O uso difundido da noção de “intuição intelectual” no idealismo alemão pós-kantiano não é sinal de uma regressão à metafísica pré-crítica (como afirmam os kantianos ortodoxos). Para os idealistas pós-kantianos, “intuição intelectual” não é uma visão ou recepção intuitiva passiva da realidade numenal; ao contrário, sempre designa uma faculdade ativa, produtiva, espontânea e, como tal, continua firmemente enraizada no tópico kantiano da síntese ativa da imaginação transcendental (daí aqueles que reabilitam essa noção se referirem com entusiasmo às seções 76 e 77 da Crítica da faculdade do juízo, de Kant)1. Por que então Kant rejeita essa noção? Que limiar ele se recusa a atravessar?
Em 1804, já bem próximo da morte, Kant escreveu que havia duas questões fundamentais sobre as quais girava todo o seu pensamento: a idealidade de espaço e tempo e a realidade do conceito de liberdade2. A oposição de Kant à atitude inspirada no senso comum é clara: para o naturalismo do senso comum, espaço e tempo são reais (processos e objetos reais “são” no espaço e no tempo, espaço e tempo não são apenas o horizonte transcendental da nossa experiência da realidade), ao passo que a liberdade é ideal (uma forma de autopercepção do nosso Si consciente, talvez sem nenhum fundamento na realidade básica, na qual o que existe é apenas a matéria). Para Kant, ao contrário, espaço e tempo são ideais (não são propriedades das coisas em si, mas formas de percepção impostas nos fenômenos pelo Si transcendental), ao passo que a liberdade é real no sentido mais radical (até mesmo lacaniano): a liberdade é um “fato da razão” inexplicável, “irracional”, inimputável, um Real que perturba nossa noção de realidade espaço-temporal (fenomenal) enquanto governada por leis naturais. Por isso, nossa experiência de liberdade é propriamente traumática, até mesmo para Kant, que confunde o Real enquanto impossível que acontece (aquilo que “eu não posso fazer”) com o Real enquanto impossível-a-acontecer (aquilo que “eu jamais posso realizar plenamente”). Ou seja, na ética kantiana, a verdadeira tensão não está entre a ideia do sujeito de que ele age somente pelo dever e o fato oculto de que haja realmente uma motivação patológica em jogo (psicanálise vulgar); a verdadeira tensão é exatamente o oposto: o ato abissalmente livre é insuportável, traumático, posto que quando realizamos um ato pela liberdade, e a fim de sustentá-la, nós a vivenciamos como condicionada por alguma motivação patológica. Somos tentados aqui a nos referir ao conceito kantiano de esquematização: um ato livre não pode ser esquematizado, integrado a nossa experiência; portanto, para esquematizá-lo, temos de “patologizá-lo”. E mesmo Kant, via de regra, interpreta mal a verdadeira tensão (a dificuldade de defender e assumir um ato livre) enquanto tensão que afeta o agente que nunca pode ter certeza se seu ato foi realmente livre, e não motivado pelos impulsos patológicos ocultos. É por isso que, como afirmou Kierkegaard, o verdadeiro trauma reside não em nossa mortalidade, mas na imortalidade: é fácil aceitar que somos apenas uma partícula de poeira no universo infinito; muito mais difícil de aceitar é que somos efetivamente seres livres e imortais e, como tais, não podemos escapar da terrível responsabilidade de nossa liberdade.
A raiz desse problema está no impasse existente no cerne do edifício kantiano, como destacou Henrich: Kant parte de nossa capacidade cognitiva – o Si, com suas três características (unidade, atividade sintética, vazio), é afetado pelas coisas numenais e, por meio da atividade sintética, organiza as impressões na realidade fenomenal; contudo, quando ele chega ao resultado ontológico de sua crítica do conhecimento (a distinção entre realidade fenomenal e o mundo numenal das Coisas-em-si), “não pode haver retorno ao si. Não há interpretação plausível do si como membro de um dos dois mundos”3. É aí que entra a razão prática: a única maneira de retornar da ontologia para o Si é pela liberdade: a liberdade une os dois mundos e torna possível a unidade ou a coerência do Si – por isso Kant repetia sempre o lema: “subordinar tudo à liberdade”4. Aqui, no entanto, surge uma lacuna entre Kant e seus seguidores: para Kant, a liberdade é um fato “irracional” da razão, é simples e inexplicavelmente dada, algo como um cordão umbilical que mantém nossa experiência inexplicavelmente presa à realidade numenal desconhecida, não o Primeiro Princípio a partir do qual podemos desenvolver uma noção sistemática da realidade; já os idealistas (de Fichte em diante) atravessam esse limite e esforçam-se para dar uma explicação sistemática da liberdade em si. O status desse limite muda com os idealistas: o que para Kant era uma limitação a priori, de modo que a própria noção de “ultrapassar” é insignificante stricto sensu, torna-se para os idealistas apenas uma indicação de que Kant ainda não estava preparado para levar seu projeto a cabo, ou extrair todas as consequências de sua inovação. Para os idealistas, Kant parou no meio do caminho, mas, para Kant, seus seguidores idealistas não compreenderam sua crítica e retrocederam à metafísica pré-crítica ou, o que é pior, à mística Schwarmerei.
Há assim duas versões dessa passagem5. (1) Kant afirma a lacuna da finitude, o esquematismo transcendental, o acesso negativo ao Numenal (via o Sublime) como a única possível, e assim por diante, ao passo que o idealismo absoluto de Hegel fecha a lacuna kantiana e retorna à metafísica pré-crítica. (2) É Kant que vai apenas até metade do caminho em sua destruição da metafísica, mantendo ainda a referência à Coisa-em-si como um ente externo inacessível, e Hegel não passa de um Kant radicalizado, que parte de nosso acesso negativo ao Absoluto para o Absoluto em si como negatividade. Ou, nos termos da mudança hegeliana do obstáculo epistemológico para a condição ontológica positiva (nosso conhecimento incompleto da coisa torna-se uma característica positiva da coisa que é em si incompleta, inconsistente), não é que Hegel “ontologize” Kant, mas, ao contrário, é Kant que, na medida em que concebe a lacuna como meramente epistemológica, continua a pressupor um campo numenal plenamente constituído que existe externamente, e é Hegel que “deontologiza” Kant, introduzindo uma lacuna na própria tessitura da realidade. Em outras palavras, o passo de Hegel não é para “superar” a divisão kantiana, mas sim para afirmá-la “como tal”, para remover a necessidade de “superação”, a necessidade de uma “reconciliação” adicional dos opostos, ou seja, para compreender melhor – por meio de uma mudança paraláctica puramente formal – que postular a distinção “como tal” já é a “reconciliação” buscada. A limitação de Kant está não no fato de permanecer dentro dos confins das oposições finitas, em sua incapacidade de chegar ao Infinito, mas, ao contrário, em sua própria busca de um domínio transcendente além do campo das oposições finitas. Kant não é incapaz de chegar ao Infinito, mas é incapaz de ver que já tem aquilo que procura. Gérard Lebrun esclareceu esse ponto crucial em sua análise da crítica hegeliana às antinomias kantianas6.
O lugar-comum entre os defensores de Kant é que a crítica de Hegel, embora aparentemente mais audaciosa (Hegel vê contradições em toda parte), apenas domestica ou apara as antinomias kantianas. Kant é, segundo dizem (desde Heidegger até os pós-modernistas), o primeiro filósofo que realmente confrontou a finitude do sujeito não como um fato empírico, mas como o próprio horizonte ontológico do nosso ser. Isso o levou a conceber as antinomias como impasses genuínos indissolúveis, escândalos inelutáveis da razão, no sentido de que a razão humana se torna envolvida por sua própria natureza – o escândalo do que ele chegou a chamar de “eutanásia da Razão”. O impasse é irredutível, não há mediação entre os opostos, não há síntese superior. Assim, temos a verdadeira imagem contemporânea de um sujeito humanista preso em um entrave constitutivo, marcado por uma lacuna ou cisão ontológica a priori. Embora Hegel pareça radicalizar as antinomias, concebendo-as como “contradições” e universalizando-as, vendo-as em toda parte, em cada conceito que usamos, e, indo mais além, ontologizando-as (enquanto Kant situa as antinomias em nossa abordagem cognitiva da realidade, Hegel as situa na realidade em si), essa radicalização é uma artimanha: uma vez reformuladas como “contradições”, as antinomias são aprisionadas no maquinário do progresso dialético, reduzidas a um estágio intermediário, a um momento na estrada em direção à reconciliação final. Hegel, portanto, apara de maneira eficaz as arestas escandalosas das antinomias kantianas que ameaçaram levar a Razão à beira da loucura, normalizando-as novamente como parte de um processo ontológico global.
Lebrun mostra que essa concepção está errada: é o próprio Kant que neutraliza as antinomias. Deveríamos ter sempre em mente o resultado de Kant: não existem antinomias como tal, elas surgem simplesmente da confusão epistemológica que o sujeito faz entre fenômenos e númenos. Depois de que a crítica da Razão cumpriu seu papel, chegamos a um quadro ontológico claro, inequívoco e não antagônico, com os fenômenos de um lado e os númenos do outro. Toda a ameaça de “eutanásia da Razão”, o espetáculo da Razão presa para sempre em um entrave fatal, revela-se por fim como um simples truque teatral, um espetáculo encenado para dar credibilidade à solução transcendental de Kant. Esta é a característica que Kant compartilha com a metafísica pré-crítica: as duas posições permanecem no domínio do Entendimento e suas determinações fixas, e a crítica de Kant à metafísica explicita o resultado final da metafísica: à medida que adentramos o domínio do Entendimento, as Coisas-em-si saem de nosso alcance, nosso conhecimento é, em última análise, em vão.
Então, no que reside de fato a diferença entre Kant e Hegel com respeito às antinomias? Hegel transforma o campo inteiro: sua crítica básica visa não o que Kant diz, mas o que Kant não diz, os “conhecidos desconhecidos” de Kant (segundo a expressão de Donald Rumsfeld) – Kant trapaceia, sua análise das antinomias não é tão pobre, mas antes muito rica, pois insinua nela toda uma série de pressupostos e implicações adicionais. Em vez de analisar a natureza imanente das categorias envolvidas nas antinomias (finitude versus infinitude, continuidade versus descontinuidade etc.), ele desloca a análise para o modo como nós, enquanto sujeitos pensantes, usamos ou aplicamos essas categorias. É por essa razão que a crítica básica de Hegel a Kant diz respeito não à natureza imanente das categorias, mas sim, de uma maneira quase wittgensteiniana, a seu uso ilegítimo, a sua aplicação a um domínio que não é propriamente delas. As antinomias não são inscritas em categorias, elas surgem apenas quando ultrapassamos o domínio próprio de seu uso (a realidade temporal-fenomenal de nossa experiência) e as aplicamos à realidade numenal, aos objetos que jamais podem se tornar objetos de nossa experiência. Em suma, as antinomias surgem no momento em que confundimos fenômenos e númenos, objetos da experiência com Coisas-em-si.
Kant só pode perceber a finitude enquanto finitude do sujeito transcendental que é restringido pelo esquematismo, pelas limitações temporais da síntese transcendental: para ele, a única finitude é a finitude do sujeito; ele não considera a possibilidade de que as próprias categorias das quais ele trata possam ser “finitas”, isto é, que possam continuar sendo categorias do Entendimento abstrato, e não categorias verdadeiramente infinitas da Razão especulativa. E o argumento de Hegel é que esse movimento das categorias do Entendimento para a Razão propriamente dita não é um passo ilegítimo para além dos limites de nossa razão; ao contrário, é o próprio Kant que passa dos limites próprios da análise das categorias, das puras determinações conceituais, projetando ilegitimamente nesse espaço o tópico da subjetividade temporal, e assim por diante. Em sua forma mais elementar, o movimento de Hegel é uma redução e não um enriquecimento de Kant: um movimento de subtração, uma remoção do lastro metafísico e uma análise das determinações conceituais em sua natureza imanente.
O que é exatamente o Entendimento? Jameson caracteriza o Entendimento (Verstand) como um tipo de ideologia espontânea de nossa vida diária, de nossa experiência imediata da realidade. Como tal, não se trata apenas de um fenômeno histórico que deve ser dissolvido pela crítica dialética e a transformação prática das relações que o engendram, mas sim de um dispositivo permanente e trans-histórico de nossa realidade cotidiana. Com efeito, a Razão (Vernunft) “tem a tarefa de transformar os erros necessários do Verstand em tipos novos e dialéticos de verdades”7, mas essa “transformação” deixa intacta a eficácia cotidiana do Entendimento, seu papel formativo em nossa experiência ordinária – tudo o que a Razão pode alcançar é um tipo de delimitação crítica kantiana da esfera própria do Entendimento; em outras palavras, ela só pode nos tornar conscientes de que somos vítimas de ilusões necessárias (“transcendentais”) em nossa vida cotidiana. Por trás dessa leitura da oposição entre Razão e Entendimento, há uma noção profundamente não marxiana de ideologia (ou melhor, uma cisão profundamente não marxiana dessa noção), tirada provavelmente de Althusser (e talvez de Lacan): à maneira kantiana, Jameson parece sugerir que há dois modos de ideologia, um histórico (formas ligadas a condições históricas específicas, que desaparecem quando essas condições são abolidas, como o patriarcado tradicional) e um transcendental a priori (um tipo de tendência espontânea ao pensamento identitário, à reificação etc., que é consubstancial com a linguagem como tal e, por isso, pode ser assimilada à ilusão do grande Outro como o “sujeito suposto saber”). O tema de Jameson do indizível (raramente percebido, mas persistente), das coisas que são melhores quando não são ditas, está intimamente ligado a essa noção de ideologia – por exemplo, em sua resenha sobre meu A visão em paralaxe, na London Review of Books. Seu argumento contra a noção de paralaxe é que, como nome da difração/cisão mais elementar, ela se esforça para nomear algo que é melhor deixar sem nome. De maneira semelhante, Jameson concorda com a tendência kantiana de (alguns) cientistas do cérebro de insistir em uma incognoscibilidade estrutural a priori da consciência:
o que os contemporâneos de Hegel chamaram de não-eu é aquilo de que a consciência tem consciência como seu outro, e não uma ausência da consciência em si, algo inconcebível, exceto como um tipo de pensamento pictórico de ficção científica, um tipo de pensamento da alteridade. Mas é difícil entender como poderíamos conhecer algo sem saber o que sua ausência implica: pode ser que, como argumenta Colin McGinn, a consciência seja um daqueles problemas filosóficos que os seres humanos não são estruturalmente capazes de resolver; e que, nesse sentido, a posição de Kant era a que deveria ser tomada: que, embora sua existência seja tão certa quanto o cogito cartesiano, a consciência também deveria permanecer perpetuamente desconhecida como uma coisa-em-si.8
O mínimo que podemos dizer sobre essas linhas é que elas são profundamente não hegelianas, mesmo levando em conta o inesperado propósito dialético de Jameson: uma vez que um elemento só pode ser propriamente apreendido através de sua diferença em relação a seu oposto, e uma vez que o oposto do eu – o não-eu – é inacessível ao eu assim como é em si, a consequência da incognoscibilidade do não-eu assim como é em-si, independentemente do eu, é a incognoscibilidade da consciência (o eu) em si como é em-si. A afirmação solipsista-empirista de que “o sujeito só pode conhecer a si mesmo, suas sensações”, é, portanto, errada: se o não-eu é incognoscível, o eu em si sofre a mesma sina. A questão que devemos levantar aqui é se esse círculo é insuperável. Estamos presos nele até o fim, de modo que toda especulação sobre o Exterior é sempre-já uma fantasia retroativa do ponto de vista do Interior? Ou, como diria Hegel, todo pressuposto já é pressuposto? Jameson mostra essa impossibilidade de rompimento em uma leitura perspicaz do conceito de pôr como a chave do que Hegel quer dizer com “idealismo”. Seu primeiro passo é mediar dialeticamente a própria oposição entre pôr e pressupor: o núcleo do “pôr” não é a produção direta de objetos, posto que tal produção permanece abstratamente oposta ao que é simplesmente dado (eu, enquanto sujeito finito, encontro diante de mim objetos materiais e depois “ponho” trabalhando neles); o núcleo do “pôr” concerne a esses pressupostos em si; ou seja, o que é posto primeiro são os pressupostos em si. Lembremo-nos aqui a noção de Heidegger da essência da tecnologia moderna como Gestell: para que o sujeito manipule e explore tecnologicamente a realidade, essa realidade tem de ser “posta”/pressuposta (ou, em termos hegelianos, aberta) de antemão como um objeto de possível exploração tecnológica, uma reserva de matéria-prima e energia etc. É nesse sentido que deveríamos conceber o que é posto “em termos de pressupostos: pois pôr alguma coisa sempre acontece ‘antes’ de outros tipos de pensamentos e outras espécies de atos e eventos”9, ou, de maneira mais enfática, “em termos de cenários teatrais ou arranjos pré-fílmicos em que, à frente do tempo, coloca-se um número determinado de coisas no palco, calculam-se algumas profundidades e também se fornece cuidadosamente um centro óptico, as leis da perspectiva são evocadas para fortalecer a ilusão a ser atingida”10.
A teoria de Kant – fenômeno e númeno – parece um pouco diferente se apreendida como uma forma específica de pôr o mundo. [...] não se trata mais de uma questão de crença, de assumir a existência da realidade objetiva, do númeno, de um mundo independente das percepções humanas, tendo como base a fé. Mas também não é uma questão de seguir os passos de Fichte e afirmar que a realidade objetiva – o númeno, que agora se tornou o não-eu – torna-se existente pelo ato primordial do eu, que a “põe” (agora usando o termo em um sentido metafísico).
Ao contrário, aquilo para além do que o númeno é caracterizado torna-se agora algo como uma categoria do pensamento. [...] É a mente que põe os númenos no sentido de que sua experiência de cada fenômeno requer junto de si um além. [...] O númeno não é algo separado do fenômeno, mas parte fundamental de sua essência; e é dentro da mente que as realidades fora dela ou além dela são “postas”.11
Cabe fazermos aqui uma distinção precisa entre parte pressuposta ou sombria do que aparece como objetos ônticos e o horizonte ontológico de seu aparecer. Por um lado, como desenvolvido de maneira brilhante por Husserl em sua análise fenomenológica da percepção, toda percepção – até mesmo de um objeto ordinário – envolve uma série de suposições sobre seu lado não visto, bem como sobre suas origens; por outro lado, um objeto sempre aparece dentro de certo horizonte de “pré-juízos” hermenêuticos que fornecem um quadro a priori no qual situamos o objeto e que, desse modo, o tornam inteligível – observar a realidade “sem pré-juízos” significa não entender nada. A mesma dialética de “pôr os pressupostos” tem um papel fundamental em nosso entendimento da história:
assim como sempre pomos a anterioridade de um objeto sem nome junto com o nome ou ideia que acabamos de articular, também no que se refere à temporalidade histórica estamos sempre pondo a preexistência de um objeto sem forma que é a matéria-prima da nossa emergente articulação histórica ou social.12
Essa “informidade” também deveria ser entendida como um apagamento violento das formas (prévias): sempre que determinado ato é “posto” como ato fundador, como corte histórico ou início de uma nova era, a realidade social anterior é reduzida, via de regra, a uma caótica charada “a-histórica” – por exemplo, quando os colonialistas ocidentais “descobriram” a África negra, tal descoberta foi interpretada como o primeiro contato dos “pré-históricos” primitivos com a história civilizada propriamente dita, e sua história anterior se dissolveu basicamente em uma “matéria sem forma”. É nesse sentido que a noção de “pôr os pressupostos” é “não só uma solução para os problemas postos pela resistência crítica às narrativas míticas da origem [...] como também uma solução em que o surgimento de uma forma histórica específica torna retroativamente existente a existência da matéria até então sem forma a partir da qual ela foi moldada”13.
Essa última afirmação merece uma ressalva ou, de preferência, uma correção: o que retroativamente torna-se existente não é a “matéria até então sem forma”, mas precisamente a matéria que já era bem articulada antes do surgimento da nova, e cujos contornos foram apenas borrados, ou tornaram-se invisíveis, a partir do horizonte da nova forma histórica – com o advento da nova forma, a forma anterior é (mal) percebida como “matéria até então sem forma”, ou seja, a “informidade” em si é um efeito retroativo, um apagamento violento da forma anterior14. Se deixarmos passar a retroatividade desse pôr de pressupostos, nós nos veremos em um universo ideológico de teleologia evolucionária: surge, portanto, uma narrativa ideológica no sentido de que as épocas anteriores são concebidas como passos ou estágios progressivos rumo à época “civilizada” do presente. É por essa razão que o pôr retroativo de pressupostos é o “substituto [materialista] daquela “teleologia” da qual [Hegel] costuma ser acusado”15.
Isso significa que, embora os pressupostos sejam (retroativamente) postos, a conclusão que tiramos não é que estamos para sempre presos nesse círculo de retroatividade, de modo que toda tentativa de reconstruir o advento do Novo a partir do Velho não seja nada mais que uma narrativa ideológica. Todavia, a própria dialética de Hegel não é outra grande narrativa teleológica, mas precisamente um esforço para evitar a ilusão narrativa de um processo contínuo de crescimento orgânico do Novo a partir do Velho; as formas históricas que se seguem umas às outras não são figuras sucessivas dentro do mesmo quadro teleológico, mas retotalizações sucessivas, e cada uma cria (“põe”) seu próprio passado (bem como projeta o próprio futuro). Em outras palavras, a dialética de Hegel é a ciência da lacuna entre o Velho e o Novo, da explicação dessa lacuna; mais especificamente, seu verdadeiro tema não é a lacuna entre o Velho e o Novo, mas seu redobramento autorreflexivo – quando descreve o corte entre o Velho e o Novo, ela descreve ao mesmo tempo a lacuna, dentro do Velho em si, entre o Velho “em-si” (como era antes do Novo) e o Velho retroativamente posto pelo Novo. É por conta dessa lacuna redobrada que cada nova forma surge como uma criação ex nihilo: o Nada do qual surge o Novo é a própria lacuna entre o Velho-em-si e o Velho-para-o-Novo, a lacuna que possibilita qualquer explicação do surgimento do Novo nos termos de uma narrativa contínua16.
Devemos fazer mais uma ressalva aqui: o que foge a nossa compreensão não é a forma como as coisas eram antes do advento do Novo, mas o próprio nascimento do Novo, o Novo como foi “em si”, a partir da perspectiva do Velho, antes de conseguir “pôr seus pressupostos”. É por isso que a fantasia, a narrativa fantasmática, sempre envolve um olhar impossível, o olhar por meio do qual o sujeito já está presente na cena de sua própria ausência – a ilusão aqui é a mesma da “realidade alternativa” cuja alteridade também é “posta” pela totalidade atual e, por isso, permanece dentro das coordenadas da totalidade atual. Para evitar essa redução utópica do sujeito ao olhar impossível que testemunha uma realidade alternativa da qual ele está ausente, não devemos abandonar o tópos da realidade alternativa como tal, mas sim reformulá-lo de modo a evitar a mistificação da narrativa mitopoética teosófica que pretende exprimir a gênese do cosmos (da realidade plenamente constituída, governada pelo lógos) a partir do caos protocósmico pré-ontológico. Tais tentativas apenas ofuscam o argumento de que a “história virtual” reprimida e espectral não é a “verdade” da história oficial, mas a fantasia que preenche o vazio do ato que produz a história. No nível da vida familiar, a distinção é palpável no que chamamos de síndrome da falsa memória: as “memórias” desenterradas (ser seduzido ou molestado por alguém da família), as histórias reprimidas, que assombram a imaginação dos vivos, são exatamente essas “mentiras primitivas” destinadas a antecipar o encontro com a derradeira pedra da impossibilidade, o fato de que “não existe relação sexual”. E o mesmo vale, no nível da vida social, para a noção de Crime primitivo que fundamental o Outro legal: a narrativa secreta que conta sua história é puramente fantasmática.
Na filosofia propriamente dita, essa mistificação fantasmática reside no próprio núcleo do projeto do Weltalter, de Schelling. O que Schelling tentou realizar no Weltalter é exatamente essa narrativa fantasmática mitopoética que explicaria o surgimento do lógos em si a partir do Real protocósmico pré-lógico; no entanto, no fim de cada um dos três rascunhos sucessivos do Weltalter – ou seja, no momento exato em que a passagem do mito para o lógos, do Real para o Simbólico, deveria ter sido desenvolvida –, Schelling foi obrigado a pôr um ato misterioso de Ent-Scheidung (decisão ou separação), um ato de certa forma mais primordial que o Real do próprio “Passado eterno”. A falha repetida dos rascunhos do Weltalter sinaliza exatamente a honestidade de Schelling como pensador – o fato de ser radical o suficiente para reconhecer a impossibilidade de fundamentar o ato ou a decisão em um mito protocósmico. A linha de separação entre o materialismo e o idealismo obscurantista em Schelling, portanto, diz respeito precisamente à relação entre ato e protocosmos: o obscurantismo idealista deduz ou gera o ato a partir do protocosmos, ao passo que o materialismo afirma a primazia do ato e condena o caráter fantasmático da narrativa protocósmica.
Assim, a propósito da afirmação de Schelling de que a consciência do homem surge do ato primitivo que separa a consciência atual-presente do campo espectral e sombrio do inconsciente, temos de fazer uma pergunta aparentemente ingênua, porém crucial: o que é exatamente inconsciente aqui? A resposta de Schelling é inequívoca: “inconsciente” não é primariamente o movimento rotatório das pulsões lançadas no passado eterno; “inconsciente” é antes o próprio ato de Ent-Scheidung pelo qual as pulsões foram lançadas no passado. Ou, em termos ligeiramente diferentes, o que é verdadeiramente “inconsciente” no homem não é o oposto imediato da consciência, o vórtice obscuro e confuso das pulsões “irracionais”, mas sim o próprio gesto fundador da consciência, o ato de decisão no qual eu “escolho a mim mesmo”, pelo qual combino essa multitude de pulsões na unidade do meu Si. O “inconsciente” não é a substância passiva de pulsões inertes que será usada pela atividade “sintética” criativa do Eu consciente; o “inconsciente”, em sua dimensão mais radical, é antes o mais nobre Feito da minha autoposição, ou (recorrendo a termos “existencialistas” posteriores) a escolha do meu “projeto” fundamental, que, para permanecer operante, deve ser “reprimido”, mantido longe da luz do dia. Vejamos uma citação das admiráveis páginas finais do segundo rascunho do Weltalter:
O feito primordial que torna um homem genuinamente ele mesmo precede todas as ações individuais, mas, imediatamente depois que é posto em exuberante liberdade, esse feito afunda na noite do inconsciente. Não se trata de um feito que poderia acontecer uma vez e acabar em seguida; é um feito permanente, um feito interminável e, consequentemente, jamais pode ser colocado diante da consciência. Para que o homem saiba desse feito, a consciência em si teria de retornar ao nada, à liberdade sem limites, e deixaria de ser consciência. Esse feito acontece e imediatamente depois retorna para as insondáveis profundezas; é exatamente dessa forma que a natureza adquire permanência. Também aquela vontade, posta no início e então exteriorizada, deve imediatamente afundar na inconsciência. Somente dessa maneira é possível um início, um início que não deixa de ser início, um início verdadeiramente eterno. Pois aqui é igualmente verdade que o início não pode conhecer a si mesmo. O feito, uma vez feito, é feito para toda a eternidade. A decisão que de certa forma está verdadeiramente prestes a ter início deve ser devolvida à consciência; não deve ser chamada de volta, pois isso implicaria ser tomada de volta. Se, ao tomar uma decisão, conservamos o direito de reexaminar nossa escolha, jamais estaremos começando.17
O que temos aqui é, obviamente, a lógica do “mediador em desaparição”: do gesto fundador da diferenciação que deve afundar na invisibilidade, uma vez que a diferença entre o vórtice das pulsões “irracionais” e o universo do lógos esteja em jogo. O passo fundamental de Schelling, portanto, não é simplesmente fundamentar o universo ontologicamente estruturado do lógos no terrível vórtice do Real; se fizermos uma leitura cuidadosa, perceberemos uma premonição em sua obra de que esse terrificante vórtice do Real pré-ontológico é em si (acessível a nós somente na forma de) uma narrativa fantasmática, um engodo feito para detrair o verdadeiro corte traumático, o corte do ato abissal de Ent-Scheidung.
É contra esse pano de fundo que podemos destacar mais dois pontos críticos sobre a noção de Jameson de Entendimento como uma forma eterna ou insuperável de ideologia. Devemos notar, antes de tudo, que esse caráter insuperável é em si redobrado: primeiro, há o Entendimento como tendência a priori do pensamento humano voltado para a reificação identitária; depois, há a insuperabilidade do círculo de “pôr os pressupostos” que nos impede de sair de nós mesmos e apreender o não-eu em todas as suas formas, espaciais e temporais (desde a realidade externa como ela é, independente de nós, até nosso próprio passado histórico). A primeira crítica que devemos fazer aqui é que as características atribuídas por Jameson ao Entendimento (“pensamento empírico da exterioridade inspirado no senso comum, formado na experiência dos objetos sólidos e obediente às leis da não contradição”) são historicamente limitadas: elas designam o senso comum empirista moderno-secular, que é muito diferente, digamos, de uma noção holística “primitiva” da realidade permeada por forças espirituais.
Contudo, um ponto crítico muito mais importante diz respeito ao modo como Jameson formula a oposição entre Entendimento e Razão: o Entendimento é compreendido como a forma elementar da análise, do fixar diferenças e identidades, reduzindo a riqueza da realidade a um conjunto abstrato de características; essa tendência espontânea à reificação identitária tem então de ser corrigida pela Razão dialética, que reproduz fielmente a complexidade dinâmica da realidade ao delinear a rede fluida de relações dentro da qual está localizada cada identidade. Essa rede tanto gera cada identidade quanto provoca sua ruína final. Contudo, essa não é enfaticamente a maneira como Hegel concebe a diferença entre Entendimento e Razão. Vejamos com atenção uma passagem bem conhecida do prefácio da Fenomenologia:
Decompor uma representação em seus elementos originários é retroceder a seus momentos que, pelo menos, não tenham a forma da representação já encontrada, mas constituam a propriedade imediata do Si. Decerto, essa análise só vem a dar em pensamentos, que por sua vez são determinações conhecidas, fixas e tranquilas. Mas é um momento essencial esse separado, que é também inefetivo; uma vez que o concreto, só porque se divide e se faz inefetivo, é que se move. A atividade do dividir é a força e o trabalho do entendimento, a força maior e mais maravilhosa, ou melhor, a potência absoluta.
O círculo, que fechado em si repousa, e retém como substância seus momentos, é a relação imediata e portanto nada maravilhosa. Mas o fato de que, separado de seu contorno, o acidental como tal – o que está vinculado, o que só é efetivo em sua conexão com outra coisa – ganhe um ser-aí próprio e uma liberdade à parte, eis aí a força portentosa do negativo: é a energia do pensar, do puro Eu.18
O Entendimento, precisamente em seu aspecto de análise, de dissociação da unidade de uma coisa ou processo, é aqui celebrado como “a força maior e mais maravilhosa, ou melhor, a potência absoluta” – como tal, ele está surpreendentemente caracterizado (para os que são presos à visão tradicional da dialética) nos mesmos termos que o Espírito, com respeito à oposição entre Entendimento e Razão, claramente do lado da Razão: “O espírito, em sua verdade simples, é consciência, e põe seus momentos fora-um-do-outro”a. Tudo diz respeito a como devemos entender essa identidade-diferença entre Entendimento e Razão: não que a Razão acrescente algo ao poder separador do Entendimento, restabelecendo (em um nível “superior”) a unidade orgânica do que o entendimento separou, suplementando a análise com a síntese; de certa forma, a Razão é não mais, porém menos que o Entendimento, ela é – nos famosos termos da oposição hegeliana entre o que se quer dizer e o que realmente se diz – o que o Entendimento, em sua atividade, realmente faz, em contraste com o que quer ou pretende fazer. A Razão é, portanto, não outra faculdade que suplementa a “unilateralidade” do Entendimento: a própria ideia de que existe algo (o núcleo do conteúdo substancial da coisa analisada) que ilude o Entendimento, um Além transracional fora de seu alcance, é a ilusão fundamental do Entendimento. Em outras palavras, tudo o que temos de fazer para ir do Entendimento à Razão é subtrair do Entendimento sua ilusão constitutiva.
O Entendimento não é tão abstrato ou violento, pelo contrário: ele é, como disse Hegel sobre Kant, leve demais em relação às coisas, tem muito medo de estabelecer nas coisas em si seu violento movimento de dissociar as coisas19. De certo modo, é epistemologia versus ontologia: a ilusão do Entendimento é que seu próprio poder analítico – o poder de fazer que “o acidental como tal [...] ganhe um ser-aí próprio e uma liberdade à parte” – não passa de uma “abstração”, algo externo à “verdadeira realidade” que persiste lá fora, intacta em sua plenitude inacessível. Em outras palavras, é a visão crítica padrão do Entendimento e de seu poder de abstração (que ele é apenas um exercício intelectual impotente, que ignora a riqueza da realidade) que contém a ilusão central do Entendimento. Dito ainda de outra forma, o erro do Entendimento é perceber sua própria atividade negativa (de separar, dissociar as coisas) somente em seu aspecto negativo, ignorando seu aspecto “positivo” (produtivo) – a Razão é o Entendimento em si em seu aspecto produtivo20.
Devemos fazer uma digressão aqui. O que é pensamento abstrato? Recordemos Líbano, um filme recente de Samuel Maoz sobre a guerra do Líbano de 1982. O filme se baseia nas memórias do próprio diretor da época em que era um jovem soldado e reproduz a claustrofobia e o medo da guerra, já que grande parte da ação se passa dentro de um tanque. Ele acompanha quatro soldados inexperientes cuja missão é “varrer” os inimigos de uma cidade libanesa que já havia sido bombardeada pela Força Aérea Israelense. Ao ser entrevistado durante o Festival de Veneza, em 2009, Yoav Donat, ator que interpretou o papel do jovem soldado Moaz, disse: “Esse filme nos faz sentir como se tivéssemos ido para a guerra”. Maoz afirmou que seu filme não era uma condenação às políticas de Israel, mas um relato pessoal do que aconteceu: “O erro que cometi foi ter chamado o filme de Líbano, porque a guerra do Líbano, em sua essência, não difere em nada de qualquer outra guerra e, para mim, qualquer tentativa de ser político enfraqueceria o filme”21. Isto é ideologia em sua forma mais pura: o foco na experiência traumática do perpetrador nos permite ignorar todo o pano de fundo ético-político do conflito (o que fazia o Exército israelense nas profundezas do Líbano etc.?). Essa “humanização” serve para ofuscar a questão principal: a necessidade de uma análise política implacável dos riscos envolvidos no uso de forças armadas.
Deparamos imediatamente com a resposta do imbecil ideológico: mas por que a retratação do horror e da perplexidade do combate não seria uma questão legítima para a arte? Esse tipo de experiência pessoal também não faz parte da guerra? Por que a retratação artística da guerra deveria se limitar às grandes divisões políticas que determinam esses conflitos? A guerra não é uma totalidade multifacetada? Abstratamente, tudo isso é verdadeiro; no entanto, o que se perde é que o verdadeiro significado global de uma guerra e da experiência pessoal não podem coexistir no mesmo espaço: a experiência individual da guerra, não importa quão “autêntica” seja, inevitavelmente estreita seu escopo e, como tal, é em si uma abstração violenta da totalidade. Gostemos ou não, recusar a luta não é o mesmo para um nazista que mata judeus em um gueto e para um partidário que resiste aos nazistas. Analogamente, na guerra do Líbano de 1982, o “trauma” do soldado israelense dentro do tanque não é o mesmo que o trauma do civil palestino que está sendo bombardeado – concentrar a atenção no primeiro só serve para ofuscar o que estava em jogo na invasão israelense.
Fredric Jameson argumentou que a mais célebre realização de santo Agostinho – a invenção da profundidade psicológica do fiel, com toda a complexidade constituída pelo desespero e pela dúvida interior – é estritamente correlativa a (ou é o outro lado de) sua legitimação do cristianismo como religião de Estado, como plenamente compatível com a obliteração do que restou da política radical oriunda do edifício cristão22. O mesmo vale para, entre outros, os renegados anticomunistas da Guerra Fria: via de regra, a virada contra o comunismo caminhou de mãos dadas com a virada para certo freudismo, com sua descoberta da complexidade psicológica das vidas individuais.
Mas isso significa que a única explicação fiel seja uma explicação dessubjetivada, sem lugar para a experiência subjetiva? É aqui que a principal distinção lacaniana entre o sujeito ($, o agente não psicológico “barrado”) e a “pessoa” tem de ser mobilizada: o que está por trás da tela da riqueza da “vida interior” de uma pessoa não é a “realidade objetiva”, mas o próprio sujeito – o sujeito político, em nosso caso.
O ato da abstração, da dissociação, também pode ser entendido como um ato de cegueira autoimposta, de se recusar a “ver tudo”. Em seu Blindness and Insight23, Paul de Man faz uma leitura refinada da “desconstrução” de Rousseau que Derrida realiza em Gramatologiab. A tese de De Man é que, ao apresentar Rousseau como um “logocentrista” preso na metafísica da presença, Derrida não vê que os temas e os passos teóricos envolvidos na desconstrução dessa metafísica já estão em ação no texto de Rousseau – em geral, o argumento “desconstrutivo” que Derrida constrói a respeito de Rousseau já havia sido articulado pelo próprio Rousseau. Além disso, esse equívoco não é um acidente, mas uma necessidade estrutural: Derrida só pode ver o que vê (desenvolver sua leitura desconstrutiva) através dessa cegueira. E seria fácil demonstrar a mesma sobreposição paradoxal de cegueira e insight em outras leituras de Derrida – por exemplo, em sua minuciosa leitura de Hegel em Glas. Aqui também o custo do complexo passo teórico para demonstrar como Hegel fracassou por não ver que uma condição de impossibilidade é uma condição de possibilidade – como ele produz algo cujo status teve de renegar para conseguir manter a consistência de seu edifício, e assim por diante – é uma simplificação violenta do arcabouço que serve de base para o pensamento de Hegel. Esse arcabouço é reduzido por Derrida à “metafísica da presença” absoluto-idealista, em que a automediação da Ideia é capaz de reduzir toda alteridade, e todas as formulações de Hegel contrárias a essa imagem são vistas como sinal de sua inconsistência sintomática, de não ser capaz de controlar sua própria produção teórica, ser forçado a dizer algo mais, ou diferente, do que queria dizer.
Mas como exatamente devemos interpretar essa codependência de insight e cegueira? É possível evitar a leitura-padrão que se impõe com uma força aparentemente autoevidente, a leitura segundo a qual a codependência de insight e cegueira é uma indicação de nossa insuperável finitude, da impossibilidade radical de atingirmos a perspectiva da infinitude, de um insight não mais prejudicado por um tipo qualquer de cegueira? Nossa aposta é que Hegel, aqui, oferece outra alternativa: o que ele chama de “negatividade” também pode ser expresso em termos de insight e cegueira, como o poder “positivo” da “cegueira” de ignorar partes da realidade. De que maneira essa noção surge da confusa rede de impressões que temos de um objeto? Pelo poder da “abstração”, de cegar-se para a maioria das características do objeto, reduzindo-o a seus aspectos constitutivos principais. O grande poder da nossa mente não é ver mais, mas ver menos da maneira correta, reduzir a realidade a suas determinações conceituais – somente essa “cegueira” gera um insight do que as coisas realmente são.
O mesmo princípio do “menos é mais” vale para a leitura do corpo de um livro: no excelente Como falar dos livros que não lemos24, Pierre Bayard mostra (usando uma linha de raciocínio irônica que no fim acaba sendo bastante séria) que, para formular realmente o insight ou a realização de um livro, em geral é melhor não lê-lo inteiro – dados demais simplesmente embaçam nossa visão. Por exemplo, muitos ensaios sobre Ulisses, de Joycec – e com frequência os melhores – foram escritos por estudiosos que não leram o livro inteiro; e o mesmo vale para Kant ou Hegel, pois um conhecimento extremamente minucioso só produz uma entediante exegese especializada, em vez de nos fornecer insights. As melhores interpretações de Hegel sempre são parciais: elas extrapolam a totalidade a partir de uma figura particular de pensamento ou do movimento dialético. Normalmente, não é a leitura de um grosso volume do próprio Hegel, mas uma observação extraordinária de um intérprete – muitas vezes equivocada ou pelo menos unilateral – é que nos permite apreender o pensamento de Hegel em seu movimento vivo.
A tensão entre insight e cegueira explica o fato de Hegel usar o termo Begriff (conceito) com dois sentidos opostos: “conceito” como o núcleo, a essência da coisa, e “conceito” como “mera noção” em contraste com a “coisa em si”. E deveríamos ter em mente que o mesmo vale para o uso que ele faz do termo “sujeito”: o sujeito acima do objetivo, como princípio da vida e mediação dos objetos, e o sujeito como designação de algo “meramente subjetivo”, uma impressão subjetivamente distorcida em contraste com o modo como as coisas realmente são. É extremamente simples tratar esses dois aspectos no que se refere ao “inferior” – pertencendo à abordagem abstrata do Entendimento (a redução do sujeito ao “meramente subjetivo”) – e ao “superior” – envolvendo a noção verdadeiramente especulativa do sujeito como princípio mediador da Vida ou da realidade. A questão é que o aspecto “inferior”, ao contrário, é o principal constituinte do “superior”: superamos o “meramente subjetivo” exatamente por aprová-lo por completo. Lembremo-nos mais uma vez a passagem do prefácio da Fenomenologia que celebra o poder disjuntivo do Entendimento “abstrato”: Hegel não supera o caráter abstrato do Entendimento mudando-o substancialmente (substituindo a abstração pela síntese etc.), mas percebendo, de uma nova perspectiva, essa mesma força da abstração: o que primeiro aparece como o ponto fraco do Entendimento (sua incapacidade de apreender a realidade em toda a sua complexidade, sua dissociação da tessitura viva da realidade) é, na verdade, seu grande ponto forte.
Embora Kant deixe claro que as antinomias resultam da má aplicação das categorias, e que elas desaparecem no momento em que esclarecemos essa confusão e respeitamos a lacuna que separa os númenos dos fenômenos, ele tem de afirmar que essa má aplicação não é um erro contingente, mas um tipo de ilusão necessária inscrita no próprio funcionamento da nossa Razão. Desse modo, precisamos ser muito precisos ao descrever os verdadeiros contornos da passagem de Kant para Hegel: com sua revolução filosófica, Kant provocou uma ruptura por meio da radicalidade da qual ele nem sequer tinha ciência; assim, em um segundo passo, ele recua dessa radicalidade e tenta desesperadamente navegar nas águas seguras de uma ontologia mais tradicional. Consequentemente, para passarmos “de Kant para Hegel”, temos de dar um passo não “adiante”, mas para trás: de volta ao invólucro enganador para identificar a verdadeira radicalidade da ruptura de Kant – nesse sentido, Hegel era literalmente “mais kantiano que o próprio Kant”. Um dos pontos em que vemos isso com nitidez é a distinção entre fenômenos e númenos: a justificação explícita de Kant do motivo pelo qual precisamos introduzir os númenos permanece nos confins da ontologia tradicional, com sua distinção entre aparência e realidade verdadeira – as aparências não se sustentam sozinhas, deve haver algo por trás delas:
No que respeita à razão pela qual, não sendo ainda satisfatório o substrato da sensibilidade, se atribuem aos fenômenos ainda númenos, que só o entendimento puro pode conceber, repousa ela, simplesmente, no seguinte: a sensibilidade e o seu campo, a saber, o campo dos fenômenos, estão limitados pelo entendimento, de tal modo que não se estendem às coisas em si mesmas, mas apenas à maneira como nos aparecem as coisas, graças à nossa constituição subjetiva. Tal foi o resultado de toda a estética transcendental e também decorre naturalmente do conceito de um fenômeno em geral, que lhe deva corresponder algo, que em si não seja fenômeno, pois este não pode ser nada por si mesmo e independentemente do nosso modo de representação; portanto, se não deve produzir-se um círculo perpétuo, a palavra fenômeno indica uma referência a algo, cuja representação imediata é, sem dúvida, sensível, mas que, em si próprio, mesmo sem essa constituição da nossa sensibilidade (sobre a qual se funda a forma da nossa intuição), deve ser qualquer coisa, isto é, um objeto independente da nossa sensibilidade.25
No entanto, há uma contradição implícita entre essa explicação, em que fenômenos e númenos são diferenciados como duas espécies (esferas) de objetos (que existem positivamente) e a tese fundamental de Kant de que, como os númenos são radicalmente transcendentes, jamais dados como objetos de nossa experiência, o conceito de númeno é “um conceito-limite para cercear a pretensão da sensibilidade e, portanto, para uso simplesmente negativo”26:
A divisão dos objetos em fenômenos e númenos, e do mundo em mundo dos sentidos e mundo do entendimento, não pode, pois, ser aceite em sentido positivo, embora os conceitos admitam, sem dúvida, a divisão em conceitos sensíveis e conceitos intelectuais, porque não é possível determinar um objeto para os últimos, nem portanto considerá-los objetivamente válidos. [...] O nosso entendimento recebe, deste modo, uma ampliação negativa, porquanto não é limitado pela sensibilidade, antes limita a sensibilidade, em virtude de denominar númenos as coisas em si (não consideradas como fenômenos). Mas logo, simultaneamente, impõe a si próprio os limites, pelos quais não conhece as coisas em si mediante quaisquer categorias, só as pensando, portanto, com o nome de algo desconhecido.27
Sim, podemos ler essas linhas como uma mera reafirmação da divisão-padrão de todos os objetos em fenômenos e númenos: o “uso negativo” do “númeno” simplesmente reafirma a transcendência radical do Em-si, sua inacessibilidade a nossa experiência: há um campo infinito de coisas positivas lá fora que jamais se tornam objetos de nossa experiência, por isso só podemos nos referir a elas de maneira negativa, cientes de que são “em si mesmas” plenamente positivas, causa e fundamento próprios dos fenômenos. Mas não há outra noção muito mais radical por trás do conceito de númeno – aquela da pura negatividade, isto é, a da autolimitação dos fenômenos enquanto tais, em oposição a sua limitação por outro domínio positivo transcendente? Nesse caso, a negatividade não é semelhante a um efeito refletor da positividade transcendente (de modo que só podemos apreender o Em-si transcendental de maneira negativa); ao contrário, cada figura positiva do Em-si é uma “positivação” da negatividade, uma formação fantasmática que construímos para preencher a lacuna da negatividade. Como disse Hegel com uma clareza insuperável na Fenomenologia: por trás da cortina dos fenômenos, só existe o que colocamos lá. A negatividade, portanto, precede a positividade transcendental, a autolimitação dos fenômenos precede o que está além do limite – esse é o sentido especulativo profundo da tese de Kant de que “a divisão dos objetos em fenômenos e númenos, e do mundo em mundo dos sentidos e mundo do entendimento, não pode, pois, ser aceite em sentido positivo”: o limite entre fenômenos e númenos não é o limite entre as duas esferas positivas dos objetos, posto que só existem os fenômenos e sua (auto)limitação, sua negatividade. No momento em que entendemos isso, no momento em que tomamos a tese de Kant sobre o uso negativo de “númenos” de maneira mais literal que ele próprio, é que passamos de Kant para Hegel, para a negatividade hegeliana.
É dessa maneira que devemos ler a afirmação fundamental de que o entendimento “limita a sensibilidade, em virtude de denominar númenos as coisas em si (não consideradas como fenômenos). Mas logo, simultaneamente, impõe a si próprio os limites, pelos quais não conhece as coisas em si mediante quaisquer categorias”. Nosso entendimento primeiro postula os númenos como o limite externo da “sensibilidade” (ou seja, do mundo fenomenal, dos objetos da experiência possível): ele postula outro domínio de objetos, inacessível a nós. Mas ao fazê-lo, ele “se limita”: admite que, como os númenos são transcendentes e nunca serão objeto da experiência possível, não é possível tratá-los legitimamente como objetos positivos. Ou seja, para distinguir númenos e fenômenos como dois domínios positivos, nosso entendimento teria de adotar a posição de uma metalinguagem, livre da limitação dos fenômenos, residindo em algum lugar acima da divisão. No entanto, se o sujeito reside dentro dos fenômenos, como pode perceber a limitação deles? (Como também observou Wittgenstein, não podemos ver os limites de nosso mundo estando dentro dele.) A única solução é que a limitação dos fenômenos não é externa, mas interna; em outras palavras, o campo em si dos fenômenos nunca é “total”, completo, um Todo consistente; essa autolimitação dos fenômenos assume em Kant a forma das antinomias da razão pura. Não há necessidade de um domínio transcendente positivo dos entes numenais que limite os fenômenos a partir de fora – os fenômenos com suas inconsistências, suas autolimitações, são “tudo o que existe”. A principal conclusão que devemos tirar dessa autolimitação dos fenômenos é o fato de ela ser estritamente correlata à subjetividade: só há um sujeito (transcendental) como correlato da inconsistência, da autolimitação ou, mais radicalmente, da “incompletude ontológica” da realidade fenomenal. No momento em que concebemos a inconsistência e a autolimitação da realidade fenomenal como secundárias, como efeito da incapacidade do sujeito de experimentar o Em-si transcendental da maneira como ele “realmente é”, o sujeito (enquanto autônomo-espontâneo) torna-se mero epifenômeno, sua liberdade torna-se uma “mera aparência” condicionada pelo fato de os númenos lhe serem inacessíveis (de maneira um tanto simplificada, posso dizer que experimento a mim mesmo como livre, na medida em que a causalidade que efetivamente me determina me é inacessível). Em outras palavras, a liberdade do sujeito só pode ser ontologicamente fundamentada na incompletude ontológica da realidade em si.
Para evitar a crítica óbvia, esse uso puramente negativo dos fenômenos de modo algum implica um “idealismo subjetivo” ingênuo, um universo em que não existe nada além dos fenômenos subjetivos (auto)limitados: é claro que existem coisas (processos) lá fora que ainda não foram descobertas por nós, existe o que o realismo ingênuo designa como “realidade objetiva”, mas é errado designá-la como numenal – tal designação é demasiado “subjetiva”. Númenos designam o Em-si como ele nos aparece, encarnado na realidade fenomenal; se designamos nossos desconhecidos como “númenos”, abrimos com isso uma lacuna que não é garantida por sua incognoscibilidade: não existe uma lacuna misteriosa que nos separa do desconhecido, e o desconhecido é simplesmente desconhecido, indiferente ao ser-conhecido. Em outras palavras, não deveríamos nunca nos esquecer de que o que conhecemos (como fenômenos) não é separado das coisas-em-si por uma linha divisória, mas é constitutivo delas: os fenômenos não formam um domínio ontológico especial, simplesmente fazem parte da realidade.
Isso nos leva à crítica básica que Hegel faz de Kant a respeito de sua insistência na limitação que nossa infinitude impõe em nosso conhecimento. Ou seja, por trás da modéstia de Kant, há uma arrogância oculta: quando Kant afirma que nós, seres humanos, limitados por nosso Entendimento finito, nem sequer podemos conhecer a totalidade do universo, ele continua apresentando essa tarefa infinita como uma tarefa que outro Entendimento, infinito, conseguiria realizar, como se o problema se resumisse a ampliar ou extrapolar nossa capacidade ao infinito, em vez de mudá-la qualitativamente. O modelo para esse falso raciocínio é a famosa ideia naturalista-determinista de que, se existisse uma mente infinita capaz de conhecer extensivamente todos os átomos do universo, sua posição, sua força e seu movimento, ela seria capaz de prever seu comportamento futuro com a máxima precisão – como se a própria noção de mente finita ampliada ao infinito não fosse em si um disparate. Quando representamos para nós mesmos uma mente capaz de apreender a infinitude, a imagem a que nos referimos é a de uma mente de alguma maneira capaz de contar um número infinito de elementos, do mesmo modo que somos capazes de contar um número finito deles. Em uma imagem maravilhosamente maldosa, Hegel compara a ideia kantiana de uma mente infinita ao modo como um pobre organista de igreja tenta explicar a grandeza de Deus a um simples camponês: “Da mesma maneira que tu conheces cada indivíduo de nossa aldeia pelo nome, Deus conhece intimamente cada uma das moscas na infinidade de moscas que voam pelo mundo...”28.
Isso nos leva à lacuna entre o que é explicável-em-princípio e o que é realmente explicado-de-fato – essa lacuna está em plena ação nas ciências cognitivas: o pensamento é um produto do cérebro e pode em princípio ser explicado em termos de processos neuronais; acontece que nós simplesmente ainda não o explicamos. De acordo com essa visão, essa lacuna é puramente cognitiva: não é nada mais que a lacuna entre a limitação empírica de nosso conhecimento da realidade e a realidade em si. Para Hegel, ao contrário, essa lacuna é conceitual, categórica:
A proposição segundo a qual nosso conhecimento efetivo, real – o modo como ele existe neste momento, articulado nas explicações causais – é finito e não conhecimento no sentido absoluto da palavra, mas sim mera certeza, em última análise não é realmente uma proposição sobre os limites de nosso conhecimento, mas uma proposição sobre a forma de nosso conhecimento. É uma proposição conceitual, tautológica.29
O erro está no fato de o limite pertencente à forma em si (às categorias usadas) ser visto de maneira equivocada como uma limitação empírica contingente. No caso do cognitivismo: não se trata de já termos o aparato categorial necessário para explicar a consciência (processos neuronais etc.) e nosso fracasso em explicá-la pertencer apenas à limitação empírica do nosso conhecimento dos fatos relevantes sobre o cérebro; a verdadeira limitação está na própria forma de nosso conhecimento, no próprio aparato categorial que usamos. Em outras palavras, a lacuna entre a forma do conhecimento e sua limitação empírica está inscrita nessa forma em si. Kant é inconsistente em sua maneira de lidar com as antinomias da pura razão exatamente porque situa a limitação na finitude de nossa experiência empírico-temporal.
Aqui, portanto, a possibilidade é restringida: o que aparece como possível-em-princípio, tornado impossível somente por causa de nossas limitações empíricas, é revelado como impossível também em princípio, em suas próprias determinações conceituais-formais. Contudo, o anverso desse estreitamento do campo do possível é sua extensão: a totalidade hegeliana não é apenas a totalidade do conteúdo efetivo; ela inclui as possibilidades imanentes da constelação existente. Para “apreender a totalidade”, devemos incluir suas possibilidades; para apreender a verdade do que existe, devemos incluir sua falha, o que poderia ter acontecido, mas se perdeu. Mas por que deveria ser esse o caso? Porque a totalidade hegeliana é uma totalidade “engajada”, uma totalidade exposta a uma visão partidária parcial, não a uma visão geral “neutra” que transcende as posições engajadas – como reconheceu György Lukács, essa totalidade só é acessível de um ponto de vista prático que considere a possibilidade de modificá-la. Hegel, portanto, tem muito a nos ensinar sobre a questão da possibilidade versus efetividade. O que está envolvido na análise dialética, digamos, de um evento passado, como uma ruptura revolucionária? Ela resulta de fato na identificação de uma necessidade subjacente que governa o curso dos eventos em sua aparente confusão? E se o oposto for verdadeiro e a análise dialética reinserir a possibilidade na necessidade do passado? Há algo de um surgimento imprevisível miraculoso em cada passagem da “negação” para a “negação da negação”, em cada advento de uma nova Ordem a partir do caos da desintegração – e, por isso, para Hegel, a análise dialética é sempre a análise de eventos passados30. Nenhuma dedução nos levará do caos à ordem, e situar esse momento da virada mágica, essa imprevisível reversão do caos em Ordem, é a verdadeiro objetivo dessa análise dialética. Por exemplo, o objetivo da análise da Revolução Francesa não é revelar a “necessidade histórica” da passagem de 1789 para o Terror jacobino e depois para o Termidor e o Império, mas sim reconstruir essa sucessão em termos de uma série de decisões existenciais (para usarmos esse termo anacrônico) tomadas por agentes que, presos em um redemoinho de ação, têm de inventar uma saída para o impasse (da mesma maneira que Lacan reconceitua a sucessão das fases oral, anal e fálica como uma série de reversões dialéticas).
Como regra, a famosa sugestão de Hegel de que deveríamos conceber o Absoluto não só como substância, mas também como sujeito, evoca a desacreditada noção de algum tipo de “sujeito absoluto”, um Megassujeito que cria o universo e continua vigiando nosso destino. Para Hegel, no entanto, o sujeito, em seu âmago, também representa a finitude, o corte, a lacuna da negatividade, por isso Deus só se torna sujeito por meio da Encarnação: antes da Encarnação, ele ainda não é, em si mesmo, um Megassujeito que governa o universo. Kant e Hegel costumam ser contrapostos no sentido do finito versus infinito: o sujeito hegeliano como Um totalizador e infinito que medeia toda multiplicidade; o sujeito kantiano marcado pela finitude e pela lacuna que o separa para sempre da Coisa. Mas, em um nível mais fundamental, não acontece exatamente o oposto? A função básica do sujeito transcendental kantiano é representar continuamente a síntese transcendental da apercepção, transformar em Um a multitude de impressões sensíveis; já o sujeito hegeliano é, em sua dimensão mais elementar, o agente da cisão, da divisão, da negatividade, da duplicação, da “queda” da Substância na finitude.
Consequentemente, é crucial não confundir o “espírito subjetivo” de Hegel com a ideia diltheyana de uma forma de vida, um mundo histórico concreto, enquanto “espírito objetificado”, produto de um povo, seu gênio coletivo: no momento em que fazemos isso, perdemos de vista o “espírito objetivo”, que é precisamente o fato de ser espírito em sua forma objetiva, vivenciado pelos indivíduos como imposição externa, e até como restrição – não há um Supersujeito coletivo ou espiritual que seja o autor do “espírito objetivo”, cuja “objetificação” seja esse espírito. Em suma, para Hegel, não existe um Sujeito coletivo, não existe um Espírito-Sujeito além e acima de todos os indivíduos. Nisto reside o paradoxo do “espírito objetivo”: ele é independente dos indivíduos, é encontrado por eles como dado, preexistente, como o pressuposto de sua atividade; contudo, ele é espírito, ou seja, algo que existe somente na medida em que os indivíduos relacionam sua própria atividade com ele, somente como seus (pres)supostos.31
Tal leitura só pode parecer um descordo com a leitura usual de Hegel como um “idealista absoluto”. Há uma prática interessante no gênero dos ataques a Žižek que ilustra à perfeição essa lacuna que me separa da noção de Hegel baseada no senso comum. O autor toma como ponto de partida uma passagem de meu prefácio à nova edição de Eles não sabem o que fazemd que supostamente demonstraria “como Žižek maltrata Hegel”. Originalmente, escrevi:
Hegel não tem nada a ver com uma visão pseudo-hegeliana (adotada por alguns hegelianos conservadores como Bradley e McTaggart) da sociedade como um Todo orgânico harmonioso, dentro do qual cada membro afirma sua “igualdade” para com os outros realizando seu dever particular, ocupando seu lugar particular e, assim, contribuindo para a harmonia do Todo. Para Hegel, ao contrário, o “mundo transcendente da informidade” (em suma, o Absoluto) está em guerra consigo mesmo; isso significa que a informidade (auto)destrutiva (negatividade autorrelativa, absoluta) tem de aparecer como tal no campo da realidade finita. O propósito da noção hegeliana do Terror revolucionário [na Fenomenologia] é precisamente o fato de ele ser um momento necessário no desenvolvimento da liberdade.32
Disso, minha crítica gerou o seguinte comentário mordaz:
Corrigimos: Bradley (e os idealistas britânicos em geral) não foram maus leitores de Hegel no que se refere à filosofia política. [...] Hegel estava muito preocupado, desde que era estudante até a época de seu Sistema maduro, com a possibilidade da vida em uma sociedade como uma existência harmoniosa, de ser reconciliada com o mundo e com a vida do sujeito nele. Desde cedo, isso assume a forma de uma idolatria romântica da vida grega como uma espécie de naturliche Harmonie; na época de seus escritos em Jena, Hegel já havia se tornado crítico dessa tendência no pensamento de seus contemporâneos.
Se o homem moderno tivesse de ser reconciliado com seu mundo, só poderia ser por meio de uma moralische Harmonie, uma harmonia que não era simplesmente dada, mas compreendida no pensamento; um homem não tinha de ser apenas uma parte harmoniosa da sociedade, mas reconhecer essa harmonia, compreender sua própria existência (inclusive o que lhe fosse mais “íntimo” e privado, como sensações e sentimentos religiosos) como integrada ao todo da vida. A maioria das críticas de Hegel à sociedade de sua época é uma queixa de que ela não possui as condições suficientes para que a reconciliação se torne possível; a vida pessoal dos indivíduos é abstrata demais para os negócios do Estado (ou da Igreja, ou de várias outras organizações sociais), ou então o Estado (ou a Igreja, ou várias outras organizações sociais) não possibilita a livre autodeterminação dos agentes individuais para que façam o que julgarem melhor. Hegel não acredita que a moralische Harmonie seja impossível; ao contrário, a possibilidade dessa harmonia é a mais elevada realização da civilização moderna (e seu subordinado filosófico, o Sistema de Hegel, tem como finalidade ajudar essa Harmonie a acontecer de maneira mais plena). Este é o “fim da História”: com a modernidade, o Espírito conhece seu mundo como seu próprio produto, compreende o que é dado a ele como sempre-já implicitamente Espírito, como capaz de ser racionalmente compreendido, e o mundo social do “Espírito Objetivo” é um lugar onde o Espírito pode se sentir “junto de si mesmo nesse outro”, onde as peculiaridades individuais de um sujeito particular são reconhecidas como determinações do “universal” da sociedade, e não como algo contra ela.
Žižek interpretou exatamente o oposto sobre “o Absoluto” de Hegel: não se trata de um nihil, um “mundo transcendente da informidade”, ou uma transcendência do tipo ding-an-sich. O Absoluto de Hegel não é a “noite em que todas as vacas são negras”; o absoluto é o que mais tem conteúdo aqui. O Absoluto é um universal concreto; tem seu ser, sua verdade, somente nas determinações particulares (“momentos”) que compõem o sistema de Hegel – as que compõem a tríade de Lógica, Natureza e Espírito. O Absoluto não está “em guerra consigo mesmo”; o Absoluto particulariza a si mesmo no “fora-um-do-outro” da natureza e retorna à unidade consigo mesmo na reconciliação do “fora-um-do-outro” com a unidade. Em termos religiosos, o Pai gera o Filho, e os dois são unidos no Espírito da caridade que procede dos dois; Deus cria um mundo “caído” da desordem, entra dentro dele em Seu único Filho e o mundo é reconciliado com Deus por meio da vida do Espírito; o indivíduo pecador, separado de Deus, torna-se um filho adotado de Deus na comunidade do Espírito. O Absoluto não promove a guerra na comédia divina.
A “negatividade autonegadora, absoluta” [sic] do Terror é um momento da história, assim como a Queda de Adão é um momento na narrativa cristã da história da salvação. Para Hegel, o Terror é um exemplar do “universal abstrato”: na “liberdade absoluta”, nós nos recusamos a reconhecer qualquer conteúdo “dado” como adequado ao universal, à Razão – portanto o “Ser Supremo” puramente formal da Revolução Francesa, e seu brado de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, ao passo que o Estado real era uma tirania da pior espécie. A “questão” da referência de Hegel ao Terror não é “que ele é um momento necessário no desenvolvimento da liberdade” (pois isso se aplicaria a tudo que Hegel inclui em seu Sistema), mas que o Terror mostra o que acontece quando a pulsão para o Universal na vida humana assume uma forma utópica, tentando construir tudo de novo a partir do puro pensamento, em vez de reconhecer e cultivar o que já é racional na vida humana.33
Temos aqui o diferendo em sua forma mais pura, e na medida em que permanecemos nos confins da interpretação dada nos manuais, a noção de Hegel subjacente a essa crítica vai parecer não só convincente, como também óbvia – como se o que eu oferecesse fosse uma leitura excêntrica, contra a qual basta opor os fatos básicos conhecidos de qualquer estudante de Hegel. Para mim, responder a essa crítica é quase constrangedor: conheço muito bem tudo o que ela afirma sobre Hegel, é claro, pois ela consiste exatamente na imagem predominante de Hegel que me esforço para destruir – então ninguém pode simplesmente evocá-la contra mim... No entanto, a questão permanece: o que justifica que eu rejeite essa imagem? Comecemos com a última frase da passagem citada: depois de admitir que o Terror revolucionário foi necessário (em sentido puramente formal, como um momento subordinado no desenvolvimento), minha crítica o reduz ao resultado de uma escolha errada: o Terror “mostra o que acontece quando a pulsão para o Universal na vida humana assume uma forma utópica, tentando construir tudo de novo a partir do puro pensamento” – há uma refutação quando, em vez de “reconhecer e cultivar o que já é racional na vida humana”, ou seja, em vez de buscar e defender a racionalidade subjacente da ordem existente e impor mudanças na continuidade com essa tradição, as pessoas querem decretar uma ruptura violenta com o passado, virar o mundo de ponta-cabeça e começar de novo a partir do ano zero. O problema é que é exatamente essa condição da Revolução Francesa que Hegel celebra inequivocamente até o fim de sua vida. Eis suas sublimes palavras em Lectures on the Philosophy of World History [Lições sobre filosofia da história universal]:
Já foi dito que a Revolução Francesa resultou da filosofia, e não é sem razão que a filosofia tem sido chamada de Weltweisheit [sabedoria do mundo]; pois não só é verdade em si e para si como a pura essência das coisas, mas também verdade em sua forma viva conforme mostrada nas coisas do mundo. Não deveríamos, portanto, contradizer afirmação de que a revolução teve seu primeiro impulso da filosofia. [...] Desde que o Sol surgiu no firmamento e os planetas revolvem ao redor dele, nunca se percebeu que a existência do homem centra-se na cabeça, isto é, no pensamento, e inspirado nele o homem constrói o mundo da realidade [...] só agora o homem avançou a ponto de reconhecer o princípio de que o pensamento deve governar a realidade espiritual. Por conseguinte, essa foi uma gloriosa alvorada mental. Todo pensamento sendo compartilhado no júbilo dessa época. As emoções de um caráter elevado estremeceram a mente dos homens naquela época; um entusiasmo espiritual espalhou-se pelo mundo, como se a reconciliação entre o divino e o secular fosse agora realizada.34
Isso, é claro, não impediu que Hegel analisasse friamente a necessidade interna dessa explosão da liberdade abstrata, transformando-se em seu oposto, o Terror revolucionário autodestrutivo. No entanto, não deveríamos nos esquecer jamais de que a crítica de Hegel é imanente, aceita o princípio básico da Revolução Francesa (e seu principal suplemento, a Revolução Haitiana). Que fique bem claro: Hegel não aprova em absoluto a crítica liberal da Revolução Francesa que situa a virada errada em 1792-1793, ainda que o ideal seja 1789 sem 1793, a fase liberal sem a radicalização jacobina – para ele, 1793-1794 é uma consequência necessária imanente de 1789; em 1792, não havia possibilidade de seguir uma via mais “moderada” sem desfazer a própria Revolução. Somente o Terror “abstrato” da Revolução Francesa cria as condições para a “liberdade concreta” pós-revolucionária.
Se quisermos colocar isso em termos de escolha, então Hegel segue aqui um axioma paradoxal que concerne à temporalidade lógica: a primeira escolha tem de ser a escolha errada. Somente a escolha errada cria as condições para a escolha certa. Nisso reside a temporalidade de um processo dialético: há uma escolha, mas em dois estágios. A primeira escolha é entre a “boa e velha” ordem orgânica e a ruptura violenta com essa ordem – e aqui devemos correr o risco de optar pelo “pior”. Essa primeira escolha limpa o terreno para um novo começo e cria a condição para sua própria superação, pois somente depois que a negatividade radical, o “terror”, da universalidade abstrata tiver feito seu trabalho é que se pode escolher entre essa universalidade abstrata e a universalidade concreta. Não há como obliterar a lacuna temporal e apresentar a escolha como tripla, como escolha entre a ordem substancial orgânica, sua negação abstrata e uma nova universalidade concreta.
É essa prioridade paradoxal da escolha errada que fornece a chave para a “reconciliação” hegeliana: não se trata da harmonia organicista de um Todo dentro do qual cada momento fica preso em seu lugar específico, em oposição a um campo dissociado, em que cada momento luta para afirmar sua autonomia unilateral. Cada momento particular afirma-se plenamente em sua autonomia unilateral, mas essa afirmação leva a sua ruína, a sua autodestruição, e essa é a “reconciliação” hegeliana – não uma reconciliação direta em reconhecimento mútuo, mas uma reconciliação dentro da luta e pela luta em si. A “harmonia” que Hegel retrata é a estranha harmonia dos próprios “extremos”, a dança louca e violenta de cada extremo transformando-se em seu oposto. Nessa dança louca, o Absoluto não é o receptáculo que a tudo contém, o espaço ou o campo dentro do qual os momentos particulares estão em guerra uns com os outros – ele próprio está preso na luta. Aqui, mais uma vez, meu crítico interpreta erroneamente a afirmação que fiz de que “o ‘mundo transcendente da informidade’ (em suma, o Absoluto) está em guerra consigo mesmo; isso significa que a informidade (auto)destrutiva (negatividade autorrelativa, absoluta) tem de aparecer como tal no campo da realidade finita”. Ele interpreta essa passagem como se eu afirmasse que o Absoluto hegeliano é a negatividade abstrata de um Universal que suspende todo o seu conteúdo particular, a noite proverbial em que todas as vacas são negras, e depois triunfantemente defende o argumento elementar de que, ao contrário, o Absoluto hegeliano é um universal concreto. Mas a escolha proposta aqui pelo crítico – a escolha entre a universalidade abstrata e o sistema orgânico concreto em que o universal engendra e contém a riqueza de suas determinações particulares – é falsa: falta aqui a terceira escolha, propriamente hegeliana, a escolha que evoquei na passagem anterior, ou seja, a escolha da universalidade abstrata como tal, em oposição a seu conteúdo particular, aparecendo dentro de seu conteúdo particular (como uma de suas próprias espécies), encontrando entre suas espécies sua própria “determinação oposicional”; É nesse sentido que “o ‘mundo transcendente da informidade’ (em suma, o Absoluto) está em guerra consigo mesmo” e a “informidade (auto)destrutiva (negatividade autorrelativa, absoluta) tem de aparecer como tal no campo da realidade finita”: essa universalidade abstrata torna-se “concreta” não só por se desdobrar em uma série de suas determinações particulares, mas por incluir-se nessa série. É por causa dessa autoinclusão (autorreferencialidade) que o Absoluto está “em guerra consigo mesmo”, como no caso do Terror revolucionário, em que a negatividade abstrata não é mais um Em-si transcendente, mas aparece “em sua determinação oposicional”, como uma força particular em oposição a e destruindo todo (outro) conteúdo particular. Em termos hegelianos mais tradicionais, é isso que significa dizer que, em um processo dialético, cada oposição externa, cada luta entre o sujeito e seu oposto exterior, dá lugar a uma “contradição interna”, a uma luta do sujeito consigo mesmo: em sua luta contra a Fé, o Iluminismo está em guerra consigo mesmo, ele se opõe a sua própria substância. Negar que o Absoluto esteja “em guerra consigo mesmo” significa negar o próprio núcleo do processo dialético hegeliano, reduzindo-o a uma espécie de Absoluto oriental, um meio neutro ou impassível em que o particular luta contra cada outro.
Também é por isso que meu crítico está errado quando afirma:
O Absoluto não está “em guerra consigo mesmo”; o Absoluto particulariza a si mesmo no “fora-um-do-outro” da natureza e retorna à unidade consigo mesmo na reconciliação do “fora-um-do-outro” com a unidade. Em termos religiosos, o Pai gera o Filho, e os dois são unidos no Espírito da caridade que procede dos dois; Deus cria um mundo “caído” da desordem, entra dentro dele em Seu único Filho e o mundo é reconciliado a Deus por meio da vida do Espírito; o indivíduo pecador, separado de Deus, torna-se um filho adotado de Deus na comunidade do Espírito.35
Embora pareça talvez um resumo fiel do desenvolvimento de Hegel do Absoluto, não vemos nessa crítica um dado fundamental – o fato de que, como Hegel repete inúmeras vezes, o Absoluto é o “resultado de si mesmo”, o resultado de sua própria atividade. Isso significa que, no sentido estrito do termo, não existe um Absoluto que se exterioriza ou se particulariza e depois se una a sua Alteridade alienada: o Absoluto surge desse processo de alienação; ou seja, como resultado da sua própria atividade, o Absoluto não “é” nada mais que seu “retorno-a-si-mesmo”. A ideia de um Absoluto que se exterioriza e depois se reconcilia com sua Alteridade pressupõe o Absoluto como dado previamente, anterior ao processo de seu devir; ele põe como ponto de partida do processo o que efetivamente é seu resultado. A insuficiência dessa ideia-padrão acerca do processo hegeliano torna-se palpável quando meu crítico a coloca em termos religiosos. Em uma leitura mais atenta, não há como não ver que ele evoca duas “tríades” diferentes: primeiro, a tríade do Pai que gera o Filho e então se une a ele no Espírito, e depois a tríade de Deus que cria um mundo caído e, então, com ele se reconcilia, penetrando nele com a aparência de Cristo, seu filho. É verdade que, dessa forma, “o indivíduo pecador, separado de Deus, torna-se um filho adotado de Deus na comunidade do Espírito”. Contudo, o preço pago por isso é que o próprio Deus tem de ser separado de si, tem de morrer na aparência da crucificação do Filho. Não seria a morte de Cristo a última prova de que, na tensão entre Deus e o mundo caído, Deus está em guerra consigo mesmo, por isso tem de “entrar” no mundo caído com a aparência de sua determinação oposicional, como um indivíduo miserável chamado Jesus?
Mas a afirmação de que o absoluto é o “resultado de si mesmo”, o resultado de sua própria atividade, não é mais um sofisma que lembra o barão de Münchhausen? Dieter Henrich defendeu essa ideia em termos filosóficos quando explicou que Hegel nunca conseguiu apresentar claramente a “matriz” básica de seu procedimento dialético, um “discurso de segunda ordem que poderia interpretar o que ele fazia. Acredito que sem a chave que lhes ofereço [a meus leitores], o sistema continua inacessível, em última análise”36. Como é sabido, Henrich tenta encontrar essa chave em seu ensaio clássico sobre a lógica da reflexão de Hegel: afirma que Hegel chega mais perto de articular a matriz básica de seu procedimento no início de sua lógica da Essência, quando fala brevemente dos diferentes modos de reflexão. A questão, como sempre, é se essa chave cumpre o que promete: ela realmente abre a porta para um segredo mais íntimo da dialética de Hegel? Vejamos como Henrich começa sua explicação:
Começar apenas pela negação significa não ter nada que não seja a negação. Ora, para não ter nada que não seja a negação, precisamos da negação mais de uma vez. Pois, na visão de Hegel, a negação é relacional, no sentido de que deve haver algo que ela negue. Mas visto que não há nada que a negação possivelmente pudesse negar – devido à suposição de que temos somente a negação –, a negação só pode negar a si mesma. Por conseguinte, a negação autônoma só pode ser uma negação da negação. Isso significa que a negação autônoma é originalmente autorreferencial: para termos somente a negação, temos de ter a negação duas vezes...
Nós não temos, primeiro, uma proposição particular, e subsequentemente a negação dela, e depois mais uma negação da negação que nos devolveria a proposição.37
Obviamente, para o raciocínio baseado no senso comum, tudo isso é um sofisma sem sentido: não se pode começar com a negação, a negação pressupõe um ente positivo que é negado. Por isso é crucial explicar o que se quer dizer com negação autorreferencial por meio de exemplos convincentes – e parece que, nesse caso, Henrich deixa muito a desejar: persiste uma lacuna entre a supracitada determinação abstrata da negação autorrelativa e o exemplo do procedimento de Hegel dado por Henrich algumas páginas antes:
[Hegel] segue a seguinte estratégia: evoca a ideia kantiana de autonomia (autodeterminação completa) como critério, depois afirma que há várias maneiras pelas quais o agente individual pode adquirir e observar esse princípio [...]. Agora a análise crítica do filósofo pode mostrar que permanece a discrepância entre as demandas de autonomia e o estado de consciência ou comportamento que o agente já atingiu. Ademais, a prova dessa discrepância é ao mesmo tempo a justificação da demanda por uma forma superior de vida moral. Essa forma superior elimina os defeitos das anteriores e assim as completa. [...] a nova forma requer que a anterior continue presente, antecipe a conclusão, ainda que não seja mais a forma derradeira.38
Para ilustrar esse mesmo procedimento (de uma maneira que, obviamente, vá de encontro à orientação política de Henrich), vejamos como a crítica marxista da liberdade e da igualdade “burguesas” fornece um exemplo perfeito desse pleroma (cumprimento da lei): se permanecermos no nível meramente legal da liberdade e da igualdade, isso tem consequências que levam à autonegação imanente da liberdade e da igualdade (a não liberdade e a desigualdade dos trabalhadores explorados, que vendem “livremente” sua força de trabalho no mercado); o princípio legal abstrato da liberdade e da igualdade, portanto, tem de ser suplementado por uma organização social de produção que não mais permitirá a autodeterioração do princípio em sua própria representação. O princípio da liberdade e da igualdade é, portanto, “suprassumido”: negado, mas de uma maneira que é mantido em um nível superior39. Esse exemplo nos permite esclarecer o paradoxal ponto de partida da “chave” de Henrich: Hegel, na verdade, não parte da negação, ele parte de uma aparente positividade que, sob uma análise mais detalhada, revela-se imediatamente como sua própria negação; desse modo, em nosso exemplo, a liberdade e a igualdade positivas “burguesas” revelam-se (em sua efetivação) como seus opostos, como sua própria negação. Não se trata ainda de uma negação propriamente dita, negação como movimento de mediação – o movimento propriamente dito começa quando a forma original (que “é” sua própria negação) é negada ou substituída por uma forma superior; e a “negação da negação” ocorre quando percebemos que essa forma superior que negou a primeira mantém de fato (e até mesmo afirma de maneira mais incisiva) o ponto de partida – em outras palavras, efetiva-o verdadeiramente, confere a ele um conteúdo positivo: a afirmação imediata da liberdade e da igualdade realmente é seu oposto, sua autodestruição; é somente quando negadas ou elevadas a um nível superior (na organização socialmente justa da sociedade etc.) que a liberdade e a igualdade se tornam efetivas. É por esse motivo que, no fim do Ciência da lógica, Hegel diz que, se quisermos contar os momentos de um processo dialético, podemos contá-los como três ou como quatro – o que é negado já é em si negado. Mas devemos acrescentar outro ponto aqui: não se trata apenas do fato de que, como em nosso exemplo, se nos ativermos à autonomia subjetiva abstrata sem seu cumprimento mais concreto, essa autonomia negará a si mesma. Muito mais importante é que esse “ater-se” é necessário, inevitável, não podemos simplesmente passar por ele e seguir diretamente para uma forma concreta superior: é somente atendo-se “excessivamente” à forma inferior que a autonegação acontece, o que cria, assim, a necessidade da (ou abre espaço para a) forma superior. (Recordemos aqui o exemplo da Revolução Francesa, citado por Hegel: a liberdade e a igualdade “abstratas” tiveram primeiro de negar a si mesmas no [ou revelar a si mesmas como] Terror absoluto; somente assim foi criado o espaço para um Estado pós-revolucionário “concreto”.)
Vemos claramente aqui o que há de errado com uma das críticas básicas a Hegel, inspirada no senso comum: “Hegel sempre pressupõe que o movimento continua – uma tese é oposta por sua antítese, a ‘contradição’ é agravada, passamos para uma nova posição etc. Mas e se um momento se recusa a ficar preso no movimento, e se ele simplesmente insiste em sua particularidade inerte (ou se resigna a ela): ‘Tudo bem, sou inconsistente comigo, mas e daí? Prefiro ficar onde estou...’”. O erro dessa crítica é passar ao largo do problema: longe de ser uma anormalidade ameaçadora, uma exceção ao movimento dialético “normal”, isso – um momento recusar-se a ficar preso em um movimento, atendo-se a sua identidade particular – é exatamente o que acontece, via de regra. Um momento transforma-se em seu oposto exatamente ao se ater ao que ele é, ao se recusar a reconhecer a própria verdade em seu oposto.
Mas não há um exemplo ainda mais radical (em termos teóricos e políticos) que se encaixe muito melhor na descrição abstrata de Henrich de partir da negação e chegar a uma nova positividade por meio da negação autorrelativa, o exemplo do crime? A figura central do thriller religioso O homem que foi quinta-feira, de G. K. Chesterton, é o chefe misterioso de um departamento ultrassecreto da Scotland Yard. Ele é convencido de “uma conspiração puramente intelectual que em breve ameaçará a própria existência da civilização”:
Está convicto de que os mundos artísticos e científicos se unem secretamente numa cruzada contra a Família e o Estado. Por esta razão, ele ideou uma especial corporação de detetives, detetives que são também filósofos. A função deles é investigar as origens dessa conspirata e combatê-la, não só no sentido meramente criminal, mas no terreno da controvérsia. [...] A missão do polícia-filósofo [...] é mais arriscada e mais sutil do que a do simples detetive. O detetive comum vai às cervejarias capturar ladrões; nós nos dirigimos aos serões artísticos para descobrir pessimistas. Através das páginas de um razão ou de um diário os detetives comuns descobrem que se cometeu um crime. Nós, através de um livro de sonetos, descobrimos que um crime está para ser cometido. Temos que seguir desde a origem a pista daqueles pensamentos terríveis que conduzem os homens ao fanatismo intelectual e, por fim, ao crime intelectual.40
Pensadores tão distintos quanto Popper, Adorno e Levinas também não adotaram uma versão ligeiramente modificada dessa ideia, em que o atual crime político é chamado de “totalitarismo” e o crime filosófico é resumido à noção de “totalidade”? Uma estrada curta leva da noção filosófica de totalidade ao totalitarismo político, e a tarefa do “polícia-filósofo” é descobrir a partir de um dos diálogos de Platão ou de um tratado de Rousseau que um crime político será cometido. O polícia-político comum vai a encontros secretos para prender revolucionários; o polícia-filósofo vai a simpósios filosóficos detectar proponentes da totalidade. O polícia antiterrorista tenta detectar os que preparam explosões de prédios e pontes; o polícia-filósofo tenta detectar os que estão prestes a desconstruir as fundações religiosas e morais das sociedades. Essa mesma ideia já havia sido formulada por Heinrich Heine em History of Religion and Philosophy in Germany [História da religião e da filosofia na Alemanha], de 1834, embora como um fato positivo e admirável: “Vejam bem, orgulhosos homens de ação, vocês não são nada além de escudeiros inconscientes dos intelectuais que, amiúde na mais pobre das reclusões, tomam nota de todos os seus feitos”41. Como diriam hoje os conservadores culturais, os filósofos desconstrucionistas são muito mais perigosos que os terroristas reais: enquanto estes querem destruir nosso sistema ético-político para impor seu próprio regime ético-religioso, os desconstrucionistas querem destruir a ordem como tal:
Afirmamos que o criminoso mais temível destes tempos é o filósofo moderno inteiramente bárbaro. Comparados com ele, arrombadores e bígamos são homens de moralidade perfeita; meu coração me leva para o lado deles. Aceitam o ideal essencial do homem; só que o procuram erroneamente. Os ladrões respeitam a propriedade; só que desejam que a propriedade se torne propriedade deles para que possam respeitá-la mais e melhor. Mas os filósofos condenam a propriedade enquanto propriedade, querem destruir a simples ideia da posse pessoal. Os bígamos respeitam o matrimônio, ou então não levariam a cabo a formalidade altamente cerimoniosa e ritualística da bigamia. Mas os filósofos desprezam o casamento como casamento. Os assassinos respeitam a vida humana; apenas desejam obter para si mesmos uma abundância maior de vida humana, com o sacrifício daqueles que lhes parecem vidas menores. Mas os filósofos odeiam a vida mesma, a deles e a dos outros. [...] O criminoso vulgar é um mau sujeito, mas é, em todo caso, condicionalmente bom. Desde que um determinado obstáculo – um tio rico, por exemplo – seja removido, está pronto para aceitar o universo e louvar a Deus. É reformador, não é anarquista. Pretende limpar o edifício e não destruí-lo. Mas o filósofo pernicioso não tenta alterar as coisas; quer aniquilá-las.42
Essa análise provocadora mostra tanto a limitação de Chesterton quanto a impropriedade de seu hegelianismo: ele não entende que o crime universal(izado) não é mais um crime – ele suprassume (nega/supera) a si mesmo como crime e passa de transgressão a uma nova ordem. Ele tem razão em alegar que, comparados ao filósofo “inteiramente bárbaro”, arrombadores, bígamos e até assassinos são essencialmente morais: um ladrão é “condicionalmente bom”, não nega a propriedade como tal, só quer ter mais dela para que possa respeitá-la. No entanto, a conclusão que tiramos disso é que o crime como tal é “essencialmente moral”, deseja simplesmente uma reordenação ilegal particular da ordem moral global, que em si deveria permanecer inalterada. E, em um espírito verdadeiramente hegeliano, deveríamos tomar essa proposição (da “moralidade essencial” do crime) no que se refere a sua reversão imanente: não só o crime é “essencialmente moral” (em hegelês, um momento inerente do desenvolvimento dos antagonismos internos e “contradições” da própria ideia ordem moral, não algo que perturba a ordem moral a partir de fora, como uma intrusão acidental), como também a moralidade em si é essencialmente criminal – mais uma vez, não só no sentido de que a ordem moral universal necessária “nega a si mesma” nos crimes particulares, porém, mais radicalmente, no sentido de que a forma como a moralidade (e, no caso do roubo, a propriedade) se afirma já é em si um crime – “propriedade é roubo”, como se costumava dizer no século XIX. Em outras palavras, devemos passar do roubo como violação criminal particular da forma universal da propriedade para sua forma em si como violação criminal: o que Chesterton não vê é que o “crime universalizado” que ele projeta na “filosofia moderna bárbara” e seu equivalente político, o movimento “anarquista” que quer destruir a totalidade da vida civilizada, já existe disfarçado como regra existente da lei, de modo que o antagonismo entre lei e crime revela-se inerente ao crime, assim como o antagonismo entre crime universal e particular43. Esse argumento foi defendido por ninguém menos que Richard Wagner, que nos rascunhos da peça Jesus de Nazaré, escrita entre o fim de 1848 e o início de 1849, atribui a Jesus uma série de complementos alternativos aos Mandamentos:
Disseste o mandamento: “Não cometeis adultério!”. Mas eu vos digo: “Não caseis sem amor”. Um casamento sem amor destrói-se assim que firmado, e quem tiver cortejado sem amor já terá destruído o casamento. Se seguirdes meu mandamento, como podereis desobedecê-lo, se proclama que façais o que desejam vosso corpo e alma? – Mas casai sem amor e estareis em discórdia com a lei de Deus, pecareis no casamento contra Deus; e o pecado vinga-se em vossa luta contra a lei dos homens, pois quebrais os votos.44
Essa mudança das palavras efetivas de Jesus é fundamental aqui: Jesus “interioriza” a proibição, tornando-a muito mais severa (a Lei diz para não cometer adultério, mas eu digo que, se você apenas cobiçar em pensamento a esposa de outro, é o mesmo que já ter cometido adultério etc.). Wagner também a interioriza, mas de maneira diferente – a dimensão interna não é a da intenção, mas a do amor, que deveria vir com a Lei (casamento). O verdadeiro adultério não é a cópula fora do casamento, mas a cópula no casamento sem amor: o mero adultério apenas viola a Lei a partir de fora, enquanto o casamento sem amor a destrói por dentro, virando a letra da lei contra seu espírito. Assim, parafraseando Brecht mais uma vez, podemos dizer: o que é o mero adultério, comparado ao adultério como casamento sem amor? Não é por acaso que a fórmula subjacente de Wagner, “casamento é adultério”, lembra a “propriedade é roubo”, de Proudhon – nos eventos tempestuosos de 1848, Wagner não era apenas um feuerbachiano celebrando o amor sexual, mas também um revolucionário proudhoniano exigindo a abolição da propriedade privada. Portanto, não é surpresa que, na mesma página, Wagner atribua a Jesus um complemento proudhoniano a “não roubais!”:
Também esta é uma boa lei: “Não roubais”, não cobiçais os bens de outrem. Aqueles que não obedecem pecam, mas eu vos livro desse pecado, pois vos ensino: “Amai o próximo como a ti mesmo” significa não armazenai riquezas para vós mesmos, pois assim roubais do próximo e o fazeis ter forme: pois quando tendes vossos bens salvaguardados pela lei dos homens, incitais o próximo a pecar contra a lei.45
É desse modo que o “suplemento” da Bíblia deveria ser concebido: como uma “negação da negação” propriamente hegeliana, que reside na mudança decisiva da distorção de um conceito para uma distorção constitutiva desse conceito, ou seja, a esse conceito como uma distorção-em-si. Recordemos de novo o lema dialético de Proudhon: “propriedade é roubo”. Aqui, a “negação da negação” é a mudança do roubo enquanto distorção (“negação”, violação) da propriedade para a dimensão do roubo inscrito na própria noção de propriedade (ninguém tem o direito de possuir plenamente os meios de produção, que são por natureza coletivos, portanto toda alegação de que “isso é meu” é ilegítima). Como vimos, o mesmo vale para o crime e a lei, para a passagem do crime enquanto distorção (“negação”) da lei para o crime enquanto algo que sustenta a própria lei, a ideia da lei em si enquanto crime universalizado. Devemos ressaltar que, nessa noção da “negação da negação”, a unidade global dos dois termos opostos é a “mais inferior”, “transgressora”: não é o crime que é um momento da automediação da lei (ou o roubo um momento da automediação da propriedade); a oposição de crime e lei é inerente ao crime, a lei é uma subespécie do crime, a negação autorrelativa do crime (no mesmo sentido que a propriedade é a negação autorrelativa do roubo). E, por fim, o mesmo não vale para a própria natureza? Aqui, a “negação da negação” é a mudança da ideia de que estamos violando uma ordem natural equilibrada para a ideia de que impor ao Real a noção de uma ordem equilibrada é em si a maior violação – por isso a premissa, o primeiro axioma de todo ambientalismo radical é “não há Natureza”. Chesterton escreveu: “Desconsideremos o sobrenatural e o que permanecerá será o artificial”e. Deveríamos admitir essa declaração, mas em um sentido oposto ao proposto por Chesterton: deveríamos aceitar que a natureza é “artificial”, um espetáculo de aberrações composto de distúrbios contingentes sem nenhuma razão ou rima interna. A mesma reversão dialética caracteriza a noção de violência: não é somente que uma explosão de violência seja muitas vezes um passage à l’acte como sinal de impotência; podemos dizer que essa reversão é inerente à noção de violência como tal, e não só uma característica ou sinal de uma violência deficiente. A violência como tal – a necessidade de atacar o oponente – é um sinal de impotência, da exclusão do agente daquilo que ataca. Só trato com violência o que escapa ao meu controle, o que não consigo regular ou dominar por dentro.
As linhas de Wagner citadas anteriormente lembram as famosas passagens de O manifesto comunista, que respondem à crítica burguesa de que o comunismo quer abolir a liberdade, a propriedade e a família: a liberdade capitalista é em si, enquanto liberdade para comprar e vender no mercado, a própria forma da não liberdade para aqueles que não têm nada além de sua força de trabalho para vender; a propriedade capitalista é em si “abolição” da propriedade para quem não possui os meios de produção; o casamento burguês é em si prostituição universalizada. Em todos esses casos, a oposição externa é interiorizada, de modo que um termo oposto se torna a forma da aparência do outro (a liberdade burguesa é a forma da aparência da não liberdade da maioria etc.). Para Marx, contudo, ou pelo menos no caso da liberdade, isso significa que o comunismo não abolirá a liberdade, mas, ao abolir a servidão capitalista, produzirá a efetiva liberdade, a liberdade que não mais será a forma da aparência de seu oposto. Portanto, a liberdade em si não é a forma da aparência de seu oposto, mas apenas uma falsa liberdade, uma liberdade distorcida pelas relações de dominação.
Por trás da dialética da “negação da negação”, portanto, uma abordagem habermasiana “normativa” impõe-se imediatamente: como podemos falar de crime sem uma noção prévia da ordem legal que é violada pela transgressão criminal? Em outras palavras, a noção de lei como crime universalizado ou autonegado não é autodestrutiva? É exatamente isso que uma abordagem propriamente dialética rejeita: o que precede a transgressão é apenas um estado neutro de coisas, nem bom nem mau (nem propriedade, nem roubo; nem lei, nem crime); o equilíbrio desse estado de coisas é então violado, e a norma positiva (lei, propriedade) surge como um movimento secundário, uma tentativa de contra-atacar e conter a transgressão. Com respeito à dialética da liberdade, isso significa que a própria liberdade “alienada, burguesa” cria as condições e abre espaço para a liberdade “efetiva”46.
A mudança da negação para a negação da negação é, portanto, uma mudança da dimensão objetiva para a subjetiva: na negação direta, o sujeito observa uma mudança no objeto (sua desintegração, sua passagem para seu oposto), ao passo que na negação da negação o sujeito se inclui no processo, levando em consideração como o processo que ele observa afeta sua própria posição. Vejamos o exemplo “mais elevado”, o da crucificação: o sujeito primeiro observa a mais radical das “negações” imagináveis, a morte de Deus; depois, torna-se ciente de como a morte de Deus abre espaço para sua própria liberdade (subjetiva).
Essa leitura da negação da negação vai de encontro à noção comumente defendida segundo a qual a primeira negação é a cisão ou a particularização da essência interna, sua exteriorização, e a segunda negação é a superação dessa cisão. Não admira que essa noção tenha levado muitos intérpretes de Hegel a zombar da negação da negação como um mecanismo mágico que garante que o resultado de um processo seja sempre feliz. Em 1953, o jovem Louis Althusser publicou um texto na Revue de l’Enseignement Philosophique em que parabeniza Stalin por rejeitar a “negação da negação” como lei universal da dialética47, rejeição compartilhada por Mao. É fácil entender essa rejeição como expressão do espírito da luta, do “um divide-se em dois”: não há reunificação, não há síntese final, a luta continua para sempre. No entanto, a “síntese” dialética hegeliana tem de ser claramente distinta do modelo “síntese dos opostos”, com o qual ela é identificada via de regra.
Na psicanálise, esse modelo tem duas versões. A primeira é subjetivista: o tratamento psicanalítico é concebido como a apropriação reflexiva da substância inconsciente alienada, e, em uma primeira abordagem, a famosa frase de Freud: “Wo es war soll ich werden” [Onde estava o id, ali estará o eu], talvez pareça se encaixar perfeitamente no processo da “substância inconsciente tornando-se sujeito”. A segunda versão é substancialista, e não deveria ser surpresa para os verdadeiros freudianos que a primeira pessoa a propô-la tenha sido Jung, o arquirrenegado, em sua “teoria da compensação” pseudo-hegeliana. (Na oposição entre Freud e Jung, Freud foi o hegeliano mais verdadeiro.) A ideia básica da “teoria da compensação” é a elevação do Inconsciente à Verdade substancial oculta do sujeito humano – com nosso subjetivismo racionalista unilateral, nós, ocidentais, perdemos de vista essa Verdade substancial nas profundezas de nosso ser:
Quando a vida, por algum motivo, toma uma direção unilateral, produz-se no inconsciente, por razões de autorregulação do organismo, um acúmulo de todos aqueles fatores que na vida consciente não puderam ter suficiente voz nem vez. Disto resulta a teoria da compensação do inconsciente que eu elaborei em oposição à teoria da repressão.48
É fácil entender como isso se relaciona aos sintomas neuróticos e à terapia: quando o eu torna-se demasiado estreito e rígido, e exclui as tendências (“irracionais”) que não se encaixam em sua (auto)imagem, essas tendências voltam disfarçadas de sintomas neuróticos. Por exemplo, quando um homem tolhe sua “sombra” feminina (anima), excluindo-a de sua identidade, ela volta para assombrá-lo na forma de figuras femininas obscenas e monstruosas, nas quais ele é incapaz de se reconhecer e que ele vivencia como intrusões alheias brutais. O objetivo da terapia, portanto, não é eliminar esses sintomas, mas integrá-los em um Si-mesmo mais amplo, que transcende os estreitos confins do eu. Os sintomas representam forças que não são más e destrutivas em si: o que as torna más e destrutivas é a falsa perspectiva do eu, ou, como diria Hegel, o mal reside no próprio olhar que vê o mal em toda parte. Desse modo, quando o eu é assombrado pelos sintomas neuróticos, a tarefa do terapeuta é fazer o paciente ver que seu eu faz parte do problema, e não que é sua solução: o paciente deve mudar sua perspectiva e reconhecer em seus sintomas a expressão violenta da parte renegada dele mesmo. A verdadeira doença é a do próprio eu, e os sintomas neuróticos são tentativas desesperadas de cura, de restabelecer o equilíbrio perturbado pela estrutura estreita do eu que excluiu partes cruciais do conteúdo do Si-mesmo:
Uma neurose estará realmente “liquidada” quando tiver liquidado a falsa atitude do eu. Não é ela que é curada, mas é ela que nos cura. A pessoa está doente e a doença é uma tentativa da natureza de curá-la. Por isso podemos aprender muita coisa da doença para a nossa saúde e que aquilo que parece ao neurótico absolutamente dispensável contém precisamente o verdadeiro outro que não encontramos em nenhuma outra parte.49
Não surpreende que alguns partidários de Jung vejam nessa “teoria compensatória” uma inspiração hegeliana:
Foi Hegel quem argumentou que a única maneira de cessar uma batalha entre tese e antítese era pela construção de uma síntese que incluiria elementos de ambos os lados e transcenderia a oposição. Embora Jung negasse que Hegel tenha influenciado seu pensamento, é difícil imaginar o pensamento junguiano sem o modelo hegeliano, que vê a superação do conflito por meio da criação de um “terceiro” transcendente que não é tese nem antítese, mas uma nova entidade na qual estas duas estão incluídas.50
Pelo menos dessa vez, Jung estava certo: realmente não há nenhum traço hegeliano em sua “teoria da compensação”. Talvez essa conclusão pareça precipitada, pois muitas das formulações de Jung lembram de fato a noção de Hegel de reconciliação do sujeito com sua substância alienada – o sujeito tem de reconhecer na força externa com que ele luta a parte não reconhecida de sua própria substância. A dialética do reconhecimento pertence de fato ao jovem Hegel; encontra sua expressão definitiva nos fragmentos do período de Jena sobre amor e reconciliação e, depois, na leitura da Antígona como confronto trágico de duas posições opostas, a de Antígona e a de Creonte, ambos cegos por sua unilateralidade e, portanto, incapazes de reconhecer o momento de sua própria verdade no outro. Eis a formulação mais “hegeliana” de Jung: “o indivíduo se vê diante da necessidade de reconhecer e aceitar aquilo que é diferente e estranho como parte [da própria vida] e como uma espécie de ego”51.
Seria possível dizer então, em consonância com o “reconhecer e aceitar aquilo que é diferente e estranho como parte [da própria vida]”, que o objetivo do processo analítico é, de maneira vagamente hegeliana, permitir que o paciente “esclareça” os compromissos libidinosos que caracterizam sua posição subjetiva e chegue à verdade de seu desejo? Não, por uma razão simples e precisa: não há uma verdade substancial da qual se apropriar, e na qual o sujeito ou o paciente possa reconhecer seu lugar autêntico. Portanto, devemos rejeitar a matriz subjacente à primeira tentativa filosoficamente relevante de estabelecer uma ligação entre Hegel e a psicanálise, ou seja, a tentativa dentro da tradição da Escola de Frankfurt, que foi elaborada primeiro por Jürgen Habermas, em Conhecimento e interessef, e que depois adquiriu sua formulação definitiva em Libido and Society [Libido e sociedade], de Helmut Dahmer. A matriz básica envolvida aqui é dada pela homologia entre o processo hegeliano de alienação e sua superação pela mediação subjetiva, ou reapropriação reflexiva, do conteúdo substancial alienado, e o processo freudiano de repressão e sua superação pelo processo analítico no qual o paciente é levado a reconhecer seu próprio conteúdo naquilo que aparece para ele como estranhas formações do inconsciente. Assim como a reflexão hegeliana, a psicanálise não gera um conhecimento neutro-objetivo, mas um conhecimento “prático”, que, quando subjetivamente assumido, muda radicalmente seu portador.
De uma perspectiva contemporânea, é fácil ver as limitações dessa noção de reconciliação – basta tentar aplicá-la à luta entre nazistas e judeus. Mais uma vez, em uma primeira abordagem, o conceito junguiano de “sombra” enquanto alter ego mal reconhecido parece se encaixar aqui: afinal, não existe uma estranha repetição e redobramento entre a elevação nazista dos alemães arianos e a percepção dos judeus de si mesmos como o povo escolhido? Não foi Schoenberg quem rejeitou o racismo nazista como uma imitação miserável da identidade judaica como povo escolhido? E, no entanto, não seria obsceno dizer que ambas as partes deveriam reconhecer em seu oponente a própria verdade e substância, seu próprio segundo Si? Para os judeus, isso só pode significar que eles deveriam reconhecer que, na forma do ódio que os nazistas sentiam por eles, eles sofreram a reação ao fato de terem se excluído da vida coletiva orgânica e, com isso, entregaram-se a uma existência alienada e sem raízes. Vemos de imediato o que há de errado nisso: falta a assimetria radical dos polos opostos. Embora (a figura antissemítica do) “judeu” seja realmente uma espécie de “sintoma” do nazismo, o nazismo definitivamente não é, de nenhuma maneira simétrica, um sintoma do judaísmo, o retorno de sua verdade interna, reprimida, pois é uma obscenidade dizer que, na luta contra o nazismo, os judeus “deitam fora como absolutamente inútil o verdadeiro ouro que jamais teriam encontrado em outra parte”.
A oposição dos polos, portanto, esconde o fato de que um dos polos já é a unidade dos dois – desse modo, para Hegel, não há necessidade de um terceiro elemento para unir os dois52. É por isso que a dialética de Hegel é radicalmente infundada, abissal, um processo de autorrelação do Dois que carece de um Terceiro – por exemplo, não há um Terceiro externo, não há Fundamento, não há um meio comum em que a oposição entre a lei e o crime seja “sintetizada”: a “verdade” dialética de sua oposição é que o crime é sua própria espécie, a unidade global de si e de seu oposto. Com respeito à oposição entre individualismo liberal e fundamentalismo, os comunitaristas defendem um tipo de “teoria da compensação” junguiana: nós, ocidentais, damos ênfase demais ao individualismo, negligenciamos os laços da comunidade, que depois voltam para nos assombrar na forma de ameaça fundamentalista; portanto, para combater o fundamentalismo temos de mudar nossa visão, reconhecer nela a imagem distorcida do aspecto negligenciado de nossa própria identidade. A solução está em restabelecer o equilíbrio apropriado entre o indivíduo e a comunidade, criando um corpo social em que a liberdade coletiva e a individual suplementem organicamente uma à outra. O que há de errado aqui é exatamente a figura da harmonia equilibrada dos dois princípios opostos. Deveríamos partir, ao contrário, da “contradição” (antagonismo) imanente do individualismo capitalista – o fundamentalismo é, em última análise, um fenômeno “reativo” secundário, uma tentativa de contra-atacar e “gentrificar” esse antagonismo.
Para Hegel, o objetivo não é (r)estabelecer a simetria e o equilíbrio de dois princípios opostos, mas reconhecer em um polo o sintoma da falha do outro (e não vice-versa): o fundamentalismo é sintoma do liberalismo, Antígona é sintoma de Creonte etc. A solução é revolucionar ou mudar o próprio termo universal (liberalismo etc.), de modo que ele não mais exija seu sintoma como garantia de sua unidade. Consequentemente, a forma de superar a tensão entre o individualismo secular e o fundamentalismo religioso não é encontrar um equilíbrio apropriado entre os dois, mas abolir ou superar a fonte do problema, o antagonismo no próprio cerne do projeto capitalista individualista.
É esse movimento rumo à negatividade autorrelativa que não existe no zen-budismo, que também se baseia em um tipo de “negação da negação”: primeiro, negamos o caráter substancial da realidade e afirmamos que o único Absoluto é o Vazio em si; depois, superamos o Vazio em si, na medida em que ele ainda se opõe à realidade positiva e afirma a derradeira mesmidade da pluralidade dos fenômenos e do Vazio. Por isso, a característica básica da ontologia budista é a noção de interdependência radical dos fenômenos: os fenômenos são totalmente não substanciais, não há nada por trás deles, não há nenhum Fundamento, só o Vazio; ou seja, se isolarmos uma coisa de suas relações com as outras coisas e tentarmos apreendê-la como ela é “em si”, teremos somente o Vazio. No nirvana, nós assumimos existencialmente o Vazio – não negando os fenômenos, mas assumindo plenamente seu caráter não substancial. A implicação ética dessa noção de Vazio é que “o bem não tem primazia sobre o mal. A primazia do bem sobre o mal é um imperativo ético, mas não uma condição humana real”53. “Bem e mal são completamente interdependentes. Não há bem sem que haja mal e vice-versa. Não há nada sem que haja algo e vice-versa.”54 Quando percebemos isso (não apenas conceitualmente, mas também existencialmente), chegamos “ao ponto em que não há nem bem, nem mal, tampouco vida ou morte, muito menos nada ou algo. [...] Há liberdade”55. Nesse ponto, “eu não sou nem bom nem mau. Não sou nada em absoluto”56. Dessa perspectiva, nem mesmo a dialética de Hegel parece suficientemente radical: para ele, o Ser ainda tem primazia sobre o Nada, a negatividade é limitada ao movimento automediador do Espírito absoluto, que assim mantém um mínimo de identidade substancial, e a “astúcia da Razão” hegeliana indica que uma força substancial permanece subjacente à interação dos fenômenos, direcionando-a teleologicamente.
Do ponto de vista hegeliano, o que falta aqui é o paradoxo propriamente dialético de um Nada anterior ao Algo, aliás, de um estranho Algo que é menos que nada. Em outras palavras, a inter-relação e a dessubstancialização budistas da realidade permanecem no nível da completa interdependência dos polos opostos: não há bem sem mal, não há algo sem nada, e vice-versa – e só podemos superar essa dualidade recuando para dentro do abismo do Vazio incondicional e absoluto. Mas e o processo dialético propriamente hegeliano, em que a negatividade não é reduzida a uma automediação do Absoluto positivo, mas, ao contrário, a realidade positiva surge como resultado da negatividade autorrelativa (ou, no que diz respeito à ética, em que o bem é um mal autonegado ou automediado)?
A matriz da “reapropriação subjetiva do conteúdo objetivo alienado” ainda pode ser aplicada ao “retorno a Freud” de Lacan? Todo o propósito da leitura que Lacan faz de Freud não é direcionado contra essa reapropriação subjetiva da Alteridade alienada? Para Lacan, a alienação do sujeito no Outro não é constitutiva da subjetividade? A resposta óbvia é não – no entanto, nosso objetivo é dar a esse “não” uma perspectiva diferente da usual: não romper o elo que une Lacan a Hegel (uma via que foi progressivamente seguida pelo próprio Lacan), mas, lendo Hegel através de Lacan, fazer um novo “retorno a Hegel”, isto é, distinguir os contornos de um Hegel diferente, um Hegel que não se encaixa mais na matriz subjetivista do sujeito que se apropria de (interioriza pela mediação conceitual, suprassume, idealiza) todo conteúdo substancial.
Um dos melhores indicadores da dimensão que resiste à compreensão pseudo-hegeliana do tratamento psicanalítico como processo de apropriação, por parte do paciente, do conteúdo reprimido é o paradoxo da perversão no edifício teórico freudiano: a perversão demonstra a insuficiência da lógica simples da transgressão. A sabedoria comum nos diz que os pervertidos fazem na verdade aquilo que os histéricos sonham fazer, pois “tudo é permitido” na perversão: o pervertido efetiva abertamente todo conteúdo reprimido – e, ainda assim, como enfatiza Freud, em nenhum lugar o recalque é tão forte como na perversão, fato amplamente confirmado por nossa realidade capitalista recente, em que a total permissividade sexual causa ansiedade e impotência ou frigidez, em vez de libertação. Isso nos obriga a distinguir entre o conteúdo reprimido e a forma de repressão, quando a forma continua em operação mesmo depois que o conteúdo deixa de ser reprimido – em suma, o sujeito pode se apropriar plenamente do conteúdo reprimido, mas a repressão continua. Ao comentar um sonho curto de uma paciente (uma mulher que a princípio se recusou a contar o sonho, “porque era muito indistinto e confuso”) que se revelou uma referência ao fato de ela estar grávida, mas em dúvida quanto a quem era o pai da criança (isto é, a paternidade era “indistinta e confusa”), Freud chega a uma conclusão dialética fundamental: “a falta de clareza exibida pelo sonho era parte do material que a instigara, ou seja, parte desse material estava representada na forma do sonho. A forma de um sonho, ou a forma como é sonhado, é empregada com surpreendente frequência para representar seu tema oculto”57.
Aqui, a lacuna entre forma e conteúdo é propriamente dialética, em contraste com a lacuna transcendental, cujo propósito é que todo conteúdo apareça dentro de um quadro formal a priori, e por isso deveríamos sempre prestar atenção ao quadro transcendental invisível que “constitui” o conteúdo que percebemos – ou, em termos estruturais, deveríamos distinguir entre os elementos e os lugares formais que tais elementos ocupam. Só atingimos o nível da análise propriamente dialética de uma forma quando concebemos certo procedimento formal não como se expressasse certo aspecto do conteúdo (narrativo), mas como se marcasse ou sinalizasse aquela parte do conteúdo que é excluída da linha narrativa explícita, de modo que – e nisso reside o propósito propriamente teórico – se quisermos reconstruir “todo” o conteúdo narrativo, devemos ir além do conteúdo narrativo explícito como tal e incluir aquelas características formais que agem como substitutas do aspecto “reprimido” do conteúdo58. Citando o exemplo bastante conhecido e elementar da análise dos melodramas, podemos dizer que o excesso emocional que não pode se expressar diretamente nas linhas narrativas encontra um escape no acompanhamento musical ridiculamente sentimental ou em outras características formais.
É exemplar a maneira como Jean de Florette e A vingança de Manon, filmes de Claude Berri, deslocam o filme original de Marcel Pagnol (e sua própria romantização posterior), em que se baseiam. Ou seja, o original de Pagnol retém traços da “autêntica” vida provinciana francesa, com seus velhos padrões religiosos, quase pagãos, ao passo que os filmes de Berri fracassam na tentativa de recapturar o espírito dessa comunidade fechada pré-moderna. No entanto, surpreendentemente, o anverso inerente do universo de Pagnol são a teatralidade da ação e o elemento da comicidade e da distância irônica, ao passo que os filmes de Berri, embora rodados de maneira mais “realista”, enfatizam o destino (o leitmotiv dos filmes é baseado em La forza del destino, de Verdi) e o excesso melodramático cujo histerismo muitas vezes beira o ridículo (como a cena em que, depois que a chuva passa por seus campos, o desesperado Jean chora e grita aos céus). Desse modo, paradoxalmente, a comunidade pré-moderna ritualizada e fechada implica uma comicidade e uma ironia teatrais, enquanto a interpretação moderna “realística” envolve o Destino e o excesso melodramático. Nesse sentido, os dois filmes de Berri devem ser contrapostos a Ondas do destino, de Lars von Trier: nos dois casos, estamos lidando com a tensão entre forma e conteúdo; no entanto, em Ondas do destino, o excesso está no conteúdo (a forma tênue de pseudodocumentário torna esse excesso palpável), ao passo que em Berri o excesso na forma ofusca e, portanto, torna palpável a falha no conteúdo, a impossibilidade de realizar hoje em dia a tragédia clássica pura do Destino.
Nisso reside a principal consequência do movimento de Kant a Hegel: a própria lacuna entre conteúdo e forma deve ser refletida de volta no próprio conteúdo, como indicador de que o conteúdo não é tudo, de que algo foi reprimido/excluído dele. Essa exclusão que estabelece a forma em si é a “repressão primordial” (Ur-Verdrängung), e não importa quanto do conteúdo reprimido trazemos à tona, essa repressão primordial persiste. Como explicamos isso? A resposta imediata envolve a identidade da repressão com o retorno do reprimido, o que significa que o conteúdo reprimido não existe antes da repressão, mas é retroativamente constituído pelo próprio processo de repressão. Por meio de diferentes formas de negação ou ofuscamento (condensação, deslocamento, denegação, renegação...), permitimos que o reprimido penetre no discurso público consciente, encontre um eco nele (o exemplo mais direto vem de Freud; quando um de seus pacientes disse “Não sei quem é essa mulher no meu sonho, mas tenho certeza de que não é a minha mãe!”, a mãe, o reprimido, entra na fala). O que temos aqui é outro tipo de “negação da negação”: o conteúdo é negado ou reprimido, mas essa repressão é o mesmo gesto em si negado na forma do retorno do reprimido (por isso, aqui, definitivamente não estamos lidando com a negação da negação propriamente hegeliana). A lógica parece semelhante à da relação entre o pecado e a Lei em Paulo, em que não há pecado sem Lei, em que a própria Lei cria a transgressão que ela tenta restringir, de modo que, se retiramos a Lei, também perdemos o que a Lei tentou “reprimir” – ou, em termos mais freudianos, se removemos a “repressão”, também perdemos o conteúdo reprimido. A prova não é o paciente típico dos dias de hoje, cuja reação ao mesmo sonho seria: “Não sei quem é essa mulher no meu sonho, mas tenho certeza de que ela tem alguma coisa a ver com a minha mãe!”? O paciente diz isso, mas não há libertação, não há efeito de verdade, não há mudança nessa posição subjetiva. Por quê? Mais uma vez, o que continua “reprimido”, mesmo quando as barreiras que travam o acesso ao conteúdo reprimido vêm abaixo? A primeira resposta é obviamente a forma em si. Isso significa que tanto a forma positiva quanto a negativa (“Esta é minha mãe”, “Esta não é minha mãe”) movimenta-se dentro do mesmo campo, o campo da forma simbólica, e deveríamos nos focar em uma “repressão” mais radical constitutiva dessa forma em si, o que Lacan (em algum momento) chamou de castração simbólica ou proibição do incesto – um gesto negativo que sustenta a própria forma simbólica, de modo que, mesmo quando dizemos “Esta é minha mãe!”, a mãe já está perdida. Ou seja, esse gesto negativo sustenta a mínima lacuna entre o simbólico e o Real, entre a realidade (simbólica) e o Real impossível.
No entanto, na medida em que estamos lidando com a mediação propriamente dialética entre forma e conteúdo, não devemos reduzir a repressão primordial simplesmente à forma de uma lacuna: algo insiste, a estranha possibilidade de um “conteúdo excessivo” não só impermeável à negação, mas produzido pelo próprio processo da negação (autorrelativa) redobrada. Consequentemente, esse algo não é simplesmente um resto do Real pré-simbólico que resiste à negação simbólica, mas um X espectral chamado por Lacan de objeto a ou mais-gozar. Aqui entra em jogo a distinção fundamental de Lacan entre prazer (Lust, plaisir) e gozo (Geniessen, jouissance): o que está “além do princípio de prazer” é o gozo em si, a pulsão como tal. O paradoxo básico da jouissance é o fato de ela ser tanto impossível quanto inevitável: nunca é atingida, é sempre perdida, mas, ao mesmo tempo, nunca nos livramos dela – cada renúncia do gozo gera um gozo na renúncia, cada obstáculo ao desejo gera um desejo pelo obstáculo, e assim por diante. Essa reversão nos dá a definição mínima do mais-gozar: ele envolve um paradoxal “prazer na dor”. Ou seja, quando Lacan usa o termo plus-de-jouir, temos de fazer outra pergunta ingênua, mas crucial: em que consiste esse mais? É apenas um aumento qualitativo do prazer comum? A ambiguidade da expressão francesa é decisiva: ela pode significar tanto “mais gozo” quanto “gozo nenhum” – o excesso do gozo sobre o mero prazer é gerado pela presença do exato oposto do prazer, ou seja, a dor; ele é parte da jouissance que resiste à contenção pela homeostase, pelo princípio de prazer; é o excesso do prazer produzido pela própria “repressão”, e é por esse motivo que, se abolimos a repressão, nós o perdemos. É isso o que Herbert Marcuse deixa escapar em Eros e civilização, quando propõe uma distinção entre “repressão básica” (“as ‘modificações’ dos instintos necessários à perpetuação da raça humana em civilização”) e “mais-repressão” (“as restrições requeridas pela dominação social”):
embora qualquer forma do princípio de realidade exija um considerável grau e âmbito de controle repressivo sobre os instintos, as instituições históricas específicas do princípio de realidade e os interesses específicos de dominação introduzem controles adicionais acima e além dos indispensáveis à associação civilizada humana. Esses controles adicionais, gerados pelas instituições específicas de dominação, receberam de nós o nome de mais-repressão.59
Marcuse dá um exemplo de mais-repressão: “as modificações e deflexões de energia instintiva necessárias à perpetuação da família patriarcal monogâmica, ou a uma divisão hierárquica do trabalho, ou ao controle público da existência privada do indivíduo”60. Embora reconheçamos que a repressão básica e a mais-repressão sejam de fato inextricavelmente entrelaçadas, devemos dar um passo adiante e problematizar justamente essa distinção conceitual: o paradoxo da economia libidinal é que o mais ou o excesso seja necessário até mesmo para o funcionamento mais “básico”. Um edifício ideológico “seduz” os sujeitos a aceitar a “repressão” ou a renúncia por meio do oferecimento do mais-gozar (o plus-de-jouir de Lacan) – ou seja, o gozo gerado pela renúncia “excessiva” do gozo em si. O mais-gozar é, por definição, gozo-na-dor. (Seu caso paradigmático é o brado fascista: “Renuncie aos prazeres corruptos! Sacrifique-se por seu país!”, um brado que promete um gozo obsceno provocado pela própria renúncia.) Portanto, não podemos ter a repressão “básica” sem a mais-repressão, posto que é o próprio gozo gerado pela mais-repressão que torna a repressão “básica” palpável para os sujeitos. O paradoxo com que lidamos aqui é, assim, uma espécie de “menos é mais”: “mais” repressão é menos traumática, mais facilmente aceita que menos. Quando é diminuída, torna-se mais difícil de suportar e provoca rebelião. (Talvez esse seja um dos motivos que fazem as revoluções eclodirem não quando a opressão atinge seu auge, mas quando ela diminui a um nível mais “razoável” ou “racional” – a diminuição destitui a repressão da aura que a torna aceitável.)
Voltando a Hegel, podemos afirmar de fato que esse excesso produzido pelo próprio processo da negação autorrelativa está além de seu âmbito? Em uma passagem negligenciada de um subcapítulo da Fenomenologia que descreve a estrutura do universo utilitário do Iluminismo, Hegel formula (pela primeira vez) o paradoxo básico do “princípio de prazer”: o fato de que a maior ameaça ao prazer não é uma escassez que impede o pleno acesso a ele, mas o próprio excesso do prazer. No universo utilitário, “tudo é para o seu [do homem] prazer e recreação; o homem, tal como saiu das mãos de Deus, circula nesse mundo como em um jardim por ele plantado”. Mas o que perturba esse paraíso é o fato de que, ao também “ter colhido [os frutos] da árvore do conhecimento do bem e do mal”, o homem
[de] natureza boa em si é também constituído de tal modo que o excesso do deleite lhe faça mal, ou antes, sua singularidade tenha também seu além nela: pode ir além de si mesma e destruir-se.
Ao contrário, a razão é para o homem um meio útil de restringir adequadamente esse ultrapassar, ou melhor, de se preservar a si mesmo nesse ultrapassar sobre o determinado, – pois essa é a força da consciência. [...] A medida tem, por isso, a determinação de impedir que o prazer seja interrompido em sua variedade e duração. Isso significa que a determinação da medida é a desmedida.61
Essa lição é repetidamente transmitida pela propaganda: para apreciarmos um produto de maneira plena e permanente, devemos apreciá-lo na medida apropriada (beber com moderação, consumir somente uma barra de chocolate por vez...) – somente essa restrição garante a verdadeira “imoderação”, uma prolongada vida de prazer. Como afirmou Lacan, o princípio freudiano de prazer não é um princípio de gozo extático desenfreado, mas um princípio de restrição.
A prova de que a formulação hegeliana do “além do princípio de prazer” está incorporada em sua noção de subjetividade reside em sua definição de sujeito como “atividade da satisfação das tendências, da racionalidade formal”62. Essa ideia é desenvolvida na introdução às Lectures on the Philosophy of World History:
[O homem] põe o ideal, o campo do pensar, entre as demandas do impulso e de sua satisfação. No animal, as duas coincidem; não se pode servir à conexão delas por esforço próprio – somente a dor ou o medo podem fazê-lo. No homem, o impulso existe antes de ser satisfeito e independentemente de sua satisfação; ao controlar ou ceder aos impulsos, o homem age de acordo com fins e determina a si mesmo à luz de um princípio geral; cabe a ele decidir que fim seguir; ele pode até fazer de seu fim um fim universal. Ao fazê-lo, está determinado por quaisquer concepções que tenha formado de sua própria natureza e volições. Isto é o que constitui a independência do homem: pois que sabe o que o determina.63
Isso significa que a racionalidade, pelo menos se interpondo meramente como uma capacidade de ação para a melhor satisfação dos impulsos, acaba subordinando todos os fins a si mesma (“pondo seus pressupostos”) e tornando-se seu próprio fim: a racionalidade primeiro surge como:
cálculo hedonista que visa a satisfação geral de meus impulsos (na felicidade); mas por fim, se devo satisfazer-me plenamente em minha ação – no que diz respeito a mim, posto que a ação é minha –, o princípio de racionalidade que aplico não deve estar condicionado a um fim contingente como a felicidade (que deve depender de uma visão a respeito da preferência de desejo que não estou certo se é minha visão, pois outros podem ter influenciado minha escolha). Antes, o princípio de minha ação deve envolver minha disposição de que eu esteja presente em minha ação como um agente livre.64
Não é surpresa, portanto, que a identidade dos opostos seja claramente discernível no caso do prazer e do dever. Também não é possível promover o prazer a um dever (ao estilo do hedonista narcisista). Mas e o que dizer da maioria dos casos em que os dois são opostos? A armadilha é: sou capaz de cumprir com meu dever, não quando tolhe meus prazeres, mas quando tenho prazer cumprindo-o? Somente se sou capaz de fazê-lo é que os dois domínios estarão verdadeiramente separados. Se não consigo suportar o prazer que pode resultar como derivado, então a realização do meu dever já estará contaminada pelo prazer, pela economia do “masoquismo moral”. Em outras palavras, é crucial distinguir entre tolerar o prazer como um derivado acidental do cumprimento do meu dever e cumprir um dever porque ele me dá prazer.
A “coincidência dos opostos”, portanto, não tem absolutamente nada a ver com “luta/harmonia eterna” de forças opostas, o constituinte de toda cosmologia pagã. Em uma dada sociedade, certas características, atitudes e normas da vida não são percebidas como ideologicamente marcadas, mas surgem como “naturais”, como parte de um modo de vida não ideológico, baseado no senso comum. A “ideologia” é reservada então para aquelas posições postas de maneira explícita (“marcadas” no sentido semiótico), que se destacam desse pano de fundo ou se opõe a ele (como o fervor religioso extremo, a dedicação a uma orientação política etc.). O aspecto hegeliano aqui é essa neutralização de certas características em um pano de fundo espontaneamente aceito como ideologia em sua forma mais pura (e mais eficaz). Por conseguinte, temos um verdadeiro caso de “coincidência dos opostos”: a efetivação de uma noção (ideologia, nesse caso) em sua forma mais pura coincide com (ou, mais precisamente, surge como) seu oposto (como não ideologia). E, mutatis mutandi, o mesmo vale para a violência: a violência sociossimbólica em sua forma mais pura surge como seu oposto, como a espontaneidade do ambiente que habitamos, tão neutro quanto o ar que respiramos.
O que esse último exemplo mostra com clareza é que, na “negação da negação” hegeliana, o nível muda: primeiro, a negação muda diretamente o conteúdo dentro do mesmo horizonte, ao passo que na negação da negação, “nada realmente muda”, o horizonte é simplesmente virado ao contrário, de modo que “o mesmo” conteúdo surge como seu oposto. Outro exemplo inesperado: em meados da década de 1990, a distribuição de bens por parte do Estado na Coreia do Norte, uma economia centralizada e totalmente regulada, pouco a pouco deixou de funcionar: o sistema de distribuição começou a fornecer quantidades menores de alimentos, as fábricas pararam de pagar salários, o sistema médico carecia de medicamentos, água e eletricidade só eram disponibilizadas durante algumas horas por semana, os cinemas pararam de exibir filmes etc. A reação dos norte-coreanos a essa desintegração pode ser surpreendente para alguns: as necessidades que não eram mais supridas pelo Estado passaram a ser atendidas, até certo ponto, por formas primitivas de um modesto capitalismo de mercado, relutantemente tolerado pelo Estado: indivíduos vendiam alimentos produzidos em casa, como verduras, peixes ou cogumelos, cães e ratos (ou os trocavam por bens familiares, como joias e roupas); dispositivos eletrônicos e DVDs eram contrabandeados da China. Surgiu uma brutal economia de mercado de sobrevivência, como se o país tivesse regredido a um Estado de natureza hobbesiano: descubra um nicho de mercado (de vendedor de macarrão caseiro feito de milho a cabeleireiro) ou morra. O que venceu, portanto, não foi uma forma elementar de solidariedade, mas um egoísmo tosco: em uma ironia cruel, nesse ponto zero, a ideologia oficial da solidariedade total e a dedicação dos indivíduos à comunidade foram suplementadas pura e simplesmente por seu oposto. Obviamente a conclusão hegeliana que tiramos disso é que essa negação da ideologia oficial não era externa, mas interna a ela: a explosão do egoísmo “em si” já estava na economia subjetiva efetiva daqueles que participavam dos rituais coletivos oficiais – participavam por uma questão de sobrevivência, como parte de uma estratégia puramente egoísta de evitar o terror de Estado. Um livro recente de “docuficção” (baseado em entrevistas com refugiados) descreve o momento em que Jun-Sang, estudante privilegiado da universidade de Pyongyang, percebe de repente, depois de encontrar uma criança faminta e desabrigada, que não acreditava mais na ideologia oficial da Coreia do Norte:
Agora ele tinha certeza de que não acreditava mais. Foi um momento assustador de revelação, como decidir ser ateu. Isso o fez se sentir sozinho. Ele era diferente dos outros, oprimido por um segredo que havia descoberto sobre si mesmo.
Primeiro ele pensou que sua vida seria radicalmente diferente depois dessa descoberta recém-feita. Na verdade, ela continuou sendo a mesma vida de antes. Ele fingiu ser um súdito leal. Nas manhãs de sábado, aparecia pontualmente nas aulas ideológicas da universidade.65
No entanto, ele percebeu que a feição dos outros estudantes era “morta”:
inexpressiva, tão fria quanto a de manequins na vitrine de uma loja.
De repente, ele percebeu que tinha aquela mesma inexpressividade no rosto. Na verdade, todos eles provavelmente se sentiam da mesma maneira que ele em relação ao conteúdo das aulas.
“Eles sabem! Todos eles sabem!”, quase gritou, ele tinha tanta certeza. [...] Jun-Sang percebeu que não era o único descrente dali. Até se convenceu de que poderia reconhecer uma forma de comunicação silenciosa, tão sutil que nem chegava ao nível de uma piscadela ou de um aceno com a cabeça.66
Essas linhas devem ser lidas ao pé da letra: longe de experimentar uma perda da individualidade pela imersão em uma identidade coletiva primordial, os indivíduos que participavam dos rituais ideológicos obrigatórios estavam totalmente sós, reduzidos a uma individualidade pontual, incapazes de comunicar sua verdadeira opinião subjetiva, totalmente separados do grande Outro ideológico. O que temos aqui é um dos mais puros exemplos da mudança da alienação para a separação, como foi desenvolvida por Lacan no seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: a alienação radical na ordem ideológica pública, em que as pessoas parecem perder sua individualidade e agem como marionetes, é simplesmente uma forma de separação radical, o recolhimento total dos sujeitos em sua singularidade muda, excluída de todo simbólico coletivo – foi essa singularidade produzida pela máquina ideológica do Estado que eclodiu na Coreia do Norte quando a distribuição de bens pelo Estado deixou de funcionar. (Analistas perspicazes do stalinismo já salientaram que o coletivo stalinista tornava os indivíduos menos solidários e mais egoístas e preocupados com a própria sobrevivência que a sociedade burguesa comum, em que os elementos da solidariedade sobrevivem como uma reação contra a competição de mercado67.)
Aqui, a lógica subjacente é a do pôr retroativo dos pressupostos. Essa lógica também nos permite ver o que há de errado com a visão hobbesiana do monarca como o Um que de forma brutal, porém necessária, impõe a coexistência pacífica na multiplicidade dos indivíduos, que, se deixados por conta própria, cairiam em um estado em que homo homini lupus [o homem é o lobo do homem]. Esse estado supostamente “natural” da guerra de todos contra todos é um produto retroativo do poder imposto do Estado, ou seja, para que esse poder funcione, o Um tem de romper os elos laterais entre os indivíduos:
a relação com o Um faz de cada sujeito um traidor de seus companheiros. É falso dizer que o Um é posto no lugar do terceiro porque homo homini lupus, como diria Hobbes. É o fato de colocar o Um no lugar do legislador transcendente ou considerá-lo seu representante que produz um lobo a partir de um homem.68
Argumento semelhante foi dado por Sofia Näsström: é o próprio Estado que “liberta” as pessoas de sua responsabilidade para com as outras, estreitando o espaço da solidariedade coletiva direta e reduzindo as pessoas a indivíduos abstratos – em suma, o próprio Estado cria o problema que depois se empenha em solucionar69.
Esse modelo mais complicado, que inclui a retroatividade, indica que a tríade hegeliana nunca é de fato uma tríade, seu número não é o 3. Houve três passos na formação da identidade nacional russa: primeiro, o substancial ponto de partida (Rússia ortodoxa pré-moderna); depois, a violenta modernização que foi imposta por Pedro, o Grande, e prosseguiu durante todo o século XVIII, criando uma nova elite francófona; e por fim, depois de 1812, a redescoberta da “russianidade”, o retorno às origens autênticas70. É fundamental ter em mente que essa redescoberta das raízes autênticas só foi possível através dos e pelos olhos instruídos da elite francófona: a Rússia “autêntica” existia apenas para o “olhar francês”. Deve-se a isso o fato de ter sido um compositor francês (que trabalhava na corte imperial) o primeiro a escrever uma ópera em russo e a iniciar a tradição, bem como de o próprio Pushkin ter recorrido a palavras francesas para deixar claro para os leitores (e para ele mesmo) o verdadeiro significado de seus autênticos termos russos. E, é claro, o movimento dialético prossegue: a “russianidade” divide-se imediatamente em populismo liberal e eslavofilismo conservador, e o processo culmina na coincidência propriamente dialética entre modernidade e primitivismo (o fascínio dos primeiros modernistas do século XX pelas antigas formas de cultura bárbara). A complexidade desse exemplo explica por que Hegel parece oscilar em segredo entre duas matrizes da negação da negação. A primeira matriz é: (1) paz substancial; (2) o ato do sujeito, a intervenção unilateral que perturba a paz, abala o equilíbrio; (3) a vingança do Destino, que restabelece o equilíbrio com o intuito de aniquilar o excesso do sujeito. A segunda é: (1) o ato do sujeito; (2) o fracasso do ato; (3) a mudança de perspectiva, que transforma o fracasso em sucesso71. É fácil perceber que os dois últimos momentos da primeira tríade são sobrepostos pelos dois primeiros momentos da segunda – tudo depende do ponto de que começamos a contar: se começamos com a unidade substancial e do equilíbrio, o ato subjetivo é a negação; se começamos do ato subjetivo como momento da posição, a negação é seu fracasso.
Essa complicação implica que, já no nível abstrato-formal, devemos distinguir quatro e não três estágios de um processo dialético. Há algumas décadas, a revista MAD publicou uma série de variações do tema de como um sujeito pode se relacionar com uma norma em quatro níveis: por exemplo, em relação à moda, os pobres não se importam com a maneira de se vestir; a classe média baixa tenta seguir a moda, mas está sempre atrasada; a classe média alta veste-se de acordo com a última moda; os que estão no topo, os que ditam as tendências, também não se importam com a maneira de se vestir, desde que essa maneira seja a moda. No que diz respeito à lei, os marginais não se importam com o que ela diz, simplesmente fazem o que querem; os utilitaristas egoístas seguem a lei, mas de maneira apenas aproximada, quando convém a seus próprios interesses; os moralistas a seguem estritamente; e os que estão no topo, como a monarquia absoluta, também fazem o que querem, desde que seja a lei. Nos dois casos, avançamos da ignorância para o comprometimento parcial e depois para o pleno comprometimento, mas ainda há um passo além desses três: nesse nível mais avançado, as pessoas fazem exatamente a mesma coisa que as do nível anterior, mas com a mesma atitude subjetiva de quem está no nível mais inferior. Isso não corresponde ao dizer de Agostinho, de que, se temos amor cristão, podemos fazer o que quisermos, desde que esteja automaticamente em concordância com a lei? E esses quatro passos também não servem de modelo para a “negação da negação”? Partimos de uma atitude totalmente não alienada (eu faço o que quero), depois progredimos para uma alienação parcial (eu restrinjo a mim mesmo, ao meu egoísmo) e chegamos à alienação total (rendo-me completamente à norma ou à lei), até que, finalmente, na figura do Mestre, essa alienação total é autonegada e coincide com seu oposto.
Esse modelo mais complexo, que distingue duas alienações ou negações, parcial e total, também nos permite responder a um dos pontos críticos frequentemente levantados contra Hegel, a saber: que ele trapaceia tanto quando apresenta o desenvolvimento interno de uma constelação que o ponto inferior da negação autorrelativa se reverte magicamente em uma positividade superior – na melhor das hipóteses, o que temos, em vez da total destruição ou autoeliminação do movimento inteiro, é um retorno ao imediato ponto de partida substancial, de modo que nos encontramos em um universo cíclico. Mas a primeira surpresa é que o próprio Hegel esboça essa opção na Fenomenologia, no capítulo sobre a liberdade absoluta e o Terror:
Desse tumulto seria o espírito relançado ao seu ponto de partida, ao mundo ético e ao mundo real da cultura, que se teria apenas refrescado e rejuvenescido pelo temor do senhor, que penetrou de novo nas almas. O espírito deveria percorrer de novo esse ciclo da necessidade, e repeti-lo sem cessar, se o resultado fosse somente a compenetração efetiva da consciência-de-si e da substância. [Seria] uma compenetração em que a consciência-de-si, que experimentou contra ela a força negativa de sua essência universal, não quereria saber-se nem encontrar-se como este particular, mas só como universal; portanto também poderia arcar com a efetividade objetiva do espírito universal, a qual a exclui enquanto particular.72
No Terror revolucionário, a consciência singular experimenta as consequências destrutivas de se manter separada da substância universal: nessa separação, a substância aparece como uma força negativa que aniquila arbitrariamente cada consciência singular. Aqui podemos usar um dos famosos trocadilhos de Hegel: a ambiguidade da expressão alemã zugrundegehen, que significa desintegrar, perecer, mas também é literalmente zu Grunde gehen, chegar ao fundamento – o resultado positivo do Terror é que, na própria aniquilação do sujeito, o sujeito atinge seu fundamento, encontra seu lugar na substância ética, aceita sua unidade com essa substância. Por outro lado, como a substância ética é efetiva somente como força que mobiliza os sujeitos singulares, a aniquilação do sujeito singular pela substância é simultaneamente a autoaniquilação da substância, o que significa que esse movimento negativo da autodestruição parece compelido a se repetir indefinidamente. É nesse ponto, contudo, que entra o inevitável “no entanto”, articulado em uma linha precisa de argumentação:
No entanto, na liberdade absoluta não estavam em interação, um com o outro, nem a consciência que está imersa no ser-aí multiforme ou que estabelece para si determinados fins e pensamentos, nem um mundo vigente exterior, quer da efetividade, quer do pensar. Ao contrário, o mundo estava pura e simplesmente na forma da consciência, como vontade universal; e a consciência, do mesmo modo, estava retirada de todo o ser-aí, de todo o fim particular ou juízo multiforme, e condensada no Si simples. [...]
No próprio mundo da cultura, a consciência-de-si não chega a intuir sua negação ou alienação nessa forma da pura abstração; mas sua negação é a negação repleta [de conteúdo], seja a honra ou a riqueza que obtém em lugar do Si, do qual ela se alienou, seja a linguagem do espírito e da inteligência que a consciência dilacerada adquire; ou o céu da fé, ou o útil do Iluminismo.
Todas essas determinações estão perdidas na perda que o Si experimenta na liberdade absoluta: sua negação é a morte, carente-de-sentido, o puro terror do negativo, que nele nada tem de positivo, nada que dê conteúdo. Mas ao mesmo tempo, essa negação em sua efetividade não é algo estranho. Não é a necessidade universal situada no além, onde o mundo ético soçobra, nem é a contingência singular da posse privada, ou do capricho do possuidor, do qual a consciência dilacerada se vê dependente: ao contrário, é a vontade universal, que nessa sua última abstração nada tem de positivo, e que por isso nada pode retribuir pelo sacrifício. Mas, por isso mesmo, a vontade universal forma imediatamente uma unidade com a consciência-de-si, ou seja, é o puramente positivo, porque é o puramente negativo; e a morte sem-sentido, a negatividade do Si não-preenchida transforma-se, no conceito interior, em absoluta positividade.73
Em um misterioso ato daquilo que Pierre Bayard chamou de “plagiar o futuro”, Hegel parece citar Lacan: como pode a “negação repleta [de conteúdo]” não evocar todas as fórmulas lacanianas para preencher a falta, para um objeto que serve como lugar-tenente da falta (le tenant-lieu du manque) etc.? A infame reversão do negativo em positivo ocorre aqui em um ponto muito preciso: no momento em que a troca entra em colapso. Durante todo o período do que Hegel chama de Bildung (cultura ou educação pela alienação), o sujeito é destituído de (parte de) seu conteúdo substancial, contudo tem algo em troca por essa privação, “seja a honra ou a riqueza que obtém em lugar do Si, do qual ele se alienou, seja a linguagem do espírito e da inteligência que a consciência dilacerada adquire; ou o céu da fé, ou o útil do Iluminismo”. No Terror revolucionário, essa troca entra em colapso, o sujeito é exposto à negatividade abstrata destrutiva (encarnada no Estado), que o priva até de sua substância biológica (da vida em si) sem dar nada em troca – a morte aqui não tem absolutamente nenhum sentido, é “a morte mais fria, mais rasteira: sem mais significação do que cortar uma cabeça de couve ou beber um gole de água”g, sem sobreviver sequer como uma nobre memória na mente dos amigos ou da família. Como então essa pura negatividade ou perda se transforma “magicamente” em uma nova positividade? O que temos quando não temos nada em troca? Só há uma resposta consistente: o próprio nada. Quando não há conteúdo da negação, quando somos forçados a enfrentar o poder da negatividade em sua pureza nua e somos engolidos por ele, a única maneira de prosseguir é perceber que essa negatividade é o próprio núcleo do nosso ser, que o sujeito “é” o vazio da negatividade. O núcleo do meu ser não é uma característica positiva, mas simplesmente a capacidade de mediar ou negar todas as determinações fixas; ele não é o que sou, mas o modo negativo pelo qual sou capaz de me referir ao (que quer) que sou74. Mas Hegel, desse modo, não defende o que tendemos a chamar de mãe de todas as mistificações ideológicas da Revolução Francesa, formulada pela primeira vez por Kant, para quem o entusiasmo que a revolução suscitou em toda a Europa entre os observadores simpáticos a ela era mais importante que a realidade muitas vezes sangrenta do que acontecia nas ruas de Paris?
A revolução que vimos acontecer em nossa época, em um país de povo bem dotado, pode ser tanto um sucesso quanto um fracasso. Pode ser tão cheia de miséria e atrocidades que nenhum homem de pensar justo tomaria a decisão de repetir a experiência a tal preço, mesmo que tivesse a esperança de realizá-la com sucesso na segunda tentativa. Acredito que essa revolução se originou no coração e no desejo dos espectadores que não são se deixaram levar por uma simpatia que beira quase o entusiasmo, embora o próprio discurso dessa simpatia fosse repleto de perigos. Ela não pode, por conseguinte, ter sido motivada por nada além de uma disposição moral dentro da raça humana.75
A mistificação reside na reversão da negatividade externa do Terror revolucionário no sublime poder interno da lei moral dentro de cada um de nós – mas essa suprassunção (Aufhebung) pode realmente ser consumada? A violência do Terror não é forte demais para tal domesticação? O próprio Kant tinha plena consciência desse excesso: na Metafísica dos costumes (1797), ele caracteriza o evento central da Revolução Francesa (regicídio) como o “suicídio do Estado”, como um paradoxo pragmático que abre o “abismo” em que a razão cai, como um crime indelével (crimen immortale, inexpiável) que impede o perdão neste ou no próximo mundo:
De todas as atrocidades encerradas na derrubada de um Estado por meio de rebelião [...] é a execução formal de um monarca que infunde horror numa alma imbuída da ideia dos direitos dos seres humanos, um horror que se experimenta reiteradamente tão logo e tão frequentemente se pensa em cenas como o destino de Carlos I ou de Luís XVI.76
Todas as oscilações envolvidas no encontro com o Real estão aqui: um regicídio é algo tão terrível que não podemos representá-lo para nós mesmos em todas as suas dimensões; ele não pode realmente acontecer (as pessoas não podem ser tão más), deveria ser apenas construído como um ponto virtual necessário; o regicídio efetivo não foi um caso de mal diabólico, de um mal realizado sem razão patológica (e por isso indistinguível do Bem), pois foi feito, na verdade, por uma razão patológica (o medo de que, se o rei tivesse a permissão de viver, ele voltaria ao poder e exigiria vingança). É importante notar como a suspeita kantiana sobre um ato ser verdadeiramente bom ou ético é aqui estranhamente mobilizada na direção oposta: não podemos ter certeza de que um ato tenha sido de fato “diabolicamente mau” ou uma motivação patológica tenha feito dele um caso comum do mal. Em ambos os casos, a causalidade empírica parece ser suspensa, o excesso de uma outra dimensão numenal parece interferir violentamente em nossa realidade. Kant, portanto, é incapaz de assumir esse derradeiro juízo político infinito.
Hegel é o único que afirma plenamente a identidade dos dois extremos, do Sublime e do Terror: “A identificação inflexível do Terror como inauguração da modernidade política não o impede de afirmar a revolução em sua inteireza como inevitável, compreensível justificável, horrível, emocionante, extremamente entediante e infinitamente produtiva”77. As palavras sublimes de Hegel sobre a Revolução Francesa em Lectures on the Philosophy of World History são no mínimo mais entusiásticas que as de Kant, e ele rejeita a saída fácil do traumático “juízo infinito” nas duas versões: primeiro, o sonho liberal de “1789 sem 1793” (a ideia de que poderíamos ter tido a Revolução sem o Terror, este último visto como uma distorção acidental); segundo, o apoio condicional a 1793 como o preço que se teve de pagar para que a nação gozasse das instituições da sociedade civil-burguesa moderna como “semente racional” que se mantém depois que a casca repulsiva do levante revolucionário é descartada78. (Marx inverte essa relação: ele elogia o entusiasmo da revolução, tratando a prosaica ordem comercial posterior como sua verdade banal.)
Além do mais, Hegel registra claramente o limite daquilo que pode parecer sua própria solução: a supracitada Aufhebung da liberdade ou da negatividade abstrata da revolução no Estado racional pós-revolucionário concreto. Como Rebecca Comay resume esse argumento (não sem ironia): “Hegel ama tanto a Revolução Francesa que precisa purgá-la dos revolucionários”79. No entanto, como deixa claro, uma leitura atenta da última parte do capítulo sobre o Espírito na Fenomenologia revela que, longe de celebrar a Aufhebung do Terror na liberdade interior do sujeito que obedece apenas a sua autônoma voz da consciência, Hegel tem plena ciência de que:
essa liberdade, em seus próprios termos, não faz nada para redimir a promessa obstruída da revolução. Hegel deixa dolorosamente claro que a pureza sublime da vontade moral não pode ser um antídoto para a pureza horripilante da virtude revolucionária. Mostra que todas as características da liberdade absoluta são transportadas para a moralidade kantiana: a obsessão, a paranoia, a suspeita, a vigilância, a evaporação da objetividade dentro da sádica veemência de uma subjetividade empenhada em se reproduzir em um mundo que ela deve desprezar.80
Desse modo, o excesso da revolução resiste à Aufhebung em ambas as dimensões: além de não ser forte o suficiente para pacificar o Terror revolucionário (explicá-lo, justificá-lo), a liberdade moral interior – e esse é o anverso da mesma falha – não é forte o suficiente para efetivar a promessa emancipatória da revolução. A liberdade moral interior, mesmo quando excessiva no sujeito romântico absoluto, por definição sempre esconde uma aceitação resignada da ordem social de dominação existente:
Hegel desarmou implacavelmente todas as tentativas de desalojar ou dissolver a traumática ruptura da Revolução Francesa em uma revolta espiritual, filosófica ou estética. A revolução política não pode mais ser absorvida na revolução copernicana de Kant ou Fichte, ou em várias revoluções culturais projetadas a partir de Schiller. [...] Nisso Hegel é tão implacável quanto Marx: cada recuo da política à liberdade da autoconsciência moral repete o impasse estoico, provoca a réplica cética e culmina em uma miséria autosserviente, na qual é possível discernir um conluio secreto com o existente.81
Comay assinala que essa crítica brutal do pensamento prático de Kant revela Hegel em sua forma mais freudiano-nietzschiana, desenvolvendo a “hermenêutica da suspeita” em sua forma mais radical: “O catálogo de conceitos freudianos (e às vezes até o vocabulário) que Hegel reuniu em toda essa seção é impressionante: repressão, perversão, isolamento, clivagem, renegação, fetichismo, projeção, introjeção, incorporação, masoquismo, luto, melancolia, repetição, pulsão de morte”82. Com a análise dos passos que seguem a crítica de Hegel do edifício ético kantiano (dever concreto de Fichte, estetização da ética de Schiller, hipocrisia da Bela Alma), somos pegos mais adiante em um ponto dessa espiral descendente, bem na loucura solipsista da “subjetividade evaporada” e seu espelhamento autoirônico. Mesmo quando descreve como esse narcisismo patológico e autodestrutivo atinge seu auge, reconhecendo o vazio em seu coração, Hegel tem plena consciência de que o fetiche não é apenas um objeto que preenche o vazio: “O vazio cavado pelo objeto faltoso transforma-se em um preenchimento por si: até mesmo a ausência fornece seu consolo amargo”83. Referindo-se à Origem, Hegel “chega a sugerir com regozijo, em nome do Iluminismo, que mesmo a castração pode ser uma defesa contra a castração: o enfeitado exemplo da Origem mostra como uma lesão extremamente literal pode servir para impedir a derradeira ferida traumática”84 – tese totalmente confirmada pela psicanálise, que demonstra como uma castração na realidade (retirada do pênis ou dos testículos) pode funcionar como uma maneira de evitar a ferida da castração simbólica (essa foi a estratégia da seita “skoptsy” na Rússia e na Europa Oriental no fim do século XIX).
Tocamos aqui em um ponto problemático, enfatizado pela crítica jovem-hegeliana de que Hegel se rende à miséria social existente. Mas Hegel não identifica um conformismo oculto na própria posição crítica? É por isso que Catherine Malabou preconiza de maneira profundamente hegeliana o abandono da posição crítica diante da realidade enquanto horizonte último de nosso pensamento, independentemente do nome de que seja chamada, desde a “crítica crítica” jovem-hegeliana à teoria crítica do século XX85. Essa posição crítica não consegue cumprir o próprio gesto: radicalizar a atitude crítico-negativa subjetiva em relação à realidade em uma autonegação crítica completa. Mesmo que nos leve a ser acusados de ter “regredido” à velha posição hegeliana, deveríamos adotar a posição autenticamente hegeliana absoluta, que, como aponta Malabou, envolve uma espécie de “rendição” especulativa do Si ao Absoluto, embora de uma maneira dialético-hegeliana: não a imersão do sujeito na unidade superior de um Absoluto oniabrangente, mas a inscrição da lacuna “crítica” que separa o sujeito da substância (social) nessa substância em si, como seu próprio antagonismo ou autodistância. Desse modo, a posição “crítica” não é diretamente suprimida em um sim superior a um Absoluto positivo; ao contrário, é inscrita no Absoluto em si como sua própria lacuna. Por isso, o Conhecimento Absoluto hegeliano, longe de sinalizar uma espécie de apropriação subjetiva ou interiorização de todo conteúdo substancial, deveria ser interpretado contra o pano de fundo do que Lacan chamou de “destituição subjetiva”. Nas últimas páginas do capítulo sobre o Espírito na Fenomenologia, essa “rendição ao Absoluto” toma a forma de um inesperado e abrupto gesto de reconciliação: “O sim da reconciliação – no qual os dois Eu abdicam de seu ser-aí oposto – é o ser-aí do Eu expandindo-se em dualidade, e que permanece igual a si”86. Por mais que essa formulação soe inutilmente abstrata, a pior espécie de exercício no pensamento dialético-formal, vale a pena fazermos uma leitura mais minuciosa dela, tendo em mente seu contexto exato. Antes do trecho que citamos anteriormente, Hegel define a reconciliação como “exteriorização”, um tipo de contramovimento à interiorização dialética padrão da oposição exterior: aqui, a contradição interna do sujeito é exteriorizada na relação entre os sujeitos, indicando a aceitação do sujeito de si mesmo como parte do mundo social exterior que ele mesmo não controla. No sim da reconciliação é aceita, portanto, uma alienação básica em sentido quase marxista: o significado dos meus atos não depende de mim, das minhas intenções – ele é decidido posteriormente, retroativamente. Em outras palavras, o que é aceito, o que o sujeito tem de assumir, é sua descentralização constitutiva e radical na ordem simbólica.
“Os dois” da passagem que acabamos de citar refere-se à oposição entre a consciência que age e a consciência que julga: agir é errar, o ato é parcial por definição, envolve culpa, mas a consciência que julga não admite que seu julgar seja também um ato, recusa-se a incluir a si mesma naquilo que julga. Ela ignora o fato de que o verdadeiro mal reside no olhar neutro que vê o mal por toda parte, de modo que seja não menos manchado que a consciência que age. Em termos geopolíticos, essa lacuna entre a consciência que julga e a consciência que age, entre saber e fazer, é a lacuna entre a Alemanha e a França: a reconciliação é a reconciliação das duas nações, em que a Palavra de reconciliação deveria ser pronunciada pela Alemanha – o pensamento alemão deveria reconciliar-se com o herói francês que age (Napoleão). Estamos lidando com um gesto formal puramente performativo de abandonar a pureza e aceitar a “mancha” de nossa cumplicidade com o mundo. Aquele que pronuncia a palavra de reconciliação é a consciência que julga, renunciando a sua atitude crítica. Mas, longe de implicar conformismo, somente esse sim (expressando uma disposição de aceitar o mal, de sujar as próprias mãos) abre espaço para a mudança real. Como tal, essa reconciliação é a um só tempo precipitada e atrasada: ocorre de repente, como uma espécie de fuga desesperada, antes que a situação pareça pronta, e, ao mesmo tempo, assim como o Messias de Kafka, chega um dia depois, quando não importa mais.
Mas como esse gesto elementar de aceitar a (si mesmo como parte da) contingência do mundo abre espaço para a mudança real? Quase no fim do prefácio à Filosofia do direito, Hegel define a tarefa da filosofia: como a coruja de Minerva, que só levanta voo no crepúsculo, a filosofia só pode pintar “cinza sobre cinza”; em outras palavras, ela apenas traduz em um esquema conceitual sem vida uma forma de vida que já chegou ao auge e entrou em declínio (ela mesma está se tornando “cinza”). Comay interpreta esse “cinza sobre cinza” de maneira muito perspicaz como a figura da “mínima diferença”87 (ou da “sombra mais curta”, como teria dito Nietzsche, embora se referisse ao meio-dia): a diferença entre a realidade decrépita e sua noção, quando a diferença é a mínima, puramente formal, em contraste com uma lacuna ampla entre um ideal e a miséria de sua existência efetiva.
Como pode essa tautologia abrir espaço para o Novo? A única solução para esse paradoxo é que o Novo com que lidamos não é primordialmente o futuro Novo, mas o Novo do passado em si, das possibilidades frustradas, impedidas ou traídas (“realidades alternativas”), que desapareceram na efetivação do passado: a efetivação (Verwirklichung) – ou seja, a aceitação da efetividade – provocada pela Reconciliação requer
a desativação do existente e a reativação e a representação (em todos os sentidos) dos futuros frustrados do passado. A efetividade, portanto, expressa exatamente a presença do virtual: ela abre a história para o “não mais” de uma possibilidade impedida e para a persistência de um inalcançado “ainda não”.88
A tautologia hegeliana “cinza sobre cinza” deveria ser associada à noção deleuziana da repetição pura como o advento do Novo: o que surge na repetição do mesmo “cinza” atual é a dimensão virtual, as “histórias alternativas” do que poderia ter acontecido, mas não aconteceu. “A Revolução Francesa é a Revolução Francesa” não acrescenta nenhum conhecimento positivo novo, nenhuma determinação positiva nova, mas lembra as dimensões espectrais das esperanças que a revolução evocou e que foram frustradas por seu desfecho. Essa leitura também mostra que podemos pensar em conjunto a reconciliação como memória interiorizadora (Er-Innerung) e cura retroativa das feridas do Espírito, que anula (ungeschehenmachen) as catástrofes do passado em um ato de esquecimento radical:
O esquecimento não é o oposto da atividade de recordar, mas mostra-se aqui como sua realização mais radical: o oblívio leva a própria memória a um ponto além de seu começo. Esquecer, anular o passado, tornar tudo “não acontecido”, é exatamente lembrar de um momento antes de tudo ter acontecido, anular a inexorabilidade do destino, remontando o começo, ainda que só na imaginação e na representação: agir como se pudéssemos assumir o controle de novo, como se pudéssemos abandonar o legado das gerações passadas, como se pudéssemos recusar o trabalho de luto da sucessão cultural, como se pudéssemos nos livrar de nosso patrimônio, reescrever nossas origens, como se cada momento, até mesmo aqueles que há muito se esvaíram, pudessem se tornar um começo radicalmente novo – inaudito, improvisado, obliterado.89
A reconciliação como pura repetição não nos leva de volta a um começo mítico, mas ao momento imediatamente anterior ao começo, antes de o fluxo de eventos se organizar em um Destino, obliterando outras alternativas possíveis. Por exemplo, no caso de Antígona, a questão não é recuperar de alguma maneira a unidade orgânica dos costumes (Sittlichkeit), posto que essa unidade nunca existiu – uma cisão é constituinte da própria ordem da Sittlichkeit. Antígona é uma história sobre essa divisão constitutiva do poder, e devemos evitar a entediante questão moralista sobre quem está certo ou quem é pior, Antígona ou Creonte, o representante do respeito ao sagrado e o representante do poder secular. Como teria dito Stalin, os dois são piores (do que o quê? do que o poder do povo!), parte da mesma máquina hierárquica de poder. A única maneira de romper o impasse desse conflito é sair desse solo comum e imaginar uma terceira opção a partir da qual possamos rejeitar todo o conflito porque é falso – como se o Coro assumisse o controle, prendesse Antígona e Creonte por representarem uma ameaça ao povo e colocarem sua sobrevivência em risco e estabelecesse a si mesmo como um corpo coletivo da justiça revolucionária, uma espécie de comitê jacobino para a segurança pública que mantivesse a guilhotina em constante funcionamento.
O problema é como essa negação da negação, que muda o campo inteiro, relaciona-se com a negação da negação freudiano-lacaniana, que termina com um espectral não-não-nada? Mas a mudança da primeira negação (“negação com conteúdo”) – em que sacrifico o cerne do meu ser em troca de alguma coisa (céu da fé, honra, utilidade, riqueza...) – para a negação da negação (“negação sem conteúdo”) não aponta para o que Lacan, em sua leitura de Claudel, desenvolveu como estrutura da Versagung, em que passamos do sacrifício feito por alguma coisa para o sacrifício feito por nada?
Vamos esclarecer esse ponto crucial fazendo um desvio pela literatura: não falaremos de L’otage [O refém], de Paul Claudel (referência usada por Lacan para explicar a Versagung), mas de Desonra, de J. M. Coetzee, romance profundamente hegeliano que se passa na África do Sul pós-apartheid. O professor David Lurie é divorciado e leciona poesia romântica; sua grande ambição é escrever uma ópera de câmera sobre a vida de Byron na Itália. Tornou-se vítima da “grande racionalização” da Universidade da Cidade do Cabo, que foi transformada em um colégio técnico, e ele passou a dar aulas sobre “habilidades comunicacionais”, o que considera ridículo. Sua não existência é tamanha que os alunos o ignoram com o olhar; até a prostituta que ele visita semanalmente, e para quem começou a comprar presentes, deixa de recebê-lo. Quando uma comissão acadêmica o julga por ter mantido um romance ilegítimo com Melanie, uma belíssima aluna negra, ele se recusa a se defender contra as acusações de abuso sexual, embora sua conduta em relação a Melanie tenha chegado muito perto do abuso. Ele acaba esboçando uma defesa, mas a comissão não fica satisfeito e procura saber se o que ele diz reflete sentimentos sinceros, vindos do coração. Impulsivamente, ele diz que o contato com Melanie, linda e extremamente passiva, transformou-o, ainda que apenas por um breve momento: “Não era mais o divorciado de cinquenta anos meio perdido. Era um escravo de Eros”h.
Para fugir dessa situação sufocante, David muda-se para a casa da filha, Lucy, uma lésbica apática que, assim como ele, parece ter sido abandonada pelo mundo, mora em uma fazenda isolada na planície sul-africana e sobrevive da venda de flores e legumes para o mercado local. A relação dos dois com um fazendeiro chamado Petrus, o vizinho mais próximo, complica-se cada vez mais. Ele, que foi empregado de Lucy, agora é dono de um pedaço de terra e está manifestamente ausente quando pai e filha sofrem um ataque cruel: três rapazes negros batem em David e queimam seu rosto, e Lucy é estuprada várias vezes. Há indícios de que o ataque faz parte do plano de Petrus de tomar a fazenda de Lucy. No rastro desse ataque brutal, o clamor furioso de David por justiça não é atendido pela polícia, que está sobrecarregada, e suas tentativas de confrontar um dos agressores (protegido de Petrus) são respondidas com silêncio e evasivas. Por fim, Petrus conta a David que pretende se casar com Lucy e assumir o comando da fazenda para protegê-la. Para choque e surpresa de David, Lucy diz que aceitará a proposta de Petrus e dará à luz a criança que espera, fruto do estupro. Lucy parece entender o que David não entende: para viver ali, ela deve tolerar a brutalidade e a humilhação e simplesmente seguir em frente. “Talvez seja isso que eu tenha de aprender a aceitar”, diz ela para o pai. “Começar do nada. Com nada.[...] Sem armas, sem propriedade, sem direitos, sem dignidade. [...] feito um cachorro”i.
Tendo mais uma vez de fugir de um impasse terrível, David se apresenta para trabalhar para Bev, uma amiga de Lucy que dirige uma clínica veterinária. Ele logo se dá conta de que a principal função de Bev naquela terra pobre não é curar os animais, mas matá-los com o máximo de amor e misericórdia que puder. Ele começa um caso com Bev, por mais feia que ela seja. Pouco tempo depois, ele volta à Cidade do Cabo, procura a família de Melanie e pede desculpas ao pai dela. No fim do livro, David também se reconcilia com sua vida com Lucy. Desse modo, resgata uma espécie de dignidade baseada no próprio fato de ter desistido de tudo: da filha, de sua noção de justiça, de seu sonho de escrever uma ópera sobre Byron e até de seu cachorro predileto, que ele ajuda Bev a matar. Ele não precisa mais de um cachorro, já que ele próprio aceitou viver “feito um cachorro” (um eco das palavras finais de O processo, de Kafkaj).
Talvez seja com isso que a verdadeira reconciliação hegeliana se pareça – e talvez esse exemplo nos permita esclarecer alguns pontos confusos sobre o que realmente envolve a reconciliação90. David é retratado como um cínico desiludido, que se aproveita do poder que tem sobre os alunos, e o estupro de sua filha parece uma repetição que estabelece certa justiça: o que ele fez com Melanie acontece de novo com sua filha. No entanto, é muito simples dizer que David deveria reconhecer a própria responsabilidade pela situação em que se encontra – essa leitura de David como um personagem “trágico”, que teve o que merecia na humilhação final, ainda se baseia no estabelecimento de uma espécie de equilíbrio moral ou justiça e, portanto, anula o fato profundamente perturbador de que, na verdade, o romance não tem um limite moral claro. Essa ambiguidade é resumida no personagem de Petrus, que, embora seja cruelmente ambicioso e manipulador por trás da fachada de homem educado, representa um tipo de ordem e estabilidade social. A mensagem política contida em sua ascensão ao poder dentro da pequena comunidade não é racista (“é isso que acontece quando se deixa que os negros assumam o controle: não há uma mudança real, apenas uma reorganização da dominação que piora ainda mais as coisas”), mas uma mensagem que salienta a reemergência de uma ordem tribal e patriarcal, à maneira dos gangsters, que, pode-se dizer, é resultado de um domínio branco que mantém os negros em estado de apartheid e impede sua inclusão na sociedade moderna.
A aposta do romance é que a própria radicalidade da resignação do herói branco e a aceitação dessa nova ordem opressora concede-lhe uma espécie de dignidade ética. Se David pode ser visto como uma Sygne de Coûfontaine contemporânea, a Versagung é representada aqui de maneira invertida: não é que o sujeito renuncia a tudo por uma Causa superior e depois perceba que, com isso, perdeu a Causa em si, mas é antes que o sujeito simplesmente perde tudo, tanto seus interesses egoístas quanto seus ideais superiores, e sua aposta é que essa perda total seja convertida em algum tipo de dignidade ética.
Mas falta alguma coisa no desfecho de Desonra, algo que corresponda ao tique repulsivo no rosto de Sygne moribunda, como um gesto mudo de protesto, de recusa da reconciliação, ou às palavras de Júlia (“A felicidade é enfadonha”), em Júlia, ou a nova Heloísak. Podemos imaginar o menino em Der Jasager [Aquele que diz sim] ou em Massnahme [A decisão]l, quando ele aceita sua morte, fazendo o mesmo – um gesto repetitivo e quase imperceptível de resistência, um eppur si muove que persiste, uma pura figura da pulsão não morta. Aqui, o objeto a é gerado pelo processo da negação da negação como seu excesso ou produto. Mas o processo da Versagung como perda de uma perda não é exatamente o processo da perda do objeto a, o objeto-causa do desejo? Em Um corpo que cai, Scottie primeiro perde o objeto de seu desejo (Madeleine) e depois, quando percebe que Madeleine era uma fraude, perde o próprio desejo. Existe uma saída desse abismo para um novo objeto a (a estrutura de fantasia que sustentava o desejo do sujeito), de modo que a Versagung, que é igual ao ato de atravessar a fantasia, abra espaço para o surgimento da pura pulsão além da fantasia?
1 Ver Robert Pippin, The Persistence of Subjectivity, cit., p. 43.
2 Ver Dieter Henrich, Between Kant and Hegel: Lectures on German Idealism (Cambridge, Harvard University Press, 2008), p. 53.
3 Ibidem, p. 52
4 Ibidem, p. 59.
5 O que é ainda uma das grandes linhas divisórias entre os filósofos: há aqueles – em sua maioria de orientação analítica – que pensam que Kant é o último filósofo “continental” que “faz sentido” e a virada pós-kantiana do idealismo alemão é uma das maiores catástrofes ou regressões à especulação sem sentido na história da filosofia; e há aqueles para quem a abordagem histórico-especulativa kantiana é a mais ilustre realização da filosofia.
5 Gérard Lebrun, “A antinomia e seu conteúdo”, em A filosofia e sua história (São Paulo, Cosac Naify, 2006), p. 567-97.
7 Fredric Jameson, The Hegel Variations, cit., p. 119.
8 Ibidem, p. 32.
9 Ibidem, p. 27.
10 Ibidem, p. 28.
11 Ibidem, p. 29.
12 Ibidem, p. 85-6.
13 Ibidem, p. 87.
14 E o que dizer do contra-argumento óbvio, que evoca a abundância de estudos etnológicos dessas sociedades pré-históricas, com descrições detalhadas de seus rituais, sistemas de adoração, mitos etc.? A etnologia e a antropologia clássicas foram precisamente estudos de sociedades “pré-históricas”, estudos que negligenciaram sistematicamente a especificidade dessas sociedades, interpretando-as como um contraste às sociedades civilizadas. Recordemos como, em sua descrição dos mitos primitivos da origem, os primeiros antropólogos interpretavam, digamos, a afirmação de que uma tribo se originou da coruja como uma crença literal (“eles realmente acreditam que seus antepassados eram corujas”), não percebendo como essas afirmações funcionavam de fato.
15 Fredric Jameson, The Hegel Variations, cit., p. 87.
16 O próprio Marx estava ciente dessa lacuna quando, no último capítulo do Livro I de O capital, confrontou a brutalidade caótica do efetivo surgimento do capitalismo com a narrativa da “assim chamada acumulação primitiva”.
17 Slavoj Žižek e F. W. J. von Schelling, The Abyss of Freedom/Ages of the World (trad. Judith Norman, Ann Arbor, University of Michigan Press, 1997), p. 181-2.
18 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., p. 38.
a Idem, § 444, p. 10. (N. T.)
19 Há uma piada judaica vulgar maravilhosa sobre uma polonesa judia, cansada depois de um duro dia de trabalho. Quando o marido chega a casa, também cansado, mas aceso, ele diz a ela: “Não posso fazer amor com você agora, mas preciso de um alívio. Você não quer me chupar e engolir meu esperma? Isso ajudaria muito!”. A mulher responde: “Estou muito cansada para isso agora, querido. Por que você não se masturba e goza em um copo? Assim posso beber de manhã!”. Essa mulher – contrária ao clichê sobre o raciocínio holístico-intuitivo das mulheres em oposição à análise racional masculina – não é um exemplo do uso feminino cruel do Entendimento, de seu poder de separar o que naturalmente vem junto?
20 Em uma homologia precisa dessa lógica hegeliana, não faz sentido reclamar que a psico-análise é suplementada pela psico-síntese, restabelecendo a unidade orgânica da pessoa rompida pela psico-análise: a psicanálise já é essa síntese.
21 Silvia Aloisi, “Israeli Film Relives Lebanon War from Inside Tank”, Reuters, 8 set. 2009.
22 Ver Fredric Jameson, “On the Sexual Production of Western Subjectivity; or, Saint Augustine as a Social Democrat”, em Renata Salecl e Slavoj Žižek (eds.), Gaze and Voice as Love Objects (Durham, Duke University Press, 1996).
23 Ver Paul de Man, Blindness and Insight: Essays in the Rhetoric of Contemporary Criticism (2. ed. rev., Minneapolis, University of Minnesota Press, 1983).
b Trad. Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro, São Paulo, Perspectiva, 1973. (N. E.)
24 Ver Pierre Bayard, Como falar dos livros que não lemos (trad. Rejane Janowitzer, Rio de Janeiro, Objetiva, 2008).
c Trad. Antônio Houaiss, 15. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005. (N. E.)
25 Immanuel Kant, Crítica da razão pura (trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Frandique Morujão, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1994), p. 266-7.
26 Ibidem, p. 270.
27 Ibidem, p. 270-1.
28 G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Religion I (Frankfurt, Suhrkamp, 1986), p. 493-4. (Werke, v. 16.)
29 Pirmin Stekeler-Weithofer, Philosophie des Selbstbewusstseins (Frankfurt, Suhrkamp, 2005), p. 23.
30 Um dos paradoxos dessa tensão propriamente dialética entre possibilidade e efetividade é que, em uma situação envolvendo uma escolha suprema (viver ou morrer, suicidar-se ou continuar vivendo e lutando), a escolha do suicídio pode ajudar o sujeito a adiar o ato de efetivamente se matar: “Agora que decidi me matar, sei que o escape da minha situação de desespero está aberto para mim, e até esse momento, posso levar a vida com mais leveza posto que me livrei da pressão insuportável da escolha...” – desse modo, ganho tempo para acabar reconsiderando minha decisão e continuar vivendo.
31 Ver Myriam Bienenstock, “Qu’est-ce que ‘l’esprit objectif’ selon Hegel?”, em Olivier Tinland (org.), Lectures de Hegel (Paris, Le Livre de Poche, 2005).
d Trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1992. (N. E.)
32 Slavoj Žižek, For They Know Not What They Do (2. ed., Londres, Verso Books, 2002), p. xliv. Passagem reproduzida em Daniel Lindquist, “Christianity and the Terror; or, More Žižek-Bashing”, disponível em: <http://sohdan.blogspot.com.br/2007/10/christianity-and-terror-or-more-zizek.html>. No entanto, Lindquist cita a referência à “negatividade autorrelativa” como “negatividade autonegadora”. [A edição brasileira se baseia na primeira edição francesa. (N. T.)]
33 Daniel Lindquist, “Christianity and the Terror; or, More Žižek-Bashing”, cit.
34 G. W. F. Hegel, Lectures on the Philosophy of History (trad. J. Sibree, Londres, Henry G. Bohn, 1861), p. 465-6.
35 Lindquist, “Christianity and the Terror; or, More Žižek-Bashing”, cit.
36 Dieter Henrich, Between Kant and Hegel, cit., p. 317.
37 Ibidem, p. 317-8.
38 Ibidem, p. 305-6.
39 Nisso reside a diferença entre o anticapitalismo marxista e os anticapitalistas conservadores que querem sacrificar o próprio princípio da liberdade e da igualdade para estabelecer uma sociedade orgânica mais harmoniosa.
40 G. K. Chesterton, O homem que foi quinta-feira (trad. José Laurênio de Mello, 3. ed., Rio de Janeiro, Livraria Agir Editora, 1967), p. 42.
41 Citado em Dan Hind, The Threat to Reason (Londres, Verso Books, 2007), p. 1.
42 G. K. Chesterton, O homem que foi quinta-feira, cit., p. 43.
43 Recordemos aqui um momento hegeliano inesperado, saído da cultura popular: o hegelianismo (algo inadequado) das três primeiras partes da saga Guerra nas estrelas. Assim como em O homem que foi quinta-feira, de Chesterton, em que a inteligência do crime é revelada como nada menos que o próprio Deus, nós descobrimos pouco a pouco que o senador Palpatine, líder da República na guerra contra a federação separatista, é ninguém menos que Darth Sidious, o misterioso lorde Sith por trás das ações dos separatistas – ao lutar com os separatistas, a República luta consigo mesma, por isso o momento de seu triunfo e a derrota dos separatistas é o momento da conversão da República no Império do Mal.
44 Richard Wagner, Jesus of Nazareth and Other Writings (Lincoln, University of Nebraska Press, 1995), p. 303.
45 Ibidem, 303-4.
e G. K. Chesterton, Hereges (trad. Antônio Emílio Angueth de Araújo e Márcia Xavier de Brito, Campinas, Ecclesiae, 2011), p. 99-100. (N. T.)
46 Em termos políticos, a “negação da negação” designa o momento de um processo em que o agente muda radicalmente da culpa para o impasse, e o resultado é ainda pior. Há mais ou menos uma década, quando Israel sofreu vários ataques terroristas, os judeus liberais, amantes da paz, repetiram o mantra de que, apesar de reconhecerem a injustiça da ocupação da Cisjordânia, para que houvesse negociações apropriadas, o outro lado tinha de suspender os ataques – continuá-los só tornaria o establishment israelense mais obstinado, e um compromisso seria menos provável. De alguns anos para cá, os ataques terroristas em Israel deixaram de acontecer, o único terror é a contínua pressão sobre os palestinos da Cisjordânia (queima de plantações, envenenamento da água potável e até incêndio de mesquitas), e o resultado é exatamente o oposto da retirada de Israel da Cisjordânia: a expansão das colônias israelenses e a simples falta de conhecimento da condição dos palestinos. Deveríamos tirar daí a triste conclusão de que, se a violência não funciona, renunciar a ela funciona ainda menos?
47 Ver Dominique Pagani, Féminité et communauté chez Hegel (Paris, Delga, 2010), p. 43.
48 C. G. Jung, Civilização em transição (trad. Lúcia Mathilde Endlich Orth, 4. ed., Petrópolis, Vozes, 2011), § 20, p. 22-3. (Obras Completas, v. 10/3.)
49 Ibidem, § 361, p. 180.
50 David Tracey, How to Read Jung (Londres, Granta Books, 2006), p. 81.
51 C. G. Jung, A natureza da psique (trad. Mateus Ramalho Rocha, 8. ed., Petrópolis, Vozes, 2011), § 764, p. 349. (Obras completas, v. 8/2.)
f Trad. José N. Heck, Rio de Janeiro, Guanabara, 1987. (N. E.)
52 Outro exemplo dos conflitos políticos contemporâneos aparece aqui: na luta entre o liberalismo do mercado e o intervencionismo do Estado, cada lado deveria reconhecer sua necessidade do outro. Somente um Estado efetivo garante as condições para o desenvolvimento do mercado, e somente uma próspera economia de mercado proporciona recursos para um Estado eficiente. No entanto, esse mesmo exemplo também mostra a limitação dessa lógica: e se o antagonismo chegar a um nível em que a reconciliação não seja possível? E se a única solução viável for mudar todo o sistema?
53 Masao Abe, Zen and Western Thought (Honolulu, University of Hawaii Press, 1985), p. 191.
54 Ibidem, p. 201.
55 Idem.
56 Ibidem, p. 191.
57 Sigmund Freud, A interpretação dos sonhos, primeira parte (trad. Jayme Salomão, Rio de Janeiro, Imago, 1996), p. 357. (Volume 4 da edição standard das obras completas).
58 A tese de que a forma faz parte do conteúdo, o retorno do reprimido, deveria ser suplementada por sua reversão: em última análise, o conteúdo também não é nada mais que um efeito e uma indicação da incompletude da forma, de seu caráter “abstrato”.
59 Herbert Marcuse, Eros e civilização (trad. Álvaro Cabral, 6. ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1975), p. 51-2.
60 Ibidem, p. 52.
61 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte II, § 560, p. 80-1.
62 Idem, Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, v. 3: A filosofia do espírito (trad. Paulo Meneses, 2. ed., São Paulo, Loyola, 2011), § 475, p. 272.
63 Idem, Lectures on the Philosophy of World History. Introduction: Reason in History (trad. H. B. Nisbet, Cambridge, Cambridge University Press, 1975), p. 49-50.
64 Allen Speight, Hegel, Literature and the Problem of Agency (Cambridge, Cambridge University Press, 2001), p. 129.
65 Barbara Demick, Nothing to Envy: Ordinary Lives in North Korea (Nova York, Spiegel & Grau, 2009), p. 195-6.
66 Ibidem, p. 196.
67 De maneira mais geral, uma das grandes ironias da queda dos regimes comunistas é que, embora tenham sido vistos como o fim da ideologia (o capitalismo venceu uma ideologia rude, que tentou impor visões estreitas à sociedade), os partidos que sucederam aos comunistas nos países pós-comunistas se revelaram agentes “não ideológicos” do capitalismo mais brutais (Polônia, Hungria), ao passo que até os comunistas que ainda estão no poder (China, Vietnã) defendem um capitalismo brutal.
68 Moustapha Safouan, Why Are the Arabs Not Free? The Politics of Writing (Oxford, Wiley-Blackwell, 2007).
69 Ver Sofia Näsström, The An-Archical State: Logics of Legtimacy in the Social Contract Condition (dissertação, Stockholm Series in Politics 99, Estocolmo, Stockholm University, 2004). A mesma lógica não seria válida para o Iraque, em 2007? O único argumento convincente que surgiu quase no fim de 2006 a favor da permanência do Exército dos Estados Unidos no Iraque foi que sua retirada abrupta afundaria o país em um caos completo, com a desintegração de todas as instituições do Estado. A suprema ironia desse argumento era que a própria intervenção dos Estados Unidos criava as condições para que o Estado iraquiano não fosse capaz de funcionar de maneira apropriada.
70 No entanto, talvez o verdadeiro começo, o primeiro termo que iniciou todo o movimento, a “tese”, tenha sido a modernização de Pedro, de modo que o que a precedeu foi apenas seu pressuposto substancial destituído de forma.
71 Jean Baudrillard estava no caminho certo, portanto, quando ironicamente, é claro, propôs uma nova tríade hegeliana: tese-antítese-prótese. O terceiro momento que “resolve” a contradição é, por definição, “protético” (virtual, artificial, simbólico, não substancialmente natural).
72 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte II, § 594, p. 98-9.
73 Ibidem, § 594, p. 99.
g Ibidem, §590, p. 97. (N. T.)
74 Esse poder não é meramente negativo, mas é o poder positivo da negatividade em si, o poder de gerar novas formas, de criar entes ex nihilo. A propósito do trabalho como desejo frustrado e a conformação de objetos, Jameson faz uma observação clara sobre a diferença entre Senhor e Escravo: a negatividade do Escravo, sua renúncia à satisfação imediata e à conformação dos objetos, “ultrapassa o idealismo e constitui uma forma da dissolução do físico (e de tudo o mais) filosoficamente mais satisfatória que a ignorante intrepidez do Senhor, à moda dos samurais” (Fredric Jameson, The Hegel Variations, cit, p. 56). Em suma, enquanto o Senhor arrisca destemidamente a própria vida e assume a negatividade da morte, a vida que ele leva é uma vida escravizada à satisfação sensual (consumir os objetos produzidos pelo Escravo), ao passo que o Escravo aniquila efetivamente a existência material imediata através de sua deformação – o Escravo, portanto, é mais “idealista” que o Senhor, porque é capaz de impor Ideias à realidade. No entanto, mais uma vez, Lebrun dá voz à dúvida torturadora de que esse triunfo da negatividade esconde um gosto mais amargo: essa reversão do negativo em positivo não seria mais um caso de “se não pode combatê-los, junte-se a eles”, da estratégia desesperada de transformar a derrota total em vitória por meio da “identificação com o inimigo”?
75 Immanuel Kant, “The Contest of Faculties”, em Political Writings (trad. H. B. Nisbet, 2. ed., Cambridge, Cambridge University Press, 1991), p. 182.
76 Idem, A metafísica dos costumes (trad. Edson Bini, Bauru, Edipro, 2003), p. 163-4.
77 Rebecca Comay, Mourning Sickness: Hegel and the French Revolution (Stanford, Stanford University Press, 2011), p. 76.
78 Ibidem, p. 76-7.
79 Ibidem, p. 90.
80 Ibidem, p. 93.
81 Ibidem, p. 149.
82 Ibidem, p. 96.
83 Ibidem, p. 114.
84 Ibidem, p. 124.
85 Ver Judith Butler e Catherine Malabou, Sois mon corps: une lecture contemporaine de la domination et de la servitude chez Hegel (Paris, Bayard, 2010).
86 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte II, § 671, p. 142.
87 Rebecca Comay, Mourning Sickness, cit., p. 142.
88 Ibidem, p. 145.
89 Ibidem, p. 147-8.
h J. M. Coetzee, Desonra (trad. José Rubens Siqueira, São Paulo, Companhia das Letras, 2000), p. 63. (N. T.)
i Ibidem, p. 231. (N. T.)
j Porto Alegre, L&PM, 2006. (N. E.)
90 Uma variação particularmente cruel da piada de médico sobre as boas e as más notícias, abrangendo toda a tríade das notícias boas-más-boas, é útil para ilustrar a tríade hegeliana que inclui a “reconciliação” final: depois de a esposa ter passado por uma cirurgia longa e arriscada, o marido se aproxima do médico para saber o resultado. O médico diz: “Sua mulher sobreviveu, provavelmente viverá mais do que você. Mas há algumas complicações: ela não conseguirá mais controlar os músculos anais, por isso as fezes serão expelidas continuamente; também haverá o fluxo de um corrimento amarelo e malcheiroso pela vagina, portanto o sexo está fora de questão. Além disso, houve sequelas na boca e a comida vai cair para fora o tempo todo...”. Ao perceber a expressão de pânico cada vez maior no rosto do marido, o médico dá um tapinha no ombro dele e diz com um sorriso: “Não se preocupe, eu só estava brincando! Está tudo bem, ela morreu na mesa de cirurgia”.
k Jean Jacques Rousseau, Júlia, ou a nova Heloísa (2. ed., São Paulo, Hucitec, 2006). (N. E.)
l Bertold Brecht, Teatro completo (3. ed., São Paulo, Paz e Terra, 2004), v. 3. (N. E.)