixa escapar um aspecto que complica a imagem de Hegel. Sim, Hegel suprassume o tempo na eternidade – mas essa suprassunção tem de aparecer como (depender de) um evento temporal contingente. Sim, Hegel suprassume a contingência em uma ordem racional universal – mas essa mesma ordem depende de um excesso contingente (o Estado como totalidade racional, digamos, só pode se efetivar por meio da figura “irracional” do rei como seu dirigente). Sim, a luta é suprassumida na paz da reconciliação (aniquilação mútua) dos opostos, mas essa reconciliação tem de aparecer como seu oposto, como um ato de extrema violência. Portanto, Lebrun está certo ao enfatizar que o tema hegeliano da luta dialética entre os opostos está tão longe quanto possível de uma atitude engajada de “tomar partido”: para Hegel, a “verdade” da luta sempre é, com uma necessidade inexorável, a destruição mútua dos opostos – a “verdade” de um fenômeno sempre reside em sua autoaniquilação, na destruição de seu ser imediato. Mas Lebrun deixa passar o paradoxo propriamente dito: Hegel não só não tinha problema nenhum em tomar partido (em geral com uma parcialidade muito violenta) nos debates políticos de sua época, como todo o seu modo de pensar é profundamente “polêmico” – sempre interferindo, atacando, tomando partido e, como tal, muito longe da posição imparcial da Sabedoria que observa a luta contínua de uma distância neutra, ciente de sua nulidade sub specie aeternitatis. Para Hegel, a verdadeira universalidade (“concreta”) é acessível somente de um ponto de vista “parcial” engajado.
A relação hegeliana entre necessidade e liberdade é comumente lida em termos de sua derradeira coincidência: a verdadeira liberdade não tem nada a ver com escolha caprichosa; significa a primazia da relação consigo sobre a relação com o outro. Em outras palavras, um ente é livre quando consegue desenvolver seu potencial imanente sem ser impedido por nenhum obstáculo interno. A partir daí é possível desenvolver o argumento-padrão contra Hegel: seu sistema é um conjunto totalmente “saturado” de categorias, sem lugar para a contingência e para a indeterminação, pois na lógica de Hegel cada categoria resulta, com uma inexorável necessidade lógico-imanente, da categoria anterior, e toda a série de categorias forma um Todo fechado em si mesmo. Podemos entender agora o que escapa ao seu argumento: o processo dialético hegeliano não é o Todo necessário, “saturado” e autocontido, mas o processo aberto e contingente pelo qual esse Todo se forma. Em outras palavras, a crítica confunde ser com devir: ela percebe como uma ordem fixa do Ser (a rede de categorias) o que, para Hegel, é o processo do Devir, que engendra retroativamente sua necessidade.
O mesmo argumento pode ser dado em termos da distinção entre potencialidade e virtualidade. Quentin Meillassoux esboçou os contornos de uma ontologia materialista pós-metafísica cuja premissa básica é a multiplicidade cantoriana dos infinitos que não pode ser totalizada em um “Um” oniabrangente. Ele se baseia em Badiou, que também aponta como o grande avanço materialista de Cantor diz respeito ao status dos números infinitos (e exatamente por ser materialista é que esse avanço causou um trauma psicológico tão grande a Cantor, católico devoto): antes de Cantor, o Infinito era associado ao Um, a forma conceitual de Deus na religião e na metafísica; depois de Cantor, o Infinito entra no domínio do Múltiplo – implica a existência efetiva de multiplicidades infinitas, bem como um número infinito de diferentes infinidades56. Então a escolha entre materialismo e idealismo diz respeito ao mais básico esquema da relação entre a multiplicidade e o Um na ordem do significante? Será o fato primordial aquele da multiplicidade de significantes, que então é totalizada através da subtração do Um? Ou será o fato primordial aquele do “Um barrado” – mais precisamente, da tensão entre o Um e seu lugar vazio, da “repressão primordial” do significante binário, de modo que a multiplicidade surja para preencher esse vácuo, a falta do significante binário? Embora pareça que a primeira versão seja materialista e a segunda seja idealista, devemos resistir a essa reconfortante tentação: de uma posição verdadeiramente materialista, a multiplicidade só é possível contra o pano de fundo do Vazio – somente isso torna a multiplicidade não-Toda. A “gênese” (deleuziana) do Um a partir da multiplicidade primordial, esse protótipo de explicação “materialista” de como surge o Um totalizador, deveria ser rejeitada, portanto: não admira que Deleuze seja ao mesmo tempo o filósofo do Um (vitalista).
Com respeito a sua configuração formal mais elementar, o par formado por idealismo e materialismo só pode ser expressa como a oposição entre a falta primordial e a curvatura autoinvertida do ser: se para o “idealismo” a falta (buraco ou lacuna na ordem do ser) é um fato intransponível (que, portanto, pode ser ou aceito como tal ou preenchido com um conteúdo positivo imaginado), para o “materialismo” a falta é, em última análise, o resultado de uma curvatura do ser, uma “ilusão de perspectiva”, uma forma da aparência da torção do ser. Em vez de reduzir uma à outra (em vez de conceber a curvatura do ser como uma tentativa de obliterar a falta primordial, ou a falta em si como má apreensão da curvatura), deveríamos insistir na irredutível lacuna paraláctica entre as duas. Em termos psicanalíticos, essa é a lacuna entre o desejo e a pulsão, e aqui também deveríamos resistir à tentação de priorizar um termo e reduzir o outro a seu efeito estrutural. Ou seja, podemos conceber o movimento rotatório da pulsão como uma maneira de evitar o impasse do desejo: a falta/impossibilidade primordial, o fato de o objeto do desejo estar sempre perdido, é convertida em lucro quando o objetivo da libido deixa de ser atingir seu objeto e passa a ser rodeá-lo repetidas vezes – a satisfação é gerada pelo próprio fracasso repetido da satisfação direta. E também podemos conceber o desejo como um modo de evitar a circularidade da pulsão: O movimento rotatório, fechado em si mesmo, é remodelado como um fracasso repetido de atingir um objeto transcendente que sempre se esquiva de sua apreensão. Em termos filosóficos, esse par reflete (não o par de Espinosa e Hegel, mas) o par de Espinosa e Kant: a pulsão espinosiana (não fundamentada em uma falta) versus o desejo kantiano (de chegar à Coisa numenal).
Mas Hegel começa de fato com a multiplicidade contingente? Ou será que, ao contrário, oferece uma “terceira via”, através do ponto da não decisão entre desejo e pulsão? Na verdade, ele não começa com o Ser e depois deduz a multiplicidade dos existentes (seres-aí), que surge como resultado do primeiro trio, ou melhor, do quarteto ser-nada-devir-existente? Aqui, devemos ter em mente o importante fato de que, quando escreve sobre a passagem do Ser ao Nada, Hegel recorre ao pretérito: o Ser não passa ao Nada, ele sempre-já passou ao Nada e assim por diante. A primeira tríade da Lógica não é uma tríade dialética, mas uma evocação retroativa de um tipo de passado virtual sombrio, de algo que nunca passa, pois sempre-já passou: o começo efetivo, o primeiro ente que está “realmente aqui”, é a multiplicidade contingente dos seres-aí (existentes). Em outras palavras, não existe tensão entre Ser e Nada que gere a incessante passagem de um ao outro: em si mesmos, antes da dialética propriamente dita, Ser e Nada são direta e imediatamente o mesmo, são indiscerníveis; sua tensão (a tensão entre forma e conteúdo) só aparece retroativamente, se olharmos para eles a partir da perspectiva da dialética propriamente dita.
Tal ontologia do não-Todo impõe uma contingência radical: além de não existir nenhuma lei que sustente a necessidade, toda lei é em si contingente – pode ser subvertida a qualquer momento. Isso equivale a uma suspensão do princípio da razão suficiente: uma suspensão não só epistemológica, mas também ontológica. Ou seja, não se trata apenas de jamais podermos conhecer a rede inteira de determinações causais; essa cadeia é, em si, “inconclusiva”, o que abre espaço para uma contingência imanente do devir – o que define o materialismo radical é esse caos do devir não sujeito a nenhuma ordem preexistente. Seguindo essa linha, Meillassoux propõe uma distinção precisa entre contingência e acaso, associando-a à distinção entre virtualidade e potencialidade:
Potencialidades são os casos não efetivados de um conjunto indexado de possibilidades sob a condição de uma dada lei (aleatória ou não). Acaso é cada efetivação de uma potencialidade para a qual não há instância unívoca de determinação tendo como base as condições iniciais dadas. Logo, chamarei de contingência a propriedade de um conjunto indexado de casos (não de um caso pertencente a um conjunto indexado) de não ser ele mesmo um caso de conjuntos de casos, e virtualidade a propriedade de todo conjunto de casos de surgir dentro de um devir que não é dominado por nenhuma totalidade de possíveis pré-constituída.57
Um caso claro de potencialidade é o arremesso de um dado, por meio do qual o que já era um caso possível torna-se um caso real: foi determinado pela ordem preexistente de possibilidades que há uma em seis chances de o resultado ser o número seis; assim, quando o número seis aparece de fato, um possível preexistente é realizado. A virtualidade, ao contrário, designa uma situação em que não se pode totalizar o conjunto de possíveis de modo que surja algo novo, realiza-se um caso para o qual não havia lugar no conjunto preexistente de possíveis: “o tempo cria o possível no momento exato em que o faz passar, produz o possível assim como o real, insere-se no próprio arremesso dos dados para gerar um sétimo caso, a princípio imprevisível, que rompe a fixidez das potencialidades”58. Notemos aqui a formulação precisa de Meillassoux: o Novo surge quando aparece um X que não efetiva apenas uma possibilidade existente, mas cuja efetivação cria (retroativamente abre) sua própria possibilidade.
Se sustentamos que o devir não só é capaz de produzir casos na base de um universo pré-dado de casos, devemos entender então que, como resultado, tais casos irrompem, em sentido estrito, do nada, posto que nenhuma estrutura os contém enquanto eternas potencialidades antes de seu surgimento: nós, portanto, tornamos a irrupção ex nihilo o próprio conceito de uma temporalidade entregue a sua pura imanência.59
Dessa maneira, obtemos uma definição precisa do tempo em sua irredutibilidade: tempo não é só o “espaço” da futura realização de possibilidades, mas o “espaço” do surgimento de algo radicalmente novo, fora do escopo das possibilidades inscritas em qualquer matriz atemporal. Esse surgimento de um fenômeno ex nihilo, não plenamente coberto pela cadeia suficiente de razões, não é mais – como na metafísica tradicional – um signo da intervenção direta de um poder sobrenatural (Deus) na natureza, mas, ao contrário, um signo da inexistência de Deus, ou seja, é uma prova de que a natureza é não-Toda, não “coberta” por nenhuma Ordem ou Poder transcendentes que a regulem. Um “milagre” (cuja definição formal é o surgimento de algo não coberto pela rede causal existente) é, portanto, convertido em um conceito materialista: “Todo ‘milagre’, portanto, traz a manifestação da inexistência de Deus, na medida em que cada ruptura radical do presente em relação ao passado torna-se a manifestação da ausência de qualquer ordem capaz de sobrepujar o caótico poder do devir”60.
Tendo essas ideias como base, Meillassoux destrói de maneira brilhante o argumento-padrão contra a contingência radical da natureza e suas leis (nos dois sentidos: da validade das leis e das leis em si). Em outras palavras, se é tão radicalmente contingente, como a natureza pode ser tão permanente que se conforme (na maioria das vezes) às leis? Não seria isso altamente improvável, a mesma improbabilidade de o dado exibir sempre o número seis? Esse argumento se baseia numa possível totalização de possibilidades/probabilidades, com respeito à qual a uniformidade é improvável: se não há padrão, nada é mais improvável que qualquer outra coisa. É também por isso que o “espanto” de que se vale o princípio antrópico forte na cosmologia é falso: começamos pela vida humana, que somente poderia evoluir dentro de um conjunto de precondições muito precisas, e depois, voltando para trás, não podemos nos espantar que o universo tenha sido munido exatamente do conjunto correto de características para o surgimento da vida – uma ligeira diferença na composição química, na densidade etc., teria tornado a vida impossível. Esse “espanto” se baseia, mais uma vez, no raciocínio probabilístico que pressupõe uma totalidade preexistente de possibilidades.
Por isso, deveríamos ler a tese de Marx mencionada anteriormente sobre a anatomia do homem como uma chave para a anatomia do macaco: trata-se de uma tese profundamente materialista, posto que não envolve nenhuma teleologia (que proporia que o homem está “em germe” já presente no macaco, o primata tende imanentemente para o homem). É exatamente porque a passagem do macaco para o homem é radicalmente contingente e imprevisível, porque não há nenhum “progresso” inerente envolvido, que só podemos retroativamente determinar ou discernir as condições (e não as “razões suficientes”) para o homem no macaco. E, mais uma vez, é crucial termos em mente aqui que o não-Todo é ontológico, e não apenas epistemológico: quando nos deparamos com a “indeterminação” na natureza, quando o advento do Novo não pode ser totalmente explicado pelo conjunto de suas condições preexistentes, isso não significa que encontramos uma limitação ao nosso conhecimento, que a nossa incapacidade de entender a razão “mais elevada” que está em jogo, mas, ao contrário, que demonstramos a capacidade de nossa mente de apreender o não-Todo da realidade:
A noção de virtualidade nos permite [...] reverter os signos, fazer de cada interrupção radical a manifestação não de um princípio transcendente do devir (um milagre, o signo de um Criador), mas de um tempo em que nada se subtende (um surgimento, o signo do não-Todo). Desse modo, não podemos apreender o que é significado pela impossibilidade de traçar uma genealogia das novidades diretamente em um tempo anterior a seu surgimento: não a incapacidade da razão de discernir potencialidades ocultas, mas sim, ao contrário, a capacidade da razão de consentir com a ineficácia de um Todo de potencialidades que preexistiria a seu surgimento. A cada novidade radical, o tempo torna manifesto que ele não realiza um germe do passado, mas produz uma virtualidade que não preexiste de maneira nenhuma, em nenhuma totalidade inacessível ao tempo, a seu próprio advento.61
Para nós, hegelianos, a questão crucial aqui é: onde se situa Hegel com relação a essa distinção entre potencialidade e virtualidade? Em uma primeira abordagem, há uma grande evidência de que Hegel é o filósofo da potencialidade: todo o propósito do processo dialético enquanto desenvolvimento do Em-si em Para-si não é que, no processo do devir, as coisas simplesmente “se tornem aquilo que já são” (ou eram desde toda a eternidade)? O processo dialético não é o desdobramento temporal de um eterno conjunto de potencialidades, motivo pelo qual o Sistema hegeliano é um conjunto fechado em si mesmo de passagens necessárias? Essa miragem de uma evidência esmagadora se desfaz, no entanto, no momento em que levamos em conta a retroatividade radical do processo dialético: o processo do devir não é em si necessário, mas é o devir (surgimento contingente gradual) da necessidade em si. É também isso (entre outras coisas) que significa “conceber a substância como sujeito”: o sujeito enquanto o Vazio, o Nada da negatividade autorrelativa, é o próprio nihil do qual surge cada nova figura; em outras palavras, cada passagem ou reversão dialética é uma passagem em que a nova figura surge ex nihilo e retroativamente põe ou cria sua necessidade.
Os riscos nesse debate – se Hegel é um pensador da potencialidade ou da virtualidade – são extremamente altos: dizem respeito à (in)existência do “grande Outro”. Ou seja, a matriz atemporal que contém o escopo de todas as possibilidades é um nome do “grande Outro”, e o outro é a história totalizadora que podemos contar a posteriori, ou a certeza de que essa história sempre vai surgir. Nietzsche critica o ateísmo moderno exatamente pelo fato de que, nele, o “grande Outro” sobrevive – certamente, porém não mais como Deus substancial, e sim como quadro de referência totalizador e simbólico. É por essa razão que Lebrun defende que Hegel não é um ateu que se apresenta convenientemente como cristão, mas de fato como o último filósofo cristão. Hegel sempre insistiu na profunda verdade da máxima protestante “Deus está morto”: em sua opinião, o Deus substancial-transcendente morre, mas é ressuscitado como a totalidade simbólica que garante a significativa consistência do universo – em uma homologia estrita com a passagem de Deus enquanto substância ao Espírito Santo enquanto comunidade dos fiéis na cristandade. Quando Nietzsche fala da morte de Deus, ele não tem em mente o Deus vivo pagão, mas precisamente esse Deus enquanto Espírito Santo, a comunidade de fiéis. Por mais que sua comunidade não confie mais em uma garantia transcendente de um grande Outro substancial, o grande Outro (e, portanto, a dimensão teológica) ainda existe enquanto quadro simbólico de referência (por exemplo, disfarçado no stalinismo de grande Outro da História que garante a significatividade de nossos atos).
Mas essa mudança dos deuses vivos do real para o Deus morto da Lei é o que realmente acontece na cristandade? Essa mudança já não ocorre no judaísmo, de modo que a morte de Cristo não pode representar essa mudança, mas sim algo muito mais radical – precisamente a morte do próprio grande Outro simbólico “morto”? A questão-chave é: o Espírito Santo ainda é uma figura do grande Outro ou é possível concebê-lo fora desse quadro? Se o Deus morto tivesse de se metamorfosear diretamente no Espírito Santo, então ainda teríamos o grande Outro simbólico. Mas a monstruosidade de Cristo, essa singularidade contingente que intercede entre Deus e o homem, é a prova de que o Espírito Santo não é o grande Outro que sobrevive como espírito da comunidade depois da morte do Deus substancial, mas uma ligação coletiva de amor sem nenhuma sustentação no grande Outro. Nisso reside o paradoxo propriamente hegeliano da morte de Deus: de Deus morre diretamente como Deus, ele sobrevive como o grande Outro virtualizado – somente se morrer no disfarce de Cristo, sua encarnação terrena, é que ele se desintegra como grande Outro.
O fato de Cristo ter morrido na cruz, de a terra ter estremecido e ter se feito escuridão indica que a própria ordem celestial – o grande Outro – foi perturbada: não só algo terrível aconteceu no mundo, como as próprias coordenadas do mundo foram abaladas. Foi como se o sinthoma, o nó que mantém o mundo unido, tivesse sido desatado, e a audácia dos cristãos foi ter considerado isso um bom presságio, ou, como diria Mao muito tempo depois: “Há grande desordem sob o céu, a situação é excelente”. Nisso reside o que Hegel chama de “monstruosidade” de Cristo: a inserção de Cristo entre Deus e o homem é estritamente equivalente ao fato de que “não há um grande Outro” – Cristo é inserido como a contingência singular da qual depende a necessidade universal do próprio “grande Outro”. Portanto, ao afirmar que Hegel é o último filósofo cristão, Lebrun está certo pela razão errada, como diria T. S. Eliot.
Apenas se tivermos em mente essa dimensão é que poderemos entender realmente por que a crítica darwiniana (ou outra crítica evolucionista) de Hegel passa ao largo do problema quando ridiculariza a afirmação hegeliana de que não há história na natureza, somente há história nas sociedades humanas: Hegel não insinua que a natureza seja sempre a mesma, ou que as formas de vida vegetal e animal são eternamente fixas, de modo que não há evolução na natureza; o que ele diz é que não há história propriamente dita na natureza: “O viver conserva a si próprio, é o início e o fim; o produto é em si também o princípio, é sempre ativo como tal”62. A vida repete eternamente seu ciclo e retorna a si mesma: a substância é de novo e de novo reafirmada, os filhos se tornam pais, e assim por diante. O círculo é perfeito, em paz consigo mesmo. Com frequência é perturbado – de fora: obviamente temos na natureza transformações graduais de uma espécie em outra, e temos embates e catástrofes que extinguem espécies inteiras; mas o que não percebemos na natureza é o aparecer Universal (posto) como tal, em contraste com seu próprio conteúdo particular –, é um Universal em conflito consigo mesmo. Em outras palavras, o que falta na natureza é o que Hegel chamou de “monstruosidade” de Cristo: a encarnação direta da arché de todo o universo (Deus) em um indivíduo singular que caminha por aí, entre os mortais. É nesse sentido preciso que, para distinguir o movimento natural do espiritual, Hegel usa o estranho termo “inserção”: em um processo orgânico, “nada pode se inserir entre o Conceito e sua realização, entre a natureza do gênero determinada em si e a existência adaptada a essa natureza; no domínio do Espírito, as coisas são totalmente diferentes”63. Cristo é uma figura que “se insere” entre Deus e sua criação. O desenvolvimento natural é dominado e regulado por um princípio, arché, que permanece o mesmo durante todo o movimento de sua efetivação, seja o desenvolvimento de um organismo desde a concepção até a maturidade, seja a continuidade de uma espécie pela geração e pelo declínio de seus membros individuais – aqui não há nenhuma tensão entre o princípio universal e sua exemplificação, o princípio universal é a serena força universal que totaliza e abrange a riqueza de seu conteúdo particular; no entanto, “se a vida não tem história, é porque somente é totalizadora externamente”64 – ela é um gênero universal que abrange a multitude dos indivíduos que lutam, mas essa unidade não é posta em um indivíduo. Na história espiritual, ao contrário, essa totalização ocorre por si mesma, é posta como tal nas figuras singulares que encarnam a universalidade contra seu próprio conteúdo particular.
Dito de outra forma, na vida orgânica a substância (a Vida universal) é a unidade abrangente da interação de seus momentos subordinados, aquilo que permanece o mesmo através do processo eterno da geração e corrupção, aquilo que retorna a si mesmo através desse movimento; na subjetividade, no entanto, o predicado se converte em sujeito: a substância não retorna a si mesma, ela é retotalizada pelo que originalmente foi seu predicado, seu momento subordinado. O momento-chave em um processo dialético, portanto, envolve a “transubstanciação” de seu ponto focal: o que, a princípio, era apenas um predicado, um momento subordinado do processo (digamos, o dinheiro no desenvolvimento do capitalismo), torna-se seu momento central, degradando retroativamente suas pressuposições, os elementos dos quais ele surgiu, em seus momentos subordinados, os elementos de sua circulação autopropulsora.
Robert Pippin exemplifica em que sentido o Espírito hegeliano é “seu próprio resultado” com referência ao desfecho de Em busca do tempo perdido, de Proustc: de que maneira Marcel finalmente “torna-se o que ele é”? Ao romper com a ilusão platônica de que seu Si pode ser “assegurado por qualquer coisa, por qualquer valor ou realidade que transcenda o mundo humano totalmente temporal”:
Foi [...] quando fracassou em se tornar “o que é um escritor”, quando percebeu sua “essência autoral” interior – como se esse papel tivesse de ser um papel substancial transcendentalmente importante, ou mesmo definitivo – que Marcel percebeu que esse tornar-se é importante por não ser assegurado pelo transcendente, por ser totalmente temporal e finito, sempre e por toda parte suspenso, e ainda assim capaz de iluminação. [...] Se Marcel se tornou quem ele é, e isso de certa maneira dá continuidade e é produto da experiência de seu próprio passado, é improvável que sejamos capazes de entender que, ao apelar para um si substancial ou subjacente, agora descoberto, ou até mesmo ao apelar para sis substanciais sucessores, cada um associou-se ao futuro e ao passado por algum tipo de autoestima.65
Desse modo, é apenas ao aceitar totalmente essa circularidade abissal, em que a própria busca cria aquilo que procura, que o Espírito “encontra a si mesmo”. É por isso que devemos atribuir todo o seu valor ao verbo “fracassar”, conforme usado por Pippin: o fracasso em atingir o fim (imediato) é absolutamente crucial para esse processo (e constitutivo dele) – ou, como diz Lacan, la verité surgit de la méprise [a verdade surge da equivocação]. Se, portanto, “é apenas como resultado de si que ele é espírito”66, isso significa que o discurso sobre o Espírito hegeliano que se aliena para si mesmo e depois se reconhece em sua alteridade e assim se reapropria de seu conteúdo é profundamente equivocado: o Si para o qual retorna o Espírito é produzido no momento exato de seu retorno, ou aquilo para que o processo do retorno está retornando é produzido pelo exato processo do retornar. Em um processo subjetivo, não há nenhum “sujeito absoluto”, nenhum agente central permanente brincando consigo mesmo o jogo da alienação e da desalienação, perdendo-se ou dispersando-se e depois se reapropriando de seu conteúdo alienado: depois que uma totalidade substancial é dispersada, é outro agente – antes seu momento subordinado – que a retotaliza. É essa mudança do centro do processo de um momento para outro que distingue um processo dialético do movimento circular da alienação e de sua superação; é por causa dessa mudança que o “retorno-a-si-mesmo” coincide com a alienação realizada (quando um sujeito retotaliza o processo, sua unidade substancial perde-se totalmente). Nesse sentido preciso, a substância retorna a si mesma como sujeito, e essa transubstanciação é o que a vida substancial não pode realizar.
A lógica da tríade hegeliana, portanto, não é a exteriorização da Essência seguida da recuperação, pela Essência, da alteridade alienada, mas algo totalmente diferente. O ponto inicial é a pura multiplicidade do Ser, um aparecer plano, sem nenhuma profundidade. Pela automediação de sua inconsistência, esse aparecer constrói ou engendra a Essência, o profundo, que aparece nela e através dela (a passagem do Ser à Essência). Por fim, na passagem da Essência ao Conceito, as duas dimensões são “reconciliadas”, de modo que a Essência é reduzida à automediação, cortada, dentro do próprio aparecer: a Essência aparece como Essência dentro do aparecer, essa é toda a sua consistência, sua verdade. Consequentemente, quando Hegel fala de como a Ideia “exterioriza” (entäussert) a si mesma nas aparências contingentes, e depois se reapropria de sua exterioridade, ele aplica uma de suas muitas designações incorretas: o que ele descreve, na verdade, é o processo oposto, o da “interiorização”, um processo em que a superfície contingente do ser é posta como tal, como exterior-contingente, como “mera aparência”, com o intuito de gerar, em um movimento autorreflexivo, (a aparência da) sua própria “profundidade” essencial. Em outras palavras, o processo em que a Essência se exterioriza é a um só tempo o processo que gera essa mesma essência: a “exteriorização” é estritamente a mesma coisa que a formação da Essência que se exterioriza. A Essência constitui-se retroativamente por meio de seu processo de exteriorização, de sua perda – é desse modo que deveríamos entender a tão citada declaração de Hegel de que a Essência é tão profunda quanto ampla.
É por isso que o tema pseudo-hegeliano do sujeito que primeiro se exterioriza e depois se reapropria de sua Alteridade substancial alienada deve ser rejeitado. Em primeiro lugar, não há nenhum sujeito preexistente que se aliena ao pôr sua alteridade: o sujeito stricto sensu surge por esse processo de alienação no Outro. É por isso que o segundo movimento – Lacan o chama de separação –, em que a alienação do sujeito no Outro é posta como correlativa da separação do Outro em si de seu núcleo ex-timod, essa sobreposição de duas faltas, não tem nada a ver com o sujeito integrar ou interiorizar sua alteridade. (No entanto, permanece o problema: a dualidade de Lacan de alienação e separação obviamente também exibe a estrutura formal de um tipo de “negação da negação”, mas como essa negação redobrada se relaciona com a negação hegeliana da negação?)
Talvez o que falte em Lebrun seja a imagem apropriada de um círculo que reproduza a circularidade única do processo dialético. Ele luta por páginas e páginas com diferentes imagens para diferenciar o “círculo dos círculos” hegeliano da circularidade da Sabedoria tradicional (pré-moderna), desde o velho tema do “ciclo da vida”, sua geração e corrupção. Então de que modo devemos ler a descrição de Hegel, que parece evocar um círculo completo, em que uma coisa apenas se torna o que ela é?
A necessidade está escondida no que acontece, e só no fim se manifesta; mas de tal maneira que o fim mostra justamente que essa necessidade era também o primeiro. O fim, porém, mostra essa prioridade de si mesmo, porque, através da alteração que o agir operou, nada resultou que já não o fosse.67
O problema com esse círculo completo é o fato de ser perfeito demais, o fato de ser fechado em si mesmo de maneira dupla – sua própria circularidade já é marcada em outra marca circular.
Em outras palavras, a própria repetição do círculo solapa seu fechamento e clandestinamente introduz uma lacuna em que a contingência radical é inscrita: se o fechamento circular, para ser plenamente efetivo, tem de ser reafirmado como fechamento, isso significa que, em si, ele não é verdadeiramente um fechamento – é somente repetição (o excesso contingente dela) que a torna um fechamento. (Recordemos mais uma vez o paradoxo da monarquia na teoria hegeliana do Estado racional: precisamos desse excesso contingente para efetivar o Estado enquanto totalidade racional. Esse excesso, em lacanês, é o excesso do significante sem o significado: não acrescenta nenhum conteúdo novo, apenas registra performativamente algo que já está lá.). Como tal, esse círculo solapa a si mesmo: só funciona se o suplementarmos com um círculo interno adicional, de modo que tenhamos a figura do “oito interior” (ou “oito invertido”, ao qual Lacan se refere regularmente, e que também é evocado por Hegel). Essa é a verdadeira figura do processo dialético hegeliano, uma figura que falta no livro de Lebrun.
Isso nos leva à posição absolutamente única de Hegel na história da filosofia. O último argumento anti-hegeliano evoca o fato da ruptura pós-hegeliana: o que até mesmo o mais fanático partidário de Hegel não pode negar é que algo mudou depois de Hegel, uma nova era de pensamento começou, uma era que não pode mais ser explicada nos termos hegelianos da mediação conceitual absoluta; essa ruptura ocorre de diferentes maneiras, desde as afirmações de Schelling do abismo da Vontade pré-lógica (vulgarizada depois por Schopenhauer) e a insistência de Kierkegaard na singularidade da fé e da subjetividade, passando pela afirmação de Marx do efetivo processo socioeconômico de vida e a plena autonomização das ciências naturais matematizadas, até o tema freudiano da “morte-pulsão” enquanto repetição que persiste para além de toda mediação dialética. Algo aconteceu, há uma ruptura clara entre o antes e o depois e, apesar de podermos afirmar que Hegel já anunciava essa ruptura, que ele é o último metafísico idealista e o primeiro historicista pós-metafísico, não podemos ser hegelianos de fato depois dessa ruptura, pois o hegelianismo perdeu para sempre sua inocência. Atualmente, agir como um completo hegeliano é o mesmo que escrever música tonal depois da revolução schoenbergiana. Hegel é o último “bandido” nessa grande narrativa, e sua obra é a última realização da metafísica. Em seu pensamento, sistema e história se sobrepõem inteiramente: a consequência da equação do Racional e do Efetivo é que o sistema conceitual não é nada além da estrutura conceitual da história, e a história não é nada além do desdobramento externo desse sistema.
A estratégia hegeliana predominante que está surgindo como reação a essa imagem assustadora de Hegel, o Idealista Absoluto, oferece uma imagem “esvaziada” de Hegel, livre de comprometimentos ontológico-metafísicos, reduzido a uma teoria geral do discurso, das possibilidades de argumentação. Essa abordagem é mais bem exemplificada pelos chamados hegelianos de Pittsburgh (Brandom, McDowell) e também é defendida por Robert Pippin, para quem o propósito da tese de Hegel sobre o Espírito enquanto “verdade” da Natureza é que:
em determinado nível de complexidade e organização, os organismos naturais passam a se ocupar consigo mesmos e acabam entendendo a si mesmos de maneira não mais propriamente explicável dentro dos limites da natureza ou em absoluto do resultado de observações empíricas.68
Consequentemente, a “suprassunção” da Natureza em Espírito, em última análise, significa que “os seres naturais, que em virtude de suas capacidades naturais, podem atingi-la, são espirituais: atingi-la e mantê-la é ser espiritual; os que não o conseguem não o são”69. Portanto, longe de descrever um processo ontológico ou cósmico pelo qual um ente chamado Conceito exterioriza-se na natureza e depois retorna a si mesmo a partir dela, tudo o que Hegel tentou fazer foi dar “uma explicação manejável da natureza da necessidade categorial (se não ontológica) para os conceitos de espírito, entendendo o que esses organismos [humanos] estão fazendo, dizendo ou construindo”70. É claro que esse tipo de rejeição do pleno comprometimento ontológico nos traz para perto do transcendentalismo kantiano – que Pippin reconhece espontaneamente, concebendo o sistema de Hegel como uma exposição sistemática de todas as formas possíveis de inteligibilidade:
A ideia é que a estrutura “Lógica-Filosofia da natureza-Filosofia do espírito” seja uma tentativa de compreender a possibilidade de toda inteligibilidade determinada (a possibilidade do conteúdo representacional e conceitual, do propósito objetivo, no que quer que resulte a declaração mais geral de tal possibilidade). [...] Desse modo, para o Conceito, estar em algo ou subjazer a algo é afirmar que a coisa tem um princípio de inteligibilidade, que pode ser tornada inteligível, que dela pode ser dada uma explicação, esclarecida como o que de fato é, ao passo que a inteligibilidade é em si uma noção lógica e inseparável do autoconhecimento, conhecimento do que equivale à satisfação explicativa. Já mencionei a similaridade com a estrutura da Crítica de Kant – “Metafísica da natureza” e “Metafísica dos costumes” –, embora, por muitas razões, Hegel certamente insistiria que não está apresentando as condições subjetivas da inteligibilidade ao modo de Kant. Mas a questão continua sendo, acredito, a inteligibilidade, uma apresentação de explicações, e Hegel certamente acreditava que poderia fornecer algo como uma possibilidade abrangente de todo relato explicativo.71
A passagem hegeliana da Natureza ao Espírito, portanto, não é um movimento na “coisa em si”, mas ocorre no domínio do movimento autorreflexivo do pensamento sobre a natureza:
Isto é, a natureza em si não se “desenvolve em espírito”. Podemos dizer que refletir sobre as explicações da natureza nos conduz aos próprios padrões do Espírito (“para si”) de dar explicações e, com isso, à natureza da autoridade normativa em geral, questão central em nossa realização da afinidade coletiva de ideias, na autorrealização do espírito.72
Portanto, em termos ontológicos, se o espírito evolui naturalmente como uma capacidade dos seres naturais, por que simplesmente não defender o evolucionismo materialista? Em outras palavras, se – citando Pippin – “em determinado nível de complexidade e organização, os organismos naturais passam a se ocupar consigo mesmos e acabam entendendo a si mesmos”, isso não significa que, em certo sentido, a própria natureza se “desenvolve em espírito”? O que deveríamos problematizar é exatamente o frágil equilíbrio de Pippin entre o materialismo ontológico e o idealismo transcendental epistemológico: ele rejeita a ontologização idealista direta da explicação transcendental da inteligibilidade, mas também rejeita as consequências epistemológicas do materialismo evolucionista ontológico (em outras palavras, ele não aceita o fato de que a autorreflexão do conhecimento deva construir um tipo de ponte para a ontologia materialista que explique como a atitude normativa do “explicar” a si mesmo poderia ter surgido da natureza.)
A mesma ambiguidade pode ser discernida já em Habermas: não surpreende que ele elogie Brandom, pois Habermas também evita tratar de maneira direta da “grande” questão ontológica (“os seres humanos são realmente uma subespécie dos animais, o darwinismo é verdadeiro?”), a questão de Deus ou da Natureza, o idealismo ou o materialismo. Seria fácil provar que a atitude neokantiana de Habermas de rejeitar o compromisso ontológico é necessariamente ambígua em si: enquanto os habermasianos tratam o naturalismo como um segredo obsceno, que não deve ser admitido publicamente (“é claro que o homem se desenvolveu da natureza, é claro que Darwin estava certo...”), esse segredo obscuro é uma mentira, encobre a forma idealista de seu pensamento (os transcendentais normativos a priori da comunicação que não podem ser deduzidos do ser natural). Embora os habermasianos pensem em segredo que de fato são materialistas, a verdade reside na forma idealista de seu pensamento.
Para evitarmos um equívoco fatal: o propósito não é que se deve tomar partido e optar por uma posição consistente, ou materialismo evolucionista ou idealismo especulativo. O propósito é antes que deveríamos aceitar plena e explicitamente a lacuna que se manifesta na incompatibilidade entre as duas posições: o ponto de vista transcendental é, em certo sentido, irredutível, pois não podemos olhar “objetivamente” para nós mesmos e nos localizar na realidade; e a tarefa é pensar essa impossibilidade como um fato ontológico, e não apenas como uma limitação epistemológica. Em outras palavras, a tarefa é pensar essa impossibilidade não como um limite, mas como um fato positivo – e é isso talvez que Hegel faça em sua forma mais radical.
Essa imagem “esvaziada” de Hegel não é o bastante, a ruptura pós-hegeliana deve ser abordada em termos mais diretos. Sim, há uma ruptura, mas Hegel é nela o “mediador em desaparição” entre seu “antes” e seu “depois”, entre a metafísica tradicional e o pensamento pós-metafísico dos séculos XIX e XX. Ou seja, algo acontece em Hegel, um grande avanço para uma dimensão única do pensamento, que é obliterada, tornada invisível em sua verdadeira dimensão pelo pensamento pós-metafísico73. Essa obliteração deixa um espaço vazio que precisa ser preenchido para que a continuidade do desenvolvimento da filosofia possa ser restabelecida. Mas, devemos perguntar, preenchido com o quê? O indicador dessa obliteração é a imagem absurda de Hegel como o “idealista absoluto”, que “pretende saber tudo”, possuir o Conhecimento absoluto, ler a mente de Deus, deduzir o todo da realidade a partir do automovimento da (sua) Mente – uma imagem que é um caso exemplar do que Freud chamou de Deck-Erinnerung (lembrança encobridora), uma formação fantasiosa destinada a ocultar uma verdade traumática. Nesse sentido, a volta pós-hegeliana à “realidade concreta, irredutível à mediação conceitual”, deveria ser lida de preferência como uma desesperada vingança póstuma da metafísica, como uma tentativa de reinstalar a metafísica, ainda que na forma invertida da primazia da realidade concreta74.
No entanto, talvez também encontremos aqui o limite de Hegel, embora não no sentido nietzschiano empregado por Lebrun. Se a vida é uma universalidade substancial, então o que se insere na lacuna entre seu Conceito e a efetivação do Conceito, e o que rompe desse modo com a circularidade substancial da vida, não seria a morte? Dito de maneira clara: se a Substância é Vida, o Sujeito não seria a Morte? Na medida em que, para Hegel, a característica básica da Vida pré-subjetiva é a “falsa infinidade” da reprodução eterna da substância-vida através do movimento incessante da geração e da corrupção de seus elementos – isto é, a “falsa infinidade” de uma repetição sem progresso –, a suprema ironia que encontramos aqui é que Freud, que chamou esse excesso da morte sobre a vida de “pulsão de morte”, concebeu-o precisamente como repetição, como uma compulsão à repetição. Hegel pode pensar essa estranha repetição, que não é progresso, mas também não é a repetição pela qual a vida substancial se reproduz? Uma repetição que, por sua excessiva insistência, rompe exatamente com o ciclo da repetição natural?
1 Mesmo com relação a Deleuze, podemos afirmar que seu Espinosa é um Espinosa pós-kantiano, um Espinosa imperceptivelmente relido por intermédio de um enquadramento pós-kantiano. Deleuze faz algo parecido com o que Fellini fez em Satyricon, em que o universo pagão romano é representado como parece retrospectivamente, de um ponto de vista cristão – a ideia subjacente é que só podemos realmente entender o que foi o paganismo de maneira retrospectiva.
a No original, Event. Cabe ressaltar que Žižek se refere ao termo francês “l’événement” para descrever “evento” tanto no contexto de Gilles Deleuze quanto no de Alain Badiou. No Brasil, o mesmo termo costuma ser traduzido de duas maneiras: “acontecimento” nas obras de Deleuze, como em Lógica do sentido (trad. Luiz Roberto Salinas Fortes, 5. ed., São Paulo, Perspectiva, 2009), e “evento” nas obras de Badiou, como em O Ser e o Evento (trad. Maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro, Zahar, 1996). (N. T.)
2 Ver Gérard Lebrun, L’envers de la dialectique: Hegel à la lumière de Nietzsche (Paris, Seuil, 2004). A ironia é que, três décadas antes, Lebrun publicou um dos melhores livros sobre Hegel, em que o defendia de sua crítica: La patience du concept (Paris, Gallimard, 1973). [As duas obras de Lebrun foram publicadas no Brasil: O avesso da dialética: Hegel à luz de Nietzsche, trad. Renato Janine Ribeiro, São Paulo, Companhia das Letras, 1988, e A paciência do conceito, trad. Silvia Rosa Filho, São Paulo, Unesp, 2006. Cabe ressaltar que a edição de O avesso da dialética a que se refere Žižek, revisada, anotada e apresentada por Paul Clavier e Francis Wolff, foi publicada na França dezesseis anos depois de sua publicação no Brasil, com algumas alterações. Indicaremos a edição francesa quando os trechos citados por Žižek não constarem da edição brasileira. (N. T.)]
3 Gérard Lebrun, O avesso da dialética, cit., p. 15.
4 A propósito, a estranha decisão prima facie de Lacan de aderir ao termo “sujeito”, apesar de a famosa crítica de Heidegger à subjetividade fundamentar-se precisamente nesse excesso obscuro do ôntico em relação a sua abertura ontológica: “sujeito” é, para Lacan, não o agente autônomo autopresente que reduz o todo da realidade a seu objeto, mas um sujeito patético, que sofre e paga o preço por pertencer ao lugar da abertura ontológica em carne ôntica – um preço cujo nome freudiano é obviamente “castração”.
5 Gérard Lebrun, O avesso da dialética, cit., p. 74.
6 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito (trad. Paulo Meneses, 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1992), parte I, § 194, p. 132.
7 Idem, Jenaer Realphilosophie (Hamburgo, Felix Meiner, 1969), p. 247-8.
8 Gérard Lebrun, O avesso da dialética, cit., p. 198.
9 Idem, L’envers de la dialectique, cit., p. 11.
10 Idem, O avesso da dialética, cit., p. 104.
11 Ibidem, p. 188.
12 Ibidem, p. 187.
13 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte I, § 195, p. 132.
14 Idem, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte (Frankfurt, Suhrkamp, 1970), p. 323. (Werke, v. 12.)
15 Idem, Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, v. 1: A ciência da lógica (trad. Paulo Meneses, São Paulo, Loyola, 1995), § 212, p. 347.
16 Robert Pippin, Hollywood Western and American Myth (New Haven, Yale University Press, 2010), p. 52.
17 Ibidem, p. 54-5.
18 Uma cena do maravilhoso Ser ou não ser, de Ernst Lubitsch, um diálogo curto entre os dois famosos atores poloneses, Maria Tura e seu egocêntrico marido, Josef, subverte essa lógica. Josef diz para a esposa: “Pedi que nos cartazes de divulgação da nossa nova peça, seu nome fique no topo, acima do meu. Você merece, querida!”. Ela responde educadamente: “Obrigada, mas você não precisava ter feito isso, não era necessário!”. É claro que a resposta dele é: “Eu sabia que você ia dizer isso, por isso cancelei o pedido e mandei colocar meu nome de volta no topo...”.
19 Essa lógica da micção/inseminação vale para o próprio Hegel, para suas duas imagens: o “Hegel organicista corporativo” é o aspecto da micção, errado, porém necessário. Temos de começar a leitura de Hegel pelo “Hegel errado”, porque somente dessa forma poderemos chegar à leitura certa.
20 Nesse sentido preciso, as oito hipóteses da segunda parte do Parmênides, de Platão, formam um sistemático exercício hegeliano: eles desdobram a matriz de todas as possíveis “escolhas semânticas” na relação entre o Uno e o Ser, com o resultado final “niilístico” de que não há um Fundamento derradeiro que garanta a consistente unidade da realidade, isto é, que a realidade derradeira é o próprio Vazio.
21 James Williams, Gilles Deleuze’s Difference and Repetition: A Critical Introduction and Guide (Edimburgo, Edinburgh University Press, 2003), p. 94.
22 Gilles Deleuze, Diferença e repetição (trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado, 2. ed., Rio de Janeiro, Graal, 2006), p. 125.
23 James Williams, Gilles Deleuze’s Difference and Repetition, cit., p. 96.
24 T. S. Eliot, “Tradição e talento individual”, em Ensaios (trad. Ivan Junqueira, São Paulo, Art Editora, 1989), p. 38-40, 42.
25 Jorge Luis Borges, “Kafka e seus precursores”, em Outras inquisições (trad. Sérgio Molina, São Paulo, Globo, 1999), p. 98. (Obras Completas, v. 2.)
26 Jacques-Alain Miller, “L’acte entre intention et conséquence”, La cause freudienne, n. 42, maio 1999, p. 7-16.
27 A definição tradicional do bom amante (aquele que, ao brincar mansamente com meu corpo, torna-me consciente de novas capacidades de gozo intenso) também exemplifica à perfeição a lacuna entre o Em-si e o Para-si: a questão não é que o amante traga à tona uma capacidade de gozo que já está plenamente constituída em meu íntimo, mas da qual não tenho ciência, nem que modele ou molde ativamente minha capacidade de sentir o gozo. A questão é antes que o amante efetiva aquilo que já existia em mim no estado de um Em-si.
28 O prefixo “pós” em “pós-estruturalismo” é, portanto, uma determinação reflexiva no estrito sentido hegeliano do termo: embora pareça designar uma propriedade de seu objeto – a mudança, o corte, na orientação intelectual francesa – ele envolve efetivamente uma referência ao olhar do sujeito que o percebe: “pós” aqui se refere ao que se sucedeu na teoria francesa depois que o olhar norte-americano (ou alemão) voltou-se para ela, ao passo que o “estruturalismo” tout court designa a teoria francesa “em si”, antes de ser notada pelo olhar estrangeiro. Em resumo, o “pós-estruturalismo” é estruturalismo a partir do momento em que foi percebido pelo olhar estrangeiro.
29 Peter Hallward, Out of This World (Londres, Verso Books, 2006).
30 Ver Daniel Dennett, Freedom Evolves (Harmondsworth, Penguin Books, 2003). [Ed. port.: A liberdade evolui, trad. Jorge Beleza, Lisboa, Temas e Debates, 2005.]
31 Nicholas Fearn, Filosofia: novas respostas para antigas questões (trad. Maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro, Zahar, 2007), p. 37.
32 Peter Hallward, Out of This World, cit., p. 139.
33 Idem.
b Em contexto hegeliano, o termo inglês “actual” diz respeito ao alemão “wirklich”, e em contexto deleuziano, ao francês “actuel”. Para aproximar o leitor da precisão desses termos, procuramos manter, sempre que possível, a mesma distinção em português, traduzindo “actual” ora por “efetivo”, ora por “atual”. (N. T.)
34 Peter Hallward, Out of This World, cit., p. 54.
35 James Williams, Gilles Deleuze’s Difference and Repetition, cit., p. 109.
36 Gilles Deleuze, Diferença e repetição, cit., p. 103.
37 Ibidem, p. 29.
38 Peter Hallward, Out of This World, cit., p. 118.
39 James Williams, Gilles Deleuze’s Difference and Repetition, cit., p. 200.
40 Idem.
41 Gilles Deleuze, Diferença e repetição, cit., p. 225.
42 Gérard Lebrun, O avesso da dialética, cit., p. 33.
43 Ibidem, p. 34.
44 Ibidem, p. 34-6.
45 Ibidem, p. 87.
46 Jacques Lacan, Escritos (trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1998), p. 286.
47 Ibidem, p. 287.
48 Ver György Lukács, História e consciência de classe (trad. Rodnei Nascimento, São Paulo, Martins Fontes, 2003).
49 Karl Marx, Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política (trad. Mario Duayer, Nélio Schneider, Alice Helga Werner e Rudiger Hoffman, São Paulo/Rio de Janeiro, Boitempo/UFRJ, 2011), p. 58.
50 Karl Barth, God Here and Now (Nova York, Routledge, 2003), p. 45-6.
51 Ibidem, p. 42.
52 Ibidem, p. 49.
53 Ibidem, p. 46.
54 Talal Asad et al., Is Critique Secular? (Berkeley, University of California Press, 2009), p. 138-9.
55 E não devemos nos esquecer de que, para Hegel, sua reconstrução filosófica da história de modo algum pretende “cobrir tudo”, mas conscientemente deixar lacunas: o período medieval, por exemplo, é para Hegel uma grande regressão – não surpreende que em suas aulas de história da filosofia ele rejeite o todo do pensamento medieval em poucas páginas, negando categoricamente qualquer importância histórica a figuras como Tomás de Aquino. Isso sem falarmos da destruição das grandes civilizações, como a dizimação de grande parte do mundo muçulmano pelos mongóis (destruição de Bagdá etc.) no século XIII – não há nenhum “significado” nessa destruição, a negatividade desencadeada por ela não abre espaço para uma nova forma da vida histórica.
56 Alain Badiou, Second manifeste pour la philosophie (Paris, Fayard, 2009), p. 127-8.
57 Quentin Meillassoux, “Potentiality and Virtuality”, Collapse: Philosophical Research and Development, n. 2, 2007, p. 71-2.
58 Ibidem, p. 74.
59 Ibidem, p. 72.
60 Ibidem, p. 75.
61 Ibidem, p. 80.
62 G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Religion (Frankfurt, Suhrkamp, 1970), p. 525-6. (Werke, v. 16.)
63 Idem, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, cit., p. 90.
64 Gérard Lebrun, O avesso da dialética, cit., p. 229.
c Trad. Lúcia Miguel Pereira, Rio de Janeiro, Globo, 7 v., 1983. (N. T.)
65 Robert Pippin, The Persistence of Subjectivity (Cambridge, Cambridge University Press, 2005), p. 332-4.
66 G. W. F. Hegel, Hegels Philosophie des subjektiven Geistes, p. 6-7.
d Lacan faz uso de um neologismo para exprimir a articulação do interno com o externo: contrapõe o prefixo ex com a palavra intime (íntimo) e cria ex-time (ex-timo) para representar o que há de mais íntimo no sujeito e, não obstante, lhe é exterior. (N. T.)
67 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte I, § 257, p. 169.
68 Robert Pippin, Hegel’s Practical Philosophy (Cambridge, Cambridge University Press, 2008), p. 46.
69 Ibidem, p. 53.
70 Ibidem, p. 52-3.
71 Ibidem, p. 49-50.
72 Ibidem, p. 49.
73 Então por que o pensamento de Hegel ocorreu no momento em que ocorreu, e não antes ou depois? Ele apareceu no momento histórico singular da passagem entre o mundo antigo (pré-moderno) e o novo (moderno) – nesse intervalo. Hegel, por um breve momento, viu algo que não estava visível nem antes nem depois. Hoje estamos diante de outra passagem como essa, daí a necessidade de repetir Hegel.
74 Outra maneira de lidar com esse excesso desconcertante, essa excrescência da filosofia que não cabe nas coordenadas da metafísica precedente, tampouco nas coordenadas da “antifilosofia” pós-hegeliana (Badiou), é moldar Hegel como um sujeito bizarro, que deveria simplesmente ser esquecido ou ignorado. Para citar apenas o exemplo de Mehdi Belhaj Kacem: “Hegel não é nada mais que um parêntese – grandioso, mas ainda assim um parêntese – entre Kant e Badiou” (citado em Marianne, n. 671, 27 fev. 2010, p. 24).