A grande originalidade de Hegel está no fato de ele mostrar exatamente como uma interpretação que não visa nada além da universalidade, que não admite nenhum papel para a singularidade do exegeta – uma interpretação, aliás, que se recusa a ser plástica, no sentido de ser ao mesmo tempo “universal e individual” – seria, na realidade, particular e arbitrária.1
É muito preciso o que está em jogo nessa passagem do revolucionário livro de Catherine Malabou sobre Hegel. Toda interpretação é parcial, “enraizada” na posição subjetiva e fundamentalmente contingente do sujeito; contudo, longe de impedir o acesso à verdade universal do texto interpretado, a plena aceitação dessa contingência e da necessidade de lidar com ela é a única maneira de o intérprete ter acesso à universalidade do conteúdo do texto. A posição subjetiva e contingente do intérprete produz o ímpeto, a ânsia ou o anseio que sustenta uma interpretação autêntica. Se quisermos chegar à universalidade do texto interpretado diretamente, como ele é “em si”, contornando, apagando ou abstraindo a posição engajada do intérprete, então temos de admitir a derrota e aceitar o relativismo historicista, ou elevar a um Em-si universal e determinado o que é de fato uma leitura particular e arbitrária do texto. Em outras palavras, a universalidade que alcançamos dessa maneira é universalidade abstrata, uma universalidade que, em vez de abranger, exclui a contingência do particular. A verdadeira “universalidade concreta” de um texto histórico notável como Antígona (ou a Bíblia, ou uma peça de Shakespeare) reside na própria totalidade de suas leituras determinadas historicamente. Aqui, o aspecto fundamental que devemos ter em mente é que a universalidade concreta não é universalidade concreta verdadeira se não incluir em si mesma a posição subjetiva de seu leitor-intérprete como ponto particular e contingente a partir do qual a universalidade é percebida. Ou seja, no desenvolvimento hegeliano do processo de cognição, o sujeito da cognição não é apenas o meio universal de reflexão no qual ocorrem pensamentos particulares, um tipo de receptáculo que contém, como conteúdo particular, pensamentos sobre determinados objetos. O oposto também é verdadeiro: o objeto da cognição é um Em-si universal, e o sujeito representa precisamente o que a palavra “subjetivo” significa em seu uso padrão, como quando falamos sobre “percepções subjetivas que distorcem o modo como uma coisa realmente é”. Aqui, a verdadeira particularidade de um Conceito universal não é apenas a particularidade de sua espécie que pode, como tal, ser apreendida por um sujeito neutro que observa essa universalidade (como quando, ao refletir sobre o conceito de Estado, vejo que o Estado em que vivo é uma espécie particular, e que também há outros tipos de Estados); antes, a verdadeira particularidade é, em primeiro lugar, a posição subjetiva particular da qual o Conceito universal é para mim aceitável (no caso do Estado, o fato de eu ser membro de um Estado particular, enraizado em sua estrutura ideológica particular, “colore” meu conceito universal de Estado). E, como Marx sabia muito bem, essa dialética também é válida para a ascensão da própria universalidade: é somente em uma constelação histórica específica e particular que a dimensão universal de um Conceito pode surgir “como tal”. O exemplo de Marx é o trabalho: somente no capitalismo, em que troco minha força de trabalho por dinheiro enquanto mercadoria universal, é que me relaciono com minha profissão específica enquanto forma particular contingente de emprego; somente aqui a noção abstrata de trabalho torna-se um fato social, em contraste com as sociedades medievais em que o trabalhador não escolhe seu campo de trabalho como profissão, pois “nasce” diretamente dentro deste. (O mesmo serve para Freud e sua descoberta da função universal do complexo de Édipo.) Em outras palavras, a própria lacuna entre uma noção universal e sua forma histórica particular só aparece em determinada época histórica. Isso significa que somente passamos realmente da universalidade abstrata para a concreta quando o sujeito cognoscente perde sua posição externa e se prende no movimento de seu conteúdo – é só dessa forma que a universalidade do objeto da cognição perde seu caráter abstrato e entra no movimento de seu conteúdo particular.
Desse modo, devemos distinguir estritamente entre universalidade concreta e historicismo. Em relação à noção de direitos humanos, uma leitura marxista sintomática pode identificar de maneira convincente o conteúdo particular que lhe dá uma ênfase ideológica especificamente burguesa: os direitos humanos universais são de fato os direitos dos donos de propriedades, brancos e do sexo masculino, de negociar livremente no mercado e explorar trabalhadores e mulheres, além de exercer dominação política. No entanto, a identificação do conteúdo particular que hegemoniza a forma universal é só a metade da história. A outra metade, igualmente importante, consiste em fazer uma pergunta muito mais difícil a respeito do surgimento da forma da própria universalidade. Como, e em que circunstâncias históricas específicas, a Universalidade abstrata tornou-se um “fato da vida (social)”? Em que condições os indivíduos vivenciam a si próprios como sujeitos dos direitos humanos universais? Esse é o argumento da análise marxista do fetichismo da mercadoria: em uma sociedade em que predomina a troca de mercadorias, os indivíduos, em sua vida cotidiana, relacionam-se com eles próprios, bem como com os objetos a sua volta, como encarnações contingentes de noções abstratas e universais. O que sou, tendo em vista meus antecedentes culturais e sociais concretos, é vivido como contingente, pois o que me define, em última análise, é a capacidade universal abstrata de pensar e/ou trabalhar. Qualquer objeto que possa satisfazer meu desejo é encarado como contingente, porque meu desejo é concebido como uma capacidade formal abstrata, indiferente à multiplicidade de objetos particulares que possam satisfazê-lo, mas nunca o satisfazem por completo. A ideia moderna de profissão, como acabamos de ver, implica que vivencio a mim mesmo como um indivíduo que não “nasceu” diretamente “dentro” de seu papel social. O que me tornarei depende do intercâmbio entre as circunstâncias sociais contingentes e minha escolha livre. O indivíduo contemporâneo tem uma profissão – é eletricista, professor, garçom –, mas não teria sentido nenhum afirmar que um servo da época medieval fosse camponês por profissão. Nesse aspecto, a ideia fundamental é que, mais uma vez, nas condições sociais específicas da troca de mercadorias dentro de uma economia de mercado global, a “abstração” torna-se característica direta da vida social efetiva. Ela tem impacto na forma como os indivíduos se comportam e se relacionam com seu próprio destino e com seu ambiente social. Marx compartilha a visão de Hegel de como a Universalidade torna-se “para si” somente na medida em que os indivíduos não identificam mais de maneira plena o âmago de seu ser com sua situação social particular: vivenciam-se sempre como “desconjuntados” em relação a essa situação. Em outras palavras, em determinada estrutura social, a Universalidade torna-se “para si” somente naqueles indivíduos que carecem de um lugar apropriado nela. Portanto, o modo de manifestação da Universalidade abstrata, sua entrada na existência efetiva, gera violência e perturba o antigo equilíbrio orgânico.
Isso não quer dizer apenas que cada universalidade é perseguida por um conteúdo particular que a corrompe, mas que cada posição particular é perseguida por sua universalidade implícita, o que a enfraquece. O capitalismo não é apenas Em-si universal, ele é Para-si universal enquanto um tremendo poder corrosivo que destrói mundos, culturas e tradições de vida particulares, atravessando-as e sugando-as para dentro de seu vórtice. Não faz sentido perguntar se “essa universalidade é genuína ou apenas uma máscara para interesses particulares?”. Essa universalidade é claramente efetiva enquanto universalidade, enquanto força negativa para mediar e destruir todo conteúdo particular. E a mesma lógica vale para a luta emancipatória: a cultura particular que tenta desesperadamente defender sua identidade tem de reprimir a dimensão universal que está ativa em seu próprio cerne, ou seja, a lacuna entre o particular (sua identidade) e o universal que a desestabiliza por dentro. É por isso que o argumento “deixe nossa cultura em paz” é um fracasso. Em toda cultura particular, os indivíduos sofrem e protestam – por exemplo, as mulheres protestam quando são obrigadas a passar por uma clitoridectomia – e esses protestos contra as restrições paroquiais de determinada cultura são formulados do ponto de vista da universalidade. A universalidade efetiva não é o sentimento “profundo” de que diferentes culturas acabam compartilhando os mesmos valores básicos etc.; a universalidade efetiva “aparece” (efetiva-se) como a experiência da negatividade, da inadequação para consigo, de uma identidade particular. A “universalidade concreta” não diz respeito à relação de um particular com o Todo mais amplo, ao modo como se relaciona com os outros e com seu contexto, mas sim ao modo como se relaciona consigo, ao modo como sua identidade particular é clivada de dentro. Assim, o problema usual da universalidade (como posso ter certeza de que o que percebo como universalidade não é colorido pela minha identidade particular) desaparece: a “universalidade concreta” significa exatamente que minha identidade particular é corroída de dentro, que a tensão entre particularidade e universalidade é inerente a minha identidade particular – ou, em termos mais formais, que a diferença específica coincide com a diferença genética.
Em suma, uma universalidade surge “para si” somente por meio ou no lugar de uma particularidade tolhida. A universalidade inscreve-se em uma identidade particular enquanto incapacidade de tornar-se plenamente si mesma: eu sou um objeto universal na medida em que não posso me realizar na minha identidade particular – por essa razão, o sujeito universal moderno é, por definição, “desconjuntado”, carente de seu lugar apropriado no edifício social. Essa tese tem de ser tomada ao pé da letra: não é apenas que a universalidade se inscreve na minha identidade particular como ruptura, desconjuntura; a universalidade “em si” é, em sua efetividade, nada mais que esse corte que impede de dentro toda e qualquer identidade particular. Em uma dada ordem social, uma alegação universal somente pode ser feita por um grupo que foi impedido de realizar sua identidade particular – mulheres tolhidas em seu esforço de realizar sua identidade feminina, um grupo étnico impedido de afirmar sua identidade e assim por diante. Por esse mesmo motivo, para Freud, “tudo tem conotação sexual”, pois a sexualidade pode infectar tudo: não por ser o componente “mais forte” na vida das pessoas e exercer certa hegemonia sobre todos os outros componentes, mas por ser o componente mais radicalmente tolhido em sua efetivação, marcado pela “castração simbólica” por conta da qual, como afirma Lacan, não existe relação sexual. Cada universalidade que surge, que é posta “como tal”, testemunha uma cicatriz em alguma particularidade, e permanece para sempre ligada a essa cicatriz.
Recordemos aqui a passagem de Krzysztof Kieslowski do documentário para o cinema de ficção. Não temos apenas duas espécies de cinema: documentário e ficção; o cinema de ficção surgiu das limitações inerentes ao cinema de documentário. O ponto de partida de Kieslowski foi o mesmo de todos os cineastas nos países “socialistas”: a flagrante divergência entre a realidade social monótona e as imagens brilhantes e otimistas que permeavam uma mídia oficial duramente censurada. É claro que a reação inicial de Kieslowski ao fato de que a realidade social polonesa, como disse ele, “não era representada”, foi procurar uma representação mais adequada da vida real em toda a sua monotonia e ambiguidade – em suma, adotar uma autêntica abordagem documentarista. Mas isso logo foi rejeitado por Kieslowski por razões que são mais bem compreendidas no fim do documentário Primeiro amor (1974). Nele, a câmera acompanha um jovem casal desde o namoro, passando pela gravidez da moça, pelo casamento deles e pela chegada do bebê, terminando com a cena do pai segurando o recém-nascido e chorando. Kieslowski reagiu à obscenidade dessa intrusão injustificável na vida íntima dos outros com o “medo de lágrimas reais”: há um domínio de intimidade fantasmática marcado com uma placa de “não ultrapasse!” que somente deveria ser abordado pela via da ficção. É pelo mesmo motivo que a francesa Véronique, em A dupla vida de Véronique, rejeita o marionetista: ele quer saber demais e, por isso, depois que ele conta a história da vida dupla dela, ela fica profundamente magoada e corre ao encontro do pai quase no fim do filme2. “Universalidade concreta” é um nome para esse processo pelo qual a ficção detona o documentário de dentro, para o modo como o surgimento do cinema de ficção resolve o impasse inerente do cinema de documentário3. Outro exemplo extraído da história do cinema é dado por um de seus grandes mistérios: o súbito eclipse dos filmes de faroeste em meados da década de 1950. Parte da resposta reside no fato de que, na mesma época, a ópera espacial surgiu como gênero – então podemos arriscar a hipótese de que a ópera espacial tomou o lugar do faroeste no fim da década de 1950. A questão dialética aqui é que o faroeste e a ópera espacial não são duas subespécies do gênero “aventura”. Devemos antes mudar a perspectiva e partir apenas do faroeste: no decorrer de seu desenvolvimento, ele acaba em um impasse; para sobreviver, precisa se “reinventar” como ópera espacial. Logo, a opéra espacial é estruturalmente uma subespécie do faroeste, da mesma maneira que, para Kieslowski, a ficção é uma subespécie do documentário.
E o mesmo não seria válido para a passagem de Estado para comunidade religiosa em Hegel? Ambos não são simplesmente duas subespécies do gênero das “amplas comunidades socioideológicas”; na verdade, o Estado, em suas formas particulares, jamais poderá resolver o impasse inscrito em seu conceito (isto é, não pode representar e totalizar a comunidade de maneira adequada, assim como para Kieslowski o documentário não pode exprimir de maneira adequada o núcleo da realidade social) e, por isso, precisa se transpor para outro conceito, o de Igreja. A Igreja é, nesse sentido, “mais Estado que o próprio Estado”: ela efetiva o conceito de Estado, transformando-o em outro conceito. Em todos esses casos, a universalidade é situada no encadeamento ou sobreposição de particularidades: A e B não são partes (espécies) de sua universalidade abrangente; A não pode tornar-se plenamente A – efetivar seu conceito – sem passar por B, que é formalmente sua subespécie, mas uma subespécie que solapa a própria espécie sob a qual ela é formalmente subsumida. Toda espécie contém uma subespécie que, na medida em que realiza efetivamente o conceito dessa subespécie, destrói seu quadro: a ópera espacial é “um faroeste no nível de seu conceito” e, por isso mesmo, não é mais um faroeste. Desse modo, em vez de uma universalidade subdividida em duas espécies, temos uma espécie particular que gera outra espécie como sua subespécie, e a verdadeira (“concreta”) universalidade nada mais é que esse movimento no curso do qual uma espécie engendra uma subespécie que nega sua própria espécie. A mesma mediação dialética entre o universal e o particular também pode ser formulada nos termos de um conceito universal e de seus exemplos. A diferença entre o uso idealista e o uso materialista de exemplos é que, na abordagem idealista platônica, os exemplos são sempre imperfeitos, nunca traduzem perfeitamente o que deveriam exemplificar; já na abordagem materialista, o exemplo sempre traz mais do que exemplifica – em outras palavras, o exemplo sempre ameaça destruir o que deveria exemplificar, pois dá corpo àquilo que o próprio conceito exemplificado reprime ou com que não consegue lidar. (Nisso consiste o procedimento materialista de Hegel na Fenomenologia do espírito: cada “figura de consciência” é exemplificada e depois destruída pelo próprio exemplo.) É por isso que a abordagem idealista sempre precisa de uma multiplicidade de exemplos – como não há um único exemplo que sirva, é preciso enumerar uma grande quantidade deles para indicar a riqueza transcendente da Ideia que exemplificam, sendo a Ideia o ponto de referência fixo para os exemplos propostos. A abordagem materialista, ao contrário, tende a retornar obsessivamente ao mesmo e único exemplo: o exemplo particular permanece o mesmo em todos os universos simbólicos, ao passo que o conceito universal que ele deveria explicar muda continuamente de forma, de modo que temos uma multiplicidade de conceitos universais orbitando um único exemplo. Não seria isso que Lacan faz, retomando sempre os mesmos casos exemplares (o jogo de adivinhação com os três prisioneiros, o sonho da injeção de Irma etc.), dando a cada vez uma nova interpretação? O exemplo materialista é, portanto, um Singular universal: um ente singular que persiste como universal por meio da multiplicidade de suas interpretações.
Essa dialética chega a seu apogeu quando o universal como tal, em contraste com o conteúdo particular, entra no ser, adquire existência real – esse é o advento da subjetividade descrito na teoria do Conceito, de Hegel, como o primeiro momento de sua “lógica subjetiva”. Duas observações introdutórias devem ser feitas aqui. Primeiro, devemos prestar atenção ao paradoxo da diferença fundamental entre a lógica da Essência e a lógica do Conceito: exatamente porque a lógica da Essência é a lógica do Entendimento – e, como tal, prende-se a oposições fixas, sendo incapaz de apreender sua automediação –, ela resulta em uma dança louca de autodestruição em que se dissolvem todas as determinações fixas. A lógica do Conceito, em contraste, é a lógica das automediações que, exatamente por isso, é capaz de gerar uma estrutura estável. Segundo, o termo “lógica subjetiva” é plenamente justificado no sentido preciso de que, para Hegel, o “Conceito” não é a universalidade abstrata usual que designa um aspecto comum de uma multiplicidade empírica – o “Conceito” original é o “eu”, o próprio sujeito. Hegel nos dá a apresentação mais concisa da “subjetividade” do Conceito no início de sua “Lógica Subjetiva”, na qual define pela primeira vez a individualidade como “a reflexão do Conceito a partir de sua determinidade dentro de si. Ela é a mediação de si do Conceito na medida em que sua alteridade se faz de novo um outro pelo qual o Conceito se restabelece como igual a si mesmo, mas na determinação da negatividade absoluta”4.
É fácil perceber como universalidade e particularidade estão presentes ao mesmo tempo em cada Conceito: todo Conceito é universal por definição, designa um único aspecto abstrato que une uma série de particulares e, exatamente como tal, é sempre-já particular – não em adição a sua universalidade, mas em virtude dela. “Humano” é um Conceito universal que designa a dimensão universal de todos os seres humanos e, como tal, é particular ou determinado – designa uma característica determinada e ignora infinitas outras (não só há seres que não são humanos, como cada ser humano tem uma quantidade infinita de outras propriedades que também podem ser designadas por outros Conceitos determinados). Universalidade e particularidade, portanto, são dois aspectos de um mesmo Conceito: sua própria universalidade “abstrata” a torna particular. Um Conceito é, por conseguinte, uma unidade imediata de indeterminabilidade e determinação: ela é tanto elevada acima da tessitura da realidade espaço-temporal, ou subtraída dela, quanto uma determinação abstrata fixa. Por que e de que modo o Conceito é subjetivo? Em primeiro lugar, no sentido simples de que é posto como tal apenas na mente de um sujeito, um ser pensante que tem o poder da abstração: somente um ser pensante pode subtrair ou abstrair da multitude empírica uma única característica e designá-la como tal. Em segundo lugar, em um sentido muito mais radical, a passagem para a individualidade é a passagem do Conceito subjetivo para o próprio Sujeito (Si, eu) enquanto Conceito puro. E o que isso significa? O sujeito em sua singularidade não é o que Kierkegaard destaca como a singularidade irredutível a toda mediação universal?
Em um Conceito determinado, universalidade e particularidade coexistem, ou seja, a universalidade do conceito imediatamente “passa” para sua determinação particular. O problema aqui não é como reconciliar ou “sintetizar” os opostos (o aspecto universal e o aspecto particular de um Conceito), mas, ao contrário, como apartá-los, como separar a universalidade de sua “alteridade”, de suas determinações particulares. A contradição absoluta entre universalidade e particularidade só pode ser resolvida – sua sobreposição imediata só pode ser mediada – quando a universalidade do Conceito é afirmada ou posta (ou aparece) como tal, em oposição a sua alteridade, em oposição a cada determinação particular. Nesse movimento, o Conceito retorna “a partir de sua determinidade dentro de si”, restabelece-se “como igual a si mesmo, mas na determinação da negatividade absoluta” – negando absolutamente todo e qualquer conteúdo positivo, toda e qualquer determinação particular. O puro eu (o cogito cartesiano ou a apercepção transcendental kantiana) é justamente essa negação absoluta de todo conteúdo determinado: é o vazio da abstração radical de todas as determinações, a forma do “eu penso” esvaziada de todos os pensamentos determinados. O que acontece aqui é aquilo a que o próprio Hegel se refere como um “milagre”: a pura universalidade esvaziada de todo conteúdo é simultaneamente a pura singularidade do “eu”, ela se refere a mim mesmo como único ponto evanescente que exclui todos os outros, que não pode ser recolocado por nenhum outro – meu si é, por definição, apenas eu e nada mais. O eu é, nesse sentido, a coincidência da pura universalidade com a pura singularidade, da abstração radical com a singularidade absoluta5. E é isso também que Hegel visa quando diz que, no “eu”, o Conceito como tal passa a existir: o conceito universal existe na forma do Eu na qual a singularidade absoluta (sou eu, somente eu) coincide com a abstração radical (como puro eu, sou totalmente indistinguível de todos os outros eus)6. Nos parágrafos 1343 e 1344 da Science of Logic [Ciência da lógica], ele acrescenta a “má notícia” que acompanha a “boa notícia” do retorno-a-si-mesmo do Conceito a partir de sua alteridade: “A individualidade não é apenas o retorno do Conceito para si mesmo, mas imediatamente sua perda”. Em outras palavras, disfarçado de um eu individual, o Conceito não só retorna para si mesmo (para sua universalidade radical), libertando-se da alteridade de todas as determinações particulares, mas surge simultaneamente como um “isso” efetivamente existente, um indivíduo empírico contingente imediatamente consciente-de-si, um “ser-para-si”:
Pela individualidade, em que o Conceito é interno a si mesmo, torna-se externo para si mesmo e entra na efetividade. [...] O indivíduo, enquanto negatividade que se refere a si, é identidade imediata do negativo consigo; é um ser-para-si. Ou é a abstração que determina o Conceito, em consonância com seu momento ideal de ser, como um imediato. Desse modo, o indivíduo é um qualitativo um ou isso.7
Encontramos aqui o movimento supostamente “ilegítimo” das determinações conceituais para a existência efetiva, cuja versão mais conhecida está no fim da Lógica, quando a Ideia realiza a si mesma em Natureza enquanto sua exterioridade. Devemos evitar o erro idealista comum: é claro que esse movimento especulativo não “cria” o indivíduo de carne e osso, mas “cria” o “eu”, o ponto de referência vazio e autorrelativo que o indivíduo experimenta como “si mesmo”, como o vácuo no núcleo de seu ser.
Essa é a primeira tríade teórica do Conceito; uma vez que está realizada, e a universalidade singular do Sujeito está em seu devido lugar, testemunhamos o processo oposto: não U-P-E, mas U-E-P; não a contradição entre Universal e Particular resolvida pelo Eu, mas a contradição entre Universal e Eu resolvida pelo Particular. Ou seja, como pode o puro eu romper o abismo da negatividade radical autorrelativa na qual a universalidade e a singularidade coincidem de maneira imediata, excluindo todo conteúdo determinado? Aqui entramos no domínio prático da vontade e da decisão: o sujeito enquanto puro Conceito tem de determinar a si mesmo livremente, tem de postular um conteúdo particular determinado que contará como “seu próprio”. E não devemos nos esquecer de que esse conteúdo determinado (enquanto expressão da liberdade do sujeito) é irredutivelmente arbitrário: no fundo, é fundamentado somente no “é assim porque quero que seja” do sujeito, o momento da pura escolha ou da decisão subjetiva que estabiliza um mundo. Com o objetivo de designar esse momento, Badiou propõe em seu Logics of Worlds [Lógica dos mundos] o conceito de “ponto” entendido como uma simples decisão em uma situação reduzida a uma escolha entre sim e não. Ele se refere implicitamente ao point de capiton [ponto de estofo] de Lacan, é claro – e isso não indica que não há nenhum “mundo” fora da linguagem, nenhum mundo cujo horizonte de significado não seja determinado por uma ordem simbólica? A passagem para a verdade é, portanto, a passagem da linguagem (“os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”a) para a letra, para os “matemas” que atravessam diagonalmente uma multitude de palavras. O relativismo pós-moderno é exatamente o pensamento da irredutível multitude de palavras, cada uma delas sustentada por um jogo de linguagem específico, de modo que cada mundo “é” a narrativa que seus membros contam para si mesmos sobre si mesmos, sem nenhum terreno compartilhado, nenhuma linguagem comum; e o problema da verdade é como estabelecer algo que – para usar os termos conhecidos na lógica modal – permaneça o mesmo em todos os mundos possíveis.
É exatamente nesse ponto que o contraste entre Hegel e Espinosa aparece em sua forma mais pura: o Absoluto de Espinosa é uma substância que “expressa” a si mesma nos seus atributos e modos sem o point de capiton subjetivante. É verdade que a famosa proposição de Espinosa, omnis determinatio est negatio, pode soar hegeliana, mas ela pode ser lida de duas maneiras opostas (dependendo da negatio a que se refere), e as duas são decisivamente anti-hegelianas: (1) se se refere ao próprio Absoluto, a negação gera um argumento teológico negativo: cada determinação positiva do Absoluto, cada predicado que atribuímos a ele, é inadequado, não apreende sua essência e, portanto, já é negado; (2) se se refere às coisas empíricas particulares, a negação gera um argumento sobre sua natureza transiente: cada ente delimitado a partir dos outros por uma determinação particular se juntará, mais cedo ou mais tarde, ao abismo caótico de onde ela surge, pois cada determinação particular é uma negação não só no sentido de que envolverá a negação de outras determinações particulares (se uma rosa é vermelha, não é azul, verde, amarela...), mas em um sentido mais radical que se refere a sua instabilidade em longo prazo. O argumento de Hegel seria então que essas duas leituras são, na verdade, idênticas, algo como: “o Absoluto não é um ente positivo que persiste em sua identidade impermeável para além do mundo transiente das coisas finitas; o único Absoluto verdadeiro não seria nada mais que esse mesmo processo de nascer e perecer de todas as coisas particulares”? Tal visão, no entanto, continua demasiado próxima de uma sabedoria heraclitiana pseudo-oriental concernente ao eterno fluxo da geração e corrupção de todas as coisas sob o sol – em termos mais filosóficos, essa visão se baseia na univocidade do ser.
Em defesa de Espinosa, poderíamos afirmar definitivamente que a Substância não é apenas o eterno processo gerativo que continua sem nenhuma interrupção ou corte, mas antes a universalização de um corte ou uma queda (clinamen): a Substância nada mais é que o constante processo de “cair” (em entes determinados/particulares); tudo que existe é uma queda [fall] (se me permitem interpretar a famosa proposição do Tractatus, de Wittgenstein – Der Welt ist was der Fall istb –, de uma maneira mais literal do que ele pretendia, compreendendo em seu der Fall também o significado de “fall” em inglês). Não existe Substância que caia, curve-se, interrompa o fluxo etc.; a substância simplesmente é a capacidade infinitamente produtiva de tais quedas/cortes/interrupções, eles são sua única realidade8. Nessa leitura de Espinosa, Substância e clinamen (a curvatura da Substância que gera os entes determinados) são diretamente coincidentes; nessa identidade especulativa fundamental, a Substância nada mais é que o processo de sua própria “queda”, a negatividade que visa a determinação produtiva ou, em termos lacanianos, a Coisa é justamente o objeto a.
No entanto, o problema com essa universalização do clinamen (o que o último Althusser chamou de “materialismo aleatório”) é que ela “renormaliza” o clinamen e, com isso, transforma-se em seu oposto: se tudo o que existe são interrupções ou quedas, então o aspecto-chave da surpresa, da intrusão de uma contingência inesperada, perde-se, e acabamos em um universo chato e achatado cuja contingência é totalmente previsível e necessária. Quando Quentin Meillassoux insiste na contingência como a única necessidade, encontra-se na mesma situação: seu erro é conceber a asserção da contingência segundo o lado masculino das fórmulas de sexuação de Lacan, ou seja, segundo a lógica da universalidade e de sua exceção constitutiva: tudo é contingente, exceto a própria contingência, que é absolutamente necessária – a necessidade, portanto, torna-se a garantia externa da contingência universal. O que deveríamos opor a essa universalização da contingência não é a universalização da necessidade (tudo que existe é necessário, exceto essa própria necessidade, que é contingente), mas o “feminino” não-Todo da contingência: não há nada que não seja contingente, sendo assim, o não-Todo é contingente? Simultaneamente, há o não-Todo da necessidade: não há nada que não seja necessário, sendo assim, o não-Todo é necessário? A necessidade do não-Todo significa que, de tempos em tempos, ocorre um encontro contingente que solapa a necessidade predominante (o espaço de possibilidades sustentado por essa necessidade), de modo que nele o “impossível” acontece9. A questão-chave é que, se tiver de haver um momento de surpresa no corte ou na queda, ele só pode ocorrer tendo como pano de fundo um fluxo contínuo, e como sua interrupção.
Em contraste com Espinosa – para quem não há Significante Mestre desempenhando um corte, marcando uma conclusão, “pingando o i”, mas apenas uma cadeia contínua de causas –, o processo dialético hegeliano envolve cortes, interrupções repentinas do fluxo contínuo, reversões que retroativamente reestruturam o campo inteiro. Para entendermos adequadamente essa relação entre processo contínuo e seus cortes ou fins, devemos ignorar a estúpida ideia de que existe uma “contradição” no pensamento de Hegel entre método (processo infinito) e sistema (fim); também não basta concebermos os cortes como momentos dentro de um processo abrangente, como diferenças internas que surgem e desaparecem. Talvez seja útil fazermos um paralelo com o fluxo da fala: o fluxo da fala não pode continuar indefinidamente, tem de haver le moment de conclure [o momento de concluir] como o ponto que termina uma frase. É somente o ponto final que fixa retroativamente ou determina o significado da frase. No entanto, é fundamental acrescentar que esse ponto não é uma simples fixação que elimina todo risco, toda ambiguidade e abertura. Ao contrário, é o próprio pontuar, seu corte, que libera – liberta – o significado e a interpretação: o ponto sempre ocorre em termos contingentes, como uma surpresa, e gera um excesso – por que aqui? O que isso significa?
Esse elemento de surpresa surge em sua mais pura manifestação na tautologia – o próprio Hegel analisa a tautologia pela expectativa e pela surpresa, o excesso aqui é a própria falta inesperada: “Uma rosa é... uma rosa” – esperamos alguma coisa, uma determinação, um predicado, mas o que temos é apenas a repetição do sujeito, o que torna o sintagma latente com significado virtual. Longe de esclarecer as coisas, a tautologia dá à luz o espectro de uma profundidade imponderável que escapa às palavras; longe de ser um sinal de perfeição, alude a um submundo contingente obsceno. Quando dizemos “lei é lei”? Exatamente quando nos deparamos com a lei enquanto injusta, arbitrária etc., e depois acrescentamos “mas lei é lei”. Nesse caso, o corte final é simultaneamente a abertura, o que desencadeia ou põe em ação um novo processo de interpretação infindável. E, é claro, o mesmo se aplica ao fim absoluto, a conclusão do sistema hegeliano.
A consequência da afirmação da univocidade radical do ser é que todas as distinções entre “essencial” e “secundário”, entre “efetivo” e “virtual”, e assim por diante, têm de ser descartadas. Com respeito à clássica distinção marxista entre base e superestrutura, isso significa que a esfera de produção econômica de modo algum é mais “real” que a ideologia ou a ciência, ou que ela não tem prioridade ontológica sobre elas; sendo assim, deveríamos abandonar até mesmo a ideia de “determinação em última instância” pela economia de toda vida social. Com respeito ao tema da realidade virtual, isso significa que não basta dizer que a realidade é suplementada pela virtualidade; deveríamos abandonar a própria distinção e afirmar que toda realidade é virtual. Na economia, deveríamos abandonar a distinção entre “economia real” (produção de bens materiais) e “economia virtual” (especulação financeira sem base na produção real): toda economia, não importa quão real seja, já é virtual. Não obstante, uma universalização direta como essa é apressada demais. Se o que vivenciamos como realidade é reter sua consistência, ela tem de ser suplementada por uma “ficção” virtual – esse paradoxo, já conhecido por Bentham, é formulado de maneira incisiva por Chesterton: “Literatura e ficção são duas coisas totalmente diferentes. Literatura é luxo, ficção é necessidade”10. No entanto, Bentham também percebeu nitidamente que podemos (e devemos) fazer uma distinção clara entre realidade e ficção – nisso consiste o paradoxo que ele tentou capturar com a ideia de ficções: embora possamos distinguir entre realidade e ficção, não podemos simplesmente descartar a ficção e reter apenas a realidade; se descartamos a ficção, a própria realidade se desintegra, perde sua consistência ontológica.
Há alguns anos, um jornal diário alemão publicou uma charge em que cinco homens respondiam à pergunta: “O que você gostaria de fazer nas férias de verão?”. Cada um deu uma resposta diferente (ler um bom livro, visitar um país distante, descansar em uma praia ensolarada, divertir-se comendo e bebendo com os amigos...), mas no balão que pairava sobre a cabeça de cada um deles e retratava aquilo com que eles realmente sonhavam estava a imagem de uma mulher nua. A conclusão óbvia é que, por trás do semblante de interesses civilizados, existe apenas uma coisa: sexo. A charge está formalmente errada: todos nós sabemos que estamos “de fato sempre pensando naquilo”, mas a pergunta é: de que modo preciso, o que funciona como objeto-causa do nosso desejo, qual janela da fantasia sustenta nosso desejo? Uma das maneiras de esclarecer a questão seria inverter a charge: mostrar todos os homens respondendo a mesma coisa (“Quero fazer muito sexo!”) e colocar as ideias não sexuais (descansar em uma praia ensolarada etc.) nos balões para representar seus pensamentos íntimos, dando assim uma pista para qual modo exato de jouissance se tem como alvo: um sonha fazer sexo em um lugar exótico e distante, como um templo hindu, rodeado de estátuas eróticas; outro sonha fazer amor na areia de uma praia deserta (talvez com um traço exibicionista, como ser observado secretamente por um grupo de crianças que estão brincando por perto), e assim por diante.
Uma das melhores coisas do cinema é brincar com esse papel da ficção (ou fantasia) como um suplemento da realidade, garantindo sua consistência. Não se trata apenas de confiar nos efeitos especiais para apresentar um mundo fantasiado de realidade: o cinema mostra seu melhor quando, por meio das sutilezas da mise-en-scène, faz o espectador experimentar a própria realidade como algo fantasmático. Na cena final de Filhos da esperança, de Alfonso Cuarón, Theo está em um barco a remo com Kee, uma jovem negra, imigrante ilegal, que segura no colo seu primogênito recém-nascido, uma esperança para toda a humanidade. Theo conduz Kee e o bebê até a boia que marca o ponto de encontro com o Tomorrow [Amanhã], um navio-laboratório em que um cientista independente tenta resolver o problema da infertilidade. Kee vê respingos de sangue no barco, e Theo admite que levou um tiro enquanto fugiam. Quando o Tomorrow aparece por entre a densa neblina, Theo perde a consciência e seu corpo pende para o lado. A beleza desse final é que, embora tenha sido filmado com realismo, como um evento efetivo, ele também pode ser interpretado como a fantasia do moribundo Theo, para quem o navio surge como em um passe de mágica de dentro da neblina mística – na realidade, eles estão simplesmente sozinhos em um barco à deriva, indo a lugar nenhum.
Um procedimento mais complexo é a chamada “elipse hitchcockiana”, cujo caso exemplar é o assassinato de Townsend no prédio das Nações Unidas, em Intriga internacional11. Roger Thornhill chega às Nações Unidas, seguido discretamente pelo assassino Valerian. Na recepção, Thornhill manda chamar Townsend, que chega logo depois. Quando os dois homens se encontram frente a frente, vemos Valerian observando-os do corredor e colocando as luvas – sinal de que está prestes a matar alguém. Ainda não sabemos quem ele planeja matar, mas suponhamos que seja Thornhill, já que a gangue de Valerian tentou matá-lo na noite anterior. Os três personagens estão em fila: Thornhill e Townsend estão de frente um para o outro, e Valerian está atrás de Townsend; este último funciona como um obstáculo, impedindo um confronto direto entre Thornhill e Valerian, os verdadeiros oponentes. De repente Thornhill tira do bolso a fotografia que encontrou no quarto do hotel onde Kaplan se hospedara, ela mostra Townsend, Van Damme (o grande criminoso do filme) e mais algumas pessoas. Apontando para Van Damme, Thornhill pergunta se Townsend o conhece, mas Townsend não tem tempo de responder: em uma tomada curta e desfocada, vemos uma faca voando em sua direção, depois seu rosto distorcido em uma careta de dor e surpresa quando cai nos braços de Thornhill. Seguem-se uma tomada breve de Valerian fugindo da cena e depois um corte para Thornhill e Townsend, que cai no chão e revela a faca cravada em suas costas. Confuso, Thornhill automaticamente pega a faca e a puxa. Nesse mesmo instante, um fotógrafo bate uma foto de Thornhill segurando a faca sobre o corpo de Townsend, dando a impressão de que ele era o assassino. Ao perceber isso, Thornhill solta a faca e foge no meio da confusão – agindo nitidamente como culpado.
O que é notável nessa cena é que não precisamos ver o assassinato sendo cometido – além de nunca vermos Townsend e Valerian no mesmo plano, a própria continuidade da ação é quebrada: vemos o que acontece antes (a preparação de Valerian) e depois (Townsend caindo nos braços de Thornhill), mas não vemos Valerian atirando a faca nem seu rosto quando decide agir; vemos apenas o efeito, a expressão de choque de Townsend. A cadeia causal parece interrompida nessa “abstração hitchcockiana”: a clara ligação entre Valerian e a morte de Townsend fica implícita, é claro, mas ao mesmo tempo a impressão que temos de imediato é que Townsend cai morto porque viu na foto que Thornhill lhe mostra alguma coisa terrificante e/ou proibida, algo que não deveríamos ver (o que é verdade, de certa forma), tanto que o gesto repentino de Thornhill de pôr a mão no bolso e tirar a foto torna-se equivalente ao gesto ameaçador de puxar uma arma. Esse efeito é reforçado pela disposição espacial da cena, que mostra claramente a divisão clássica de Hitchcock entre o espaço da realidade comum (a movimentada recepção do prédio das Nações Unidas, com grupos conversando ao fundo) e o espaço de uma protorrealidade subterrânea obscena, no qual o perigo espreita (o porão em Psicose; o quarto escuro atrás do espelho na sala de recepção da florista, de onde Scottie observa Madeleine em Um corpo que cai etc.). Em outras palavras, é como se a única realidade da cena fosse a do grande hall onde Thornhill e Townsend se encontram, enquanto Valerian age de outro espaço espectral, aos olhos de ninguém, e, portanto, livrando Thornhill do ato que lhe é atribuído (ou antes atribuindo a ele um ato que não é dele).
Por que esse suplemento ficcional é necessário? Que buraco ele preenche? Para garantir a consistência simbólica da nossa “esfera” de vida (para usarmos a expressão de Sloterdijk), alguma coisa – algum tipo de excremento – tem de desaparecer. O paradoxo da ecologia radical – que culpa a humanidade por perturbar a homeostase natural – é o fato de nela acontecer uma reversão autorrelativa dessa lógica da exclusão: o “excremento”, o elemento destrutivo que precisa desaparecer para que o equilíbrio seja restabelecido é, em última análise, a própria humanidade. Como resultado de sua arrogância, de seu desejo de dominar e explorar a natureza, a humanidade tornou-se a mancha no quadro do idílio natural (como naquelas narrativas em que a catástrofe ecológica é vista como uma vingança da Mãe Terra, ou Gaia, pelas feridas que lhe foram impostas pela humanidade). Não seria essa a maior prova da natureza ideológica do ambientalismo? Isso significa que não há nada mais distante de um ambientalismo verdadeiramente radical do que a imagem de uma natureza pura e idílica, livre de toda sujeira humana. Para romper com essa lógica, talvez devêssemos mudar as próprias coordenadas da relação entre a humanidade e a natureza pré-humana: a humanidade é antinatureza, ela intervém no ciclo natural, perturbando-o ou controlando-o “artificialmente”, adiando a inevitável degeneração, ganhando tempo para si própria. Não obstante, como tal, ainda faz parte da natureza, posto que “não existe natureza”. Se a natureza concebida como ciclo equilibrado da vida for uma fantasia humana, então a humanidade é (mais próxima da) natureza exatamente quando estabelece de maneira brutal sua separação da natureza, impõe sobre ela sua própria ordem limitada e temporária, cria sua própria “esfera” dentro da multiplicidade natural12. Não encontramos uma lógica semelhante no imaginário radical revolucionário? Em uma canção que originalmente fazia parte de A decisão, mas foi retirada, Brecht propõe a associação do agente revolucionário com o canibal que comeu o último dos canibais para acabar com o canibalismo – o refrão fala do desejo de ser o último resquício de sujeira no recinto, o que, no gesto final da limpeza de si, tornará todo o espaço limpo.
O cinema, no pior dos casos, tenta preencher esse vazio não pela ficção, mas ao retratar diretamente a sujeira excluída. Por exemplo, o pior momento de vulgaridade em A lista de Schindler ocorre quando Spielberg não consegue resistir à tentação de representar justamente o momento de transformação ética de Schindler, quando ele passa de frio manipulador da desgraça alheia para um sujeito imbuído de senso de responsabilidade pelos judeus. A transformação ocorre quando Schindler, depois de sair para um passeio matinal com sua amante em uma colina na Cracóvia, observa as unidades alemãs entrando no gueto judeu. O momento de conscientização ética é acompanhado da cena da garotinha judia vestida com um casaco vermelho (em um filme preto e branco). Essa retratação é propriamente obscena e blasfema: ela invade, de uma maneira vulgar, o mistério abissal do súbito advento da bondade, tentando estabelecer uma ligação causal onde deveria ser deixada aberta uma lacuna. Vulgaridade semelhante ocorre em Pollock, um filme que, da mesma maneira, não resiste à tentação de retratar o momento exato da invenção da action painting. Como era de esperar, Pollock está bêbado e derrama por acidente uma vasilha de tinta sobre uma tela; surpreso com a mancha resultante, complexa e estranhamente atraente, tem a ideia de uma nova técnica. O valor desse relato vulgar do misterioso momento de criação é o mesmo do irônico relato que Jonathan Swift faz do nascimento da linguagem: antes dela, para falar de objetos ausentes, as pessoas carregavam nas costas pequenas réplicas de todo tipo de objeto, até que alguém teve a ideia genial de substituir as miniaturas por palavras que designavam os objetos.
A relação entre realidade e ficção também é válida para substância e sujeito: sim, a substância é sempre-já um sujeito, surge apenas retroativamente, por sua mediação subjetiva. No entanto, deveríamos diferenciá-los – o sujeito sempre, constitutivamente, vem depois, ele se refere a uma Substância já dada, introduzindo nela abstratas distinções e ficções, dissociando sua unidade orgânica. É por isso que, embora possamos interpretar a substância espinosiana como o “sujeito em ação”, não há em Espinosa nenhum sujeito à distância da Substância.
Se o limite tem prioridade sobre o que está além dele, então tudo o que existe é a realidade (fenomenal) e sua limitação. Nada há além do limite, ou, mais precisamente, o que há além do limite coincide com o próprio limite; esse coincidir do limite com o que está além dele significa que o Além sempre-já se transpôs para o devir, o qual gera entes (fenomenais) determinados. Em outras palavras, o Além é como o puro Ser de Hegel: sempre-já refletido/mediado, transposto para o devir. O limite, portanto, não é meramente negativo: é a negatividade produtiva que gera a realidade determinada; ou então: a negação é sempre-já a negação da negação, o movimento produtivo de seu próprio desaparecer.
O que há para além do limite, para além da tela que nos nega (que nos protege de) qualquer acesso direto ao Em-si? Só existe uma resposta convincente: o que “realmente” está além do limite, do outro lado da tela, não é o nada, mas a mesma realidade que encontramos na frente da tela. Pensemos em um palco e toda a maquinaria por trás dele, usada para gerar a ilusão representada: o que realmente explica essa ilusão não é a maquinaria como tal, mas o quadro que delimita o espaço “mágico” do palco e a realidade “ordinária” fora do palco: se quisermos explorar o mistério da ilusão indo aos bastidores, descobriremos exatamente a mesma realidade ordinária que existe fora do palco. (A prova é que, mesmo que o maquinário dos bastidores seja totalmente visível, como acontece em alguns teatros, a realidade encenada ainda assim é gerada.) O que importa é que uma parte da realidade ordinária seja separada do resto por um quadro que a define como um espaço mágico de ilusão. Temos uma única e mesma realidade, separada de si própria (ou, antes, redobrada) por uma tela. Essa inversão-para-dentro-de-si, pela qual a realidade se encontra em um palco fantasmático, é o que nos obriga a abandonar a univocidade do ser: o campo da (ou do que experimentamos como) realidade é sempre atravessado por um corte que inscreve a aparência dentro da própria aparência. Em outras palavras, se existe um campo da realidade, então não basta afirmar que a realidade é inerentemente fantasmática, ou sempre constituída de um quadro transcendental; esse quadro tem de se inscrever dentro do campo da realidade, na forma de uma diferença entre realidade “ordinária” e realidade etérea: dentro de nossa experiência da realidade (estruturada pela fantasia), uma parte desta tem de aparecer como “fantasmática”, como uma “realidade não real”.
Recordemos aqui a cena de Um corpo que cai, quando Scottie e Judy se encontram pela primeira vez (no restaurante Ernie, assim como no caso de Madeleine) e não conseguem se envolver em uma conversa significativa. De repente, Scottie fixa o olhar em um ponto atrás de Judy, e vemos que ele está olhando para uma mulher vagamente parecida com Madeleine, usando o mesmo vestido cinza. Quando percebe o que atraiu o olhar de Scottie, Judy, é claro, fica profundamente magoada. O momento crucial é quando vemos, do ponto de vista de Scottie, as duas mulheres no mesmo plano: Judy à direita, perto dele, e a mulher de cinza à esquerda, no fundo. Mais uma vez, temos a realidade vulgar ao lado da aparição etérea do ideal. Aqui, a cisão do plano de Midge e o retrato de Carlotta é exteriorizada em duas pessoas diferentes: Judy em primeiro plano e a aparição espectral momentânea de Madeleine ao fundo – além da ironia adicional, desconhecida por Scottie, de que na verdade Judy é a Madeleine que ele procura desesperadamente no meio da aparição efêmera de pessoas estranhas. Esse breve momento em que Scottie é levado a pensar que o que vê é Madeleine é o momento em que o Absoluto aparece: ele aparece “como tal” no próprio domínio das aparências, naqueles momentos sublimes em que uma dimensão suprassensível “transparece” em nossa realidade ordinária. Quando Platão apresenta os três níveis ontológicos (Ideias, cópias materiais e cópias dessas cópias) e desmerece a arte por ser “cópia da cópia”, o que se perde é que a Ideia só pode surgir na distância que separa nossa realidade material ordinária (o segundo nível) de sua cópia. Quando copiamos um objeto material, o que copiamos na verdade, aquilo a que nossa cópia se refere, nunca é o objeto particular em sim, mas sua Ideia. Esta é semelhante a uma máscara que gera uma terceira realidade, um fantasma na máscara que não é o rosto escondido por trás dela. Nesse sentido preciso, a Ideia é a aparência enquanto aparência (como dizem Hegel e Lacan): a Ideia é algo que aparece quando a realidade (a cópia de primeiro nível ou imitação da Ideia) é ela mesma copiada. É isso que está na cópia, mais que o próprio original. Não admira que Platão reagisse com tanto pânico à ameaça da arte: como Lacan afirma no Seminário XI, a arte (enquanto cópia da cópia) não compete com os objetos materiais enquanto cópias “diretas”, de primeiro nível, da Ideia; compete antes com a própria Ideia suprassensível. Devemos interpretar esse redobramento da realidade em seu sentido mais forte, como um aspecto fundamental da ontologia do nosso mundo: todo campo de realidade contém uma parte enquadrada, separada, que não é vivida como plenamente real, mas como ficção.
Esse corte na univocidade do ser, essa necessidade de suplementar a “realidade ordinária” com a ficção, não demonstra que a falta é primordial no que se refere à curvatura? Podemos gerar facilmente a curvatura a partir da falta e vice-versa. Por um lado, podemos conceber a curvatura (movimento rotatório da pulsão) como uma forma de evitar o impasse da falta primordial. O que vem primeiro é a falta: o Objeto incestuoso do desejo é sempre ausente, esquiva-se da apreensão do sujeito, e tudo o que o desejo pode alcançar são as metonímias da Coisa, nunca a Coisa em si. No entanto, esse repetido fracasso em alcançar a Coisa pode ser invertido em sucesso se a fonte do gozo for definida não como o alcance à Coisa, mas como a satisfação produzida pelo esforço repetido de chegar até ela. Isso nos leva à pulsão freudiana, cujo verdadeiro alvo não é seu fim (objeto), mas a repetida tentativa de atingi-lo (por exemplo, o que causa satisfação na pulsão oral não é o objeto [leite], mas o repetido ato de sugar). Desse modo, podemos conceber a curvatura, seu movimento circular, como ontologicamente secundária, como uma maneira de transformar o fracasso do desejo em sucesso.
Por outro lado, de maneira deleuziana, podemos conceber a experiência da própria falta como um tipo de ilusão de perspectiva, como uma equivocação do movimento rotatório da pulsão. Nesse caso, o que vem primeiro, o fato primordial, é o movimento rotatório da pulsão, como se seu movimento circular não trouxesse a satisfação em si, mas tivesse de ser interpretado como uma reação a uma falta primordial13. O que vem primeiro, então, a falta ou a curvatura? Hegel ou Espinosa? Essa escolha é uma armadilha que deve ser evitada: deveríamos insistir no fato de que a alternativa “falta ou curvatura” é uma espécie de difração primordial, uma paralaxe sem nenhuma prioridade.
É exatamente a propósito do tema do clinamen que podemos expor a lacuna que separa Hegel de Espinosa. A Substância espinosiana pode ser concebida como a força produtiva que gera a multiplicidade de clinamina e, como tal, é um ente virtual totalmente imanente a seus produtos, presente e efetivo somente ems seus produtos, nos clinamina. Para Hegel, no entanto, a pluralidade realmente existente dos clinamina pressupõe um “clinamen” mais radical – uma reversão ou negatividade – na própria Substância (e por isso a Substância tem de ser concebida também como Sujeito). Em termos gnósticos, a Queda, a lacuna entre Deus e a realidade, pressupõe uma reversão prévia no próprio Deus. O exemplo das modernidades alternativas nos ajudará a esclarecer esse ponto: para um espinosiano, a pluralidade de modernidades expressa o poder produtivo da Substância social capitalista; para um hegeliano, há uma pluralidade de modernidades porque a Substância social capitalista é em si “pervertida”, antagônica. Então por que existe algo, em vez de nada? Porque o próprio nada é dividido em dois (o vácuo “falso” e o vácuo “verdadeiro”, nos termos da física quântica14) – é essa tensão ou lacuna no vazio que o impele a gerar “algos”.
Então de que maneira devemos pensar os dois momentos da negatividade unidos na palavra alemã Verneinung, o freudiano-espinosiano ver (clinamen e outras formas de deslocamento) e o mais radical hegeliano nein (corte, negação, vazio)? E se as duas dimensões forem reunidas na fórmula $-a de Lacan, que combina o vazio ou negatividade do sujeito com a mancha que turva a realidade? Ver representa a distorção anamórfica da realidade para a mancha que inscreve o sujeito na realidade, e nein é a lacuna, o buraco, na realidade. São dois lados da mesma moeda, ou antes os lados opostos de uma fita de Möbius: a correlação de espaço vazio com objeto excessivo. Não há lacuna sem protraimento ou distorção da realidade (nenhum sujeito sem seu equivalente objetal) e vice-versa, toda distorção anamórfica da realidade atesta um sujeito.
Seria possível descrever um tipo de estrutura subjacente que nos permita gerar a alternativa da falta e da curvatura? Talvez aqui a distinção entre os dois vácuos, o “falso” e o “real”, seja útil na medida em que exprime uma estrutura mínima de desequilíbrio, de uma lacuna que separa uma coisa de si mesma, a qual pode ser operacionalizada na direção do vácuo “falso” (plena paz enquanto fim inatingível) ou do vácuo “verdadeiro” (equilíbrio do movimento circular). Talvez essa lacuna que separa os dois vácuos seja a última palavra (ou uma das últimas, pelo menos) que se pode dizer sobre o universo: um tipo de deslocamento ontológico primordial ou différance15 por conta do qual, não importa quantas coisas boas possam surgir sub specie aeternitatis, o universo é desconjuntado e eppur si muove. Portanto, não basta dizer, em uma leitura radical de Espinosa, que a Substância nada mais é que o processo de seu clinamen – aqui, a Substância permanece Una, uma Causa imanente para seus efeitos. Aqui devemos dar um passo adiante e reverter a relação: não há Substância, somente o Real enquanto lacuna absoluta, não identidade, e os fenômenos particulares (modos) são Uns, muitas tentativas de estabilizar essa lacuna. (Isso também significa que o Real, em sua forma mais radical, não é um encontro contingente: o encontro é como o Real – o Real da lacuna absoluta – retorna dentro da realidade constituída como seu ponto sintomático de impossibilidade.)
Essa ideia de dois vácuos, no entanto, nos leva de volta a Hegel, à lacuna entre Substância e Sujeito sugerida na famosa fórmula que diz que o Absoluto é “não só Substância, mas também Sujeito”. A totalidade hegeliana não é o ideal de um Todo orgânico, mas uma noção crítica – situar um fenômeno em sua totalidade não significa ver a harmonia oculta do Todo, mas incluir em um sistema todos os seus “sintomas”, antagonismos e inconsistências como partes integrantes. Nessa leitura, o “vácuo falso” designa o Todo orgânico existente, com sua enganosa estabilidade e harmonia, enquanto o vácuo verdadeiro integra nesse Todo todos os excessos desestabilizadores que são necessários para sua reprodução (e, em última análise, provocam sua ruína). O processo dialético hegeliano, portanto, funciona como um repetido solapar de um “vácuo falso” por um vácuo “verdadeiro”, como uma repetida mudança da Substância para o Sujeito. Em sua manifestação mais radical, essa lacuna aparece como o contraste ético mínimo entre as dialéticas budista e hegeliana, entre a obtenção da paz (Vazio, Simetria, Equilíbrio, Harmonia primordial ou qualquer que seja o nome) e o persistente eppur si muove. Desse modo, o budismo dá uma resposta radical à pergunta: “Por que existe algo, em vez de nada?”. Só há o Nada, nada “realmente existe” – todos os “algos”, todos os entes determinados, surgem apenas de uma ilusão subjetiva de perspectiva. O materialismo dialético, nesse aspecto, dá um passo adiante: mesmo o Nada não existe – se por “Nada” entendemos o abismo primordial em que todas as diferenças são obliteradas. No fundo, o que “existe” é apenas a Diferença absoluta, a Lacuna que repele a si mesma.
Para entendermos o elo radical entre o sujeito e o nada (o Vazio), devemos fazer uma leitura muito precisa da famosa afirmação de Hegel sobre a substância e o sujeito: não basta enfatizar que o sujeito não é um ente idêntico a si mesmo que existe positivamente, um ente que representa a incompletude da substância, seu movimento e antagonismo interior, o Nada que tolhe a substância por dentro e destrói sua unidade, dinamizando-a – a ideia mais bem dada pela observação de Hegel, a propósito da “inquietação” da unidade substancial, de que o Si é essa mesma inquietação (“eben diese Unruhe ist das Selbst”). A ideia de sujeito ainda pressupõe o Um substancial como ponto de partida, mesmo que esse Um seja sempre-já distorcido, cindido etc., e é esse mesmo pressuposto que deveria ser abandonado: no início (mesmo que seja mítico), não há nenhum Um substancial, mas o próprio Nada; cada Um vem depois, surge por meio da autorrelação desse Nada. Em outras palavras, o Nada como negação não é primeiramente a negação de algo, de um ente positivo, mas a negação de si mesmo.
Hegel formulou essa ideia crucial no início do segundo livro de sua Lógica (sobre a “Essência”), quando trata da lógica da reflexão16. Hegel parte da oposição – constitutiva do conceito de essência – entre essência e seu aparecer no ser ilusório (Schein): “A imediatez da determinidade no ser ilusório em contraste com a essência não é consequentemente nada além da própria imediatez da essência”17 – por baixo do fluxo do ser ilusório (da aparência: Schein), não há uma Essência substancial idêntica a si mesma: a imediatez do aparecer ilusório coincide com a imediatez da substância não ilusória, de seu “verdadeiro” ser; ou, em termos lacanianos, essência “é essa estrutura na qual o mais interior se conjuga com o mais exterior, revirando-se sobre si mesmo”18. Isso significa que tudo o que existe é o fluxo do ser ilusório, de suas determinações passageiras, e o nada por trás dele:
Esses dois momentos, nomeadamente o nada, porém o nada que subsiste [Bestehen], e o ser, mas o ser enquanto um momento, ou ainda a negatividade em si e a imediatez refletida, que constituem os momentos do ser ilusório, são portanto momentos da própria essência; o que temos aqui não é uma exibição ilusória do ser em essência ou uma exibição ilusória da essência em ser; o ser ilusório em essência não é o ser ilusório de outro, mas é ser ilusório em si, ser ilusório da essência em si. O ser ilusório é essência em si na determinidade do ser.19
Hegel já havia feito essa afirmação em sua Fenomenologia, em que declarou que a essência suprassensível é aparência enquanto aparência; é isso que está na cópia, mais que o próprio original.
Isso nos leva de volta à afirmação sobre a substância e o sujeito feita na introdução da Fenomenologia do espírito: Hegel não diz simplesmente que “Substância é Sujeito”, e sim que não se deve conceber o Absoluto “só como Substância, mas também como Sujeito”. O Sujeito, portanto, não é meramente um momento subordinado da Substância, da totalidade substancial, tampouco a Substância é diretamente o Sujeito, de modo que não devemos afirmar sua identidade imediata (“Substância – a Origem de tudo, seu princípio fundador – é a força produtiva da negatividade autorrelativa que é o núcleo da subjetividade”; ou seja, a Substância em sua efetividade não é nada mais que o sujeito em ação). O sujeito é sempre-já relacionado a um conteúdo substancial heterogêneo – vem sempre depois como negação ou mediação desse conteúdo, como sua cisão ou distorção –, e esse caráter secundário deveria ser mantido até o fim, o sujeito jamais deveria ser diretamente alçado a Princípio fundador de toda a realidade.
Essa “contenção” do sujeito – a ideia de que a Substância = Sujeito de Hegel funciona como “juízo infinito” de dois termos incompatíveis e não como plena subjetivação da Substância, não como afirmação direta do Sujeito enquanto solo produtivo de toda a realidade, como agente que “consome” ou se apropria de tudo que existe – não deve ser interpretada como um compromisso mal elaborado, no sentido de que “subjetividade demais é autodestrutiva, então devemos manter a medida apropriada”. Além de ser filosoficamente ingênua, essa posição de compromisso é errada: o movimento para “conter” o sujeito é igual à plena afirmação de sua subjetividade, pois, em sua forma mais elementar, o “sujeito” não é um agente substancial que gera toda a realidade, mas precisamente o momento do corte, do fracasso, da finitude, da ilusão, da “abstração”. “Não só como Substância, mas também como Sujeito” não quer dizer apenas que a Substância é “realmente” uma força da automediação subjetiva etc., mas que a Substância é em si ontologicamente imperfeita, incompleta. Foi isso que Hegel viu claramente, em contraposição à tradição “subjetivista” que chega ao apogeu na ideia de Fichte a respeito do eu absoluto que põe a si mesmo: o sujeito não vem primeiro, ele não é um novo nome para o Um que a tudo fundamenta, mas sim o nome para a impossibilidade interior ou autobloqueio do Um.
Isso significa que a ilusão é necessária, inerente à verdade: la verité surgit de la méprise (“a verdade surge da equivocação”), como diz Lacan em sua expressão mais hegeliana, e é isso que o espinosiano não pode aceitar. O que este pode pensar e pensa é a necessidade do erro; o que não consegue aceitar é o erro ou a equivocação como imanente à verdade e anterior a ela – epistemológica e ontologicamente, o processo tem de começar com o erro, e a verdade só pode surgir depois, como um erro repetido, por assim dizer. Por quê? Porque, como vimos a propósito do Entendimento e da Razão, a verdade (Razão) não é uma correção do erro (das abstrações unilaterais do Entendimento), a verdade é o erro como tal, o que efetivamente fazemos quando (nos percebemos enquanto) cometemos um erro, de modo que o erro reside no próprio olhar que percebe o ato como um erro. Em outras palavras, a “Substância como Sujeito” de Hegel deveria ser lida, portanto, de maneira análoga à releitura que Lacan faz da famosa fórmula de Freud (“wo es war soll ich werden”), que também não deveria ser interpretada como uma busca da simples subjetivação da substância inconsciente (“Eu deveria me apropriar do meu inconsciente”), mas como o reconhecimento do meu lugar dentro dele, de que o sujeito só existe pela inconsistência do inconsciente.
Para recapitular, o tema hegeliano da Substância como Sujeito significa que o Absoluto enquanto Real não é simplesmente diferente ou diferenciado dos entes finitos – o Absoluto não é senão essa diferença. Em sua forma mais elementar, o Real é a própria não identidade: a impossibilidade de X (vir a) ser “plenamente si mesmo”. O Real não é o intruso ou obstáculo externo que impede a realização da identidade de X consigo mesmo, mas a impossibilidade absolutamente imanente dessa identidade. Não é que X não possa se realizar plenamente como X, porque um obstáculo externo o estorva – a impossibilidade vem primeiro, e o obstáculo externo acaba materializando essa impossibilidade. Como tal, o Real é opaco, inacessível, fora de alcance e inegável, impossível de ser contornado ou removido; nele, falta e excesso coincidem. Essa sobreposição parece estranha à dialética: sua coincidência de opostos não parece ser da mesma natureza que as reversões e mediações do processo dialético. O Real é antes o Fundo pré-lógico abissal, opaco e indeterminado, que sempre-já está lá, pressuposto por cada processo propriamente dialético. Não surpreende que nesse momento nos lembremos de Schelling, que em sua crítica da filosofia “negativa” de Hegel tematizou o Fundamento pré-lógico do Ser como uma positividade opaca e ao mesmo tempo inevitável. Mas será que é realmente isso?
A aposta hegeliana é que o processo dialético põe retroativamente esse Fundo pressuposto como sinal de sua própria incompletude. Ou seja, em Hegel, o começo tem o status do Real lacaniano, que é sempre-já perdido, deixado para trás, mediado etc., e, no entanto, é ao mesmo tempo algo do qual jamais nos livramos, algo que persiste para sempre, que continua nos perseguindo. Por exemplo, a jouissance enquanto real é perdida para quem reside na ordem simbólica, nunca é dada diretamente e assim por diante; contudo, a própria perda do gozo gera um gozo próprio, um mais-gozar (plus-de-jouir), de modo que a jouissance é ao mesmo tempo algo sempre-já perdido e algo do qual jamais podemos nos livrar. O que Freud chamou de compulsão à repetição é fundamentado nessa condição radicalmente ambígua do Real: o que se repete é o próprio Real, que, perdido desde o início, persiste em retornar de novo e de novo.
O início hegeliano não teria o mesmo status, principalmente quando trata do início da filosofia? Este parece se repetir de novo e de novo: espiritualidade oriental, Parmênides, Espinosa, tudo representa o gesto inaugural da filosofia que tem de ser deixado para trás, se quisermos progredir na longa trajetória da Substância para o Sujeito. No entanto, esse início não é um obstáculo que nos retrai, mas o próprio motivador ou instigador do “desenvolvimento”: o verdadeiro desenvolvimento – a passagem para um novo nível – ocorre apenas por meio de um repetido ajuste de contas com o gesto inaugural. O início, portanto, é o que Fichte chamou de Anstoss: obstáculo e instigação ao mesmo tempo. O gesto inaugural sempre se repete em um novo disfarce: o início oriental (China e Índia, a primeira versão de Ser e Nada) representa o abismo pré-filosófico da mitologia caótica, Parmênides representa o início filosófico propriamente dito, a ruptura com a mitologia e a afirmação conceitual do Um, ao passo que Espinosa designa o início moderno (Substância como receptáculo de prósperas multiplicidades). Por que Parmênides – que afirma que somente existe o Ser, o Um – não é oriental? Por que é o primeiro filósofo ocidental? A diferença não está no nível do conteúdo, mas no nível da forma: Parmênides diz o mesmo que os orientais, mas o diz de forma conceitual. Ao declarar que “o Ser é e o Não-Ser não é”, ao afirmar a unidade do ser e do pensamento, ele introduz no Um a diferença, uma mediação formal mínima, em contraposição ao Um oriental, que é um abismo completo, e também nem é nem não é20. A diferença entre o pensamento oriental e o pensamento de Parmênides é, portanto, a diferença entre Em-si e Para-si: Parmênides é o primeiro “dogmático” no sentido de Chesterton. Este escreveu Ortodoxia como uma resposta às críticas a seu livro anterior, Hereges (1908); no último parágrafo de “Observações finais sobre a importância da Ortodoxia”, último capítulo de Hereges, ele diz:
As verdades se transformam em dogmas no instante em que são contestadas. Assim, todo homem que expressa uma dúvida descreve uma religião. E o ceticismo de nosso tempo não destrói as crenças, ao contrário, as cria; define-lhes os limites e a forma simples e desafiante. Nós, que somos liberais, outrora acreditávamos no liberalismo como um leve truísmo. Nós, que acreditávamos no patriotismo, antes o considerávamos razoável, e pensávamos pouco a esse respeito. Agora que sabemos que é incompreensível, o consideramos correto. Nós, que somos cristãos, nunca nos daremos conta do grande senso comum filosófico inerente àquele mistério, até que os escritores anticristãos nos chamem a atenção. A grande marcha da destruição mental continuará. Tudo será negado. Tudo se tornará um credo. É razoável negar a existência das pedras da rua; será um dogma religioso declará-lo.21
Trata-se de uma visão profundamente hegeliana: não devemos confundir dogma com a aceitação pré-reflexiva imediata de uma atitude. Os cristãos da Idade Média não eram “dogmáticos” (assim como é absurdo dizer que os gregos antigos acreditavam “de maneira dogmática” em Zeus e outras divindades do Olimpo: elas simplesmente faziam parte de seu mundo vivido), tornaram-se “dogmáticos” somente quando a Razão moderna começou a duvidar das verdades religiosas. Uma posição “dogmática” é sempre-já mediada por seu oposto, e é também por isso que o fundamentalismo contemporâneo é de fato “dogmático”: ele se apega aos artigos de fé contra a ameaça do racionalismo moderno secular. Em suma, o “dogma” já é o resultado da decomposição de um Todo substancial orgânico. Hegel descreve essa decomposição como um movimento duplo. Primeiro, há a “autonomização” daquilo que originalmente eram apenas predicados acidentais da Substância – recordemos a famosa passagem da Fenomenologia:
O círculo, que fechado em si repousa, e retém como substância seus momentos, é a relação imediata e portanto nada maravilhosa. Mas o fato de que, separado de seu contorno, o acidente como tal – o que está vinculado, o que só é efetivo em sua conexão com outra coisa – ganhe um ser-aí próprio e uma liberdade à parte, eis aí a força portentosa do negativo.22
Segundo, há a automatização oposta da própria unidade substancial: a Substância não funciona mais como receptáculo – unidade mediadora – de seu conteúdo particular, mas põe-se ou afirma a si mesma como unidade negativa desse conteúdo, como o poder de destruição de todas as suas determinações particulares – essa negatividade repousa na base da liberdade espiritual, visto que o espírito é “formalmente a liberdade, a absoluta negatividade do conceito enquanto identidade consigo. Segundo essa determinação formal, ele pode abstrair de todo o exterior e de sua própria exterioridade, de seu próprio ser-aí”23. Essa negatividade autorrelativa da substância, sua autocontradição com um ponto vazio, é a singularidade em oposição à particularidade. Nesse aspecto, o propósito especulativo é pensar esses dois movimentos juntos: os acidentes de uma substância adquirem existência própria, destacando-se de seu Todo substancial, somente na medida em que a própria Substância se reduz ou se contradiz ao ponto da singularidade. A lacuna, ou afrouxamento dos elos, entre a Substância e seus acidentes (determinações particulares) pressupõe a “contradição” radical, no cerne da própria Substância, entre sua plenitude e seu vazio, entre sua oniabrangente e oniexcludente relação consigo própria, entre S e $ (sujeito enquanto Substância “barrada”, Substância destituída de conteúdo). A expressão concreta desse elo é a identidade especulativa entre o sujeito (o vazio da negatividade que se relaciona consigo mesma) e um aspecto acidental da Substância autonomizada em um “órgão sem corpo”: esse “objeto parcial” é correlato do “puro” sujeito. Aqui, devemos opor o sujeito àquilo a que nos referimos em geral como “pessoa”: “pessoa” representa a riqueza substancial de um Si, ao passo que sujeito é a substância contraída ao ponto singular da negativa relação consigo mesmo. Nesse aspecto, devemos ter em mente que os dois pares, sujeito-objeto e pessoa-coisa, formam um quadrado semiótico greimasiano. Ou seja, se tomamos o “sujeito” como ponto de partida, ele tem dois opostos: seu contrário (correlativo) é, obviamente, o “objeto”, mas sua “contradição” é a “pessoa” (a riqueza “patológica” da vida interior em oposição ao vazio da pura subjetividade). De maneira simétrica, o correlativo oposto de uma “pessoa” é uma “coisa”, e sua “contradição” é o sujeito. “Coisa” é algo incorporado em um mundo vivido concreto, no qual toda a riqueza do significado do mundo vivido ecoa, enquanto “objeto” é uma “abstração”, algo extraído de sua incorporação no mundo vivido.
O sujeito não é correlato de uma coisa (ou, mais precisamente, de um corpo): a pessoa habita em um corpo, ao passo que o sujeito é o correlato de um objeto (parcial), um órgão sem corpo. Contra a ideia consagrada de pessoa-coisa como totalidade do mundo vivido a partir da qual o par sujeito-objeto é inferido, deveríamos insistir no par sujeito-objeto (em lacanês, $-a, sujeito barrado acoplado ao “objeto a”) enquanto primordial – o par pessoa-coisa é sua “domesticação” secundária. O que se perde nessa passagem do sujeito-objeto para a pessoa-coisa é a relação torcida da fita de Möbius: “pessoas” e “coisas” fazem parte da mesma realidade, ao passo que o objeto é o equivalente impossível do próprio sujeito. Atingimos o objeto quando percorremos até o fim o lado do sujeito (sua representação significante) na fita de Möbius e chegamos ao outro lado do mesmo ponto de onde partimos. Portanto, deveríamos rejeitar o tema da personalidade como uma unidade corpo-alma ou um Todo orgânico que é desmembrado no processo de reificação e alienação: o sujeito surge da pessoa como produto da redução violenta do corpo da pessoa a um objeto parcial24.
Sendo assim, quando Hegel escreve que o conceito é um “livre conceito subjetivo que está para si e, portanto, possui personalidade – o conceito prático e objetivo, determinado em si e para si que, como pessoa, é subjetividade atômica impenetrável”25, ele parece criar um curto-circuito sem sentido entre o domínio lógico-abstrato dos conceitos, das determinações conceituais, e o domínio psicológico da personalidade, das pessoas reais. No entanto, em uma análise mais detalhada, percebemos claramente o seguinte: a personalidade em sua “subjetividade atômica impenetrável”, o abismo ou vazio do “eu” para além de todas as minhas propriedades positivas, é uma singularidade conceitual: é a abstração “efetivamente existente” do conceito, isto é, nela o poder negativo do conceito adquire existência atual, torna-se “para si”. E o $ de Lacan, o “sujeito barrado”, é exatamente essa singularidade conceitual, uma singularidade destituída de conteúdo psicológico. É nesse sentido preciso que Hegel escreve: “A singularidade é sua [própria] passagem, de seu conceito a uma realidade exterior; é o esquema puro”26. Cada palavra traz todo seu peso nessa proposição precisa e concisa. O sujeito em sua unicidade, longe de representar a singularidade da existência irredutível a qualquer conceito universal (ideia modificada infinitas vezes na crítica de Kierkegaard a Hegel), representa exatamente o oposto: o modo como a universalidade de um conceito se transpõe para a “realidade externa”, adquire existência efetiva como parte dessa realidade temporal. É claro que o viés propriamente dialético aqui é que a universalidade adquire existência efetiva disfarçada de seu oposto – o retraimento do múltiplo da realidade em pura singularidade. Como a realidade externa é definida por suas coordenadas espaço-temporais, o sujeito, em sua efetividade, tem de existir no tempo, como a autossuprassunção do espaço no tempo; e, como ele é o conceito que adquire existência temporal, essa temporalidade só pode ser a de um “esquema” no sentido kantiano do termo, ou seja, a forma temporal a priori que serve de mediadora entre a universalidade conceitual atemporal e a “realidade externa” espaço-temporal. Consequentemente, como a realidade externa é correlativa ao sujeito que a constitui de maneira transcendental, esse sujeito é o “puro esquema” dessa realidade – não apenas seu horizonte transcendental, o quadro das categorias a priori da Razão, mas também seu esquema, a forma a priori da própria finitude temporal, o horizonte temporal do próprio a priori atemporal. Nisso consiste o paradoxo (que Heidegger foi o primeiro a identificar, em Kant and the Problem of Metaphysics [Kant e o problema da metafísica]): o puro eu como agente da síntese transcendental não está “acima” das categorias atemporais da razão, mas sim do “esquema” da finitude temporal que delimita o campo de sua aplicação.
Mas não é o sujeito que, pela síntese transcendental, “sutura” a realidade em um Todo consistente, uma nova versão da Identidade que abarca seu oposto? Nesse sentido, a negatividade radical não está transformada no fundamento de uma nova identidade? Há um paralelo entre a crítica de Foucault à leitura que Derrida faz do cogito cartesiano e a crítica “pós-moderna” à ideia hegeliana de contradição, à série diferença-oposição-contradição. Para Foucault, Descartes (e, depois dele, Derrida) avança da loucura para a dúvida universal enquanto versão mais “radical” da loucura, anulando-a, desse modo, no cogito racional. O contra-argumento de Foucault é que a loucura não é “menos” e sim mais radical que a noção de dúvida universal, que a passagem da loucura para o sonho exclui silenciosamente o excesso insuportável da loucura. De maneira homóloga, Hegel parece “radicalizar” diferença em oposição e depois oposição em contradição; no entanto, esse “progresso” anula de modo eficaz o que há de perturbador na noção de diferença para os filósofos monistas: a noção de heterogeneidade radical, de uma alteridade externa totalmente contingente que não pode ser relacionada de modo dialético à interioridade do Um. Com a passagem da diferença (simples e externa) para a oposição (que já relaciona inerentemente as unidades opostas) e depois para a contradição (em que a lacuna é posta dentro do Um, enquanto cisão inerente ou inconsistência de si), é preparado o caminho para a autossuprassunção da diferença e para o retorno do Um capaz de interiorizar – e, assim, “mediar dialeticamente” – todas as diferenças.
Laclau também segue essa linha crítica quando, ao tratar do Real, parece oscilar entre o conceito formal de Real como antagonismo e o conceito mais “empírico” do Real como aquilo que não pode ser reduzido a uma oposição formal: “a oposição A–B jamais se tornará plenamente A–não A. A ‘B-dade’ de B será, em última análise, não dialetizável. O ‘povo’ sempre será algo mais que o mero contrário do poder. Há um Real do ‘povo’ que resiste à integração simbólica”27. Está claro que a pergunta crucial é: qual é exatamente o caráter desse excesso do “povo” que é “mais que o mero contrário do poder”? O que do “povo” resiste à integração simbólica? Será apenas a riqueza de suas determinações (empíricas ou outras)? Se for esse o caso, então não estamos lidando com um Real que resiste à integração simbólica, pois o Real aqui é exatamente o antagonismo A–não A, de modo que “aquilo que há em B mais do que em A” não é o Real em B, mas as determinações simbólicas de B. Visto que Laclau, é claro, admite perfeitamente que cada Unicidade é cindida por uma lacuna inerente, o dilema é o seguinte: a inerente impossibilidade de o Um atingir a plena identidade-de-si seria resultado do fato de ele ser sempre afetado pelos Outros heterogêneos, ou será que o fato de o Um ser afetado pelos Outros é uma indicação de como ele é cindido ou tolhido em si mesmo? A única forma de “salvar o Real” é afirmar a primazia da cisão interna: o fato primordial é o impedimento interior do Um; os Outros heterogêneos simplesmente materializam esse impedimento, ou ocupam o lugar dele – e é por isso que, mesmo que sejam aniquilados, a impossibilidade (de o Um atingir sua plena identidade-de-si) permanece. Em outras palavras, se a intrusão dos Outros heterogêneos fosse o fato primordial, a aniquilação desses obstáculos externos permitiria que o Um realizasse sua plena identidade-de-si28.
É somente essa noção especulativa de identidade que nos permite apreender a verdadeira essência da crítica de Hegel a Kant, ou seja, sua rejeição da necessidade de um quadro formal-transcendental a priori como medida ou padrão que nos permitiria julgar, desde o princípio, a validade de todo conteúdo (cognitivo, ético ou estético): “não precisamos trazer conosco padrões de medida, e nem aplicar na investigação nossos achados e pensamentos, pois deixando-os de lado é que conseguiremos considerar a Coisa como é em si e para si”29. Isso é que Hegel quer dizer com idealismo “absoluto”: não a capacidade mágica do Espírito de gerar todo conteúdo, mas a completa passividade do Espírito: adotando a postura do “Saber Absoluto” (SA), o sujeito não questiona se o conteúdo (algum objeto particular de investigação) corresponde a um padrão a priori (de verdade, bondade, beleza); ele deixa que o conteúdo avalie a si mesmo, por seus próprios padrões imanentes, e assim autoriza a si mesmo. A postura do “Saber Absoluto”, portanto, coincide perfeitamente com todo o historicismo (absoluto): não há um “grande Outro” transcendental, não há critérios que possamos aplicar aos fenômenos históricos para julgá-los; todos esses critérios devem ser imanentes aos próprios fenômenos. É contra esse pano de fundo que devemos entender a afirmação “quase kafkaesca” (Pippin) na Estética de Hegel, de que o retrato de uma pessoa pode ser “mais semelhante ao indivíduo do que o indivíduo efetivo mesmo”30, o que implica que a própria pessoa nunca é plenamente “ela mesma”, não coincide com seu conceito.
Essa noção de SA já está fundamentada na definição hegeliana de Consciência-de-si, na passagem da Consciência para a Consciência-de-si (na Fenomenologia). Primeiro, a Consciência passa pelo fracasso de apreender o Em-si: o Em-si se esquiva repetidas vezes do sujeito, todo o conteúdo que supostamente pertence ao Em-si revela-se como algo que foi colocado lá pelo próprio sujeito, de modo que este fica cada vez mais preso à rede de suas próprias fantasmagorias. O sujeito passa da atitude de Consciência para a Consciência-de-si quando assume reflexivamente esse fracasso como um resultado positivo, transformando o problema em sua própria solução: o mundo do sujeito é o resultado de seu próprio “pôr-se”31. É também dessa maneira que Hegel resolve a aparente contradição entre a reflexividade da arte moderna e o advento da “natureza morta” ou da pintura de paisagens, ou seja, representações da natureza em sua “manifestação mais espiritual”: sua solução é que o objeto de atenção propriamente dito é a pintura de paisagem em si, não a paisagem natural como tal32 – essas pinturas são realmente pinturas sobre a própria pintura, um equivalente visual dos poemas ou romances sobre a escrita literária, pois o que admiramos na pintura de um peixe morto em cima de uma mesa de cozinha é o artifício do pintor, cuja maestria é exibida33.
Fazendo um parêntese, um peixe morto é um bom exemplo por outra razão bem diferente: o que torna um peixe morto um mistério são seus olhos, que continuam a nos fitar, e isso nos leva a outra consequência inferida por Hegel, ainda mais ousada e quase surreal. Mesmo quando retrata objetos naturais, a pintura trata sempre do espírito, do material aparente do espírito. No entanto, há um órgão privilegiado do corpo humano em que o espírito reverbera de maneira mais direta: o olho como “janela da alma humana”, como aquele objeto que, quando olhamos dentro dele, deparamos com o abismo da vida interior da pessoa. A conclusão dessas duas premissas é que, na medida em que a arte cria objetos naturais que são “animados” (beseelt), na medida em que, numa pintura, todos os objetos se imbuem de significado humano, é como se o tratamento artístico transformasse toda superfície visível em um olho, de modo que, quando olhamos para uma pintura, olhamos para um “Argos de mil olhos”34. Assim, a obra de arte torna-se uma monstruosidade de olhos que nos olham de todos os lados – daí podermos dizer que a beleza artística é, como afirma Lacan no Seminário XI, exatamente uma tentativa de cultivar, domar essa dimensão traumática do olhar do Outro, “pôr o olhar para repousar”.
E o que Hegel chama de Saber Absoluto (Wissen, não Erkenntniss ou conhecimento) não seria o ponto final dessas reversões, quando o sujeito depara com a limitação final, a limitação como tal, que não pode mais ser invertida em uma autoafirmação produtiva? O Saber Absoluto, portanto, “não significa ‘saber tudo’. Antes significa: reconhecer as próprias limitações”35. O “Saber Absoluto” é o reconhecimento final de uma limitação que é “absoluta” no sentido de não ser determinada ou particular, não é um limite “relativo” ou um obstáculo ao nosso conhecimento que possamos perceber com nitidez e situar como tal. É invisível “como tal” porque é a limitação de todo o campo como tal – o encerramento do campo que, de dentro do próprio campo (e, por definição, estamos sempre dentro dele, porque de certa forma esse campo “somos” nós mesmos), só pode parecer seu oposto, a própria abertura do campo. Aqui termina a responsabilidade dialética: o sujeito não pode mais jogar o jogo da “experiência da consciência”, comparando o Para-nós com o Em-si e assim subvertendo ambos, pois não há mais nenhuma forma do Em-si disponível como medida da verdade do Para-nós. De maneira surpreendente, Hegel junta-se aqui à crítica que Fichte faz da Coisa em si de Kant. O problema do Em-si, portanto, deveria ser radicalmente transformado: se, pelo Em-si, nós compreendemos o X transcendente a que se referem nossas representações, então esse X só pode ser um vazio do Nada; isso, no entanto, não implica a não existência de um real, a existência de apenas nossas representações subjetivas. Todo ser determinado é relacional, as coisas só são o que são em relação à alteridade ou, como afirma Deleuze, a distorção de perspectiva está inscrita na própria identidade da coisa. O Real não está lá fora, como o X transcendente e inacessível jamais atingido por nossas representações; o Real está aqui, como obstáculo ou impossibilidade que tornam nossas representações imperfeitas e inconsistentes. O Real não é o Em-si, mas o próprio obstáculo que distorce nosso acesso ao Em-si, e esse paradoxo nos dá a chave para o que Hegel chama de “Saber Absoluto”.
O Saber Absoluto, portanto, leva ao extremo a impossibilidade de uma metalinguagem. Em nossa experiência ordinária, confiamos na distinção entre Para-nós e Em-si: tentamos traçar a linha entre como as coisas aparecem para nós e como elas são em si mesmas, fora da relação que têm conosco: distinguimos as propriedades secundárias das coisas (que só existem para nós, como a cor ou o sabor) de suas propriedades primárias (forma etc.), que caracterizam as coisas como elas são em si mesmas; no fim dessa estrada está o puro formalismo matemático da física quântica como o único Em-si (totalmente não intuitivo) que nos é acessível. O resultado, no entanto, torna visível ao mesmo tempo o paradoxo subjacente a todas as distinções entre o Em-si e o Para-nós: o que pomos como o “Em-si” das coisas é produto do trabalho de pesquisa científica realizado durante séculos – em suma, é preciso muita atividade subjetiva (experimentação, criação de novos conceitos etc.) para chegar ao que é “objetivo”. Desse modo, os dois aspectos – o Em-si e o Para-si – revelam-se dialeticamente mediados – como diz Hegel, ambos (junto com sua distinção) “incorrem na consciência”. O que Hegel chama de “Saber Absoluto” é o ponto em que o sujeito assume plenamente essa mediação, quando abandona o projeto inatingível de assumir uma posição a partir da qual ele poderia comparar sua experiência subjetiva e o modo como as coisas são independentemente de sua experiência – em outras palavras, Saber Absoluto é um nome para a aceitação da limitação absoluta do círculo de nossa subjetividade, da impossibilidade de sairmos dela. Aqui, no entanto, devemos fazer uma ressalva fundamental: essa aceitação não resulta de modo nenhum em uma espécie de solipsismo subjetivista (individual ou coletivo). Devemos deslocar o Em-si do “exterior” fetichizado (com respeito à mediação subjetiva) para a própria lacuna entre o subjetivo e o objetivo (entre o Para-nós e o Em-si, entre as aparências e as Coisas em si). Nosso saber é irredutivelmente “subjetivo” não porque somos para sempre separados da realidade em si, mas precisamente porque fazemos parte dessa realidade, porque não podemos sair dela e a observarmos “objetivamente”. Longe de nos separar da realidade, a própria limitação do nosso saber – seu caráter inevitavelmente distorcido, inconsistente – atesta nossa inclusão na realidade.
É lugar-comum opor o “ridículo” Saber Absoluto de Hegel a uma abordagem cética e modesta que reconhece o excesso da realidade sobre cada conceituação. Mas e se Hegel for muito mais modesto? E se o seu Saber Absoluto for a afirmação de um encerramento radical: não há metalinguagem, não podemos subir em nossos próprios ombros e ver nossas limitações, não podemos relativizar ou historicizar a nós mesmos? O que é realmente arrogante, como Chesterton deixou claro, é exatamente essa relativização de si, a atitude de “saber das próprias limitações”, de não concordar consigo mesmo – como na “sábia” ideia comum de que só podemos abordar a realidade de maneira assintótica. O Saber Absoluto de Hegel nos priva exatamente dessa mínima distância de nós mesmos, a capacidade de nos colocarmos a uma “distância segura” do nosso próprio lugar.
Isso nos leva à difícil questão levantada por Catherine Malabou em The Future of Hegel: a questão da historicidade do próprio sistema hegeliano. Há passagens em Hegel (não muitas, mas em número suficiente para ser consideradas sistemáticas) que desvirtuam explicitamente a noção de “fim da história”, demonstrando que ele não pensava de maneira nenhuma que, em seu momento histórico, a história tivesse chegado ao fim. Mesmo no fim de seu “sistema”, na conclusão de Lectures on the History of Philosophy [Lições sobre a história da filosofia], ele declara suscintamente que este é, por enquanto, o estado do conhecimento: “Dies ist nun der Standpunkt der jetzigen Zeit, und die Reihe der geistigen Gestaltungen ist für jetzt damit geschlossen”36 (“Esse é o ponto de vista atual do nosso tempo, e a série de formações espirituais, por essa razão, está por ora encerrada”). Note-se a tripla relativização histórica (atual, nosso tempo, por ora), uma insistência excessiva que torna a declaração quase sintomática. Uma coisa é certa aqui: definitivamente Hegel também aplicava a si mesmo as famosas linhas do prefácio de sua Filosofia do direito:
No que concerne ao indivíduo, cada um é de toda maneira filho de seu tempo; assim a filosofia é também seu tempo apreendido em pensamentos. É tão insensato presumir que uma filosofia ultrapasse seu mundo presente quanto presumir que um indivíduo salte além de seu tempo, que salte sobre Rodes. Se sua teoria de fato está além, se edifica um mundo tal como ela deve ser, esse mundo existe mesmo, mas apenas no seu opinar – um elemento maleável em que se pode imaginar qualquer coisa.37
Há inúmeras provas de que esse não é apenas um reconhecimento formal. Na introdução de Lectures on the Philosophy of World History, ele conclui que “os Estados Unidos, portanto, são o país do futuro, e sua importância histórico-mundial ainda será revelada nas eras vindouras”38, e faz uma declaração semelhante sobre a Rússia: ambos são Estados “imaturos”, Estados que ainda não atingiram a plena efetivação de sua forma histórica. Até mesmo em sua criticadíssima filosofia da natureza, ele reconhece sua própria limitação condicionada pela história: “deve-se ficar satisfeito com o que, de fato, até agora se pode compreender. Há muita coisa que ainda não é possível compreender”39. Em todos esses casos, Hegel assume, “por um momento, um ponto de vista exterior com respeito à história (universalmente abrangente) que está contando e anuncia que, em algum momento posterior, uma história (universalmente abrangente) mais articulada estará disponível”40 – de que modo, e de qual posição, ele pode fazer isso? De onde vem esse excesso ou essa sobra do senso comum historicista, que relativiza as mais elevadas ideias especulativas? Está claro que não há espaço para isso dentro da narrativa filosófica hegeliana.
Seria esta a tarefa de uma “reversão materialista hegeliana” propriamente dita: introduzir essa relativização de si dentro do próprio “sistema”? Reconhecer traços que hoje, para nós, continuam sendo traços ilegíveis; reconhecer a irredutível lacuna paraláctica entre múltiplas narrativas (dos poderosos, dos oprimidos...) que não podem ser reunidas etc.? Mas e se essa conclusão, por mais convincente que pareça prima facie, for precipitada? E se não houver oposição externa entre o “eterno” Sistema de Conhecimento e sua relativização (de si) historicista? E se essa relativização (de si) não vier de fora, mas estiver inscrita no próprio núcleo do Sistema? O verdadeiro “não-Todo”, portanto, não deve ser buscado na renúncia da sistematicidade que pertence ao projeto da “dialética negativa”, na afirmação da finitude, dispersão, contingência, hibridez, multitude etc., mas na ausência de qualquer limitação externa que nos permita construir e/ou validar elementos com respeito a uma medida externa. Interpretado dessa maneira, o infame “fechamento do sistema hegeliano” é estritamente correlativo a(o anverso de) sua completa relativização (de si): o “fechamento” do Sistema não quer dizer que não há nada fora do Sistema (noção ingênua de Hegel como o indivíduo que alegou ter atingido o “conhecimento absoluto de tudo”); quer dizer que somos para sempre incapazes de “reflexivizar” esse Exterior, de inscrevê-lo dentro do Interior, mesmo no modo puramente negativo (e enganosamente modesto, autodepreciativo) de reconhecer que a realidade é uma Alteridade absoluta, que engana eternamente nossa apreensão conceitual.
Do início ao fim de seu Persistence of Subjectivity, Pippin faz uma distinção entre o Hegel atual, limitado historicamente, e o que ele (uma vez) chamou de “Hegel eterno”; com isso, ele não quer mostra uma verdade eterna e trans-histórica de Hegel, mas sim o modo como cada época pós-hegeliana tem de reinventar a posição do “Saber Absoluto” para fazer a pergunta: como Hegel teria contextualizado nossa condição, como é possível ser hegeliano hoje em dia? Por exemplo, Pippin tem plena consciência de que a resposta de Hegel para a crise social de sua época (a ideia de monarquia constitucional organizada em “estamentos”) não é “praticável” hoje em dia, não cumpre a tarefa de produzir a “reconciliação” dos nossos antagonismos. No entanto, o que podemos elaborar é uma “reconciliação” hegeliana (mediação dialética) das tensões de hoje. Ou, no caso da arte abstrata (podemos afirmar que esse é o exemplo mais brilhante de Pippin), é claro que Hegel não a previu, não há nenhuma teoria de arte abstrata em sua estética; no entanto, podemos inferir com facilidade, e de maneira convincente, a partir das reflexões de Hegel sobre o declínio do papel principal da arte no mundo “reflexivo” moderno, a noção (e a possibilidade) da arte abstrata como uma “reflexivização” da própria arte, como uma arte que questiona e tematiza sua própria possibilidade e seus procedimentos.
O problema aqui é se essa distinção entre o Hegel “atual” (algumas de suas soluções são obviamente datadas) e o Hegel “eterno” introduz um formalismo kantiano, nos termos da distinção entre Saber Absoluto enquanto procedimento formal da autorreflexão totalizada e suas instanciações históricas, contingentes, empiricamente condicionadas. Essa ideia de uma forma independente de seu conteúdo acidental não é profundamente anti-hegeliana? Em outras palavras, essa solução não resulta em uma “historicização” de Hegel, cujo anverso é a “falsa infinidade” do conhecimento reflexivo (em cada época, a humanidade tenta formular sua autonomia, apreender sua condição; ela acaba falhando, mas o processo continua e as formulações vão melhorando cada vez mais com o passar do tempo)?
De que maneira escapamos desse impasse? Como superar a escolha debilitante entre estas duas opções: ou a afirmação da filosofia de Hegel como o momento do Saber Absoluto no sentido ingênuo do termo (com Hegel, a história chegou a seu fim, porque ele basicamente “sabia tudo que há para saber”), ou a historicização evolucionista não menos ingênua de Hegel, na qual, ao mesmo tempo que se abandona o conteúdo – nitidamente condicionado pela história – do pensamento de Hegel, retém-se a ideia do “Hegel eterno” como uma espécie de ideia reguladora que deve ser repetidamente abordada? A saída propriamente dialética é conceber a lacuna que separa o Hegel “eterno” do Hegel “empírico” não como uma tensão dialética, não como uma lacuna entre o Ideal inacessível e sua realização imperfeita, mas como uma distância vazia e puramente formal, como um indicador da identidade dos dois. Ou seja, o argumento máximo de Hegel não é que, apesar de nossa limitação, de nosso enraizamento em um contexto histórico contingente, nós – ou, pelo menos, o próprio Hegel – podemos superar de alguma maneira essa limitação e ter acesso ao Conhecimento Absoluto (ao que o relativismo histórico responde que jamais poderemos chegar a essa posição, que só podemos almejá-la como um Ideal impossível). O que ele chama de Saber Absoluto é, ao contrário, o próprio sinal de nossa total captura – estamos condenados ao Saber Absoluto, não podemos escapar dele, pois o “Saber Absoluto” significa que não há um ponto externo de referência do qual possamos perceber a relatividade de nosso próprio ponto de vista “meramente subjetivo”.
E se concebermos o Saber Absoluto de Hegel como um ato de “pôr os pingos nos is” que seja simultaneamente o momento do término da metafísica tradicional e, por isso mesmo, o momento de abertura no extensivo campo do pensamento pós-hegeliano? É como se o próprio Hegel, com a intenção de fechar o sistema, abrisse o campo para as múltiplas rejeições de seu pensamento. A melhor maneira de sintetizar o momento hegeliano do encerramento final é, portanto, repetir a fórmula usada pelo jovem György Lukács em sua Teoria do romancec: “Acabou o caminho, começou a jornada”. O círculo está fechado, chegamos ao fim, as possibilidades imanentes se exauriram, e, nesse mesmo ponto, tudo está aberto. É por isso que ser hegeliano hoje em dia não significa aceitar o peso supérfluo de um passado metafísico, mas readquirir a capacidade de começar do começo.
Podemos interpretar a fórmula do Saber Absoluto como um juízo infinito cuja verdade reside na despropositada dissonância entre seus dois polos: o conhecimento do Absoluto, a mente de Deus, a verdade maior sobre o universo, foi formulado por aquele indivíduo contingente, o professor Hegel, da Alemanha. Talvez devêssemos interpretar esse juízo infinito do mesmo modo que o infame “o Espírito é um osso”: o “Saber Absoluto” não é o conhecimento total do universo que Hegel afirmava atingir, mas um nome paradoxal para a própria absurdidade dessa alegação ou, parafraseando mais uma vez a piada do Rabinovitch, podemos dizer: “Eu tenho o Saber Absoluto” “Mas isso é absurdo, nenhum ser finito pode tê-lo!” “Bem, o Saber Absoluto não é nada mais que a demonstração desse limite”.
Portanto, para extrairmos o “núcleo racional” da dialética de Hegel, precisamos deixar cair a “falsa” casca de Hegel como “idealista absoluto”: Hegel escreve e deixa transparecer como se tivesse uma ingênua pretensão ao “Saber Absoluto” (e a idealista Astúcia da Razão etc.), mas esse desvio por meio de uma falsa aparência é necessário, porque o ponto de vista de Hegel só pode ser mostrado pela patente absurdidade de seu argumento inicial. O mesmo se aplica a nossa (re)afirmação do materialismo dialético: o fato de que, em termos filosóficos, o “materialismo dialético” stalinista é uma imbecilidade encarnada não é algo tão fora de questão quanto talvez a própria questão, pois a questão aqui é exatamente conceber a identidade de nossa posição hegeliano-lacaniana e a filosofia do materialismo dialético enquanto juízo hegeliano infinito, isto é, enquanto identidade especulativa do mais elevado e do mais inferior, como a frase da frenologia: “o Espírito é um osso”. Em que consiste então a diferença entre a leitura “mais elevada” e a “mais inferior” do materialismo dialético? O inflexível Quarto Mestre41 cometeu um erro filosófico grave quando ontologizou a diferença entre materialismo histórico e dialético, concebendo-a como a diferença entre metaphysica universalis e metaphysica specialis, ontologia universal e sua aplicação ao domínio especial da sociedade. Aqui, tudo o que temos de fazer para passar do “mais inferior” para o “mais superior” é deslocar essa diferença entre universal e particular para o particular: o “materialismo dialético” permite outra visão da própria humanidade, diferente da visão do materialismo histórico. Então, mais uma vez, a relação entre o materialismo histórico e o dialético é de uma paralaxe: são substancialmente o mesmo, a mudança de um para outro é pura mudança de perspectiva. Ela introduz temas como a pulsão de morte, o núcleo “inumano” do humano, que vão além do horizonte da práxis coletiva da humanidade; desse modo, a lacuna entre o materialismo histórico e o dialético é afirmada como inerente à própria humanidade, como lacuna entre a humanidade e seu próprio excesso inumano.
Essa noção de Saber Absoluto nos permite escapar da armadilha em que até mesmo Jameson caiu quando associou o narcisismo àquilo que “por vezes pode ser considerado repulsivo no sistema hegeliano como tal”42 ou, em suma, como o principal ponto fraco do pensamento de Hegel, expresso na ideia de que a razão deveria encontrar consigo mesma no mundo efetivo:
Dessa forma, procuramos em todo o mundo, procuramos no espaço cósmico e acabamos simplesmente chegando a nós mesmos, simplesmente vendo nosso próprio rosto persistir no meio das numerosas diferenças e formas da alteridade. Jamais encontramos verdadeiramente o não-eu, jamais ficamos frente a frente com a alteridade radical (ou, ainda pior, jamais nos encontramos em uma dinâmica histórica em que justamente diferença e alteridade são implacavelmente aniquiladas): eis o dilema da dialética hegeliana, que as filosofias contemporâneas da diferença e da alteridade parecem ser capazes de abordar apenas com evocações e imperativos místicos.43
Tomemos a dialética hegeliana em sua forma mais “idealista”, isto é, no nível que parece confirmar a acusação do narcisismo: a ideia de suprassunção (Aufhebung) de toda realidade material imediata. A atividade fundamental da Aufhebung é a redução: a coisa suprassumida sobrevive, mas em uma versão “abreviada”, por assim dizer, arrancada do contexto de seu mundo vivido, reduzida a sua característica essencial, e todo movimento e riqueza de sua vida são reduzidos a uma marca fixa. Não que, depois que a abstração da Razão cumpre sua tarefa mortificadora com suas categorias fixas ou determinações conceituais, a “universalidade concreta” retorne de alguma maneira à exuberância da vida: uma vez que passamos da realidade empírica para sua Aufhebung conceitual, a imediatez da Vida perde-se para sempre. Não há nada mais estranho para Hegel do que lamentar a perda da riqueza da realidade quando a apreendemos conceitualmente – recordemos aqui sua celebração inequívoca do poder absoluto do Entendimento no prefácio da Fenomenologia: “A atividade do dividir é a força e o trabalho do entendimento, a força maior e mais maravilhosa, ou melhor, a potência absoluta”d. De modo algum a celebração é condicionada, pois o argumento de Hegel não é que esse poder seja posteriormente “suprassumido” em um momento subordinado da totalidade unificadora da Razão. O problema do Entendimento é antes o fato de ele não liberar esse poder até o fim, não assumir a si mesmo como ser externo à Coisa em si. A ideia usual é que nosso Entendimento (“a mente”) simplesmente separa na imaginação o que na “realidade” deve estar junto, de modo que o “poder absoluto” do Entendimento é apenas o poder da imaginação, que de modo algum diz respeito à realidade da coisa analisada. Passamos do Entendimento à Razão não quando esse analisar, esse dissociar, é superado em uma síntese que nos leva de volta à riqueza da realidade, mas sim quando esse poder de “dissociar” é transferido do ser “simplesmente na mente” para as Coisas em si, como seu poder inerente de negatividade.
Podemos dizer o mesmo a respeito da noção propriamente dialética de abstração: o que torna infinita a “universalidade concreta” de Hegel é o fato de incluir “abstrações” na realidade concreta como seus constituintes imanentes. Dito de outra forma: qual é, para Hegel, o movimento elementar da filosofia com respeito à abstração? É abandonar a ideia empirista baseada no senso comum que considera a abstração um distanciamento da riqueza da realidade empírica concreta com sua multiplicidade irredutível de aspectos: a vida é verde, os conceitos são cinza, eles dissecam e mortificam a realidade concreta. (Essa ideia inspirada no senso comum tem até uma versão pseudodialética, segundo a qual essa “abstração” é uma característica do mero Entendimento, ao passo que a “dialética” recupera o rico mosaico da realidade.) O pensamento filosófico propriamente dito começa quando nos tornamos cientes de quão inerente à própria realidade é esse processo de “abstração”: a tensão entre realidade empírica e suas determinações conceituais “abstratas” é imanente à realidade, é um traço das “Coisas em si”. Aí se encontra a característica antinominalista do pensamento filosófico – por exemplo, a ideia basilar da “crítica da economia política” de Marx é que a abstração do valor de uma mercadoria é seu constituinte “objetivo”. É a vida sem teoria que é cinza, realidade estúpida e rasa; somente a teoria a torna “verde”, realmente viva, trazendo à tona a complexa rede subjacente de mediações e tensões responsáveis por seu movimento.
É dessa maneira que devemos diferenciar a “verdadeira infinidade” da “falsa (ou má) infinidade”: a má infinidade é o processo assintótico de descobrir sempre novas camadas da realidade – a realidade é posta aqui como o Em-si que jamais pode ser apreendido em sua plenitude, é abordado somente de maneira gradativa, pois tudo o que podemos fazer é discernir características “abstratas” particulares da plenitude inacessível e transcendente da “Coisa real”. O movimento da “verdadeira infinidade” é exatamente o oposto: inclui o processo de “abstração” na “Coisa em si”. Surpreendentemente, isso nos leva à seguinte questão: o que está envolvido no autodesdobramento dialético de um conceito? Como ponto de partida, vamos imaginar que estamos presos em uma complexa e confusa situação empírica que tentamos entender e ordenar. Como nunca partimos do ponto zero da experiência pré-conceitual, começamos com o duplo movimento de aplicar à situação os conceitos universais abstratos que temos a nosso dispor e analisar a situação, comparando os elementos uns aos outros e a nossas experiências anteriores, generalizando e formulando universais empíricos. Mais cedo ou mais tarde, percebemos as inconsistências nos sistemas conceituais que usamos para entender a situação: algo que poderia ter sido uma espécie subordinada parece abranger e dominar o campo como um todo; há um conflito entre diferentes classificações e categorizações e não somos capazes de decidir qual é mais “verdadeira” e assim por diante. Espontaneamente, descartamos essas inconsistências como sinais da deficiência de nosso entendimento: a realidade é rica e complexa demais para nossas categorias abstratas, jamais seremos capazes de pôr em ação uma rede conceitual capaz de capturar sua diversidade. No entanto, se tivermos uma sensibilidade teórica apurada, mais cedo ou mais tarde notamos algo estranho e inesperado: é impossível diferenciar com clareza as inconsistências de nossa ideia de objeto das inconsistências imanentes ao próprio objeto. A “Coisa em si” é inconsistente, cheia de tensões e oscila entre suas diferentes determinações; o desdobramento dessas tensões, essa luta, é o que a torna “viva”. Pensemos em um Estado político particular: quando ele funciona mal, é como se suas características particulares (específicas) estivessem em tensão com a Ideia universal de Estado; ou pensemos no cogito cartesiano: a diferença entre o eu enquanto pessoa particular encarnada em um mundo vivido particular e o eu enquanto Sujeito abstrato faz parte de minha identidade particular, pois agir como Sujeito abstrato é um aspecto que caracteriza os indivíduos na sociedade ocidental moderna. Aqui, mais uma vez, o que surge como conflito entre as duas “abstrações” em nossa mente revela-se como tensão na Coisa em si.
Um caso semelhante de “contradição” hegeliana pode ser encontrado na ideia de “liberalismo”, conforme sua função no discurso contemporâneo. Seus muitos significados oscilam entre dois polos opostos: o liberalismo econômico (individualismo de livre mercado, oposição a um forte regulamento estatal etc.) e o liberalismo político libertário (sua ênfase é na igualdade, solidariedade social, permissividade etc.) – nos Estados Unidos, os republicanos são mais liberais no primeiro sentido e os democratas, no segundo. A questão, obviamente, é que embora não possamos decidir por meio de uma análise detalhada qual é o “verdadeiro” liberalismo, também não podemos resolver o impasse tentando propor um tipo de síntese dialética “superior” ou “evitar a confusão”, fazendo uma distinção clara entre os dois sentidos do termo. A tensão entre os dois significados é inerente ao próprio conteúdo que o “liberalismo” tenta especificar, é constitutiva do próprio conceito; por isso, a ambiguidade, longe de sinalizar a limitação de nosso conhecimento, sinaliza a mais profunda “verdade” da noção de liberalismo. Em vez de perderem seu caráter abstrato e afundarem na realidade concreta, as “abstrações” continuam sendo “abstrações” e relacionam-se umas com as outras como abstrações.
Na década de 1960, um teórico “progressista” da educação provocou grande sensação quando publicou os resultados de um experimento muito simples: ele reuniu crianças de cinco anos de idade e pediu que desenhassem a si próprias brincando em casa; dois anos depois, pediu às crianças que fizessem a mesma coisa, depois de terem frequentado por um ano e meio a escola primária. A diferença foi notável: os autorretratos das crianças aos cinco anos eram exuberantes, vivos, coloridos, divertidos e surreais, mas dois anos depois os desenhos eram muito mais rígidos e reprimidos, além de a grande maioria das crianças ter usado espontaneamente apenas um lápis preto comum, por mais que houvesse outras cores para escolher. Como era de esperar, esse experimento foi usado como prova da “opressão” do aparato escolar, de como a disciplina e o treino escolar estavam reprimindo a criatividade espontânea das crianças etc. De um ponto de vista hegeliano, deveríamos, ao contrário, comemorar essa mudança de uma vitalidade colorida para uma ordem cinzenta como indício do progresso espiritual: nada se perde na redução do colorido vivo para a disciplina cinza, tudo tem a possibilidade de ser obtido – o poder do espírito é exatamente progredir da imediatez “verde” da vida para a estrutura conceitual “cinza” e reproduzir nesse meio reduzido as determinações essenciais para as quais nossa experiência imediata nos cega.
A mesma mortificação ocorre na memória histórica e nos monumentos do passado, quando o que sobrevive são objetos privados de suas almas. Eis o comentário de Hegel a respeito da Grécia Antiga: “As estátuas são agora cadáveres cuja alma vivificante escapou, como os hinos são palavras cuja fé se escapou”44. Assim como a passagem do Deus substancial para o Espírito Santo, devemos buscar a reanimação propriamente dialética nesse mesmo meio das determinações conceituais “cinza”: “O entendimento, pela forma da universalidade abstrata, concede [às variedades do sensível], por assim dizer, uma rigidez de ser [...]; mas, ao mesmo tempo, por meio dessa simplificação, ele as anima espiritualmente e assim as estimula”45. Essa “simplificação” é justamente o que Lacan, referindo-se a Freud, empregou como redução de uma coisa ao trait unaire (der einzige Zug, o traço unário): estamos lidando com uma espécie de epitomização por meio da qual uma multitude de propriedades é reduzida a uma única característica dominante, de modo que tenhamos “uma figura concreta na qual predomina uma só determinidade, enquanto outras só ocorrem como traços rasurados”46: “o conteúdo já é a efetividade reduzida à possibilidade (zur Moeglichkeit getilgte Wirklichkeit). Foi subjugada à imediatez, a configuração foi reduzida a sua abreviatura, à simples determinação-de-pensamento”47.
A abordagem dialética costuma ser vista como uma tentativa de situar o fenômeno-a-ser-analisado na totalidade a que pertence, encarnado em seu rico contexto histórico, e assim quebrar o feitiço da abstração fetichizadora. Essa, no entanto, é a grande armadilha que devemos evitar: para Hegel, o verdadeiro problema é o oposto – o fato de vermos muito na coisa que observamos, de sermos enfeitiçados pela riqueza de detalhes empíricos que nos impede de perceber claramente a determinação conceitual que forma o núcleo da coisa. O problema, porém, não é como apreender a riqueza das determinações, mas como abstraí-las, como restringir nosso olhar e aprender a entender somente a determinação conceitual.
Nesse aspecto, a fórmula de Hegel é bastante precisa: a redução ao significativo “traço unário” reduz ou restringe a efetividade à possibilidade, no exato sentido platônico em que a noção (Ideia) de uma coisa sempre tem uma dimensão deontológica e designa o que a coisa deveria se tornar para ser plenamente o que é. “Potencialidade”, desse modo, não é apenas um nome para a essência de uma coisa enquanto potencialidade efetivada na multitude de coisas empíricas de determinado gênero (a Ideia de cadeira é uma potencialidade efetivada nas cadeiras empíricas). As múltiplas propriedades efetivas de uma coisa não são apenas reduzidas ao núcleo interno da “verdadeira realidade” da coisa; mais importante que isso é que o nome acentua ou dá destaque ao potencial interno da coisa. Quando chamo alguém de “meu professor”, estou resumindo a expectativa que tenho dele; quando me refiro a uma coisa como “cadeira”, dou destaque ao modo como pretendo usá-la. Quando observo o mundo a minha volta pelas lentes de uma linguagem, percebo sua efetividade pelas lentes das potencialidades que estão escondidas ou presentes nele de modo latente. A potencialidade, portanto, aparece “como tal”, efetiva-se enquanto potencialidade, somente por meio da linguagem: é a apelação de uma coisa que traz à luz (“põe”) seus potenciais.
Uma vez que assimilamos a Aufhebung dessa maneira, vemos de imediato o que há de errado com uma das principais razões pseudofreudianas para desconsiderar Hegel: a noção do Sistema de Hegel como expressão mais elevada e exagerada da economia oral. A Ideia hegeliana não seria de fato um devorador voraz que “consome” todo objeto com que se depara? Não surpreende que Hegel visse a si mesmo como cristão: para ele, a transubstanciação do pão em carne de Cristo indica que o sujeito cristão pode incorporar e digerir o próprio Deus sem deixar restos. O processo hegeliano de concepção ou apreensão não seria uma versão mais sutil da digestão? Hegel escreve:
Se o ser humano faz algo, concretiza algo, atinge um objetivo, tal fato deve ser fundamentado no modo como a coisa em si, no seu conceito, age e se comporta. Se como uma maçã, destruo sua orgânica identidade-de-si e a absorvo. Que eu possa fazê-lo representa que a maçã em si, de maneira prévia, já antes de eu segurá-la, tem em sua natureza a determinação de estar sujeita à destruição, tendo em si uma homogeneidade com meus órgãos digestivos de modo que eu mesmo posso torná-la homogênea.48
O que ele descreve aqui não seria uma versão inferior do próprio processo cognitivo em que, como Hegel gosta de afirmar, só podemos apreender o objeto se o objeto já “quer estar conosco, ou perto de nós”? Devemos levar essa metáfora até o fim: a leitura crítica comum concebe a absoluta Substância-Sujeito hegeliana como totalmente constipada – retendo dentro de si o conteúdo indigesto. Ou, como Adorno coloca em uma de suas incisivas observações (que, como costuma acontecer, erra o alvo), o sistema de Hegel “é a barriga que se tornou espírito”49, comportando-se como se tivesse engolido a totalidade da indigesta Alteridade. Mas o que dizer do inevitável contramovimento, a evacuação hegeliana? O sujeito do que Hegel chama de “Saber Absoluto” não é também um sujeito totalmente esvaziado, reduzido ao papel de puro observador (ou antes registrador) do movimento de si do próprio conteúdo?
O mais rico é portanto o mais concreto e mais subjetivo, e o que se recolhe para a mais simples profundeza é também o mais poderoso e oniabrangente. O ponto mais alto e concentrado é a pura personalidade que, unicamente pela dialética absoluta que é a natureza, não mais abrange e guarda tudo dentro de si.50
Nesse sentido estrito, o próprio sujeito é a substância ab-rogada ou purgada, a substância reduzida ao vácuo da forma fazia da negatividade autorrelativa, esvaziada de toda riqueza de “personalidade” – em lacanês, o movimento da substância ao sujeito é o movimento de S a $, o sujeito é a substância barrada. (Adorno e Horkheimer, na Dialética do esclarecimento, defendem o argumento crítico de que o Si voltado para a mera sobrevivência tem de escarificar todo conteúdo que faria a sobrevivência valer a pena; é exatamente essa atitude que Hegel afirma.) Schelling se referiu ao mesmo movimento como contradição (mais uma vez, com a conotação de excremento): o sujeito é a substância contraída.
Então a posição subjetiva final do Sistema hegeliano modifica a metáfora digestiva? O caso supremo (e, para muitos, o mais problemático) desse contramovimento surge no fim da Lógica, quando, depois de completar o desenvolvimento conceitual fechando o círculo da Ideia absoluta, a Ideia, em sua resolução ou decisão, “liberta-se livremente”51 na Natureza – deixa-se ir, descarta-se, distancia-se de si mesma e liberta-se. É por isso que, para Hegel, a filosofia da natureza não é uma reapropriação violenta de sua exterioridade; ao contrário, envolve a atitude passiva de um observador: “a filosofia, de certo modo, tem apenas de assistir como a natureza mesma suprassume sua exterioridade”52.
O mesmo movimento é realizado por Deus, que, disfarçado de Cristo, na qualidade de mortal finito, também “liberta-se livremente” na existência temporal. E o mesmo é válido para os primórdios da arte moderna, quando Hegel explica o surgimento das pinturas de “natureza morta” (não só de paisagens, flores etc., mas de comida e animais mortos) da seguinte maneira: justamente porque, no desenvolvimento da arte, a subjetividade não precisa mais do visual como principal meio de expressão – a atenção voltava-se então para a poesia como meio mais direto de expressar a vida interior do sujeito –, o natural é “libertado” do fardo de expressar a subjetividade e pode ser abordado, e retratado visualmente, em seus próprios termos. Além disso, como alguns leitores atentos de Hegel já notaram, a própria suprassunção da arte nas ciências filosóficas (no pensamento conceitual) – o fato de não ser mais obrigada a servir como principal meio de expressão do espírito – dá certa liberdade à arte, permitindo que ela seja independente. Não seria essa a verdadeira definição do nascimento da arte moderna como prática que não é mais subordinada à tarefa de representar a realidade espiritual?
O modo como a ab-rogação se relaciona com a suprassunção não diz respeito a uma simples sucessão ou oposição externa: não é “come-se primeiro e caga-se depois”. A evacuação é a conclusão imanente de todo o processo: sem ela, estaríamos lidando com uma “falsa infinidade” de um processo de suprassunção interminável. O processo de suprassunção só pode chegar ao fim em seu contramovimento:
Contrariamente ao que imaginaríamos de início, esses dois processos, de suprassunção e ab-rogação, são completamente interdependentes. Considerando o último momento do espírito absoluto (Filosofia), percebemos de imediato a sinonímia entre os verbos aufheben e befrein (“libertar”), bem como ablegen (“descartar”, “remover”, “tirar”). A ab-rogação especulativa, de modo algum alheia ao processo de Aughebung, é na verdade sua realização. A ab-rogação é a suprassunção da suprassunção, resultado do trabalho da Aufhebung sobre si mesma e, como tal, sua transformação. O movimento de supressão e preservação gera essa transformação em determinado momento na história, o momento do Saber Absoluto. A ab-rogação especulativa é a suprassunção absoluta, se por “absoluto” designarmos um alívio ou suprassunção livre de determinado tipo de ligação.53
A verdadeira cognição, desse modo, não é apenas a “apropriação” conceitual de seu objeto: o processo de apropriação só continua na medida em que a cognição permanece incompleta. O sinal de sua completude é liberar seu objeto, deixar que ele seja, largá-lo. É por isso e desse modo que a suprassunção tem de culminar no gesto autorrelativo de suprassumir a si mesmo.
E quanto a este óbvio contra-argumento: a parte ab-rogada ou libertada não seria meramente o aspecto arbitrário e temporário do objeto, a parte que a redução ou mediação conceitual permite-se abandonar como sendo em si inútil? É exatamente esse erro que devemos evitar, e por duas razões. Primeiro (se me permitem desenvolver a metáfora do excremento), a parte liberada é, justamente na condição de descartada, o esterco do desenvolvimento espiritual, o fundamento do qual nasce o desenvolvimento posterior. A libertação da Natureza dentro de si mesma, portanto, estabelece a fundação para o Espírito propriamente dito, que só pode se desenvolver a partir da Natureza, como sua autossuprassunção inerente. Segundo (e mais fundamental), na cognição especulativa o que é liberado em seu próprio ser é, no fundo, o próprio objeto da cognição, que, quando verdadeiramente apreendido (begriffen), não precisa mais confiar na intervenção ativa do sujeito, mas desenvolve-se de acordo com o próprio automatismo conceitual – sendo o sujeito reduzido a um observador passivo que, sem fazer nenhuma intervenção (Zutun), permite que a coisa desenvolva seu potencial e simplesmente registra o processo. É por isso que a cognição hegeliana é ativa e passiva ao mesmo tempo, mas em um sentido que desloca radicalmente a noção kantiana de cognição como unidade de atividade e passividade. Em Kant, o sujeito sintetiza de maneira ativa o (confere unidade ao) conteúdo (multiplicidade sensível) pelo qual ele é passivamente afetado. Para Hegel, ao contrário, no nível do Saber Absoluto, o sujeito cognoscente é completamente passivado: ele não intervém mais no objeto, mas apenas registra o movimento imanente de diferenciação/autodeterminação do objeto (ou, para usarmos um termo mais contemporâneo, a auto-organização autopoiética do objeto). Portanto, o sujeito não é, em sua forma mais radical, o agens do processo: o agens é o Sistema (de conhecimento) que se desenvolve “automaticamente”, sem a necessidade de estímulo externo. Essa passividade total, no entanto, envolve ao mesmo tempo uma grande atividade: o sujeito precisa do mais árduo esforço para “apagar-se” em seu conteúdo particular, enquanto agente que intervém no objeto, e para expor-se como meio neutro, como lugar do autodesenvolvimento do Sistema. Hegel, com isso, supera o dualismo comum entre Sistema e Liberdade, entre a noção espinosiana de um deus sive natura substancial, do qual faço parte, preso no determinismo, e a noção fichteana do sujeito como agente oposto à matéria inerte, tentando dominá-la e apropriar-se dela. O momento supremo da liberdade do sujeito é quando ele liberta seu objeto, deixando que se desenvolva livremente: “a liberdade absoluta da ideia é que ela [...] decide-se a deixar sair livremente de si o momento de sua particularidade”54. Aqui, “liberdade absoluta” é literalmente absoluta, no sentido etimológico de absolvere: liberar, deixar ir. Schelling foi o primeiro a criticar esse movimento como ilegítimo: depois de completar o círculo do autodesenvolvimento lógico do Conceito, e ciente de que todo ele aconteceu no meio abstrato do pensamento, Hegel tinha de fazer de alguma maneira a passagem para a vida real – contudo, não havia em sua lógica categorias capazes de realizar essa passagem, por isso teve de recorrer a termos como “decisão” (a Ideia “decide” libertar a Natureza de si mesma), que não são categorias da lógica, mas da vontade e da vida prática. É evidente que essa crítica não leva em consideração que o ato de libertar o outro é completamente imanente ao processo dialético como seu momento conclusivo, ou seja, o sinal da conclusão do círculo dialético. Não seria essa a versão hegeliana da Gelassenheit?
É dessa maneira, portanto, que devemos ler o “terceiro silogismo da Filosofia” de Hegel, Espírito-Lógica-Natureza: o ponto de partida do movimento especulativo é a substância espiritual, na qual os sujeitos estão imersos; depois, por meio de um esforço conceitual árduo, a riqueza dessa substância é reduzida a sua lógica subjacente ou estrutura conceitual; uma vez cumprida essa tarefa, a Ideia lógica plenamente desenvolvida pode libertar a Natureza de si mesma. Eis a passagem crucial:
A Ideia [...] ao pôr-se como unidade absoluta do puro Conceito e sua realidade, e assim contraindo-se na imediatez do ser, é a totalidade nessa forma – natureza.
Mas essa determinação não resulta de um processo de devir, tampouco é uma transição como a supracitada em que a Noção subjetiva na sua totalidade torna-se objetiva e o fim subjetivo torna-se vida. Ao contrário, a pura Ideia – na qual a determinidade ou realidade do Conceito é, ela mesma, elevada ao Conceito – é uma libertação absoluta para a qual não há mais nenhuma determinação imediata que não seja igualmente posta ela mesma Conceito; nessa liberdade, no entanto, não tem lugar nenhuma transição; o simples ser para o qual a Ideia se determina continua perfeitamente transparente e é o Conceito que, na sua determinação, subsiste consigo. A passagem portanto deve ser entendida antes dessa maneira, que a Ideia solta-se livremente na sua absoluta autoafirmação e equilíbrio interior. Em virtude dessa liberdade, a forma de sua determinidade é também totalmente livre – a exterioridade de espaço e tempo existe absolutamente por si só, sem o momento da subjetividade.55
Aqui, Hegel insiste repetidas vezes no fato de que essa “libertação absoluta” é totalmente diferente da “transição” dialética padrão. Mas como? A suspeita é que a “libertação absoluta” de Hegel seja baseada na mediação absoluta de toda alteridade: eu liberto o Outro depois de interiorizá-lo por completo... Mas é isso mesmo?
Devemos fazer uma releitura da crítica de Lacan a Hegel: e se, longe de negar o que Lacan chama de “disjunção subjetiva”, Hegel afirme, ao contrário, uma divisão sem precedentes que transpassa o sujeito (particular) e a ordem substancial (universal) da “coletividade”, unificando as duas coisas? Ou seja, e se a “reconciliação” entre Particular e Universal ocorre exatamente por meio da divisão que atravessa os dois? A crítica básica “pós-moderna” a Hegel – que sua dialética admite antagonismos que só serão resolvidos em um passe de mágica em uma síntese mais elevada – contrapõe-se estranhamente à velha e boa crítica marxista (já formulada por Schelling) segundo a qual Hegel resolve os antagonismos somente no “pensamento”, por meio da mediação conceitual, ao passo que, na realidade, permanecem sem solução. Somos tentados a aceitar essa segunda crítica por seu significado manifesto e usá-la contra a primeira: e se essa for a resposta apropriada para a acusação de que a dialética hegeliana resolve antagonismos com um passe de mágica? E se, para Hegel, a questão for exatamente não “resolver” os antagonismos “na realidade”, mas apenas encenar uma mudança paraláctica por meio da qual os antagonismos sejam reconhecidos “como tais” e, portanto, percebidos em seu papel “positivo”?
A passagem de Kant a Hegel é assim muito mais intricada do que parece – vamos abordá-la mais uma vez, considerando a oposição com respeito à prova ontológica da existência de Deus. A rejeição dessa prova por Kant tem como ponto de partida a tese de que o ser não é um predicado: ainda que se conheçam todos os predicados de um ente, seu ser (existência) não resulta disso, pois não se pode concluir o ser a partir da noção. (O argumento é posto claramente contra Leibniz, segundo o qual dois objetos são indiscerníveis se todos os seus predicados forem os mesmos.) As implicações para a prova ontológica são claras: da mesma maneira que posso ter uma noção perfeita de cem táleres e ainda assim não tê-los em meu bolso, posso ter uma noção perfeita de Deus e ainda assim Deus não existir. A primeira observação de Hegel acerca dessa linha de raciocínio é que o “ser” é a mais pobre e imperfeita determinação conceitual (tudo “é” de alguma maneira, inclusive minhas imaginações mais desvairadas); é somente por outras determinações conceituais que chegamos à existência, à realidade, à efetividade, as quais são muito mais que o mero ser. Sua segunda observação é que a lacuna entre conceito e existência é exatamente a marca da finitude, ela vale para objetos finitos como cem táleres, mas não para Deus: Deus não é algo que eu possa ter (ou não ter) no bolso.
À primeira vista, pode parecer que, no fundo, essa oposição seja entre materialismo e idealismo: Kant insiste em um materialismo mínimo (a independência da realidade com respeito às determinações conceituais), ao passo que Hegel dissolve totalmente a realidade em suas determinações conceituais. No entanto, a verdadeira questão de Hegel está em outro lugar: ela envolve uma afirmação “materialista” muito mais radical de que uma determinação conceitual completa de um ente, ao qual teríamos apenas de acrescentar “ser” para chegar a sua existência, é em si uma noção abstrata, uma possibilidade abstrata vazia. A falta de (um certo modo de) ser é também sempre a falta inerente de uma determinação conceitual – para que uma coisa exista como parte da realidade material, todo um conjunto de condições ou determinações conceituais tem de ser cumprido (e outras determinações tem de estar ausentes). Com respeito aos cem táleres (ou qualquer outro objeto empírico), isso significa que sua determinação conceitual é abstrata e, por isso, eles possuem um ser empírico opaco e não a plena efetividade. Portanto, quando Kant faz um paralelo entre Deus e os cem táleres, devemos fazer uma pergunta simples e ingênua: Kant de fato tem um conceito (plenamente desenvolvido) de Deus?
Isso nos leva à verdadeira astúcia da argumentação de Hegel, que segue em duas direções: contra Kant, mas também contra a clássica versão de Anselmo da prova ontológica. O argumento de Hegel contra este último não é afirmar que a prova seja conceitual demais, mas sim que não é conceitual o suficiente: Anselmo não desenvolve o conceito de Deus, apenas se refere a ele como uma soma de todas as perfeições que, como tal, está além da compreensão de nossa mente humana finita. Em outras palavras, Anselmo apenas pressupõe “Deus” como uma realidade impenetrável, além de nossa compreensão (fora do domínio conceitual), pois o seu Deus não é precisamente um conceito (algo posto por nosso trabalho conceitual), mas uma realidade puramente pressuposta, pré ou não conceitual. Nessa mesma linha, embora em sentido contrário, devemos notar a ironia com que Kant fala sobre os táleres, que são dinheiro, cuja existência como dinheiro não é “objetiva”, mas depende de determinações “conceituais”. É verdade que, como diz Kant, ter um conceito de cem táleres não é o mesmo que tê-los no bolso; mas pensemos em um processo de rápida inflação que desvalorize totalmente os cem táleres embolsados; sim, os mesmos objetos continuam lá, de verdade, mas não são mais dinheiro e sim moedas inúteis e sem significado. Em outras palavras, dinheiro é exatamente um objeto cujo status depende de como “pensamos” sobre ele: se as pessoas não tratam mais esse metal como dinheiro, se não “acreditam” mais nele como dinheiro, ele deixa de ser dinheiro56. Assim, quando Kant argumenta que aqueles que querem provar a existência de Deus partindo de seu conceito são como aqueles que pensam que podem enriquecer acrescentando zeros a suas cédulas, ele não leva em conta o fato de que, no capitalismo, de fato enriquecemos dessa maneira: em um bem-sucedido ato de fraude, por exemplo, uma pessoa falsifica seu ativo financeiro para conseguir crédito, depois investe o dinheiro e enriquece.
Com respeito à realidade material, a prova ontológica da existência de Deus deveria ser modificada: a existência da realidade material atesta o fato de que o Conceito não é plenamente efetivado. As coisas “existem materialmente” não quando satisfazem certos requisitos conceituais, mas quando fracassam na tentativa de satisfazê-los – a realidade material é em si um sinal de imperfeição. Nesse sentido, para Hegel a verdade de uma proposição é inerentemente conceitual, determinada pelo conteúdo conceitual imanente, e não uma questão de comparação entre conceito e realidade – em termos lacanianos, há um não-Todo (pas-tout) da verdade. Desse modo, seguindo a metáfora nada saborosa, Hegel não era um coprófago sublimado, como nos levaria a pensar a noção usual do processo dialético. A matriz do processo dialético não é a da evacuação/exteriorização, seguida do consumo (reapropriação) do conteúdo exteriorizado; ao contrário, trata-se da apropriação, seguida do movimento excrementício de deixar cair, libertar, deixar ir. Isso quer dizer que não deveríamos igualar a exteriorização à alienação: a exteriorização que conclui um ciclo do processo dialético não é a alienação, mas sim o ponto mais alto da desalienação: o sujeito realmente se reconcilia com um conteúdo objetivo não quando ainda tem de lutar para dominá-lo e controlá-lo, mas sim quando permite o supremo gesto soberano de deixar o conteúdo ir, libertando-o. Aliás, é por isso que, como destacaram alguns intérpretes perspicazes, longe de subjugar totalmente a natureza ao homem, Hegel abre de maneira surpreendente um espaço para a conscientização ecológica. Para ele, a pulsão para explorar tecnologicamente a natureza ainda é uma marca da finitude do homem; nessa atitude, a natureza é percebida como um objeto externo, uma força opositora que deve ser dominada; adotando o ponto de vista do Saber Absoluto, no entanto, o filósofo não experimenta a natureza como um outro ameaçador que deve ser controlado e dominado, mas como algo que devemos deixar seguir seu caminho inerente.
Nesse aspecto, Louis Althusser estava errado quando opôs o Sujeito-Substância hegeliano como processo-com-sujeito “teológico” ao “processo-sem-sujeito” materialista-dialético. O processo dialético hegeliano, na verdade, é a versão mais radical de um “processo-sem-sujeito” no sentido de um agente que o controla e dirige – seja Deus, a humanidade ou uma classe como sujeito coletivo. Althusser chegou a reconhecer isso em seus últimos escritos, mas o que continuava obscuro para ele era que o fato de o processo dialético hegeliano ser “sem sujeito” significasse exatamente o mesmo que a tese hegeliana fundamental de que “o Absoluto deve ser apreendido não só como Substância, mas também como Sujeito”: o surgimento de um sujeito puro enquanto vazio é estritamente correlativo ao conceito de “Sistema” enquanto autodesenvolvimento do próprio objeto, sem a necessidade de um agente subjetivo para impulsioná-lo ou direcioná-lo.
Por isso é um erro tratar a consciência-de-si hegeliana como uma espécie de Metassujeito, uma Mente, muito maior que a mente de um indivíduo, ciente de si: quando fazemos isso, não há como Hegel não parecer um ridículo obscurantista e espiritualista, que afirma a existência de uma espécie de Megaespírito controlando nossa história. Contra esse clichê, devemos enfatizar quão ciente é Hegel de que “é na consciência finita que se dá o processo de conhecer a essência do espírito e que surge portanto a divina consciência-de-si. Da efervescência da finitude, surge o espírito fragrante”57. Contudo, embora nossa percepção – a consciência(-de-si) dos seres humanos finitos – seja o único lugar efetivo do espírito, isso não implica nenhum tipo de redução nominalista. Há outra dimensão em jogo na “consciência-de-si”, a dimensão definida por Lacan como “grande Outro” e por Karl Popper como Terceiro Mundo. Ou seja, para Hegel, a “consciência-de-si”, em sua definição abstrata, representa uma “dobra” autorreflexiva, puramente não psicológica, de registro (remarcação) da própria posição, um “levar em conta” reflexivo do que se está fazendo.
Nisso reside a ligação entre Hegel e a psicanálise: no preciso sentido não psicológico, a “consciência-de-si” é um objeto para a psicanálise – por exemplo, um tique, um sintoma que trai a falsidade da posição de que não tenho ciência. Por exemplo, faço algo errado e digo conscientemente para mim mesmo que tinha o direito de fazê-lo; mas, sem que eu saiba, um ato compulsivo que me parece misterioso e sem sentido “registra” minha culpa, atesta o fato de que, de algum lugar, minha culpa é observada. Nessa mesma linha, Ingmar Bergman notou certa vez que, perto fim da carreira, tanto Felini quanto Tarkovsky (os quais ele admirava) infelizmente começaram a fazer “filmes de Felini” e “filmes de Tarkovsky”, e que a mesma fraqueza afetou seu Sonata de outono – um “filme de Bergman feito por Bergman”. Em Sonata de outono, Bergman perdeu a criatividade espontânea: começou a “imitar a si mesmo”, a seguir reflexivamente sua própria fórmula – em suma, Sonata de outono é um filme “consciente-de-si”, mesmo que o próprio Bergman não tivesse a mínima consciência psicológica disso. Essa é a função do “grande Outro” lacaniano em sua mais pura manifestação: essa instância (ou antes esse lugar) impessoal e não psicológica de registrar, de “anotar” o que acontece.
É assim que devemos apreender a noção hegeliana de Estado como a “consciência-de-si” de um povo: “O Estado é a substância ética consciente-de-si”58. O Estado não é apenas um mecanismo cego usado para regular a vida social, ele sempre contém uma série de práticas, rituais e instituições que servem para “declarar” sua própria condição, e é sob esse disfarce que o ele aparece para seus sujeitos como aquilo que é – paradas e celebrações públicas, juramentos solenes, rituais éticos e educacionais que afirmam (e assim representam) a pertença do sujeito ao Estado:
A consciência-de-si do Estado não tem nada de mental, se por “mental” entendemos os tipos de ocorrências e qualidades relevantes para nossas próprias mentes. No caso do Estado, a consciência-de-si resulta na existência de práticas reflexivas tais como as educacionais, mas não limitadas a elas. Desfiles exibindo a força militar do Estado seriam práticas desse tipo, bem como declarações de princípio pelo Legislativo, ou sentenças proferidas pelo Supremo Tribunal – e seriam assim ainda que todos os participantes individuais (seres humanos) em uma parada, todos os membros do poder legislativo ou do Supremo Tribunal fossem pessoalmente estimulados a desempenhar qualquer papel que desempenham pela cobiça, pela inércia ou pelo medo, e ainda que todos os participantes ou membros estivessem completamente desinteressados e entediados durante todo o evento, e não compreendessem absolutamente nada de seu significado.59
Desse modo, está bem claro que, para Hegel, esse aparecer não tem nada a ver com percepção consciente: não importa com que a mente dos indivíduos se preocupa enquanto eles participam de uma cerimônia, pois a verdade está na própria cerimônia. Hegel diz a mesma coisa a respeito da cerimônia de casamento, que registra o vínculo amoroso mais íntimo: “a declaração solene do consentimento para o vínculo ético do casamento e o reconhecimento e a confirmação correspondentes dele pela família e comunidade [...] constituem a conclusão formal e a efetividade do casamento”, e por isso cabe ao “atrevimento e ao entendimento” perceber “a solenidade pela qual a essência dessa união é enunciada e constatada como [...] uma formalidade exterior”, irrelevante com respeito à interioridade do sentimento apaixonado60.
Isso, obviamente, não é tudo: Hegel também enfatizou que o Estado só se efetiva plenamente por meio de um elemento subjetivo da consciência-de-si individual – tem de haver um “eu farei!” individual e efetivo que encarna imediatamente a vontade do Estado, e nisso consiste a dedução hegeliana de monarquia. No entanto, somos surpreendidos aqui: o Monarca não é o ponto privilegiado em que o Estado se torna plenamente ciente de si, de sua natureza e de seu conteúdo espiritual; ao contrário, o Monarca é um idiota que simplesmente provê a um conteúdo imposto de fora o aspecto puramente formal do “essa é a minha vontade, que assim seja!”: “Em um Estado plenamente organizado [...], tudo que se exige de um monarca é que diga ‘sim’ e ponha os pingos nos ‘is’, pois o pináculo do Estado deve ser tal que o caráter particular de seu ocupante não tenha nenhuma importância”61. A “consciência-de-si” do Estado, portanto, é irredutivelmente cindida entre seu aspecto “objetivo” (autorregistro nas declarações e nos rituais do Estado) e seu aspecto “subjetivo” (a pessoa do monarca conferindo ao Estado a forma da vontade individual) – os dois nunca se sobrepõem. O contraste entre o Monarca hegeliano e o Líder “totalitário”, que é efetivamente suposto saber, não poderia ser mais profundo.
Talvez os críticos da voracidade de Hegel precisem de uma boa dose de laxante. Hegel certamente não é um subjetivista voraz, nem mesmo com respeito ao tema idealista por excelência, ou seja, o rebaixamento da animalidade do homem. Vamos abordar esse assunto por meio de Derrida em O animal que logo sou62. Embora a intensão do título fosse ironizar Descartes, talvez devêssemos tomá-lo com uma ingenuidade mais literal – o cogito cartesiano não é uma substância separada, diferente do corpo (como o próprio Descartes interpretou mal o cogito na ilegítima passagem do cogito para res cogitans); no nível do conteúdo substancial, não sou nada mais que o animal que sou. O que me torna humano é a própria forma, a declaração formal, de mim como um animal.
O ponto de partida de Derrida é que cada diferenciação clara e geral entre humanos e “o animal” na história da filosofia (de Aristóteles a Heidegger, Lacan e Levinas) deve ser desconstruída: o que de fato nos autoriza a dizer que só os humanos falam, ao passo que os animais apenas emitem sinais; que só os humanos respondem, ao passo que os animais simplesmente reagem; que só os humanos experimentam as coisas “como tais”, ao passo que os animais são apenas cativados por seu mundo vivido; que só os humanos podem fingir que fingem, ao passo que os animais apenas fingem; que só os humanos são mortais, experimentam a morte, ao passo que os animais apenas morrem; ou que os animais simplesmente gozam de uma harmoniosa relação sexual de cópula instintiva, ao passo que para os seres humanos il n’y a pas de rapport sexuel [não existe relação sexual], e assim por diante? Derrida expõe o melhor do que só podemos chamar de “senso comum da desconstrução”, fazendo perguntas ingênuas que solapam proposições filosóficas assumidas tacitamente durante séculos. Por exemplo, o que leva Lacan a afirmar com tanta segurança, sem apresentar dados ou argumentos, que os animais não conseguem fingir que fingem? O que permite a Heidegger alegar como fato autoevidente que os animais não se relacionam com a própria morte? Como enfatiza Derrida repetidas vezes, o propósito desse questionamento não é anular a lacuna que separa o homem dos (outros) animais e atribuir também aos (outros) animais propriedades propriamente “espirituais” – caminho tomado por alguns ecomísticos que afirmam que não só os animais, mas também as plantas e as árvores, comunicam-se em uma linguagem própria, para a qual nós, humanos, somos surdos. A questão é que todas essas diferenças deveriam ser repensadas e concebidas de uma maneira diferente, multiplicada, “intensificada” – e o primeiro passo nessa trajetória é censurar a categoria oniabrangente de “animal”.
Tais caracterizações negativas dos animais (enquanto desprovidos de fala, de mundo etc.) dão uma aparência de determinação positiva que é falsa: os animais estão sendo capturados dentro do seu ambiente etc. Encontramos o mesmo fenômeno na antropologia eurocêntrica tradicional? Olhando pelas lentes do pensamento “racional” moderno ocidental, tomado como padrão de maturidade, seus Outros só podem parecer “primitivos”, presos no pensamento mágico, “acreditando realmente” que sua tribo se originou do animal totêmico, uma mulher grávida foi fecundada por um espírito e não pelo homem etc. O pensamento racional, desse modo, gera a figura do pensamento mítico “irracional” – o que temos aqui é (mais uma vez) um processo de violenta simplificação (redução, obliteração) que ocorre com o advento do Novo: para afirmar algo radicalmente Novo, o passado inteiro, com todas as suas inconsistências, tem de ser reduzido a uma característica definidora básica (“metafísica”, “pensamento mítico”, “ideologia”...). O próprio Derrida sucumbe a essa mesma simplificação em seu modo desconstrutivo: o passado como um todo é totalizado como “falogocentrismo” ou “metafísica da presença”, o que – pode-se argumentar – é secretamente baseado em Husserl. (Aqui, Derrida difere de Deleuze e Lacan, que tratam os filósofos um a um, sem totalizá-los.) O mesmo não ocorre quando o legado grego-judaico ocidental é contraposto à posição “oriental”, obliterando-se dessa maneira a incrível riqueza de posições cobertas pelo termo “pensamento oriental”? Podemos realmente colocar na mesma categoria, digamos, os upanixades, com sua metafísica “corpórea” de castas, e o confucionismo, com sua posição agnóstica-pragmática?
Mas esse nivelamento violento não seria uma característica necessária de toda atitude crítica, de cada advento do Novo? Então, em vez de descartar de vez essa “lógica binária”, talvez devêssemos afirmá-la não só como passo necessário de simplificação, mas como inerentemente verdadeiro nessa mesma simplificação. Em hegelês, não é só, por exemplo, que a totalização realizada sob o título de “animal” envolva a obliteração violenta de uma multiplicidade complexa, mas também que a redução violenta de tal multiplicidade a uma diferença mínima é o momento da verdade. Ou seja, a multiplicidade das formas animais deve ser concebida como uma série de tentativas para resolver um antagonismo básico ou uma tensão que define a animalidade como tal, uma tensão que só pode ser formulada a uma distância mínima, uma vez que os seres humanos estão envolvidos. Recordemos aqui a conhecida passagem sobre o equivalente geral, retirada da primeira edição de O capital, Livro I, em que Marx escreve: “É como se, junto de e externo a leões, tigres, coelhos e outros animais reais que quando agrupados formam vários tipos, espécies, subespécies, famílias etc. do reino animal, existisse também o animal, a encarnação individual de todo o reino animal”63.
Essa imagem do dinheiro como “o animal” correndo ao lado de todas as instâncias heterogêneas de tipos particulares de animalidades que existem a seu redor não capta o que Derrida descreve como a lacuna que separa o Animal da multiplicidade da vida animal efetiva? De novo em hegelês, o que o homem encontra no Animal é ele mesmo na determinação oposta: visto como animal, o homem é o animal espectral que existe junto das espécies animais realmente existentes. Isso também não nos permite dar uma virada perversa no jovem Marx e em sua determinação de homem como Gattungswesen, um ser-genérico? – é como se, junto das subespécies particulares, a espécie como tal passasse a existir. Talvez seja assim que os animais veem os seres humanos, e seja essa a razão de sua perplexidade.
A questão-chave aqui é: não basta dizer que, se a determinação dos animais como emudecidos etc. está errada, a determinação dos humanos como racionais, dotados de fala etc. está correta, de modo que só temos de apresentar uma definição mais adequada de animalidade – e o campo inteiro é falso. Essa falsidade pode ser concebida nos termos do par kierkegaardiano de ser e devir: a oposição-padrão entre animal e humano é formulada da perspectiva do humano em seu devir. Os animais são pensados do ponto de vista humano, não se pode pensá-los do ponto de vista animal. Em outras palavras, essa diferença entre humano e animal não esconde apenas o modo como os animais realmente são, independentemente dos seres humanos, mas a própria diferença que efetivamente marca a ruptura do humano dentro do universo animal. É aqui que entra a psicanálise: a “pulsão de morte” como termo freudiano para representar a dimensão estranha do homem-no-devir. Esse intermédio é o “reprimido” da forma narrativa (no caso de Hegel, da “grande narrativa” da sucessão histórico-mundial das formas espirituais): não a natureza como tal, mas a própria ruptura com a natureza que é (posteriormente) suplementada pelo universo virtual das narrativas. A resposta para a afirmação de Derrida de que cada característica atribuída exclusivamente ao “homem” é uma ficção não poderia ser esta: tais ficções têm uma realidade própria, organizam efetivamente as práticas humanas – os seres humanos são exatamente os animais que se comprometem com suas ficções, mantendo-se escrupulosamente fiéis a elas (uma versão da afirmação de Nietzsche, segundo a qual o homem é o animal capaz de fazer promessas)?
Derrida começa a exploração dessa “zona obscura” com o relato de uma espécie de cena primordial: depois de acordar, ele vai nu até o banheiro, seguido pelo gato; então ocorre um momento delicado: ele fica de frente para o gato, que observa seu corpo nu. Incapaz de suportar essa situação, ele enrola uma toalha na cintura, enxota o gato e toma banho. O olhar do gato representa o olhar do Outro – um olhar inumano, mas, exatamente por isso, é ainda mais o olhar do Outro em toda a sua impenetrabilidade abissal. Ver-se sendo visto por um animal é um encontro abissal com o olhar do Outro, posto que – exatamente porque não deveríamos simplesmente projetar sobre o animal nossa experiência interior – algo devolve o olhar que é radicalmente Outro. Toda a história da filosofia baseia-se na renegação desse encontro – até Badiou, que se precipita ao caracterizar o ser humano ainda não convertido em sujeito (para o Evento) como um “animal humano”. Algumas vezes, pelo menos, o enigma é admitido – por Heidegger, entre outros, que insiste em dizer que ainda não somos capazes de determinar a essência de um ser que é “vivente”. E, esporadicamente, podemos ainda encontrar reversões diretas dessa renegação: além de ser reconhecido, o olhar do animal também é diretamente elevado à preocupação fundamental da filosofia, como na surpreendente declaração de Adorno: “A filosofia existe para remir o que vemos no olhar de um animal”64.
Lembro-me de ver a fotografia de um gato depois de o animal ter sido submetido a uma experiência de laboratório em uma centrífuga, com os ossos meio quebrados, a pele despelada em alguns pontos, os olhos indefesos voltados para a câmera – eis o olhar do Outro renegado não só pelos filósofos, mas também pelos seres humanos “como tais”. Até mesmo Levinas, que tanto escreveu sobre a face do outro indefeso como lugar original da responsabilidade ética, negou explicitamente que a cara de um animal pudesse funcionar dessa maneira. Nesse aspecto, uma das poucas exceções é Bentham, que fez uma sugestão simples: em vez de perguntar se os animais podem raciocinar e pensar, se podem falar, deveríamos perguntar se podem sofrer. Só a indústria humana provoca continuamente um sofrimento imenso aos animais, o que é sistematicamente renegado – não só experimentos em laboratório, mas dietas especiais para produzir ovos e leite (ligando e desligando luzes artificiais para encurtar o dia, usando hormônios etc.), porcos que são quase cegos e mal conseguem andar, engordados rapidamente para ser mortos, e assim por diante. Grande parte das pessoas que visitam uma granja para de comer carne de frango e, por mais que todos nós saibamos o que acontece nesses lugares, o conhecimento precisa ser neutralizado para podermos agir como se não soubéssemos. Uma das maneiras de promover essa ignorância é pela noção cartesiana de animal-máquina. Os cartesianos nos incitam a não ter compaixão pelos animais: quando ouvimos um animal emitindo sons de dor, deveríamos nos lembrar de que esses sons não expressam um verdadeiro sentimento interior – como os animais não têm alma, os sons são produzidos simplesmente por um mecanismo complexo de músculos, ossos, fluidos etc., que podemos observar pela dissecação. O problema é que a noção de animal-máquina se desdobrou no Homem-máquina, de La Mettrie: para um neurobiólogo totalmente comprometido com sua teoria, o mesmo pode ser dito sobre os sons e gestos emitidos pelos seres humanos quando sentem dor; não há um domínio separado e interior da alma onde a dor é “realmente sentida”, os sons e gestos são simplesmente produzidos por mecanismos neurobiológicos complexos do organismo humano.
Ao revelar o contexto ontológico mais amplo desse sofrimento animal, Derrida ressuscita o velho tema de Schelling e do romantismo alemão, emprestado por Heidegger e Benjamin, da “profunda tristeza da natureza”: “É na perspectiva do resgate [da tristeza], pela redenção desse sofrimento, que vivem e falam os homens da natureza”65. Derrida rejeita esse tema schellinguiano-benjaminiano-heideggeriano da tristeza da natureza, a ideia de que a mudez e o entorpecimento da natureza são sinais de uma dor infinita, como algo teleologicamente logocêntrico: a linguagem torna-se um télos da natureza, a natureza luta pela Palavra para ser libertada de sua tristeza e alcançar a redenção. Não obstante, esse tópos místico suscita a questão correta ao reverter mais uma vez a perspectiva usual: não “o que é a natureza para a linguagem? Podemos apreender a natureza de maneira adequada na linguagem ou por meio dela?”, mas sim “o que é a linguagem para a natureza? Como seu surgimento afeta a natureza?”. Longe de pertencer ao logocentrismo, essa reversão é a mais forte suspensão do logocentrismo e da teleologia, da mesma forma que a tese de Marx, segundo a qual a anatomia do homem é a chave para a anatomia do macaco, subverte qualquer evolucionismo teleológico. Derrida está ciente dessa complexidade, e descreve como a tristeza animal
não se refere apenas, e isso já é mais interessante, à privação de linguagem (Sprachlosigkeit) e ao mutismo, à privação afásica ou embrutecida das palavras. Se essa suposta tristeza cria também uma queixa, se a natureza se queixa, de uma queixa muda mas audível por meio dos suspiros sensíveis e até do sussurro das plantas, é que talvez seja preciso inverter os termos. Benjamin o sugere. É preciso uma inversão, um Umkehrung na essência da natureza. [...] a natureza (e a animalidade nela) não é triste porque muda (weil sie stumm ist). É pelo contrário a tristeza, o luto da natureza que a torna muda e afásica, que a deixa sem palavras.66
Tendo Benjamin como referência, Derrida interpreta essa reversão como uma revelação de que o que torna a natureza triste não é “um mutismo e a experiência de um não-poder, de um absolutamente-não-nomear, é sobretudo receber o nome”67. Nossa inserção na linguagem, o fato de recebermos um nome, funciona como um memento mori – na linguagem, morremos antecipadamente, relacionamo-nos conosco como já mortos. Nesse sentido, a linguagem é uma forma de melancolia, não de luto; nela, tratamos um objeto ainda vivo como morto ou perdido, de modo que, quando Benjamin fala dee um pressentimento de luto, devemos interpretá-lo como a própria fórmula da melancolia.
No entanto, as afirmações de Derrida têm uma ambiguidade mal escondida: se a tristeza é anterior ao mutismo (falta de linguagem), se causa o mutismo, então a função primordial da linguagem é libertar ou abolir essa tristeza? Mas se esse é o caso, como essa tristeza pode ser originalmente a tristeza de receber o próprio nome? Fico eu sem palavras diante da violência sem precedentes de alguém que me nomeia, impondo uma identidade simbólica em mim sem pedir meu consentimento? E como a tristeza causada por essa redução à passividade de ser nomeado pode ser vivenciada pela própria natureza? Essa experiência não pressupõe que o sujeito já habite a dimensão do nomear, a dimensão da linguagem? Não deveríamos limitar tal afirmação aos chamados animais domésticos? Lacan observou em algum lugar que, embora os animais não falem, os animais domésticos já moram na dimensão da linguagem (reagem a seus nomes, correm para o dono quando o ouvem chamar, obedecem a ordens etc.), e é por isso que, embora não tenham acesso à subjetividade “normal”, podem ser afetados pela patologia (humana): um cachorro pode ser “histericizado” etc. Assim, voltando ao olhar triste e perplexo do gato de laboratório, podemos dizer que ele talvez expresse o horror do gato por ter encontrado o Animal, ou seja, nós mesmos, seres humanos: o que o gato vê somos nós em toda a nossa monstruosidade, e o que vemos em seu olhar torturado é nossa própria monstruosidade. Nesse sentido, o grande Outro (a ordem simbólica) já está aqui para o pobre gato: assim como o prisioneiro na colônia penal de Kafka, o gato sofreu as consequências materiais de estar preso em um beco sem saída simbólico. Ele sofreu de fato as consequências de ser nomeado, incluído na rede simbólica.
Para resolver esse problema, não deveríamos distinguir entre duas tristezas: a tristeza da vida natural, anterior à linguagem e independente dela, e a tristeza de ser nomeado, subjugado à linguagem? Primeiro, há a “infinita melancolia dos vivos”, uma tensão ou dor que é resolvida quando uma Palavra é dita; depois, porém, a pronúncia da própria Palavra gera uma tristeza toda sua (a que se refere Derrida). Mas essa percepção de um elo íntimo entre linguagem e dor não nos aproxima da definição dos seres humanos dada por Richard Rorty, de que os humanos são seres que sofrem e são capazes de narrar seu sofrimento, ou, como afirma Derrida, de que o homem é um animal autobiográfico? O que Rorty não leva em conta é a dor adicional (a mais-dor) gerada pela própria linguagem.
Talvez Hegel possa nos apontar uma saída quando interpreta a gravidade como um indício de que a matéria (natureza) tem seu centro fora de si e está condenada a lutar infinitamente para encontrá-lo; o espírito, ao contrário, tem seu centro em si mesmo – com o advento do espírito, a realidade retorna a si mesma a partir de sua autoexteriorização. O espírito, no entanto, só é efetivo no pensamento humano, cujo meio é a linguagem, e a linguagem envolve uma exteriorização cada vez mais radical – assim, a natureza retorna a si mesma por uma repetida exteriorização (ou, como teria dito Schelling, na linguagem o sujeito contrai-se fora de si).
Há uma necessidade subjacente em jogo aqui: todo falante – todo nomeador – tem de ser nomeado, tem de ser incluído na própria cadeia de nomeações ou, em referência a uma piada citada algumas vezes por Lacan: “Tenho três irmãos, Paulo, Ernesto e eu”. Não admira que, em muitas religiões, o nome de Deus seja secreto, somos proibidos de pronunciá-lo. O sujeito falante persiste nesse intermédio: não há sujeito antes da nomeação, mas, uma vez nomeado, ele já desaparece em seu significante – o sujeito nunca é, sempre terá sido.
Mas e se o que caracteriza os seres humanos for essa mesma abertura para o abismo do Outro radical, essa perplexidade gerada pela pergunta “O que o Outro realmente quer de mim?”? Em outras palavras, e se mudarmos a perspectiva? E se a perplexidade que o ser humano vê no olhar do animal for a perplexidade despertada pela monstruosidade do próprio ser humano? E se for meu próprio abismo o que vejo refletido no abismo do olhar do Outro – como diz Racine em Fedrae, “dans ses yeux, je vois ma perte écrite” [“em seus olhos, vejo minha perda escrita”]? Ou, em hegelês, em vez de perguntar o que é a Substância para o Sujeito, como o Sujeito pode apreender a Substância, deveríamos perguntar o oposto: o que é o (advento do) Sujeito para a Substância (pré-subjetiva)? Chesterton propôs uma reversão hegeliana desse tipo justamente a respeito do homem e dos animais: em vez de perguntar o que os animais são para os homens, para sua experiência, deveríamos perguntar o que o homem é para os animais – em seu pouco conhecido O homem eterno, Chesterton conduz um maravilhoso experimento mental nessa mesma linha, imaginando o monstro que o homem teria parecido à primeira vista para os animais meramente naturais a sua volta:
A verdade mais simples acerca do homem é que ele é um ser muito estranho: quase no sentido de ser um estranho sobre a terra. Sem nenhum exagero, ele tem muito mais da aparência exterior de alguém que surge com hábitos alienígenas de outro mundo do que da aparência de um mero desenvolvimento deste mundo. Ele tem uma vantagem injusta e uma injusta desvantagem. Ele não consegue dormir na própria pele; não pode confiar nos próprios instintos. Ele é ao mesmo tempo um criador movendo mãos e dedos miraculosos e uma espécie de deficiente. Anda envolto em faixas artificiais chamadas roupas; escora-se em muletas artificiais chamadas móveis. Sua mente tem as mesmas liberdades duvidosas e as mesmas violentas limitações. Ele é o único entre os animais que se sacode com a bela loucura chamada riso: como se houvesse vislumbrado na própria forma do universo algum segredo que o próprio universo desconhece. Ele é o único entre os animais que sente a necessidade de desviar seus pensamentos das realidades radicais do seu próprio ser físico; de escondê-las como se estivesse na presença de alguma possibilidade superior que origina o mistério da vergonha. Quer louvemos essas coisas como naturais ao homem, quer as insultemos como artificiais na natureza, elas mesmo assim continuam únicas.68
Isso é o que Chesterton chamou de “pensamento para trás”: temos de nos colocar no passado, antes de as decisões fatídicas terem sido tomadas, ou antes de ocorrerem os acontecimentos fortuitos que geraram o estado de coisas que hoje nos parece normal, e a melhor maneira de fazê-lo, de tornar palpável esse momento aberto de decisão, é imaginar como, naquela época, a história poderia ter tomado um rumo diferente. Com respeito ao cristianismo, em vez de perder tempo indagando como ele se relaciona com o judaísmo ou como entende mal o Velho Testamento quando o interpreta como o anúncio da chegada de Cristo – e depois tenta reconstruir o que eram os judeus antes deles, não afetados pela perspectiva cristã retroativa –, deveríamos mudar a perspectiva e provocar a “extrusão” do próprio cristianismo, tratá-lo como cristianismo-no-devir e nos concentrarmos na estranha besta, na monstruosidade escandalosa, que Cristo pareceu ser aos olhos do establishment ideológico judeu.
Um exemplo hiperbólico é dado por aquelas raras sociedades que, até agora, conseguiram evitar o contato com a “civilização”. Em maio de 2008, a imprensa divulgou a descoberta de uma tribo “não contatada” na densa floresta tropical ao longo da fronteira entre o Brasil e o Peru: eles jamais tiveram contato com o “mundo de fora”; seu modo de vida permaneceu provavelmente o mesmo durante mais de dez mil anos. Foram divulgadas fotografias da aldeia tiradas de um avião. Quando antropólogos sobrevoaram a região pela primeira vez, viram mulheres e crianças ao ar livre e ninguém parecia estar pintado. Quando o avião retornou algumas horas depois, eles viram homens cobertos de vermelho da cabeça aos pés: com a pele pintada de vermelho brilhante, a cabeça parcialmente raspada, flechas esticadas nos longos arcos e apontadas para a aeronave que zunia acima deles. Os gestos eram inconfundíveis: “Não se aproximem”. E o gesto era correto: o contato costuma ser um desastre para essas tribos remotas. Ainda que os madeireiros não atirem neles nem os expulsem de suas terras, doenças contra as quais esses seres humanos isolados não têm nenhuma resistência geralmente dizimam metade da tribo em poucos anos. Para eles, nossa civilização é, literalmente, um caldeirão de raças: eles se dissolvem e desaparecem dentro dele como os antigos afrescos em Roma de Fellini, que permaneceram protegidos enquanto estavam isolados no vácuo do subsolo – no momento em que os pesquisadores (cuidadosos e respeitosos) entram no ambiente, os afrescos começam a se desintegrar. Muitas vezes nos perguntamos como reagiríamos se encontrássemos alienígenas muito mais desenvolvidos que nós – no caso de tribos que nunca foram contatadas, nós somos os alienígenas. Aí está o horror dessas imagens: vemos os nativos aterrorizados, observando um Outro inumano, e nós somos esse Outro.
Então como nós, seres humanos, afetamos a natureza? Quando queimadas devastaram o Peloponeso no verão de 2007, apareceu uma fotografia da área devastada mostrando um campo de cactos meio queimados, de uma forma tal que pareciam quase derretidos, dilatados em uma multitude de formas, à semelhança da famosa pintura de Dali do relógio “derretido”, dobrado ao meio como uma panqueca. O que torna imagens como essas tão fascinantes é o modo como representam não só uma destruição interna à realidade, mas uma destruição da própria tessitura da realidade, das coordenadas básicas da realidade. O primeiro efeito é de uma natureza desnaturalizada: a natureza semidestruída perde seu caráter “orgânico” e torna-se semelhante a uma bricolagem, um composto artificial de elementos heterogêneos arrumados às pressas, de maneira caótica. O segundo efeito é de perturbação temporal: parece que não estamos mais lidando com a natureza em seu ritmo normal de geração e corrupção, crescimento e decomposição, mas sim com um espaço retorcido, em que, de maneira obscena, como no caso das protuberâncias cancerosas, novas formas de vida surgem da própria decomposição. O terceiro efeito é de uma distorção múltipla e anamórfica: quando as plantas parecem parcialmente “derretidas”, prolongadas de maneira anormal em diferentes direções, é como se o objeto, em sua realidade material distorcida, tivesse incorporado múltiplas perspectivas, visões fraturadas de como nós o perceberíamos se olhássemos para ele de diferentes pontos de vista. Parece, portanto, que ninguém consegue mais distinguir com clareza entre a realidade imediata do objeto e as perspectivas subjetivas sobre ele – as distorções envolvidas no olhar torto voltado para o objeto estão inscritas na própria realidade objetiva.
Em termos hegelianos, tal panorama é a encarnação da coincidência dos extremos Em-si e Para-si: quando vemos de relance essa cena esquisita, a primeira impressão é de que estamos vislumbrando o Em-si da natureza em sua monstruosa forma pré-humana. No entanto, é exatamente como tal que a natureza inscreve, disfarçada em sua distorção, a monstruosidade do homem, seu lugar inconveniente na natureza. O homem é assim, essa distorção anamórfica da natureza, uma perturbação do ritmo “natural” de geração e corrupção. Quando ouvimos uma frase como a famosa declaração de Hölderlin de que “poeticamente habita o homem nesta terra”, não devemos imaginar a morada do homem como uma cabana à margem de um rio na floresta, mas sim uma paisagem distorcida “desnaturalizada”.
1 Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 181.
2 Para um relato mais detalhado dessa passagem, ver o capítulo 1 de Slavoj Žižek, The Fright of Real Tears: Krzysztof Kieslowski Between Theory and Post-Theory (Londres, British Film Institute, 2001).
3 Ou, na filosofia, a questão não é conceber a eternidade como oposta à temporalidade, mas concebê-la como algo que surge do interior de nossa experiência temporal. (Esse paradoxo também pode ser invertido, como fez Schelling: pode-se conceber o próprio tempo como uma subespécie da eternidade, como a resolução de um impasse da eternidade.)
4 G. W. F. Hegel, Hegel’s Science of Logic (trad. A. V. Miller, Atlantic Highlands, Humanities Press International, 1989), p. 618.
5 É ao longo dessas linhas que Hegel propõe uma definição precisa de consciência: ela surge quando a distinção entre consciência universal e o si individual foi suplantada, o si conhece a si mesmo na percepção de seu dever universal.
5 Os dois lados da universalidade, positiva e negativa, são facilmente discerníveis no caso da categoria do Grund (chão, base). Tanto em alemão quanto em inglês [ground], a palavra tem um significado subjacente que é oposto ao seu significado principal (razão-causa e fundamento): Hegel se refere à expressão alemã “zu Grund gehen”, que significa “apartar, desintegrar”; em inglês, um dos significados de “ground” como verbo é “trazer para baixo, derrubar, achatar” (com um subsignificado legal semelhante de “punir ou impor uma sanção”). Devemos observar que os significados “positivos” (causa, fundamento) pertencem predominantemente a “ground” como substantivo e os significados “negativos” a “ground” como verbo. Essa tensão aponta para a oposição entre ser e vir a ser, estase e movimento, substância e sujeito, Em-si e Para-si: enquanto atividade, movimento, “ground” é a atividade de apagar a si mesmo: o fundamento [ground] impõe-se contra seus efeitos fundamentados [grounded] destruindo-os.
7 G. W. F. Hegel, Hegel’s Science of Logic, cit., p. 621.
a Referência ao parágrafo 5.6 do Tractatus Logico-Philosophicus, de Ludwig Wittgenstein. (N. T.)
b “O mundo é tudo que é o caso” (Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, trad. Luiz Henrique Lopes dos Santos, 2. ed., São Paulo, Edusp, 1994, p. 135). (N. T.)
8 O pensamento de Espinosa deve ser claramente distinguido da tradição plotiniana da emanação: na emanação, os efeitos sucedem do Uno, o Supremo Ser, são ontologicamente inferiores a ele, o processo de criação é o processo da gradual degradação/corrupção, ao passo que Espinosa afirma a univocidade absoluta do ser, o que significa que toda realidade não é só causada pela Substância, mas também permanece dentro da Substância e nunca se separa dela. O programa plotiniano usual de reverter a degradação – em suma, o programa teleológico de retornar os efeitos a sua Origem – é, para Espinosa, sem sentido: por que retornar para algo do qual, antes de mais nada, nunca saímos?
9 Ver Alenka Zupančič, “Realno in njegovo nemozno” (“O real e seu impossível”), manuscrito inédito.
10 G. K. Chesterton, “A Defence of Penny Dreadfuls”, em The Defendant (Nova York, Dodd Mead, 1902), p. 10.
11 Baseio-me aqui na incrível análise de Jean-Jacques Marimbert et al., Analyse d’une œuvre: La mort aux trousses: A. Hitchcock, 1959 (Paris, Vrin, 2008), p. 49-52.
12 O aspecto ideológico do ambientalismo também deve ser censurado em relação à arquitetura. A arquitetura não deveria estar em harmonia com seu ambiente natural? Mas a arquitetura é, por natureza, antinatureza, um ato de delimitação contra a natureza: traça-se uma linha separando o interior do exterior, dizendo claramente para a natureza: “Fique fora daqui! O interior é um domínio no qual você não se inclui!” – o Interior é um espaço desnaturalizado que deve ser preenchido com artefatos. O esforço para harmonizar a arquitetura com os ritmos da natureza é fenômeno secundário, uma tentativa de obliterar os traços do crime fundador original.
13 Deleuze dá diversas descrições maravilhosas dessa reversão, em particular em seu ensaio sobre Kafka, em que interpreta a transcendência inacessível (Corte ou Castelo) que o herói tenta atingir (e fracassa) como uma má percepção invertida do excesso da produtividade imanente sobre seu objeto.
14 Para uma elaboração detalhada da noção de dois vácuos, ver o último capítulo deste livro.
15 Embora seja possível acrescentar que, em sua virada teológico-política que relaciona o processo da différance à impossibilidade da justiça messiânica, Derrida privilegiou o lado do desejo/falta, concebendo o processo da différance como um eterno fracasso, uma falta com respeito ao objetivo da justiça messiânica, que, como a democracia, está sempre “por vir”.
16 Muitos intérpretes de Hegel – de maneira exemplar, Dieter Henrich em seu clássico ensaio “Hegels Logik der Reflexion” (em Hegel im Kontext, Frankfurt, Suhrkamp, 2010) – argumentaram que essa parte da Lógica, que articula a tríade da reflexão ponente–externa–determinante, fornece a matriz básica para o processo dialético como tal.
17 G. W. F. Hegel, Hegel’s Science of Logic, cit., p. 397.
18 Jacques-Alain Miller, “Uma leitura do Seminário, livro 16: de um Outro ao outro”, Opção lacaniana, n. 48, mar. 2007, p. 15.
19 G. W. F. Hegel, Hegel’s Science of Logic, cit., p. 397-8. A excelente tradução de A. V. Miller sofreu algumas correções nas citações que se seguem. [A tradução dos trechos mencionados segue as correções feitas por Slavoj Žižek no original. (N. T.)]
20 Aqui encontramos mais uma vez o obscurecimento retroativo das articulações, isto é, a transformação do passado em uma matéria amorfa: para Hegel, o que temos antes de Parmênides é uma multiplicidade caótica sem nenhuma articulação conceitual interna, como a mistura arbitrária de objetos (deuses, animais, símbolos etc.) na mitologia indiana.
21 G. K. Chesterton, Hereges, cit., p. 271.
22 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte I, § 32, p. 38.
23 Idem, Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, v. 3, cit., § 382, p. 23.
24 Devemos ter em mente que a ideia freudiana de “objeto parcial” não é a de um elemento ou constituinte do corpo, mas um órgão que resiste a sua inclusão no Todo de um corpo. Esse objeto, que é correlato do sujeito, é o substituto do sujeito dentro da ordem da objetividade: é o proverbial “pedaço de carne”, aquela parte do sujeito que o sujeito tem de renunciar para se descobrir como sujeito. Não era isso que Marx visava quando escreveu sobre o advento da consciência de classe do proletariado? A subjetividade proletária só surge quando o trabalhador é reduzido a um equivalente em dinheiro, vendendo a mercadoria “força de trabalho” no mercado.
25 G. W. F. Hegel, Hegel’s Science of Logic, cit., p. 824. Tradução ligeiramente modificada.
26 Idem, Fenomenologia do espírito, cit., parte I, § 236, p. 156.
27 Ernesto Laclau, On Populist Reason (Londres, Verso, 2005), p. 152.
28 A “lógica do significante” de Lacan até nos incita a dar um passo adiante e afirmar que a identidade-de-si de um ente implica esse impedimento ou cisão interior do ente: a “identidade-de-si” envolve o gesto reflexivo de identificar um ente com o vazio de seu lugar estrutural, o vazio preenchido pelo significante que identifica esse ente – “A = A” só pode ocorrer dentro da ordem simbólica, em que a identidade de A é garantida/constituída pelo “traço unário” que marca (representa) o vazio em seu núcleo. “Você é John” significa: o núcleo de sua identidade é o abissal je ne sais quoi designado por seu nome. Isso não quer dizer apenas que toda identidade é sempre tolhida, frágil, fictícia (no que se refere ao mantra “desconstrucionista” pós-moderno): a própria identidade é, stricto sensu, a marca de seu oposto, de sua própria falta, do fato de que o ente afirmado como idêntico a si carece de plena identidade.
29 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., § 84, parte I, p. 70.
30 Idem, Curso de estética III (trad. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle, São Paulo, Edusp, 2002), p. 257.
31 Adorno não apresenta um argumento semelhante quando afirma que a constituição transcendental kantiana é um termo errôneo ou, mais precisamente, uma interpretação positiva dada a uma limitação, ou seja, o fato de o sujeito não ser capaz de chegar além de seu horizonte subjetivo?
32 G. W. F. Hegel, Curso de estética I, cit., p. 50-1.
33 É por isso que em seu História e consciência de classe Lukács é profundamente hegeliano quando usa “consciência(-de-si)” não como um termo para a percepção ou recepção/representação passiva, mas para se referir à unidade de intelecto e vontade: a “consciência(-de-si)” é inerentemente prática, muda seu sujeito-objeto – uma vez que atinge sua consciência de classe adequada, a classe trabalhadora se transforma em um sujeito revolucionário efetivo em sua realidade social.
34 G. W. F. Hegel, Curso de estética I, cit., p. 166.
35 Robert C. Solomon, In the Spirit of Hegel (Oxford, Oxford University Press, 1983), p. 639.
36 G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie (Leipzig, Philipp Reclam, 1971), v. 3, p. 628.
37 Idem, Linhas fundamentais da filosofia do direito (trad. Paulo Meneses et. al., São Leopoldo, Ed. Unisinos, 2010), p. 43. [Doravante Filosofia do direito.]
38 Idem, Lectures on the Philosophy of World History. Introduction: Reason in History (trad. H. B. Nisbet, Cambridge, Cambridge University Press, 1975), p. 170.
39 Idem, Filosofia da natureza, cit., § 268, p. 87.
40 Ermanno Bencivenga, Hegel’s Dialectical Logic (Oxford, Oxford University Press, 2000), p. 75.
c Trad. José Marcos Mariani de Macedo, São Paulo, Duas Cidades/ Editora 34, 2000. (N. E.)
41 Que hoje deve permanecer anônimo, como o anão de Walter Benjamin, escondido dentro do fantoche do materialismo histórico.
42 Fredric Jameson, The Hegel Variations, cit., p. 130.
43 Ibidem, p. 131.
d G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte I, § 32, p. 38. (N. T.)
44 Ibidem, parte II, § 753, p. 185.
45 Conforme citado em Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 97, com ligeira modificação da tradução de G. W. F. Hegel, Hegel’s Science of Logic, cit., § 1338, p. 611.
46 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte I, § 28, p. 35. Tradução modificada.
47 Ibidem, § 29, p. 37.
48 Conforme citado em Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 97, com modificação da tradução de G. W. F. Hegel, Lectures on the Philosophy of Religion: The Consummate Religion (trad. R. F. Brown, P. C. Hodgson e J. M. Stewart, Berkeley, University of California Press, 1987), v. 3, p. 127.
49 Theodor W. Adorno, Dialética negativa (trad. Marco Antonio Casanova, Rio de Janeiro, Zahar, 2009), p. 28.
50 G. W. F. Hegel, Hegel’s Science of Logic, cit., p. 841.
51 Ibidem, p. 843.
52 Idem, Filosofia do espírito, cit., § 381, p. 21.
53 Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 156.
54 G. W. F. Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, v. 1: A ciência lógica, § 244, p. 370-1.
55 Idem, Hegel’s Science of Logic, cit., p. 843.
56 A propósito, esse argumento já havia sido apresentado pelo jovem Marx, que observou em sua tese de doutorado: “Táleres reais têm a mesma existência que os deuses imaginados. Um táler real só tem alguma existência na imaginação geral, ou melhor, comum, dos seres humanos? Levemos dinheiro de papel para um país que desconhece o uso do papel e todos darão risadas de nossa imaginação subjetiva” (Karl Marx, “The Difference Between the Democritean and Epicurean Philosophy of Nature: Fragment from the Appendix”, em Karl Marx e Friedrich Engels, Marx and Engels: Collected Works, cit., v. 1, p. 104.
57 G. W. F. Hegel, Lectures on the Philosophy of Religion, cit., v. 3, p. 233.
58 Idem, Filosofia do espírito, cit., § 535, p. 305.
59 Ermanno Bencivenga, Hegel’s Dialectical Logic, cit., p. 63-4.
60 G. W. F. Hegel, Filosofia do direito, § 164, p. 177-8.
61 G. W. F. Hegel, Elements of the Philosophy of Right (trad. H. B. Nisbet, Cambridge, Cambridge University Press, 1991), § 280 (adendo), p. 323. Ver Interlúdio 3 para uma discussão detalhada da defesa hegeliana da monarquia.
62 Jacques Derrida, O animal que logo sou (trad. Fábio Landa, São Paulo, Unesp, 2002).
63 Conforme reproduzido em Karl Marx, Value, Studies (trad. Albert Dragstedt, Londres, New Park, 1976). Marx excluiu essa frase da segunda edição de O capital, na qual ele rearranjou o primeiro capítulo.
64 Theodor Adorno e Max Horkheimer, Towards a New Manifesto (Londres, Verso, 2011), p. 71. Tradução ligeiramente modificada.
65 Jacques Derrida, O animal que logo sou, cit., p. 41.
66 Ibidem, p. 42.
67 Idem.
e Fedra, Ester, Atália, trad. Jenny Kablin Segall, 4. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2005. (N. E.)
68 G. K. Chesterton, O homem eterno (trad. Almiro Pisetta, São Paulo, Mundo Cristão, 2010), p. 37.