Avancemos in media res para enfrentar sem rodeios a questão: poderia Hegel pensar o conceito que, segundo Lacan, condensa todos os paradoxos do campo freudiano, o conceito de não-Todo? Se tomarmos “Hegel” como a figura absurda presente nos livros escolares, isto é, um idealista absoluto que, com a frase “o Todo é o Verdadeiro”, afirma integrar toda a riqueza do universo à totalidade da automediação racional, então a resposta será obviamente um inequívoco “não”. Se, no entanto, levarmos em consideração a verdadeira natureza da totalidade hegeliana – que ela designa um Todo mais todos os seus “sintomas”, o excesso que não cabe no quadro, os antagonismos que arruínam sua consistência e assim por diante –, a resposta se tornará mais indistinta. Eis uma lista improvisada do que Hegel “não pode pensar”, uma série de conceitos elaborados em sua maioria pela psicanálise e pelo marxismo: repetição, inconsciente, sobredeterminação, objeto a, matema/letra (ciência e matemática), lalangue, antagonismo (paralaxe), luta de classes, diferença sexual1. Contudo, ao examiná-la mais de perto, fica claro que devemos ser bastante precisos a respeito do que Hegel “não pode fazer”: nunca é uma questão de simples impossibilidade ou incapacidade. Em todos esses casos, há uma linha de separação muito tênue e imperceptível que nos incita a completar a afirmação da impossibilidade com um atenuante “sim, mas...”.
Hegel pensa a repetição, mas não uma repetição não produtiva, não uma repetição “mecânica”, que apenas se empenha por mais do mesmo: sua noção de repetição sempre envolve suprassunção; em outras palavras, algo é idealizado pela repetição, transformado de uma realidade contingente imediata para uma universalidade conceitual (César morre como pessoa e torna-se um título universal), ou, pelo menos, a necessidade de um evento é confirmada pela repetição (Napoleão teve de perder duas vezes para entender que seu tempo acabara e sua primeira derrota não fora só um acidente). O fato de Hegel não considerar o excesso da repetição puramente mecânica não indica de modo nenhum que ele se voltava excessivamente para o Novo (o progresso que ocorre pela idealização da Aufhebung) – ao contrário, tendo em mente que o radicalmente Novo só surge pela pura repetição, diríamos que a incapacidade de Hegel de pensar a pura repetição é o anverso de sua incapacidade de pensar o radicalmente Novo, ou seja, um Novo que potencialmente já não está no Velho e só precisa ser trazido à tona e revelado pelo trabalho do desenvolvimento dialético.
Hegel também pensa o inconsciente, mas o inconsciente formal, a forma transcendental universal do que estou fazendo em oposição ao conteúdo imediato particular que é o centro da minha atenção – para usar o exemplo mais elementar do começo da Fenomenologia: quando digo “Agora!”, refiro-me a esse momento particular, mas o que digo é cada agora, e a verdade está no que digo. O inconsciente freudiano é, ao contrário, o inconsciente de elos e associações contingentes particulares – para citar um exemplo freudiano clássico, quando a paciente sonha com o funeral em que esteve no dia anterior, o “inconsciente” desse sonho foi o fato totalmente contingente de que, no funeral, a sonhadora se encontrou com um antigo amor, com quem ela se importava.
Ligado a isso está a impossibilidade, para Hegel, de pensar a sobredeterminação: ele pode pensá-la, mas apenas no sentido formal de um gênero universal que inclui a si mesmo como sua própria espécie e, desse modo, no meio de sua espécie, encontra a si mesmo nessa “determinação opositiva”. O que ele não consegue pensar é a rede complexa de elos particulares organizados ao longo das linhas da condensação, do deslocamento etc. Em termos mais gerais, o processo hegeliano sempre lida com (re)soluções radicais bem definidas; totalmente alheia a isso é a lógica freudiana dos compromissos pragmáticos e oportunistas – algo é rejeitado, mas não totalmente, pois retorna cifrado, é racionalmente aceito, mas isolado ou neutralizado em seu pleno peso simbólico e assim sucessivamente. Desse modo, temos uma dança louca de distorções que não seguem uma lógica clara e inequívoca, mas forma uma colcha de retalhos de conexões improvisadas. Lembramos aqui o caso lendário do esquecimento do nome de Signorelli em Psicopatologia da vida cotidiana, de Freud: ele não conseguia se lembrar do nome do pintor dos afrescos de Orvieto e apresentou como substituto o nome de dois outros pintores, Botticelli e Boltraffio; a análise que ele faz desse bloqueio traz à luz as associações significantes que ligam Signorelli a Botticelli e Boltraffio (foi na vila italiana de Trafoi que ele soube do suicídio de um de seus pacientes, que vinha tendo problemas sexuais; Herr, termo alemão para Mestre – Signore – está ligado a uma viagem a Herzegovina, onde um velho muçulmano disse a Freud que não há mais razão para viver, uma vez que não se pode mais fazer sexo). A tessitura rizomática complexa dessas associações e deslocamentos não tem uma estrutura triádica clara, com uma resolução clara; o resultado da tensão entre “tese” (o nome Signorelli) e “antítese” (seu esquecimento) é a formação de compromisso da falsa lembrança de dois outros nomes, nos quais (eis a característica crucial) a dimensão em razão da qual Freud foi incapaz de se lembrar de Signorelli (o elo entre sexo e morte) retorna de uma maneira ainda mais notável. Não há lugar para essa lógica em Hegel, que teria rejeitado o exemplo de Freud como um jogo de contingências sem importância. A negação da negação freudiana não é a resolução radical de um impasse, mas sim, em seu mais básico disfarce, o “retorno do reprimido” e, como tal (e por definição), uma formação de compromisso: algo é afirmado e simultaneamente negado, deslocado, reduzido, codificado de maneira muitas vezes ridiculamente ad hoc.
Hegel pensa uma espécie de objeto a, mas este é apenas a singularidade contingente à qual se prende a totalidade racional – como o Estado se prende ao monarca – ou o indiferente pretexto para uma luta. Por exemplo, uma das maneiras de o sujeito demonstrar sua autonomia é estar disposto a arriscar tudo, inclusive a própria vida, por um objeto menor: embora esse objeto seja em si insignificante, sua própria indiferença indica que a luta se refere à dignidade e autonomia do sujeito, e não a seus interesses. Isso, no entanto, ainda não é o resto material a que se prende a própria consistência do sujeito: Hegel propõe o preceito “o Espírito é um osso” como absoluta contradição, não como uma pequena parte do constituinte real da subjetividade.
Por mais que encontremos nos textos de Hegel evocações surpreendentes da jouissance (Geniessen, não só prazer, luxúria) – por exemplo, para ele a Geniessen do fiel é o verdadeiro objetivo dos rituais religiosos –, não há espaço em seu pensamento para a jouissance enquanto Real, enquanto substância (a única substância reorganizada pela psicanálise). Na medida em que a jouissance é Real e a verdade é simbólica, poderíamos acrescentar que, no espaço conceitual de Hegel, também não há lugar para a lacuna que separa a verdade do Real – ou, como resume Lacan: “Verdade ou real? Nesse nível, tudo se configura como se esses dois termos fossem sinônimos. Mas o desagradável é que eles não o são [...]. Quando lidamos com o real, a verdade está em divergência”2.
Aqui (como alhures), e como sempre acontece em uma equivocação propriamente dialética, o que Hegel não percebe não é apenas uma dimensão pós-hegeliana totalmente além de seu alcance, mas a própria dimensão “hegeliana” do fenômeno analisado. Por exemplo, o que Marx demonstra em O capital é que a autorreprodução do capital obedece à lógica do processo dialético hegeliano de um sujeito-substância que põe retroativamente seus próprios pressupostos. Marx caracteriza o capital como um “caráter automaticamente ativo” – tradução inadequada das palavras alemãs usadas por Marx para caracterizar o capital como “automatischem Subjekt”, “sujeito automático”, um oximoro que une subjetividade viva e automatismo morto. Isto é o capital: um sujeito, mas um sujeito automático, e não um sujeito vivo. Poderia Hegel pensar essa “mistura monstruosa”, um processo de automediação subjetiva e pôr retroativo de pressupostos que é apanhado, por assim dizer, em uma “falsa infinidade” substancial, um sujeito que se torna ele mesmo uma substância alienada? Talvez essa mesma limitação explique a compreensão inadequada de Hegel da matemática, isto é, sua redução da matemática ao simples modelo da “falsa infinidade” abstrata. Hegel não foi capaz de perceber que, assim como o movimento especulativo do capital em Marx, a matemática moderna revela a mesma “monstruosa mescla de bom infinito e mau infinito”: o “mau infinito” da repetição combinado com o “verdadeiro infinito” dos paradoxos autorrelativos.
A ciência moderna não pode ser reduzida ao formalismo matemático, pois ela sempre inclui também um mínimo de medições e testes empírico que introduzem o aspecto da contingência – o fato de ninguém saber de antemão quais serão os resultados das medições. Esse elemento se perde na matemática, em que a contingência é limitada à seleção ou ao pôr de axiomas com os quais o teórico começa, e tudo o que se segue são as consequências racionais desses axiomas. Até mesmo uma ciência “abstrata” como a física quântica, em que a materialidade densa e positiva é dissolvida na pura virtualidade das ondas quânticas, tem de se expor à medição. Por isso, a ciência moderna, de Galileu à física quântica, é caracterizada por dois traços conectados: a matematização (as declarações que serão provadas são fórmulas matemáticas) e a confiança na medição que introduz o elemento irredutível da contingência. Os dois aspectos implicam o real sem sentido do universo silente e finito: o real das fórmulas matemáticas desprovido de sentido, o real da contingência radical3. Existe lugar para a ciência moderna em Hegel? Seu pensamento não é a última grande tentativa de “suprassumir” a ciência empírica formal na Razão especulativa? O crescimento explosivo das ciências naturais a partir do século XVIII não estaria simplesmente além do escopo do pensamento de Hegel?
O tema da natureza nos coloca diante de outro problema levantado pela crítica a Hegel: a dedução hegeliana da natureza não coloca um claro limite nessa retroatividade? A passagem da lógica para a natureza não seria um caso de exteriorização, de pôr conceitual de sua alteridade? Hegel não começa com a lógica, com as categorias ideias, e depois tenta “deduzir” a realidade material a partir desse campo sombrio? Não seria esse um caso-modelo de mistificação idealista? O problema com esse contra-argumento é que ele bate em uma porta aberta: o próprio Hegel diz explicitamente que seu “sistema da lógica é o campo das sombras, o mundo das simples essencialidades livres de toda concretude sensória”4.
Assim, Hegel não é um idealista platônico para quem as Ideias constituem um campo ontológico superior com respeito à realidade material: elas formam um campo pré-ontológico das sombras. Para ele, o espírito tem a natureza como seu pressuposto e é simultaneamente a verdade da natureza e, como tal, o “absolutamente primeiro”; a natureza, portanto, “desvanece” em sua verdade, é “suprassumida” na identidade-de-si do espírito: “Essa identidade é a negatividade absoluta, porque o conceito tem na natureza sua objetividade externa consumada, porém essa sua extrusão é suprassumida, e o conceito tornou-se nela idêntico a si mesmo. Por isso o conceito só é essa identidade enquanto é retomar da natureza”5.
Note-se a estrutura triádica precisa dessa passagem, ao modo “hegeliano” mais ortodoxo: tese, o conceito tem na natureza sua objetividade externa consumada; antítese (“porém”), essa sua extrusão é suprassumida e, por meio dessa suprassunção, o conceito atinge a identidade-de-si; síntese (“por isso”), ele só é essa identidade enquanto é retomar da natureza. É dessa maneira que devemos entender a identidade como negatividade absoluta: a identidade-de-si do espírito surge por sua relação negativa (suprassunção) com esses pressupostos naturais, e essa negatividade é “absoluta” não no sentido de que nega a natureza “absolutamente”, de que a natureza desaparece “absolutamente” (totalmente) nele, mas no sentido de que a negatividade da suprassunção é autorrelativa; em outras palavras, o resultado desse trabalho da negatividade é a identidade-de-si positiva do espírito. As palavras principais dessa passagem são: consumada e só. O conceito “tem na natureza sua objetividade externa consumada”: não há “outra” realidade objetiva, tudo o que “realmente existe” enquanto realidade é a natureza, o espírito não é outra coisa que se acrescenta às coisas naturais. É por isso que “só é essa [sua] identidade enquanto é retomar da natureza”: não há um espírito preexistente à natureza que, de alguma maneira, “exterioriza-se” na natureza e depois se reapropria dessa realidade natural “alienada” – a natureza completamente “processual” do espírito (o espírito é seu próprio devir, é o resultado de sua própria atividade) significa que o espírito é somente (ou seja, nada mais que) seu “retorno-a-si-mesmo” a partir da natureza. Em outras palavras, o “retorno a” é plenamente performativo, o movimento do retorno cria aquilo para que ele retorna.
A passagem da natureza para a liberdade pode ser dita nos termos de uma reversão muito precisa da relação dialética entre necessidade e contingência: a “natureza” representa a contingência da necessidade (na natureza, os eventos ocorrem necessariamente, seguindo leis inexoráveis; entretanto, o próprio fato dessas leis – por que motivo essa razão entre massa e velocidade não é diferente – é totalmente contingente, as coisas são simplesmente assim, não há um “porquê”), ao passo que a “liberdade” representa a necessidade da contingência (a liberdade não é apenas a contingência cega, um ato não é livre só porque é contingente, só porque “eu poderia ter decidido de outra maneira”; na verdadeira liberdade, minha decisão abissal/contingente fundamenta uma nova necessidade à parte, efetivada na cadeia de razões – eu agi dessa maneira por aquela razão...). Dito de outra maneira: na natureza, a necessidade aparece (realiza-se) na forma de contingência (a necessidade é a lei subjacente que regula o que aparece como interação caótica contingente), enquanto na liberdade a contingência aparece (realiza-se) na forma de necessidade (minha decisão contingente é uma decisão para fundamentar uma nova necessidade, uma necessidade de ordem – ética – deontológica).
Necessidade e contingência, portanto, não só suplementam uma à outra dialeticamente, como também, de maneira muito mais estrita, libertam uma à outra em sua própria essência pela mediação da liberdade. A mera necessidade cega é apreendida melhor na fórmula “é assim porque é assim”, sem mais perguntas. E = mc² porque é – como se lidássemos com uma decisão contingente, posto que tudo o que podemos acrescentar a esse fato brutal é que “poderia (também) ser de outra forma”. A necessidade natural cega é, portanto, “radicalmente passiva em relação a si mesma”6: ela é oprimida, por assim dizer, por sua própria imposição, sem nenhum espaço para se relacionar consigo – e, em nome dessa imposição, ela coincide com seu oposto, a contingência. Assim, como a necessidade pode se redimir dessa contaminação pela contingência cega e pôr a si mesma como verdadeira necessidade? A resposta de Hegel é: pela mediação da liberdade: “A necessidade não se torna liberdade pelo desvanecimento, mas só porque sua identidade ainda interior é manifestada”7. É nesse sentido que a liberdade é “necessidade concebida”: necessidade posta como tal, concebida em... Em quê? Em sua necessidade, precisamente: em sua lógica interna que a torna necessária e não só algo que apenas “é assim porque é assim”. A liberdade, portanto, é o próprio “inter-”, a lacuna que separa a necessidade dela mesma. Inversamente, a contingência, em sua imediatez, enquanto contingência natural cega, coincide com seu oposto, a necessidade: em última análise, ser contingente significa ser assim de acordo com as leis naturais cegas. A única maneira de a contingência se livrar dessa mancha da necessidade e pôr a si mesma (manifestar-se) como contingência verdadeira é pela mediação da liberdade: é somente aqui que a contingência é uma questão de decisão contingente de um sujeito.
Desse modo, a contingência não é externamente oposta à necessidade, mas é o resultado da autorrelação da necessidade: quando a necessidade perde seu caráter natural imediato e reflete-se como tal, adquire a liberdade que, em sua aparência imediata, é a contingência, o abismo do “é assim porque quero que seja, porque decidi assim!”. Essa reflexão-para-dentro-de-si iguala-se à inscrição da enunciação dentro do conteúdo enunciado: como vimos, quando o monarca hegeliano anuncia “Essa é a minha vontade! Que assim seja!”, não se trata apenas do momento do suplemento contingente que conclui a cadeia da necessidade, mas simultaneamente o momento da enunciação com respeito a uma série de declarações: por meio de seu ato, as declarações preparadas pela burocracia estatal adquirem poder performativo, tornam-se efetivadas. O senso comum diz que toda declaração tem de ser enunciada para se efetivar, e que o momento (e o lugar) dessa enunciação é contingente; a reflexão filosófica acrescenta a ideia de que esse momento contingente não é apenas externo, mas imanente: a expressão contingente de uma verdade necessária sinaliza a contingência dessa própria verdade necessária.
Deveríamos, portanto, contrapor a linha marxista, desde o jovem Lukács até Kojève, que rejeitava a dialética da natureza por ser um erro: a filosofia da natureza é a parte crucial e imanente do sistema hegeliano. De longe, também é a parte mais desacreditada da filosofia de Hegel, a vítima permanente das piadas, seja pela suposta afirmação de Hegel de que “se a teoria não se encaixa nos fatos, tanto pior para os fatos”, seja pela história de que ele deduziu a necessidade dos oito planetas ao redor do Sol sem saber que os astrônomos já tinham descoberto o nono (Netuno). (A ironia é que, há uma ou duas décadas, Netuno deixou de ser planeta e foi reclassificado pelos astrônomos como um satélite – então, de fato, Hegel estava certo...) A crítica comum a Hegel é que ele tenta abolir a heterogeneidade absoluta do Outro, seu caráter totalmente contingente. Mas, em Hegel, há um nome para essa contingente e irredutível Alteridade: natureza. Ela é irredutível no sentido de que, mesmo que seja cada vez mais “conceitualizada”, mediada, ela permanece como pano de fundo irredutivelmente contingente para a história da humanidade. Nada mais simples para Hegel que isto: a contingência da natureza significa, entre outras coisas, que não há garantia nenhuma de que um asteroide disparatado não se chocará com a Terra e não matará todos nós. A natureza é contingente, não há uma Mente substancial secreta supervisionando as coisas para garantir que nada de terrível aconteça.
Quando define natureza, Hegel não diz apenas que ela é a Alteridade da Ideia, mas que é a própria Ideia em sua alteridade – no entanto, essa volta “idealista” significa que a Alteridade deveria ser deslocada para a própria natureza: a natureza não é apenas o Outro da Ideia, mas o Outro com respeito a si mesmo. (Portanto, na medida em que a Ideia retorna a si mesma em espírito, deveríamos perguntar: então o espírito é de certo modo o “Outro com respeito a si mesmo”? Sim – justamente como o que chamamos em geral de “segunda natureza”, o espírito petrificado na substância espiritual.) É por isso que a natureza, em seu nível zero, é o espaço: não só a Alteridade da Ideia (Ideia em sua Alteridade), mas a Alteridade com respeito a si mesma – uma coexistência de pontos (extensivamente lado a lado) sem nenhum conteúdo ou diferença, totalmente o mesmo em sua pura e extensiva in-diferença. Longe de ser o “mistério” de algo que contém os objetos, o espaço é literalmente a coisa mais estúpida que existe. E não é “suprassumido” no sentido de não estar mais aí: os objetos naturais que “suprassumem” o espaço continuam sendo objetos espaciais! Daí a espiritualidade ser negada em seu quimismo, magnetismo e depois organismo, daí os objetos não serem mais compostos mortos de partes de elementos, daí termos uma unidade ideal “eterna”, que não pode ser localizada em um ponto certo no espaço: não há “centro” de um organismo em um ponto qualquer do espaço. Talvez aqui Hegel aponte para a relatividade (já foi dito que sua crítica ao espaço newtoniano prenuncia a crítica einsteiniana): se o nível zero da natureza é espaço, então os objetos naturais deveriam se desenvolver fora do espaço, não ser concebidos como pedaços misteriosos de matéria que, sabe-se lá onde, “entram” no espaço. A única coisa que pode acontecer ao puro espaço é a assimetria, seu devir desomogeneizado, “curvado” – desse modo, a ideia de que a “matéria” é o efeito do espaço curvo é implícita pela teoria hegeliana do espaço.
Até mesmo um dialético perspicaz como Jameson cai aqui em uma armadilha no juízo depreciativo de que o conceito hegeliano de vida, “do jeito que é pré-darwiniano, provavelmente é metafísico e epistemológico demais (a forma mais superior da unidade entre sujeito e objeto) para que seja hoje de nosso interesse”8. E o que dizer das recentes teorias biológicas que tratam da autorreferencialidade (traçando uma linha entre o interno e o externo) como característica constitutiva do processo de vida e, com frequência, interpretam verbatim algumas passagens da Naturphilosophie de Hegel? No entanto, mesmo quando tropeçamos em pérolas imprevistas ao ler a filosofia da natureza de Hegel (sua crítica a Newton aponta de maneira assombrosa para Einstein; sua teoria da vida prefigura espantosamente as teorias da autopoiese etc.), ainda é fato básico que seu teor fundamental é totalmente inadequado em relação às duas características principais da ciência moderna de Galileu: a formalização matemática e a abertura para a contingência da medição (experimental). Como Popper deixou abundantemente claro, o próprio núcleo do método científico moderno reside em seu esforço para criar uma situação experimental precisa, capaz de refutar uma hipótese anterior – e simplesmente não há espaço para esse tipo de posicionamento em Hegel.
Essa incapacidade de Hegel de pensar a formalização matemática é o anverso de sua incapacidade de pensar o espaço sobredeterminado daquilo que Lacan chama de lalangue. O que acontece no último Lacan é a passagem (ou a clivagem) da unidade do pensamento conceitual para a (ou para dentro da) dualidade de matheme e lalangue: de um lado, fórmulas e esquemas matemáticos ou lógicos (fórmulas de sexuação, os quatro discursos etc.); do outro, a explosão do jogo de palavras e outras formas de discurso poético9 – um movimento impensável para Hegel, que insiste na prioridade do pensamento conceitual.
E se a crítica de Kierkegaard a Hegel, que varia infinitamente o tema da contingência irredutível, baseia-se em uma má compreensão decisiva do principal insight hegeliano? A primeira coisa que chama a atenção é o fato de a crítica de Kierkegaard ser baseada na oposição (totalmente hegeliana!) entre pensamento “objetivo” e “subjetivo”: “Enquanto o pensamento objetivo traduz tudo em resultados [...] o pensamento subjetivo coloca tudo em processo e omite o resultado [...] pois o indivíduo existente está em ininterrupto processo de vir a ser”10. Para Kierkegaard, obviamente, Hegel representa a realização definitiva do “pensamento objetivo”: ele “não entende a história do ponto de vista do devir, mas, com a ilusão presa à condição do passado, entende a história do ponto de vista de uma finalidade que exclui todo devir”11. Devemos ter muito cuidado para não deixar passar o propósito de Kierkegaard: para ele, somente a experiência subjetiva é, em termos efetivos, “no devir”, e todo conceito de realidade objetiva enquanto processo aberto sem finalidade definida permanece nos confins do ser. Mas por quê? – podemos perguntar. Porque toda realidade objetiva, por mais “processual” que seja, é, por definição, plenamente constituída em termos ontológicos, presente enquanto domínio positivamente existente dos objetos e suas interações; somente a subjetividade designa um domínio que, em si, é “aberto”, marcado por uma falha ontológica inerente:
Uma existência particular está completa e adquire finalidade sempre que é relegada ao passado e, desse modo, fica sujeita a uma apreensão sistemática. [...] Mas a quem ela é sujeita? Nenhum indivíduo existente pode obter essa finalidade fora da existência, o que corresponde à eternidade dentro da qual se inseriu o passado.12
Mas e se Hegel faz exatamente o oposto? E se a aposta de sua dialética não é adotar o “ponto de vista da finalidade” com respeito ao presente, encarando-a como se já fosse passado, mas sim, precisamente, reintroduzir a abertura do futuro no passado, apreender aquilo-que-foi em seu processo de devir, ver o processo contingente que gerou a necessidade existente? Não é por isso que temos de conceber o Absoluto “não só como Substância, mas também como Sujeito”? É por isso que o idealismo alemão já destruiu as coordenadas da ontologia aristotélica padrão que envolvem o vetor que vai da possibilidade à efetividade. Em contraposição à ideia de que toda possibilidade luta para se efetivar, deveríamos pensar no “progresso” como o movimento de restaurar a dimensão da potencialidade à mera efetividade, de desenterrar, no próprio cerne da efetividade, uma aspiração secreta à potencialidade. Lembremo-nos aqui o conceito de Walter Benjamin de revolução como redenção pela repetição do passado: a propósito da Revolução Francesa, a tarefa de uma verdadeira historiografia marxista não é descrever os eventos do modo como realmente foram (e explicar como esses eventos geraram as ilusões ideológicas que os acompanharam), mas antes desenterrar a potencialidade oculta (o potencial emancipatório utópico) que foi traída na efetividade da revolução e em seu resultado (o advento do capitalismo utilitarista de mercado). O propósito de Marx não é principalmente ridicularizar as esperanças revolucionárias e ousadas de Jacobin, não é apontar como sua entusiasmada retórica emancipatória era apenas um meio usado pela histórica “Astúcia da Razão” para estabelecer a realidade capitalista comercial e vulgar; ao contrário, seu propósito é explicar como esses potenciais emancipatórios radicais traídos continuam “persistindo” enquanto “espectros” históricos que assombram a memória revolucionária, exigindo sua promulgação, de modo que a revolução proletária posterior também deve redimir (enterrar) esses fantasmas passados. Essas versões alternativas do passado que persiste em uma forma espectral constituem a “abertura” ontológica do processo histórico, como estava claro – mais uma vez – para Chesterton:
As coisas que deveriam ter sido nem sequer se apresentam à imaginação. Se alguém diz que o mundo seria melhor se Napoleão não tivesse caído, mas estabelecido sua dinastia imperial, as pessoas têm de ordenar os pensamentos com um tranco. A própria ideia é nova para elas. Contudo, isso teria evitado a reação da Prússia; teria salvado a igualdade e o Iluminismo sem a necessidade de uma batalha mortal com a religião; teria unificado os europeus e talvez tivesse evitado a corrupção parlamentar e a vingança fascista e bolchevista. Mas, nessa era de livres-pensadores, a mente dos homens não é totalmente livre para ter esse tipo de pensamento.
Queixo-me do fato de que as pessoas que aceitam dessa maneira o veredito do destino aceitam-no sem saber por quê. Por um estranho paradoxo, as pessoas que assumem que a história sempre tomou a direção certa são em geral as mesmas pessoas que não acreditam na existência de uma providência especial que as tenha guiado. Os mesmos racionalistas que zombam do julgamento por combate, no antigo ordálio feudal, na verdade aceitam um julgamento por combate como determinante de toda a história humana.13
No entanto, isso não significa que, em uma repetição histórica no sentido radical benjaminiano, simplesmente retornamos ao momento aberto da decisão e, dessa vez, fazemos a escolha certa. A lição da repetição é, antes, que nossa primeira escolha foi necessariamente a escolha errada, e por uma razão bem precisa: a “escolha certa” só é possível da segunda vez, pois somente a primeira escolha, em sua condição de erro, literalmente cria as condições para a escolha certa. A ideia de que já poderíamos fazer a escolha certa da primeira vez, mas simplesmente perdemos a chance por casualidade, é uma ilusão retroativa. Talvez seja útil fazermos referência a Georg Büchner e seu grandioso tema do Destino como aquilo que predetermina nossa vida – não existe livre-arbítrio, “o indivíduo nada mais é que espuma nas ondas” (como escreveu em uma carta para sua noiva em 1833): “A palavra deve é uma das maldições que batizaram a humanidade. Dizer que ‘os escândalos devem acontecer; mas ai de quem provocá-los’ é terrível. O que há em nós que mente, mata, rouba? Não me importo de continuar com esse pensamento”14. O que aterrorizava Büchner era o fato de que, embora nossos atos sejam predeterminados, nós nos consideramos inteiramente responsáveis por eles – um paradoxo resolvido por Kant e Schelling com a hipótese de um ato transcendental atemporal por meio do qual cada um de nós temos sempre-já escolhido nosso caráter eterno: o que vivenciamos como destino é nossa “natureza”, resultado de uma escolha inconsciente. E é somente nesse ponto que começa a verdadeira dialética entre liberdade e necessidade, entre escolha e determinação.
A “dialética” de senso comum entre liberdade e necessidade concebe sua articulação no sentido das famosas linhas do início de O 18 de brumário de Luís Bonaparte: “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram”15. Somos parcialmente, mas não totalmente, determinados: temos o espaço da liberdade, mas dentro das coordenadas impostas por nossa situação objetiva. Essa visão não leva em conta o modo como nossa liberdade (atividade livre) cria retroativamente (“põe”) suas condições objetivas: essas condições não são simplesmente dadas, elas surgem como pressupostos de nossa atividade. (E vice-versa: o espaço de nossa própria liberdade é sustentado pela situação em que nos encontramos.) Assim, o excesso é duplo: nós não somos apenas menos livres do que pensamos (os contornos de nossa liberdade são predeterminados); nós somos simultaneamente mais livres do que pensamos (“pomos” livremente a mesma necessidade que nos determina). É por isso que, para atingir nossa liberdade “absoluta” (o livre “pôr” de nossos pressupostos), temos de passar pelo determinismo absoluto.
Mas a rejeição por parte de Hegel da tese do “nariz de Cleópatra” em sua grande Lógica (o que chamaríamos hoje de tese do “efeito borboleta”, a ideia de que pequenos acidentes podem mudar o rumo da história mundial, assim como a beleza do nariz de Cleópatra mudou o rumo da história da Roma antiga) não aponta para uma visão que reduz o papel da contingência na história? Para Hegel, o erro de tal raciocínio envolve a “inadmissível aplicação” de um conceito mecânico de causa a processos de larga escala na vida orgânica ou espiritual: o “chiste comum” de que, na história, grandes efeitos podem resultar de causas absurdamente pequenas, é “uma instância da conversão que o espírito impõe no exterior; mas, por essa mesma razão, esse exterior não é uma causa no processo – em outras palavras, essa conversão em si suprassume a relação da causalidade”16. Devemos interpretar essas palavras com muito cuidado, e não como uma rejeição simplista da causalidade mecânica externa. O que Hegel quer dizer com “conversão”? Recordemos o caso da linguagem: o líder diz uma simples palavra (“sim” ou “não”), e o resultado pode ser uma guerra grandiosa com centenas de milhares de mortos – do ponto de vista mecanicista exterior, a vibração de alguns sons (a voz humana pronunciando uma palavra breve) “causou” uma concatenação de eventos, levando a centenas de mortes – e, de certa forma, isso é verdade, mas só se levarmos em conta a “conversão” que faz dos elementos materiais portadores e transmissores do significado de uma maneira que não tem nenhuma relação com sua pequena parte de realidade material imediata. Nesse sentido, a relação de causalidade é “suprassumida”: ela é negada, mas mantida e elevada a um nível superior, pois a causalidade não é mais a causalidade mecânica imediata (como a famosa bola de bilhar chocando-se com outra), mas uma causalidade mediada pelo significado. Mas, em todos os casos, devemos ter em mente que o processo inteiro precisa acontecer no nível da materialidade imediata: existe significado, mas esse significado só pode exercer seu poder causal “superior” se materializado em sons ou letras, pois não tem existência “pura” própria17.
Qual é então a principal constatação da dialética hegeliana da necessidade e da contingência? Além de deduzir (de maneira bastante coerente com suas premissas) a necessidade da contingência – a saber, como a Ideia necessariamente exterioriza a si mesma (adquire realidade) nos fenômenos que são genuinamente contingentes –, Hegel também desenvolve (e esse aspecto costuma ser negligenciado por muitos comentadores) uma tese oposta e teoricamente muito mais interessante: a da contingência da necessidade. Quer dizer, quando Hegel descreve o progresso da aparência contingente “exterior” para a essência necessária “interior”, ou seja, a “autointeriorização” da aparência por meio da autorreflexão, ele não está descrevendo a descoberta de uma Essência interior preexistente, algo que já estava aí (isso seria justamente uma “reificação” da Essência), mas um processo “performativo” de construir (formar) o que é “descoberto”. Como o próprio Hegel afirma na Lógica, no processo da reflexão o próprio “retorno” ao Fundamento oculto ou perdido gera aquilo para que se retorna. Portanto, não é só a necessidade interior que é a unidade do si e a contingência como seu oposto, pondo necessariamente a contingência como seu momento; a abrangente unidade de si é também a contingência e seu oposto, a necessidade. Em outras palavras, o processo pelo qual a necessidade surge da necessidade é um processo contingente.
Podemos dizer a mesma coisa nos termos da dialética entre ontologia e epistemologia: se a abrangente unidade da necessidade e da contingência é a necessidade, então ela (descoberta gradativamente por nosso conhecimento como Conceito subjacente da multiplicidade fenomenal contingente) tinha de estar aí o tempo todo, esperando ser descoberta por nosso conhecimento – em suma, nesse caso, a ideia central de Hegel (formulada claramente pela primeira vez na introdução da Fenomenologia) de que nosso caminho para a verdade faz parte da verdade em si é anulada, e retornamos ao conceito metafísico padrão da Verdade como um Em-si substancial, independente da abordagem do sujeito a ele. Somente se a unidade abrangente for contingente é que podemos afirmar que a descoberta da verdade necessária, por parte do sujeito, é simultaneamente a constituição (contingente) dessa mesma verdade – ou, parafraseando Hegel, afirmar que o próprio retorno à (redescoberta da) Verdade eterna gera essa Verdade. Longe de ser um “essencialista” que desenvolve todo o conteúdo a partir do autodesdobramento necessário do Conceito, Hegel é – nos termos de hoje – o maior pensador da autopoiese, do processo de emergência das características necessárias a partir da contingência caótica, o pensador da auto-organização gradual da contingência, do advento gradual da ordem a partir do caos.
De que modo a necessidade pode surgir da contingência? A única maneira de evitar o obscurantismo das “propriedades emergentes” é trazer a negatividade para o jogo: em sua forma mais radical, a necessidade não é um princípio positivo da regularidade que supera a contingência, mas o anverso negativo da contingência: o que é “necessário”, acima de tudo, é o fato de que cada ente particular contingente encontra sua verdade em sua própria autoanulação, desintegração, morte. Imaginemos um ente que persiste em sua singularidade e consegue se impor como necessidade duradoura: a necessidade efetiva é a negatividade que destrói essa identidade. Esta é a necessidade universal hegeliana em sua efetividade: o poder negativo que traz para sua verdade todas as particularidades, destruindo-as no processo. A necessidade, portanto, nada mais é que a “verdade” da contingência, a contingência trazida para sua verdade por meio de sua (auto)negação.
A visão-padrão do sistema hegeliano é como um círculo fechado de categorias que sucedem umas às outras com uma necessidade lógica, e a atividade crítica se concentra nos “pontos fracos” dessa dedução, nas passagens em que Hegel parece “trapacear”, propondo uma nova categoria que realmente não deriva da categoria que a precede. Devemos reverter radicalmente essa perspectiva: cada passagem em Hegel é um momento de invenção criativa, o Novo não surge de maneira automática, mas como uma surpresa milagrosa. É isto que significa reproduzir um processo por meio de sua análise dialética: reintroduzir a possibilidade e a abertura ontológica no que, em termos retroativos, parece uma sucessão fechada, estabelecida por sua necessidade imanente. Portanto, quando Hegel diz que, em um processo dialético, a coisa se torna o que sempre-já foi, isso se mostra claramente como algo que deve ser interpretado como uma afirmação do fechamento ontológico pleno: não há nada radicalmente novo, o que surge no movimento dialético é apenas a plena efetivação do que, in potentia (ou em si), já estava lá. No entanto, a mesma declaração pode ser interpretada de maneira muito mais radical (e literal): em um processo dialético, a coisa torna-se “o que foi sempre-já”, ou seja, a “essência eterna” (ou melhor, o conceito) de uma coisa não é dada com antecedência: ela surge, forma-se em um processo contingente aberto – a essência eternamente passada é um resultado retroativo do processo dialético. Kant foi incapaz de pensar essa retroatividade, e o próprio Hegel precisou de muito empenho para conceituá-la. Eis como o primeiro Hegel, ainda lutando para se diferenciar do legado de outros idealistas alemães, classifica o grande avanço filosófico de Kant: na síntese transcendental kantiana, “a determinidade da forma não é outra senão a identidade entre contrários, por meio do que o entendimento a priori se torna simultaneamente, pelo menos no universal, a posteriori, pois a ‘aposterioridade’ não é nada senão a contraposição”18. Em princípio, o significado dessa densa passagem parece claro: “a determinidade da forma” é outro termo para a universalidade concreta, para o fato de que a forma universal de um conceito gera, a partir de si, seu conteúdo particular – ou seja, não se trata apenas de uma forma imposta em um conteúdo empírico independente. E como a universalidade conceitual e a particularidade de seu conteúdo – em suma, o a priori da forma universal e o a posteriori de seu conteúdo – são opostos (precisamente os opostos que Kant mantém separados, em última análise externos um ao outro, pois a forma transcendental imanente é imposta a um conteúdo que afeta o sujeito de fora), a determinidade da forma iguala a unidade dos opostos, o fato de que o conteúdo é gerado por sua forma. Resta saber como, em termos concretos, devemos interpretar essa identidade dos opostos. A leitura crítica usual está satisfeita em ver nessa identidade o mesmo modelo de como a Ideia medeia ou põe todo o seu conteúdo particular, ou seja, como afirmação “idealista” extrema da primazia do a priori em relação ao a posteriori. Mas é evidente que essa leitura não considera o movimento oposto, o “cordão umbilical” irredutível por conta do qual cada universalidade a priori continua ligada ao (“sobredeterminada” pelo) a posteriori de um conteúdo particular. Em termos mais claros: sim, a forma conceitual universal impõe a necessidade na multitude de seus conteúdos contingentes, mas ela o faz de maneira que ela mesma continua marcada por uma mancha irredutível de contingência – ou, como Derrida teria dito, o próprio quadro é sempre parte do conteúdo enquadrado. A lógica aqui é a da “determinação opositiva” (gegensätzliche Bestimmung), em que o gênero universal se encontra entre suas espécies particulares e contingentes19.
Hegel apresenta esse conceito de “determinação opositiva” em sua lógica da essência, quando discute a relação entre identidade e diferença; seu argumento não é só que a identidade é sempre identidade entre identidade e diferença, mas que a própria diferença também é sempre a diferença entre si e a identidade; do mesmo modo, não é só a necessidade que abrange tanto a si mesma quanto a contingência, mas também – e de modo mais fundamental – é a própria contingência que abrange tanto a si mesma quanto à necessidade. Ou, com respeito à tensão entre essência e aparência, o fato de que a essência precisa não significa apenas que a essência gera ou medeia suas aparências, mas que a diferença entre essência e aparência é interna à aparência: a essência tem de aparecer dentro do domínio das aparências, como um indício de que “as aparências não são tudo”, mas “apenas aparências”. Na medida em que essa oposição aparece na linguagem como oposição entre o conteúdo universal do significado e sua expressão em uma forma contingente particular (do significante), não surpreende que a linguagem forneça o exemplo supremo dessa unidade dialética entre os opostos – e não surpreende que Hegel rejeite a ideia de construir uma nova linguagem artificial mais precisa, que eliminasse as imperfeições da linguagem natural: “Não existe uma linguagem superior ou um idioma-padrão. Cada linguagem é uma instância do especulativo. O papel da filosofia é mostrar como, em cada língua, o essencial é dito e exposto pelos acidentes do idioma”20.
O ponto de partida do pensamento filosófico tem de ser a contingência de nossa própria linguagem enquanto “substância” de nosso pensamento: não existe uma via direta para a verdade universal por meio da abstração das contingências de nossa língua “natural” ou da construção de uma nova linguagem técnica ou artificial, cujos termos carregariam significados precisos. Contudo, isso não significa que um pensador deveria confiar ingenuamente nos recursos da própria linguagem; ao contrário, o ponto de partida de sua reflexão deveria ser as idiossincrasias dessa linguagem, que são, de certo modo, contingências redobradas, contingências dentro de uma ordem contingente (historicamente relativa). Paradoxalmente, a via da contingência (de nossa linguagem natural) para a necessidade (do pensamento especulativo) passa pela contingência redobrada: não podemos escapar do pensamento em nossa linguagem, pois ela é nossa substância intransponível; no entanto, pensar significa pensar contra a linguagem em que se pensa – a linguagem, inevitavelmente, calcifica nossos pensamentos, é o meio das distinções fixas do Entendimento par excellence. Mas, ao mesmo tempo que temos de pensar contra a linguagem em que pensamos, temos de fazê-lo dentro da linguagem, não há alternativa. É por isso que Hegel exclui a possibilidade (desenvolvida depois, sobretudo na filosofia analítica anglo-saxã) de purificar nossa linguagem natural de suas contingências “irracionais” e construir uma nova linguagem artificial que refletiria com fidelidade as determinações conceituais. Mas onde, em nossa própria linguagem, podemos encontrar apoio para pensarmos contra a linguagem? A resposta de Hegel é: onde a linguagem não é um sistema formal, onde a linguagem é mais inconsistente, contingente, idiossincrática. O paradoxo é que só podemos combater a “irracionalidade” da linguagem em prol da necessidade conceitual imanente se a própria necessidade se baseia no que há de mais “irracional” na linguagem, em sua irracionalidade ou contingência redobrada. A situação é semelhante à da lógica freudiana do sonho, em que o Real se anuncia na aparência de um sonho dentro de um sonho. Aqui, o que Hegel tem em mente muitas vezes se aproxima estranhamente da noção lacaniana de lalangue: jogo de palavras, duplos sentidos e assim por diante – seu maior exemplo em alemão são palavras com sentidos opostos ou múltiplos (como zu Grunde gehen, “desintegrar, despedaçar-se” e, literalmente, “ir ao fundamento, alcançá-lo” etc., ou ainda a famosa Aufhebung e seus três significados: anular/aniquilar, preservar, elevar a um nível superior). A palavra Aufhebung é citada em geral como exemplo de tudo que é “idealista-metafísico” em relação a Hegel: ela não é um sinal da própria operação por meio da qual toda a contingência exterior é superada e integrada ao autodesdobramento necessário do conceito universal? Contrário a essa operação, é um modismo insistir que sempre há um resto da contingência, da particularidade, que não pode ser aufgehoben, que resiste a sua (des)integração conceitual. A ironia é que o próprio termo usado por Hegel para designar essa operação é marcado pela irredutível contingência de uma idiossincrasia da língua alemã.
Não existe clareza conceitual se não tomarmos como ponto de partida a lalangue – ou, em termos mais conceituais, não só a necessidade se expressa na aparência da contingência, mas essa necessidade não preexiste à multitude contingente de aparências enquanto fundamento delas – a própria necessidade surge da contingência, como uma contingência (digamos, os múltiplos significados de Aufhebung) elevada à necessidade de um conceito universal21. Freud não visava algo estritamente homólogo com suas ideias de sintomas, chistes e atos falhos? Uma necessidade interior só pode se articular pela contingência de um sintoma e vice-versa: essa necessidade (digamos, a ânsia constante de um desejo reprimido) só ganha existência por meio dessa articulação. Aqui, também, a necessidade simplesmente não preexiste à contingência: quando Lacan diz que a repressão e o retorno do reprimido (em formações sintomáticas) são os dois lados do mesmo processo, a implicação é justamente que a necessidade (do conteúdo reprimido) é determinada pela contingência (de sua articulação em sintomas). Críticos de Hegel enfatizam apenas o primeiro aspecto, a necessidade como princípio interior que domina suas expressões contingentes, e negligenciam o segundo, isto é, que essa mesma necessidade é determinada pela contingência ou, em outras palavras, não é senão contingência elevada à forma de necessidade.
Isso nos leva à Aufhebung (suprassunção) hegeliana como movimento pelo qual cada particularidade contingente é aufgehoben (suprassumida) em seu conceito universal. O argumento-padrão contra a Aufhebung é que sempre existe um resto que resiste a ela, persiste em seu idiotismo imediato. Mas e se essa for a mesma questão da Aufhebung verdadeiramente hegeliana, da “negação da negação”? A tentativa direta de Aufhebung é a “posição” inicial; ela é “negada” em sua falha, no elemento que resiste a ela; a “negação da negação”, portanto, é o conhecimento de que esse elemento que resiste, esse obstáculo, é em si uma condição positiva de possibilidade – a Aufhebung tem de ser sustentada por sua exceção constitutiva.
E se a lição da Aufhebung hegeliana é que a própria perda (a falha) deve ser celebrada? Hegel tinha plena consciência de que o peso atribuído a um evento por sua inscrição simbólica “suprassume” sua realidade imediata – na Filosofia da história ele dá uma excelente caracterização da história da Guerra do Peloponeso escrita por Tucídides: “Na Guerra do Peloponeso, a luta foi essencialmente entre Atenas e Esparta. Tucídides nos deixou a história da maior parte dessa luta, e sua obra imortal é o ganho absoluto que a humanidade obteve dessa disputa”22. Devemos interpretar esse juízo em toda a sua simplicidade: de certa forma, do ponto de vista da história do mundo, a Guerra do Peloponeso aconteceu para que Tucídides pudesse escrever um livro sobre ela. O termo “absoluto” deve mostrar todo o seu peso aqui: do ponto de vista relativo de nossos interesses humanos finitos, as diversas tragédias reais da Guerra do Peloponeso são, é claro, infinitamente mais importantes que um livro; mas, do ponto de vista do Absoluto, o que importa é o livro. Não deveríamos ter medo de afirmar a mesma coisa com respeito a algumas obras de arte realmente grandiosas: a era elisabetana aconteceu para produzir Shakespeare; a obra de Shakespeare é “o ganho absoluto que a humanidade obteve” das vicissitudes desse período. E sim – por que não? – as obras-primas que Hitchcock produziu na década de 1950 são o “ganho absoluto” que a humanidade tirou da era de Eisenhower nos Estados Unidos. E algumas vezes a importância de um autor pode ser condensada não em sua obra, mas em um livro sobre ele: apesar de Samuel Johnson ter escrito A Dictionary of the English Language e o spiritus movens da afortunada “esfera pública” de Londres no século XVIII, hoje ele é lembrado quase exclusivamente por The Life of Samuel Johnson, a ampla biografia escrita por seu amigo James Boswell e publicada em 1791.
Insinua-se aqui uma ligação surpreendente com Heidegger. Em sua leitura da “essência” (Wesen) como um verbo (“essenciar”), Heidegger fornece uma noção “dessencializada” de essência: embora se refira tradicionalmente a um núcleo estável que garante a identidade de uma coisa, “essência” é, para Heidegger, algo que depende do contexto histórico, da abertura epocal do ser que ocorre dentro da linguagem e pela linguagem enquanto a “casa do ser”. A expressão “Wesen der Sprache” não significa “essência da linguagem”, mas o “essenciar” feito pela linguagem:
a linguagem que leva as coisas para dentro de sua essência, a linguagem que “nos move” de modo que as coisas nos sejam importantes de uma maneira particular, de modo que os caminhos sejam feitos e, dentro deles, possamos nos mover entre os entes, e de modo que os entes possam relacionar-se entre si como os entes que são [...]. Compartilhamos de uma linguagem originária quando o mundo é articulado no mesmo estilo para nós, quando “ouvimos a linguagem”, quando “deixamos que nos diga seu dizer”.23
Por exemplo, para um cristão do período medieval, a “essência” do ouro reside em sua incorruptibilidade e resplendor divino, o que o torna um metal “divino”; já para nós, trata-se, entre outras coisas, de um recurso para ser trocado no mercado de matéria-prima ou um material adequado a propósitos estéticos. (Ou, para citar outro exemplo, a voz de um castrato era, para os católicos, a própria voz de um anjo antes da Queda, enquanto hoje, para nós, é uma monstruosidade.) Desse modo, há uma violência fundamental nessa capacidade “essenciadora” da linguagem: nosso mundo é uma distorção parcial, ele perde sua equilibrada inocência, uma cor parcial dá o tom ao Todo. A operação definida por Laclau como hegemonia é inerente à linguagem.
No entanto, a questão persiste: essa afirmação hegeliana da contingência radical abre espaço para a coincidência da repressão com o retorno do reprimido, o que exemplifica a “negação da negação” propriamente freudiana (a repressão – negação – de um conteúdo só funciona se ele é autonegado, se o reprimido retorna)? Lacan repete o argumento clássico contra a tríade dialética, o retorno-a-si-mesmo do ponto de partida por meio da automediação: “Quando um faz dois, não há retorno jamais. Não volta a fazer de novo um, mesmo um novo”24. Talvez pareça que a premissa básica de Hegel é que o dois retorna ao Um, ainda que reconheçamos a questão-chave de que esse Um é um novo Um: não o Um que se perdeu na alienação-exteriorização, mas um novo Um criado “performativamente” no próprio processo de retorno-a-si-mesmo. Quando uma unidade substancial se dissolve na multiplicidade de seus predicados, é um de seus predicados anteriores que se estabelece como um novo sujeito, pondo retroativamente seus pressupostos. No entanto, até mesmo essa imagem propriamente dialética da transubstanciação permanente continua equivocada: podemos dizer sem rodeios que, para Hegel, no início não existe Um, cada Um é um retorno-a-si-mesmo a partir do dois. O Um para o qual se retorna é constituído pelo retorno, então isso não quer dizer que o Um se divide em dois – o Um é um Dois do qual uma parte não é nada. É dessa maneira que Hegel, em uma passagem extremamente condensada, define a lacuna que separa o processo dialético propriamente dito da “emanação” plotiniana: “A simples unidade, seu devir, é a suprassunção de todos os predicados – a negatividade absoluta; o emergir [emanação: Herausgehen] é essa negatividade em si – não se pode começar com a unicidade e passar para a dualidade”25. A última parte resume tudo, pois rejeita de maneira direta a noção-padrão do processo dialético como desenvolvimento ou divisão do Um imediato ou inicial em Dois – não se pode começar com a unicidade e passar para a dualidade. Por que não? Porque o Um é constituído na passagem para a dualidade, em sua divisão. A consequência inesperada desse fato é que, ao contrário do que diz a noção comum de que o número da dialética hegeliana é o 3 (ou, em outras palavras, que o objetivo de Hegel é superar todos os dualismos em uma “síntese” superior, reconciliar os opostos em um terceiro meio abrangente), o número apropriado da dialética é 2: não 2 como dualidade de opostos polares, mas 2 como autodistanciamento inerente do próprio Um: o Um só se torna Um redobrando-se, adquirindo uma mínima distância de si mesmo. É por esse motivo que, quando Badiou define o amor como a construção de um mundo que parte da perspectiva do Dois, devemos ver nessa definição um eco da dialética hegeliana: o amor une os dois de modo que sua lacuna é mantida, ou seja, não há uma fusão mística ou pseudo-wagneriana, a lacuna entre os dois é paraláctica e, como tal, intransponível. Esse argumento já foi defendido por Jameson quando, a propósito de Antígona, ele insistiu que a oposição entre lei humana e lei divina deve ser interpretada
não como uma luta entre o Estado e a família ou clã, uma luta que destroça a sociedade; mas sim, e antes de tudo, como a divisão que dá existência à sociedade primeiramente pela articulação de suas primeiras diferenciações notáveis, a do guerreiro versus o sacerdote, ou da cidade versus o clã, ou até mesmo do exterior versus o interior [...]. Cada um desses poderes larvais confere existência ao outro e reforça a distinção de seu número oposto [...] a contradição que por fim dilacera e destrói a pólis [...] é a mesma oposição que lhe confere existência enquanto estrutura viável em primeiro lugar.26
Vemos aqui mais uma vez a lacuna que separa Hegel do evolucionismo historicista: do ponto de vista historicista, cada figura histórica tem seu momento de maturidade, que depois é seguido do período de decadência. Por exemplo, o capitalismo progrediu até meados do século XIX, quando precisou de auxílio em sua luta contra as formas pré-modernas de vida; mas, com a piora da luta de classes, o capitalismo tornou-se um obstáculo para o progresso posterior da humanidade e terá de ser superado. Para um dialético verdadeiro, não há um momento de maturidade em que um sistema funcione de maneira não antagônica: por mais paradoxal que soe, o capitalismo foi ao mesmo tempo “progressivo” e antagônico, decadente, e a ameaça de sua decadência é a mesma força propulsora de seu “progresso” (o capitalismo tem de se revolucionar constantemente para lidar com seu “obstáculo” constitutivo). A família e o Estado, portanto, não são apenas os dois polos do Todo social; trata-se antes de a sociedade ter de dividir a si mesma e a partir de si mesma para se tornar Um – é esse rompimento do Todo social, a própria divisão, que “dá existência à sociedade primeiramente pela articulação de suas primeiras diferenciações notáveis, a do guerreiro versus o sacerdote”. É nesse sentido preciso que devemos interpretar a afirmação de Badiou: “O real não é o que junta, mas o que separa”. De maneira ainda mais incisiva, devemos acrescentar que o real é a separação (cisão antagônica) que, como tal, articula um campo sociossimbólico.
A leitura hegeliana de Antígona como uma peça que trata do “surgimento de uma sociedade articulada como tal”27 demonstra, portanto, a natureza radicalmente anticorporativista do pensamento social de Hegel: a premissa subjacente desse pensamento é que cada articulação social é, por definição, sempre “inorgânica”, antagônica. E a lição desse insight é que, sempre que lemos uma descrição de como uma unidade original se corrompe e cinde, devemos nos lembrar de que estamos lidando com uma fantasia ideológica retroativa, que oblitera o fato de que tal unidade original jamais existiu, que ela é uma projeção retroativa gerada pelo processo de cisão. Nunca houve um Estado harmonioso que se cindiu em guerreiros e sacerdotes. Ou, em um nível diferente, quando realizamos um gesto convencional, como um aperto de mão, não devemos presumir que tal gesto ou expressão tinha originalmente um sentido literal (ofereço minha mão para mostrar que não estou segurando uma faca etc.) – a lacuna entre o significado literal e o uso estereotipado está lá desde o início; isto é, a partir do momento em que o aperto de mão se tornou um gesto, significou mais que a demonstração de que a pessoa não está armada, tornou-se um ato performativo de sinalização da abertura ao contrato social e assim por diante. Temos aqui o tema que a física quântica chama de vácuos28: para que o poder hierárquico se estabeleça, ele precisa se redobrar ou dividir em poder “verdadeiro” (de guerreiro) e poder “falso” (de sacerdote); é essa divisão que, longe de enfraquecer o poder, o constitui. A classe dirigente tem de se dividir para governar – a regra é: “Divididos, perduramos; unidos, caímos”. Uma certa “negação da negação” também é constitutiva do significante fálico. Ou seja, o que faz do significante fálico uma noção tão complexa não é só o fato de nele estarem entrelaçadas as dimensões do real, do simbólico e do imaginário, mas também que, em um duplo passo autorreflexivo que estranhamente imita o processo da “negação da negação”, ele condensa três níveis; ele é (1) posição: o significante da parte perdida, do que o sujeito perde e que lhe falta com sua entrada na (ou com sua submissão à) ordem significativa; (2) negação: o significante da (dessa) falta; e (3) negação da negação: o próprio significante faltante/ausente29. O falo é a parte perdida (“sacrificada”) com a entrada na ordem simbólica e ao mesmo tempo o significante dessa perda30.
Quando Badiou31 enfatiza que a dupla negação não é o mesmo que uma afirmação, simplesmente confirma o velho lema lacaniano: le non-dupes errenta. Tomemos a afirmação “Eu acredito”. Sua negação é “Na verdade eu não acredito, estou apenas fingindo acreditar”. Sua negação da negação propriamente hegeliana, no entanto, não é o retorno à crença direta, mas o fingimento autorrelativo: “Eu finjo que finjo acreditar”, que significa: “Eu realmente acredito sem ter ciência disso”. Desse modo, não seria uma ironia a forma definitiva da crítica da ideologia nos dias de hoje – ironia no sentido mozartiano preciso, de levar as declarações mais a sério do que os próprios sujeitos que a declaram? Ou, como afirma Descartes no início da Terceira Parte de seu Discurso do método: “há poucas pessoas que queiram dizer tudo o que acreditam, mas também porque muitos o ignoram, por sua vez; pois, sendo a ação do pensamento, pela qual se crê uma coisa, diferente daquela pela qual se conhece que se crê nela, amiúde uma ação se apresenta sem a outra”b. Mais uma vez, como essa “negação da negação” lacaniana se relaciona com a hegeliana? Tomemos a negação na forma da humanidade abandonada por Deus: não existe final feliz aqui, na “negação da negação” nós não estamos menos sozinhos e abandonados do que antes; o que acontece é que experimentamos esse abandono em sua dimensão positiva, como o espaço de nossa liberdade. Outra versão dessa reversão foi discernida por Chesterton em seu maravilhoso The Book of Job [O livro de Jó], em que mostra por que Deus tem de repreender seus próprios defensores, os “mecânicos e arrogantes confortadores de Jó”:
O otimista mecânico se esforça para justificar o universo de maneira irrestrita sob o fundamento de que ele é um padrão consecutivo e racional. Ele aponta que a excelência do mundo consiste no fato de ele poder ser explicado por completo. É nesse único ponto, se é possível dizer dessa maneira, que Deus, em retorno, é explícito ao ponto da violência. Com efeito, Deus diz que, se existe uma excelência no mundo, no que se refere aos homens, é o fato de ele não poder ser explicado. Ele insiste na inexplicabilidade de tudo. “Terá pai a chuva?” Quem gera as gotas de orvalho?” (Jó 38,28). Ele vai além e insiste na irracionalidade palpável e positiva das coisas: “Quem abriu a chuva em terras despovoadas, na estepe inabitada pelo homem?” (Jó 38,26). [...] Para espantar os homens, Deus torna-se por um instante um blasfemador; quase diríamos que Deus tornou-se por um instante um ateu. Ele estende diante de Jó um longo panorama das coisas criadas, o cavalo, a águia, o corvo, o asno selvagem, o pavão, o avestruz, o crocodilo. Ele tanto descreve cada um deles que soa como um monstro caminhando no sol. O todo é uma espécie de salmo ou rapsódia do sentimento de surpresa. O criador de todas as coisas surpreende-se diante das coisas que Ele mesmo criou.32
Deus é aqui subjugado pelo milagre de sua própria criação – e não poderíamos deixar de citar o aspecto negativo que também está presente nisso. Ao se referir à caótica abundância de criaturas, Deus não afirma com jactância a lacuna infinita que o separa de Jó (como em: “Quem é você para reclamar de sua ínfima miséria? Você não faz ideia do que o universo é...”); ele também admite – ao menos implicitamente – que Jó não tem nada do que reclamar, porque seu caso não é único: o mundo é uma terrível e absurda desordem. Essa “negação da negação” priva Jó até mesmo do último consolo proporcionado pela esperança de que, ao menos aos olhos de Deus, seu sofrimento tem um significado mais profundo: o que ele acreditava ser sua própria perplexidade revela-se a perplexidade do próprio Deus. Isso nos leva mais uma vez ao tema lacaniano fundamental da falta do Outro, mais bem apresentada pela famosa observação de Hegel de que os segredos dos egípcios também eram segredo para os próprios egípcios: o segredo de Deus também é segredo para Deus.
Até aqui, tudo bem, diríamos: ao transpor o que surge como limite epistemológico na própria Coisa, Hegel mostra que o problema é sua própria solução. Mas em que sentido preciso? Para evitar um equívoco fatal: essa passagem dialética crucial do obstáculo epistemológico à impossibilidade ontológica não indica de modo nenhum que tudo o que podemos fazer é nos reconciliar com a impossibilidade, isto é, aceitar a própria realidade como imperfeita. A premissa da psicanálise é que podemos intervir com o simbólico no Real, mas o Real não é a realidade-em-si exterior, mas sim uma rachadura no simbólico, portanto podemos intervir com um ato que reconfigura o campo e, assim, transforma seu ponto imanente de impossibilidade. “Atravessar a fantasia” não significa aceitar a miséria de nossa vida; ao contrário, significa que só depois de “atravessarmos” as fantasias que ofuscam essa miséria é que podemos efetivamente mudá-la.
Além do mais, há uma diferença sutil entre as duas versões da reversão do limite epistemológico em impossibilidade ontológica, a do “Rabinovitch” e a de “Adorno”33. Na primeira, temos uma solução clara, nenhum antagonismo persiste (se, é claro, ignorarmos a censura social que impede Rabinovitch de manifestar diretamente sua verdadeira razão). A verdade vence, e o interessante é que ela só pode vencer pelo erro (confirmando o argumento de Hegel de que o caminho para a verdade faz parte da verdade). Em outras palavras, a elegante economia da piada é que a própria necessidade do desvio pela primeira razão (falsa) confirma a segunda razão (verdadeira): Rabinovitch quer emigrar por causa da opressão social ilustrada pela resposta do burocrata a sua primeira razão (o comunismo vai durar para sempre). Por mais que pareça seguir a mesma lógica, o exemplo de Adorno não resolve o antagonismo, pois tudo o que acontece em sua resolução é que a antinomia epistemológica é deslocada para a própria Coisa como antagonismo imanente – desse modo, o antagonismo é inteiramente confirmado. A questão fundamental aqui é: onde, na tríade do processo dialético, devemos localizar o momento preciso da explosão do antagonismo subjacente a todo o processo? Encontramos a forma mais pura desse antagonismo no momento da mais agravada negatividade – isto é, da negatividade levada à autorrelação – ou no resultado do processo – isto é, a reversão da negatividade na nova positividade? O resultado afirma ou anula o antagonismo? Ou, de certa maneira, faz as duas coisas?
Na medida em que a “reconciliação” hegeliana é, em seu cerne, a reversão da condição de impossibilidade em uma condição de possibilidade, ou o reconhecimento do que aparecia como obstáculo é uma condição positiva da existência da própria coisa tolhida por esse obstáculo, a ambiguidade permanece: a reconciliação reconcilia no sentido de superar o antagonismo ou no sentido da reconciliação com o antagonismo (ou, em certo sentido, as duas coisas ao mesmo tempo, se é que podemos dizer que a reconciliação com o antagonismo muda sua natureza antagônica)? Quando Hegel introduz na Fenomenologia a noção de reconciliação como modo de resolver o impasse da Bela Alma, o termo usado designa a aceitação do caos e da injustiça do mundo como imanente à Bela Alma, que o deplora, ou a aceitação por parte da Bela Alma do fato de que ela participa da realidade que critica e julga, e não de um tipo de transformação mágica dessa realidade.
O desenvolvimento das peças de Brecht da década de 1920 para o início da década de 1930 também não representaria um tipo homólogo de renúncia? As peças da década de 1920, mais especificamente A ópera dos três vinténs, representam o sacrifício brutal de todos os ideais ideológicos por interesses cínicos mundanos – poder, dinheiro, sexo – que residem no núcleo do sujeito egoísta; mais tarde, nas “peças de aprendizagem” do início da década de 1930, sobretudo em A decisão, esse mesmo assunto é obliterado em um gesto de sacrifício radical em prol do coletivo. É importantíssimo notar que o segundo sacrifício não é uma reversão exterior do primeiro (o sacrifício de todos os ideais ideológicos), mas sua realização imanente: primeiro sacrificamos e renunciamos tudo pelo nosso eu, depois percebemos que, com isso, perdemos ou sacrificamos nosso próprio eu. Por quê? Porque a posição subjetiva de um eu totalmente cínico é impossível: o “eu” só funciona na medida em que é sustentado por seu suporte fantasmático de sonhos e ilusões34. O que torna as peças de aprendizagem de Brecht tão estranhas e perturbadoras é o fato de não haver uma mensagem ou condição subjetiva mais profunda subjacente a esse mecanismo (denunciando-o como uma operação ideológica opressiva, celebrando-o como um gesto ético elementar...) – Brecht simplesmente representa esse mecanismo do sacrifício em sua neutralidade formal35.
Ou, para mudar um pouco a ênfase, será que podemos interpretar a “negação da negação” hegeliana enquanto negatividade autorrelativa também no sentido dessa posição de desespero extremo, quando o sujeito não só assume uma perda radical, mas também é destituído dessa mesma perda – não no sentido de recuperar o que perdeu, mas no sentido muito mais radical de encontrar-se em um vazio radical depois de perder as mesmas coordenadas que deram significado à perda? Em Um corpo que cai, de Hitchcock, Scottie primeiro vivencia a perda de Madeleine, seu amor fatal; quando ele recria Madeleine em Judy e depois descobre que a Madeleine que ele conhecia sempre foi Judy fingindo ser Madeleine, o que ele descobre não é apenas que Judy é uma fraude (ele sabia que ela não era a verdadeira Madeleine, porque ele havia recriado Madeleine a partir dela), mas sim que, por ela não ser uma farsa – ela é Madeleine, a própria Madeleine já era uma farsa –, o objeto a se desintegra, a própria perda é perdida, isto é, temos uma negação da negação. É importante lembrar que a última cena do filme – depois que Judy cai da torre, Scottie fica suspenso no beiral, olhando para baixo – suscita leituras radicalmente opostas: para alguns, essa cena mostra que Scottie sobrevive como um homem totalmente destroçado; para outros, ela é uma espécie de final feliz (Scottie está curado de sua doença, consegue olhar para o abismo). Essa ambivalência reproduz com perfeição a ambiguidade do resultado da negação da negação hegeliana (desespero total ou reconciliação). Então, repito, onde fica a negação da negação hegeliana com respeito a essa ambiguidade?
Precisamos considerar com mais cuidado as diferentes modalidades da negação da negação em Hegel. Primeiro temos a “matriz Rabinovitch” (reversão do problema em sua própria solução: a “tese” é que quero emigrar porque, depois da queda do socialismo, culparão a nós, judeus, pelos crimes comunistas; a “antítese” é que o socialismo jamais cairá, continuará para sempre; a “síntese” é que esse é o motivo real por que quero emigrar), que chega ao fim com uma resolução positiva. Depois temos a “matriz Adorno”, em que a reversão do problema em sua própria solução (nesse caso, a transposição de uma limitação epistemológica para uma impossibilidade ontológica) não leva a nenhuma resolução, mas, ao contrário, torna visível o antagonismo subjacente em seu estado puro. Por fim temos a “matriz Irma”, a lógica subjacente ao sonho de Freud com a injeção de Irma. O sonho começa com uma conversa entre Freud e sua paciente Irma sobre o fracasso do tratamento dela por causa de uma agulha infectada; no decorrer da conversa, Freud se aproxima dela, chega bem perto de seu rosto e olha dentro de sua boca, deparando com a terrível visão da carne vermelha de sua garganta. Nesse momento de horror insuportável, o tom do sonho muda, o horror transforma-se de repente em comédia: três médicos amigos de Freud aparecem e, em um ridículo jargão pseudoprofissional, enumeram múltiplas razões (e mutuamente excludentes) pelas quais o envenenamento de Irma pela agulha infectada não foi culpa de ninguém (não houve injeção, a agulha estava limpa...). Portanto, há primeiro um encontro traumático (a visão da garganta de Irma) seguido de uma súbita mudança para a comédia, o que permite ao sonhador evitar um encontro com o verdadeiro trauma. À primeira vista, a tríade da “matriz Irma” é a tríade “IRS”: primeiro, a dualidade imaginária; depois, seu agravamento no abismo do Real; por fim, a resolução simbólica. Uma leitura mais precisa, porém, revela que temos dois Reais no sonho, visto que suas duas partes são concluídas com uma figuração do Real. Na conclusão da primeira parte (a conversa entre Irma e Freud), isso é óbvio: o olhar dentro da garganta de Irma representa o Real na forma de carne primordial, a palpitação da substância vital como a própria Coisa em sua dimensão repugnante enquanto protuberância cancerosa. Na segunda parte, a troca ou interação simbólica cômica entre os três médicos também termina com o Real, mas dessa vez em seu aspecto oposto: o Real da escrita, da fórmula sem sentido da trimetilamina. A diferença é determinada pelo ponto de partida: se partimos do imaginário (o confronto especular de Freud e Irma), temos o Real em sua dimensão imaginária, como uma imagem primordial horripilante que anula o próprio imaginário; se partimos do simbólico (a troca de argumentos entre os três médicos), temos o próprio significante transformado no Real de uma letra ou fórmula sem sentido (como o Real da ciência moderna).
De que maneira essa dualidade entre o Real imaginário e o Real simbólico se relaciona com o Real que encontramos no fim da “matriz Adorno”? O Real a que chegamos na “matriz Adorno” não é nenhum dos dois primeiros, mas sim o “Real real”, um Real puramente formal, o Real de um antagonismo (“contradição”). E devemos acrescentar que esse Real é, em si, redobrado: como vimos, o Real é caracterizado por um tipo de “coincidência dos opostos”, ou seja, do resto contingente puramente material (o objeto a, um pedacinho da realidade) e o puro Real do antagonismo formal. Isso nos leva à questão principal: Hegel gera o objeto a no fim do processo da negação da negação? Isso quer dizer que o Real lacaniano, em sua forma mais radical, não é uma substância pré-simbólica; ao contrário, ele surge pela reduplicação do simbólico, pela passagem da alienação para a separação (definida como sobreposição de duas faltas). Desse modo, será que o tom triunfante da negação da negação hegeliana não se baseia no fato de que, embora Hegel possa – talvez de maneira condicional – pensar o antagonismo, ele não é capaz de pensar a identidade especulativa definitiva entre o antagonismo puramente formal e o resto contingente ou o excesso de um pequeno pedaço de realidade? Essa limitação, essa incapacidade de pensar o “resto indivisível” da forma dialética não como um excesso do Real que simplesmente escapa à mediação dialética, mas sim como o produto dessa mediação, como seu momento conclusivo, é claramente discernível na teoria hegeliana do casamento (na Filosofia do direito)36.
Assim, mais uma vez, Hegel pode pensar o excesso da pulsão de morte (do amor como paixão letal), que persiste como uma espécie de “resto indivisível”, depois da resolução dialética do processo em uma totalidade racional? Em caso negativo, estaremos lidando de fato com uma falha sistêmica fundamental? Não seria apropriado afirmar que, se Hegel fosse fiel a sua própria lógica interna, ele teria aplicado aqui o mesmo raciocínio que usa quando deduz a necessidade da monarquia como o apogeu do Estado racional? Quando Hegel afirma que o conceito de monarca é “o conceito mais difícil para o raciocínio, isto é, para a consideração reflexionante do entendimento”, o momento especulativo que o entendimento não consegue apreender é “a transição do conceito da pura autodeterminação para a imediatez do ser e, assim, para o campo da natureza”c. Em outras palavras, embora consiga apreender muito bem a mediação universal de uma totalidade viva, o Entendimento não consegue apreender que essa totalidade, para efetivar-se, tem de adquirir existência efetiva na forma de uma singularidade “natural” imediata. Deveríamos dizer então que, de maneira estritamente homóloga, a totalidade racional da vida familiar reconciliada tem de gerar uma “ligação apaixonada” com a singularidade contingente da pessoa amada?
A diferença que separa Lacan de Hegel é, portanto, uma diferença mínima, uma característica minúscula e quase imperceptível, mas que muda tudo. Não estamos tratando aqui de Hegel versus outra figura, mas de Hegel e seu duplo espectral – na passagem de Hegel a Lacan, não passamos do Um-Hegel para Um-Lacan. Eles não são dois, mas o Um-Hegel mais seu objeto a. Isso nos leva de volta à relação entre a repetição e a diferença mínima: diferença mínima é algo que surge na pura repetição. Na série policial de Henning Mankell, o pai do inspetor Kurt Wallander vive da pintura – ele pinta o tempo inteiro, faz centenas de cópias da mesma pintura, uma paisagem de floresta em que o sol nunca se põe (a “mensagem” da pintura é que é possível manter o sol prisioneiro, evitar que ele se ponha, congelar um momento mágico, extrair sua aparência pura do eterno movimento circular da natureza, o movimento de geração e degeneração). No entanto, existe uma “diferença mínima” nessas pinturas idênticas: em algumas, há uma pequena ave, enquanto em outras não aparece ave nenhuma, como se a própria eternidade, o tempo congelado, tivesse de ser sustentado por uma variação mínima, uma espécie de substituto para o que realmente diferencia cada pintura, sua intensidade única e puramente virtual.
O argumento anti-hegeliano mais radical apresentado por Deleuze concerne a essa pura diferença: Hegel é incapaz de pensar a pura diferença que está fora do horizonte da identidade ou da contradição; ele concebe uma diferença radicalizada como contradição, que depois é subsumida mais uma vez na identidade, por meio de sua resolução dialética. (Aqui, Deleuze também se opõe a Derrida: de sua perspectiva, Derrida continua preso ao círculo vicioso da contradição/identidade, apenas adiando indefinidamente a resolução.) E, na medida em que Hegel é o filósofo da efetividade ou efetivação, ou seja, na medida em que, para ele, a “verdade” de uma potencialidade é revelada em sua efetivação, a incapacidade de Hegel de pensar a pura diferença está ligada a sua incapacidade de pensar o virtual em sua dimensão apropriada, isto é, como uma possibilidade que, na qualidade de possibilidade, já possui sua própria realidade: a pura diferença não é efetiva, não diz respeito a diferentes propriedades efetivas, seu status é puramente virtual, é uma diferença que ocorre, em sua forma mais pura, justamente quando nada muda na efetividade ou quando, na efetividade, a mesma coisa se repete. Talvez pareça que somente Deleuze formula esse programa pós-hegeliano de reflexão da diferença: a “abertura” derridiana que enfatiza a diferença sem fim, a disseminação que nunca pode ser suprassumida ou reapropriada etc., continua dentro do quadro referencial hegeliano, simplesmente “abrindo-o”... Aqui, contudo, o contra-argumento hegeliano é: não seria “pura” diferença virtual o nome para a identidade-de-si? Ela não é constitutiva da identidade efetiva? Mais precisamente, nos termos do empirismo transcendental de Deleuze, a pura diferença é a condição ou o suporte virtual da identidade efetiva: um ente é percebido como “idêntico (a si)” quando (e somente quando) seu suporte virtual é reduzido a uma pura diferença. Em lacanês, a pura diferença diz respeito ao suplemento do objeto virtual (o objeto a de Lacan); sua experiência mais plástica é a de uma mudança súbita em (nossa percepção de) um objeto que, com respeito a suas qualidades positivas, permanece o mesmo: “embora nada mude, a coisa de repente parecia totalmente diferente” – como diria Deleuze, é a intensidade da coisa que muda. (Para Lacan, a tarefa ou o problema teórico é distinguir entre o Significante-Mestre e o objeto a, que se referem ambos ao X abissal no objeto para além de suas propriedades positivas.) Como tal, a pura diferença está mais próxima do antagonismo do que da diferença entre dois grupos sociais positivos, dos quais um deve ser aniquilado. O universalismo que sustenta uma luta antagônica não exclui ninguém, e é por isso que o triunfo máximo reside não na destruição do inimigo, mas na explosão da “irmandade universal”, em que os agentes do campo oposto mudam de lado (lembremo-nos aqui as famosas cenas de polícias ou unidades militares juntando manifestantes). É nessa explosão da irmandade oniabrangente, da qual a princípio ninguém é excluído, que a diferença entre “nós” e “o inimigo” como agentes positivos é reduzida a uma pura diferença formal.
Isso nos leva ao tema da diferença, repetição e mudança (no sentido da ascensão de algo genuinamente novo). Jean-Luc Godard propôs o lema: “Ne change rien pour que tout soit différent” (“Não mude nada para que tudo seja diferente”), uma reversão do “algumas coisas precisam mudar para que tudo permaneça o mesmo”. Em algumas constelações políticas, como a recente dinâmica capitalista em que só a constante revolução de si pode manter o sistema, aqueles que se recusam a mudar qualquer coisa são de fato os agentes da verdadeira mudança: a mudança do próprio princípio de mudança. Todos nós conhecemos o princípio oriental do Todo cósmico que se reproduz pelo movimento e pela luta incessante de suas partes – todas as partes se movimentam e assim mantêm uma paz mais profunda no Todo cósmico. A fórmula mais elementar da negatividade ocidental é a perturbação do Todo, que ocorre precisamente quando algo emperra, paralisa, recusa-se ao movimento, o que perturba o equilíbrio cósmico da mudança, deixando-o desconjuntado.
A tese de Deleuze de que o Novo e a repetição não são opostos, visto que o Novo só surge da repetição, deve ser interpretada contra o pano de fundo da diferença entre o virtual e o atual: as mudanças que concernem apenas ao aspecto atual das coisas são apenas mudanças dentro do quadro existente, não o surgimento de algo realmente Novo – o Novo só surge quando muda o suporte virtual do atuald, e essa mudança ocorre exatamente na forma de uma repetição na qual uma coisa permanece a mesma em sua atualidade. Em outras palavras, as coisas realmente mudam não quando A se transforma em B, mas quando A, apesar de permanecer exatamente o mesmo com respeito a suas propriedades atuais, “muda por completo” de maneira imperceptível. Essa mudança é a diferença mínima, e a tarefa da teoria é subtrair essa diferença mínima do campo dado de multiplicidades. Nesse sentido, a subtração é também outro nome para a suprassunção (Aufhebung) hegeliana ou negação da negação: nela, a mudança radical (negação) sobrepõe-se à pura repetição do mesmo. Isso significa que a inércia do Velho e o advento do Novo também coincidem na noção dialética de repetição. O Novo surge quando, em vez de um processo que apenas evolui “naturalmente” em seu fluxo de geração e corrupção, esse fluxo emperra, um elemento (gesto) fixa-se, persiste, repete-se e perturba assim o fluxo “natural” de (de)composição. A persistência do Velho, seu “emperramento”, é o único lugar possível para o advento do Novo: em suma, a definição mínima do Novo é como um Velho que emperra e assim se recusa a se extinguir.
Eis o ponto capital da ruptura pós-hegeliana: sua característica mais elementar, de Kierkegaard a Marx, é a lacuna que surge entre a suprassunção e a repetição; ou seja, a repetição adquire autonomia com respeito à suprassunção, e as duas se opõem – ou uma coisa é suprassumida em um modo superior de sua existência, ou simplesmente se arrasta na própria inércia. Essa “libertação” da repetição das amarras da suprassunção, essa ideia de uma repetição não cumulativa, que apenas prossegue no vazio, sem gerar nada de novo, é vista em geral como um indício mínimo do materialismo pós-hegeliano, em sua ruptura com o círculo hegeliano da mediação conceitual total. Sob influência de Lacan, Jean Hyppolite interpreta o fundamento filosófico da noção freudiana de pulsão de morte como a compulsão a repetir. Como diz Lacan no Seminário II, outro nome para esse excesso de repetição no progresso orgânico é “mecanismo”: o que o pensamento pós-hegeliano revela é a noção de uma repetição mecânica não cumulativa.
Está correto esse diagnóstico? Hegel não tinha plena consciência de que o espírito surge do processo natural orgânico pela repetição mecânica que perturba o livre desenvolvimento orgânico? É disso que trata sua discussão sobre o hábito etc. na seção “Antropologia” da Fenomenologia do espírito: na tríade formada por processo mecânico, processo orgânico e processo propriamente espiritual, a dimensão espiritual precisa de um suporte “regressivo” nos hábitos mecânicos (o aprendizado “cego” das regras da linguagem etc.). Não existe espírito sem máquina, a manifestação do espírito é uma máquina que coloniza o organismo, ou seja, a vitória do espírito sobre a mera vida aparece como uma “regressão” da vida a um mecanismo. (Esse fato encontra sua máxima expressão no “dualismo” de Descartes: a afirmação do puro pensamento é correlata à redução da natureza a um mecanismo cego.)
Como devemos esclarecer essa esquiva diferença entre Hegel e Freud? Mladen Dolar propôs interpretar “Hegel é Freud” como o maior juízo filosófico indefinido, posto que Hegel e Freud só podem aparecer como absolutos opostos: Saber Absoluto (a unidade entre o sujeito e o Absoluto) versus inconsciente (o sujeito que não é mestre na própria morada); conhecimento excessivo versus falta de conhecimento. A primeira complicação nessa oposição simples é que, para Freud e Lacan, o inconsciente não é apenas um campo instintual cego, mas também um tipo de conhecimento, um conhecimento inconsciente, um conhecimento que não conhece a si mesmo (“não sabidos sabidos”, nos termos da epistemologia de Rumsfeld) – e se o Saber Absoluto deve ser localizado na própria tensão entre o conhecimento ciente de si e o conhecimento não sabido? E se a “absolutidade” do saber refere-se não ao nosso acesso ao divino Absoluto-em-si, ou a uma autorreflexão total pela qual teríamos pleno acesso ao nosso “saber não sabido” e assim atingiríamos a autotransparência subjetiva, mas sim a uma sobreposição muito mais modesta (e ainda mais difícil de pensar) entre a falta do nosso conhecimento “consciente” e a falta inscrita no próprio cerne do nosso conhecimento não sabido? É nesse nível que devemos situar o paralelo entre Hegel e Freud: se Hegel descobre a desrazão (contradição, a dança louca dos opostos que abala qualquer ordem racional) no cerne da razão, Freud descobre a razão no cerne da desrazão (em atos falhos, sonhos, loucura). Eles compartilham a lógica da retroatividade: em Hegel, o Um é um efeito retroativo de sua perda, é o próprio retorno ao Um que o constitui; e, em Freud, a repressão e o retorno do reprimido são coincidentes, o reprimido é o efeito retroativo do seu retorno.
Também há boas razões para relacionar o inconsciente freudiano à consciência de si enquanto reflexão de si: “a consciência de si é um objeto”, pois, em um objeto-sintoma, eu registro de maneira reflexiva uma verdade sobre mim mesmo que é inacessível a minha consciência. Isso, no entanto, não é exatamente a mesma coisa que o inconsciente hegeliano: é um inconsciente particular (singular), um tipo de transcendental contingente, um nó-sinthoma que mantém unido o universo do sujeito. Em claro contraste com o inconsciente freudiano, o inconsciente hegeliano é formal: ele é a forma da enunciação invisível no conteúdo enunciado; ele é sistêmico, não é uma bricolagem contingente de elos laterais (o que Lacan chama de lalangue); ou seja, ele reside na forma simbólica universal em que o sujeito se baseia sem saber, e não no desejo contingente “patológico” que transparece em lapsos linguísticos. O inconsciente de Hegel é o inconsciente da própria consciência de si, a própria não transparência necessária, o necessário negligenciar de sua própria forma (“das Formelle”) no conteúdo que ele confronta. O inconsciente é a forma universal do conteúdo particular: quando Hegel diz que a verdade está no que digo, não no que quero dizer, ele entende que a verdade está na universalidade do significado das palavras, em oposição à intenção particular. O contraste entre o inconsciente freudiano (ligações contingentes particulares, jogo de palavras) e o inconsciente hegeliano (esquema universal negligenciado por nosso enfoque consciente no particular, ou o que o próprio Hegel chama de das Formelle) é, portanto, óbvio – Lacan fala do “inconsciente hegeliano” contrapondo-o ao freudiano. A definição mais sucinta do inconsciente hegeliano é dada no fim da introdução da Fenomenologia, em que Hegel determina das Formelle como em-si ou para-nós (o observador filosófico), em contraste com o para-a-consciência (como as coisas aparecem para o próprio sujeito engajado), como o processo em contraste com seu resultado abstrato, e como a negação determinada em contraste com a negação abstrata que deixa para trás o conteúdo negado:
cada resultado que provém de um saber não verdadeiro não deve desaguar em um nada vazio, mas tem de ser apreendido necessariamente como nada daquilo de que resulta [...]. Essa gênese do novo objeto se apresenta à consciência sem que ela saiba como lhe acontece. Para nós, é como se isso lhe transcorresse por trás das coisas. Portanto, no movimento da consciência ocorre um momento do ser-em-si ou do ser-para-nós, que não se apresenta à consciência, pois ela mesma está compreendida na experiência. Mas o conteúdo do que para nós vem surgindo é para a consciência: nós compreendemos apenas seu [aspecto] formal [das Formelle], ou seu surgir puro. Para ela, o que surge só é como objeto; para nós, é igualmente como movimento e vir-a-ser.37
Em suma, quando o sujeito passa de um “objeto” (que também pode ser todo um modo de vida) para outro, ele tem a impressão de que o novo “objeto” (conteúdo) foi encontrado simplesmente de maneira imediata; o que não percebe é o processo de mediação acontecendo a sua revelia e gerando o novo conteúdo a partir das inconsistências do conteúdo antigo. O inconsciente freudiano também tem um aspecto formal e não é apenas uma questão de conteúdo: recordemos aqui os casos em que Freud interpreta um sonho de modo que o que está reprimido ou excluído de seu conteúdo retorna como característica da forma do sonho (em um sonho sobre gravidez, o fato de a sonhadora não ter certeza de quem é o pai articula-se na forma de uma incerteza sobre aquilo de que trata o sonho); além disso, Freud enfatiza que o verdadeiro segredo do sonho não é seu conteúdo (os “pensamentos oníricos”), mas a forma em si:
Os pensamentos oníricos latentes são o material que a elaboração onírica transforma em sonho manifesto. [...] A única coisa essencial a respeito de sonhos é a elaboração onírica que modificou o material ideativo. Não temos o direito de ignorá-la, em nossa teoria, ainda que a negligenciemos em algumas situações práticas. A observação analítica demonstra também que a elaboração onírica nunca se limita a traduzir esses pensamentos em um modo de expressão arcaico ou regressivo que os senhores conhecem. Ademais, regularmente se apossa de mais alguma coisa, que não faz parte dos pensamentos latentes do dia anterior, mas que é a verdadeira força propulsora da construção do sonho. Este acréscimo indispensável [unentbehrliche Zutat] é o desejo igualmente inconsciente, para cuja realização o conteúdo do sonho recebe sua nova forma. Portanto, um sonho pode ser qualquer espécie de coisas desde que os senhores estejam apenas tomando em consideração os pensamentos que representa – uma advertência, uma intenção, uma preparação, e assim por diante; mas também é sempre a realização de um desejo inconsciente e, se os senhores o considerarem produto da elaboração onírica, ele é isto, somente. Assim sendo, um sonho nunca é simplesmente uma intenção, ou uma advertência, mas sempre uma intenção etc. traduzida para o modo arcaico de pensamento, mediante o auxílio de um desejo inconsciente, e transformada para realizar esse desejo. Esta característica, a de realização de desejo, é a característica invariável; as demais podem variar. Pode, por seu turno, mais uma vez, ser um desejo, e neste caso o sonho, com auxílio de um desejo inconsciente, representará como realizado um desejo latente do dia anterior.38
Vale a pena avaliarmos cada detalhe dessa brilhante passagem, desde sua máxima implícita (“o que é bom o suficiente para a prática – a saber, a busca do significado dos sonhos – não é bom o bastante para a teoria”) até o redobramento conclusivo do desejo. Sua ideia principal, obviamente, é a “triangulação” de pensamento onírico latente, conteúdo manifesto do sonho e desejo inconsciente, o que limita o escopo do – ou melhor, solapa diretamente o – modelo hermenêutico da interpretação dos sonhos (a via do conteúdo manifesto do sonho para seu conteúdo oculto, o pensamento onírico latente), que segue na direção oposta à via da formação de um sonho (a transposição do pensamento onírico latente para o conteúdo manifesto do sonho por meio do trabalho onírico). O paradoxo é que essa elaboração onírica não é apenas um processo de mascarar a “verdadeira mensagem” do sonho: o verdadeiro núcleo do sonho, seu desejo inconsciente, inscreve a si mesmo somente nesse e por esse processo de mascarar, de modo que, no momento em que retraduzimos o conteúdo do sonho para o pensamento onírico expresso no conteúdo, perdemos a “verdadeira força propulsora” do sonho – em suma, é o processo de mascarar a si mesmo que inscreve no sonho seu verdadeiro segredo. Portanto, deveríamos inverter a noção usual de penetrar cada vez mais fundo no núcleo do sonho: não se trata de ir primeiro do conteúdo manifesto do sonho até o segredo contido no primeiro nível, no conteúdo onírico latente, e depois, dando um passo além, ir ainda mais fundo e alcançar o núcleo inconsciente do sonho, o desejo inconsciente. O desejo “mais profundo” situa-se na própria lacuna entre o pensamento onírico latente e o conteúdo onírico manifesto.
Não obstante, a forma freudiana do inconsciente não é igual à hegeliana. No entanto, mais importante que isso, em vez de tomar automaticamente essa lacuna que separa Freud de Hegel como indicativo da limitação de Hegel (“Hegel não pôde ver que...”), deveríamos inverter a pergunta essencial – não só “Hegel poderia pensar o inconsciente freudiano?”, mas também “Freud poderia pensar o inconsciente hegeliano?”. Não é que algo “radical demais para Hegel” esteja ausente de seu pensamento, algo sobre o qual Freud é mais consistente e “vai além”, mas o oposto: assim como Hegel, Freud é um pensador do conflito, da luta, da “autocontradição” e dos antagonismos inerentes; mas, em claro contraste com Hegel, no pensamento de Freud um conflito não é resolvido por uma autocontradição levada a um extremo que, com sua autoanulação, dá origem a uma nova dimensão. Ao contrário, o conflito simplesmente não é resolvido, a “contradição” não atinge seu clímax; antes, ela é paralisada, interrompida temporariamente na aparência de uma formação de compromisso. Esse compromisso não é a “unidade dos opostos” no sentido hegeliano de “negação da negação”, mas uma negação absurdamente fracassada, uma negação impedida, descarrilhada, distorcida, desfigurada, desnorteada, um tipo de clinamen da negação (para usarmos a excelente formulação de Mladen Dolar). Em outras palavras, o que escapa a Hegel (ou o que ele teria considerado frívolo ou acidental) é a sobredeterminação: no processo dialético hegeliano, a negatividade é sempre radical ou radicalizada, e consistente – Hegel nunca considera a opção de uma negação que fracassa, tanto que algo é apenas seminegado e continua levando uma existência (ou melhor, uma insistência) subterrânea39. Ele nunca considera uma constelação em que um novo princípio espiritual continue coexistindo com o antigo em uma totalidade inconsistente, ou em que um momento condensa (verdichten) uma multiplicidade de cadeias causais associativas, de modo que seu sentido explícito “óbvio” está lá para esconder o verdadeiro sentido reprimido. O que teria feito Hegel do sonho de Freud sobre a injeção de Irma, uma interpretação que revela um tipo de superexposição das múltiplas linhas interpretativas (livrar-se da culpa pelo fracasso do tratamento de Irma; o desejo de ser como o pai primordial que possui todas as mulheres etc.)? O que teria dito Hegel sobre um sonho em que os vestígios do dia (Tagesreste) só estão conectados ao núcleo do sonho por meio de associações verbais ou marginais semelhantes? O que teria dito ele sobre o sonho de uma paciente (“O marido perguntou: ‘Você não acha que devemos mandar afinar o piano?’. E ela replicou: ‘Não vale a pena...’”), no qual a pista é fornecida pela suposta ocorrência mental do mesmo fragmento de discurso em uma sessão anterior, quando ela segurou de repente o casaco, porque um dos botões havia se soltado, e era como se dissesse: “Por favor, não olhe [para os meus seios], não vale a pena”. Aqui não há nenhuma unidade conceitual entre os dois níveis (a cena do sonho e o acidente durante a sessão anterior); o que os conecta é justamente uma ponte significante. Hegel se refere à lalangue, ao jogo de palavras, mas “somente dentro dos limites da razão”: a Aufhebung contém uma feliz coincidência dos três sentidos que formam a mesma noção, ao passo que, na lógica do sonho, múltiplos significados continuam distintos.
É por isso também que Hegel não poderia pensar a sobredeterminação. Por exemplo, na esfera social, é dessa maneira que a economia exerce seu papel de determinar a estrutura social “em última instância”: a economia nunca é diretamente apresentada como um agente causal atual, sua presença é puramente virtual, é a “pseudocausa” social, mas, precisamente como tal, causa absoluta, não relacional, ausente, algo que nunca está “em seu próprio lugar”: “eis por que o ‘econômico’, propriamente falando, nunca é dado, mas designa uma virtualidade diferencial a ser interpretada, sempre recoberta por suas formas de atualização”40. É o X ausente que circula entre os múltiplos níveis do campo social (econômico, político, ideológico, legal...), distribuindo-os em sua específica sistematização. Desse modo, poderíamos insistir na diferença radical entre o econômico enquanto X virtual – o ponto de referência absoluto do campo social – e o econômico em sua atualidade – como um dos elementos (“subsistemas”) da totalidade social atual: quando encontram um ao outro – ou, em hegelês, quando o econômico enquanto virtual encontra consigo mesmo na forma de seu equivalente efetivo enquanto sua “determinação opositiva”, essa identidade coincide com a (auto)contradição absoluta. Contudo, embora o conceito hegeliano de determinação opositiva capture a característica principal da sobredeterminação, o que se perde é a multiplicidade dos “fatores” (e elos causais de significação), que são apenas explorados ou manipulados de maneira parasitária, e nunca criados, pela “última instância”.
É justamente neste ponto que entra a política: o espaço da política é aberto pela distância da “economia” de si, por uma lacuna que separa a economia como Causa ausente da economia em sua “determinação opositiva”, como um dos elementos da totalidade social. A economia, portanto, é duplamente inscrita no sentido preciso que define o Real lacaniano: ela é simultaneamente o núcleo central (no fundo, do que trata a luta) “expresso” em outras lutas por meio de deslocamentos e outras formas de distorção, e o próprio princípio estruturador dessas distorções. A política que ocorre nesse espaço intermediário é não-Toda: sua fórmula não é “tudo é político”, mas sim “não há nada que não seja político”, o que significa que “não-Tudo é político”. O campo da política não pode ser totalizado, “não há relação de classes”, não existe uma metalinguagem na qual possamos descrever “objetivamente” todo o campo político, ou seja, toda descrição desse tipo já é parcial (por exemplo, esquerda e direita não são apenas duas opções dentro de um campo, mas duas visões diferentes do campo inteiro, e não há uma maneira neutra de descrever como o campo “realmente é” – a diferença que o constitui é o impossível/real de um antagonismo). Nesse sentido, Lenin estava certo quando afirmou que tudo é decidido na luta política, embora ela seja determinada pela economia.
Há em Hegel traços da lógica da Verstellung (não negação direta, mas complicação inconsequente, deslocamento etc.) de um princípio fundamental – tal lógica está inscrita no próprio cerne do conceito hegeliano de totalidade, a qual é um Todo mais suas distorções, sintomas e excessos constitutivos. Há em Hegel traços da lógica “comprometedora” – significativamente, seu principal exemplo é a produção necessária da populaça na sociedade burguesa moderna. Hegel esboça um impasse fundamental (quanto mais rica uma sociedade, menos pode cuidar da populaça) e depois esboça três estratégias principais para lidar com o problema (obras públicas, caridades privadas, exportação da populaça excedente para as colônias), deixando claro que, em longo prazo, esses procedimentos só agravam o problema, de modo que tudo o que se pode fazer é contê-lo com mais ou menos sucesso – não há uma solução lógica clara, apenas um compromisso que limita o problema. Nesses casos, a única reconciliação é a reconciliação (resignada) com o fato de que o problema é insolúvel (dentro do quadro referencial do “Estado racional” delineado por Hegel) – como diriam os defensores do mercado, o excesso da populaça é o preço que pagamos por viver em um Estado racional livre. Mas a famosa dialética entre servidão e dominação também não é um exemplo de compromisso? O (futuro) escravo decide não ir até o fim e realmente arrisca a própria vida; desse modo, sua exposição à negatividade é tolhida, e o poder do negativo é recanalizado para a formação de objetos materiais.
Seria inadequado então dizer que Freud complica a negação hegeliana, acrescentando a ela um traço a mais, dando-lhe mais uma “volta do parafuso”, “negando a própria negação” não no sentido hegeliano de radicalizar a negação e levá-la a sua autorrelação, mas no sentido de tolhê-la, de introduzir um obstáculo ao pleno desenvolvimento do poder do negativo – como se o poder do negativo ficasse preso em um atoleiro de compromissos, de semissucessos, e assim fosse desviado do bom caminho? A diferença entre Hegel e Freud, com respeito à negatividade, de modo algum pode ser reduzida ao fato de que, enquanto Hegel radicaliza a negatividade a seu extremo autodestrutivo, Freud se concentra nas formas de compromisso que bloqueiam a negatividade no meio do caminho: de maneira assimétrica, deveríamos também modificar as coisas. Uma das críticas comuns a Hegel é que sua radicalização da negatividade é uma fraude: como diz Georges Bataille, o “trabalho do negativo” hegeliano permanece dentro dos confins da “economia restrita”, com um mecanismo interno garantindo que a negatividade radicalizada será convertida no momento subordinado de uma nova ordem positiva mediada41. A pulsão de morte de Freud, ao contrário, afirma um niilismo livre até seu clímax radical, o desaparecimento de toda vida (e, talvez, a implosão prevista de todo o universo); os “compromissos” freudianos, portanto, são mecanismos de defesa que atrasam a catástrofe absoluta, que nem sequer aparece no horizonte hegeliano. Contudo, mais uma vez, a simplificação alternativa também está errada e equivocada: conforme demonstramos amplamente, a “negação da negação” hegeliana está longe de ser a simples suprassunção da negatividade em uma nova ordem positiva, e a pulsão de morte freudiana não é um impulso para o desaparecimento total ou a autoaniquilação, mas uma persistência “não morta”, ligada a uma particularidade contingente.
A questão principal é que o atoleiro de obstáculos que evita o pleno desenvolvimento da negatividade, em Freud, não pode ser reduzido à riqueza da realidade empírica que resiste a determinações conceituais abstratas: ela não implica o excesso externo da realidade em relação ao poder conceitual do negativo, mas sim um nível mais radical da própria “negatividade”, o nível indicado pelo conceito da pulsão de morte. A série freudiana de Vers (Verdrängung – repressão, Verwerfung – forclusão, Verleugnung – renegação, Verneinung – negação) que suplementa o Não dialético-hegeliano não é, portanto, apenas uma complicação desse Não; ela aponta para um Não mais radical, o núcleo da negatividade que escapou a Hegel e deixou rastros em diferentes versões pós-hegelianas da pura repetição. Segundo Freud, a multiplicidade de falos em um sonho sempre aponta para a castração: a multiplicidade surge para preencher a lacuna, a falta do falo ausente. Podemos dizer então que, na medida em que o inconsciente não conhece a negação (“não”), como diz Freud, a negação ausente ou excluída retorna com força total nas formas múltiplas do processo de repressão: a própria repressão, renegação, negação etc.42? A resposta é sim, desde que acrescentemos o próprio fato de que a proliferação de quase-negações atesta o fato de que um tipo de negação radical já está em ação no inconsciente, ainda que seja excluído. O campo do inconsciente – enquanto o grande Outro – é estruturado em torno de uma perda ou obstáculo, em torno de uma impossibilidade, e o problema é discernir a natureza exata dessa impossibilidade fundadora.
O verdadeiro passo “para além de Hegel” não deve ser buscado no retorno pós-hegeliano à positividade da “vida real”, mas na estranha afirmação da morte que ocorre na forma da pura repetição – uma afirmação que concilia dois parceiros incomuns, Kierkegaard e Freud. Em Hegel, a repetição exerce um papel fundamental, mas dentro da economia do Aufhebung: pela mera repetição, a imediatez é elevada à universalidade, a contingência é transformada em necessidade – depois da morte de César, “César” não é mais repetido como designação de um indivíduo particular, mas como um título universal. Não há lugar, dentro do sistema hegeliano, para pensar a “pura” repetição, uma repetição que ainda não foi pega no movimento da Aufhebung. Em uma passagem famosa de uma carta para Schiller, datada de 16-17 de agosto de 1797, Goethe relata uma experiência que o fez perceber como símbolo um pedaço da realidade arruinada:
O espaço da casa, do quintal e do jardim de meu avô, que, da condição mais limitada e patriarcal, na qual vivia um velho administrador de Frankfurt, foi modificada para a mais útil praça de mercado e comércio. O estabelecimento foi destruído pelo bombardeio em estranhos acasos e agora, em grande parte um monte de ruínas, vale ainda o dobro daquilo que há onze anos foi pago aos meus parentes pelos atuais proprietários. Na medida em que se pode imaginar então que o conjunto poderá ser comprado e reconstruído por um novo empreiteiro, o senhor vê facilmente que, em mais de um sentido, e sobretudo na minha opinião, ele precisa existir enquanto símbolo de muitos outros milhares de casos nesta cidade tão desenvolvida.43
O contraste entre alegoria e simbólico é crucial aqui. A alegoria é melancólica: como afirma Freud, o melancólico trata um objeto que ainda está aí como algo já perdido, pois a melancolia é o luto por antecipação. Portanto, em uma abordagem alegórica, olhamos para um mercado movimentado e já vemos nele as ruínas que ele se tornará – as ruínas são a “verdade” da imponente construção que vemos. Essa é a melancolia em sua manifestação mais pura. (Não surpreende que fosse moda entre os ricos da era romântica construir casas novas parcialmente em ruínas, com pedaços de parede faltando etc.) Goethe, no entanto, faz o oposto: ele vê (o potencial da) prosperidade futura na atual pilha de escombros44. Crucial aqui é o advento do simbolismo a partir da ruína e da repetição: a casa do avô de Goethe não era um símbolo para a primeira geração de proprietários – para eles, tratava-se apenas de um objeto zu-handenes, parte do ambiente com o qual estavam envolvidos. Foi somente sua destruição ou redução a uma pilha de escombros que a fez parecer um símbolo. (Há uma ambiguidade temporal na última frase de Goethe: a casa se tornará um símbolo quando for renovada, ou já é um símbolo agora para quem for capaz de ver nela sua futura renovação?) O significado – alegórico ou simbólico – só surge pela destruição, por uma experiência desconjuntada ou por um corte que interrompe o funcionamento direto do objeto em nosso ambiente45. Aqui devemos opor Goethe a Kierkegaard: enquanto em Goethe a repetição gera significado, para o pós-idealista Kierkegaard só existe a repetição (da impossibilidade de atingir o significado) e nenhum (advento de um novo) significado. Esta é uma das definições da ruptura pós-idealista do século XIX: a repetição é afirmada como tal, como uma força própria, em sua qualidade mecânica, e de modo algum é aufgehoben em um novo Significado – da física e da mecânica até Kierkegaard e a Wiederholungszwang de Freud.
Mas há aqui um paradoxo que complica essa crítica a Hegel: a negatividade absoluta, essa noção central do pensamento hegeliano, não seria justamente uma figura filosófica do que Freud chamou de “pulsão de morte”? Na medida em que – de acordo com Lacan – o núcleo do pensamento de Kant pode ser definido como a “crítica do puro desejo”, a passagem de Kant a Hegel não seria justamente a passagem do desejo à pulsão? As últimas linhas da Enciclopédia de Hegel (sobre a Ideia que aprecia repetidamente percorrer seu ciclo) apontam nessa direção, sugerindo que a resposta à questão crítica comum (“Por que o processo dialético nunca termina? Por que a mediação dialética nunca para de funcionar?”) é justamente o eppur si muove da pura pulsão. A estrutura da negatividade explica também o caráter quase “automático” do processo dialético, a crítica usual a seu caráter “mecânico”: contrariando todas as garantias de que a dialética é aberta para a verdadeira vida da realidade, a dialética hegeliana é como uma máquina de processamento que engole e processa indistintamente todos os conteúdos possíveis – da natureza à história, da política à arte –, distribuindo-os em pacotes na mesma forma triádica.
Heidegger estava certo com sua tese de que Hegel não tematiza sua operação básica da negatividade, mas estava certo pela razão errada, por assim dizer: o núcleo da dialética hegeliana, inacessível para o próprio Hegel, é a pulsão (de morte) repetitiva que se torna visível depois da ruptura pós-hegeliana. Mas por que não deveria existir, na base da dialética, uma tensão entre a dialética e seu núcleo não dialetizável? Nesse sentido, a pulsão de morte ou compulsão à repetição é o cerne da negatividade, o pressuposto não tematizado de Hegel – inacessível não só para ele, mas talvez para a filosofia como tal: suas linhas gerais foram desenvolvidas pela primeira vez por um teólogo (Kierkegaard) e por um (meta)psicólogo (Freud), e, um século depois, um filósofo (Deleuze) uniu a lição de Kierkegaard e Freud. Com respeito à condição precisa da negatividade, a situação é revertida de alguma maneira: é Hegel quem oferece uma série de Vers, de variações deslocadas da negatividade, e é somente na psicanálise, por meio de Freud e Lacan, que podemos elaborar a forma elementar da negatividade.
A ruptura pós-hegeliana tem dois aspectos que não devem ser confundidos: a afirmação da positividade do ser efetivo oposta à mediação conceitual (afirmacionismo) e a afirmação da pura repetição que não pode ser contida no movimento idealista da suprassunção. Embora o primeiro aspecto tenha mais evidência, é o segundo que atesta uma verdadeira revolução filosófica. Não existe complementaridade entre esses dois aspectos, eles são mutuamente excludentes: a repetição baseia-se no bloqueio de uma afirmação positiva direta, nós repetimos porque é impossível afirmar diretamente. A oposição entre finidade e infinidade está relacionada à oposição entre esses dois aspectos: o grande tema da afirmação pós-hegeliana do ser positivo é a ênfase no material, no efetivo, na finidade, ao passo que a compulsão à repetição introduz uma infinidade obscena ou “imortalidade” – não imortalidade espiritual, mas uma imortalidade dos “espíritos”, dos mortos que vivem.
Se, no entanto, a pulsão de morte ou a compulsão à repetição reside no cerne da negatividade, como devemos interpretar a famosa afirmação de Freud de que o inconsciente (como exemplificado pelo universo dos sonhos) não conhece a negação? É extremamente fácil refutar essa afirmação empiricamente observando que, poucas páginas depois de fazê-la, Freud esboça uma série de maneiras pelas quais os sonhos podem efetuar a negação de certo estado de coisas. O exemplo de Freud a respeito da Verneinung (quando um paciente diz “Não sei quem é essa mulher no meu sonho, mas tenho certeza de que não é a minha mãe!”, devemos interpretar essa afirmação como a confirmação inequívoca de que a mulher no sonho do paciente é sua mãe) continua sendo pertinente aqui: a negação pertence ao nível da consciência/pré-consciência, é uma forma de o sujeito consciente admitir sua fixação incestuosa inconsciente. A negação hegeliana enquanto abolição universalizadora do conteúdo particular (digamos, a negação da riqueza empírica de um objeto em seu nome), essa violência inerente à idealização, é o que falta no inconsciente freudiano. Contudo, também há uma negatividade esquisita que permeia toda a esfera do inconsciente, desde a agressão brutal e a autossabotagem à histeria e sua experiência básica, a propósito de cada objeto, do ce n’est pas ça [não é isso] – então é como se (de acordo com o insight supracitado de Freud de que a multiplicidade de falos é um sinal da castração) a suspensão da negação é recompensada por sua multiplicação. Qual é o fundamento e a condição dessa “negatividade” que a tudo permeia e escapa à forma lógica da negação? Talvez uma maneira de interpretar essa negação seja como um fato positivo, da mesma maneira que, em um sistema diferencial, a ausência pode ser uma característica positiva (por exemplo, em referência a uma das mais conhecidas histórias de Sherlock Holmes, o fato de o cachorro não latir à noite é, em si, o incidente curioso). Portanto, a diferença entre o sistema da consciência/pré-consciência e o inconsciente não é simplesmente o fato de haver que no primeiro há a negação, ao passo que o inconsciente é primitivo demais para conhecer a função da negação; ao contrário, o sistema da consciência/pré-consciência só percebe o aspecto negativo da negação, porque vê a negação apenas em sua dimensão negativa (algo está ausente etc.) e ignora o espaço positivo aberto por essa negação.
Quando confrontados com um fato que vai claramente contra algumas de nossas convicções profundas, podemos reagir de duas maneiras básicas: ou o rejeitando simples e brutalmente, ou o endossando de forma suprassumida/sublimada [subl(im)ated], como algo que não deve ser tomado literalmente, mas sim como a expressão de uma verdade mais nobre e mais profunda. Por exemplo, podemos rejeitar completamente a ideia de Inferno (como um lugar real, onde os pecadores sofrem uma dor interminável como punição por suas ações), ou podemos afirmar que o Inferno é uma metáfora para o “tumulto interior” que sofremos quando fazemos algo errado. Recordemos a famosa expressão italiana “se non è vero, è ben trovato” – “se não é verdade, é bem achado (surte o efeito desejado)”. É nesse sentido que as histórias sobre pessoas famosas, mesmo quando inventadas, costumam capturar o núcleo de sua personalidade mais precisamente do que captaria uma enumeração de suas qualidades reais – aqui também “a verdade tem estrutura de ficção”, como diz Lacan. Há uma versão obscena maravilhosa dessa expressão em servo-croata que transmite à perfeição a rejeição protopsicótica da ficção simbólica: “se non è vero, jebem ti mater!”. “Jebem ti mater” (pronunciado “iêben ti máter”, que significa “Vou foder sua mãe”) é um insulto muito popular; a piada, é claro, está na rima quase perfeita, e o mesmo número de sílabas, entre “è ben trovato” e “jebem ti mater”. O significado é transformado assim em uma explosão de fúria obscena, um ataque ao objeto primordial mais íntimo do outro: “É melhor que seja verdade, porque, se não for, eu fodo sua mãe!”. As duas versões representam claramente as duas reações do que se revela literalmente como uma mentira: a rejeição furiosa, ou a suprassunção/sublimação em uma verdade “mais nobre”. Em termos psicanalíticos, a diferença entre elas é a diferença entre a forclusão (Verwerfung) e a transubstanciação simbólica.
Freud desenvolve toda uma série, e até um sistema, de negações no inconsciente: expulsão do eu (Ausstossung), rejeição (Verwerfung), repressão (Verdrängung, dividida em repressão primordial – Urverdrängung – e repressão “normal”), renegação (Verleugnung), negação (Verneinung), até as formas complexas em que a própria aceitação pode funcionar como um modo de negação, como no chamado “isolamento” (Isolierung), em que um fato traumático é aceito racionalmente, mas isolado de seu contexto simbólico-libidinal46. O que complica ainda mais o esquema são os objetos e significantes que de certo modo se sobrepõem à própria falta: para Lacan, o Falo é em si o significante da castração (o que introduz todos os paradoxos do significante da falta de significante, o fato de que a própria falta de significante é “remarcada” em um significante dessa falta), isso sem mencionar o objet petit a, o objeto-causa do desejo que não é senão a encarnação da falta, seu lugar-tenente. Aqui, a relação entre objeto e falta é invertida: a falta não é redutível à falta de um objeto, ao contrário: o próprio objeto é que é a positivação espectral de uma falta. E devemos extrapolar esse mecanismo no próprio fundamento (pré-)ontológico de todo ser: o gesto primordial da criação não é o gesto de uma generosidade excessiva, de asserção, mas um gesto negativo de recuo, de subtração, que abre espaço por si só para a criação de entes positivos. É assim que “existe algo, em vez de nada”: para chegar a algo, é preciso subtrair do nada seu próprio nada, isto é, é preciso pôr o Abismo primordial pré-ontológico “como tal”, como nada, de modo que, em contraste com (ou tendo como pano de fundo) o nada, algo possa aparecer.
O que precede o Nada é menos que nada, a multiplicidade pré-ontológica cujos nomes variam desde o den de Demócrito até o objeto a de Lacan. O espaço dessa multiplicidade pré-ontológica não é entre Nada e Algo (mais que nada, mas menos que algo); den é, ao contrário, mais que Algo, mas menos que Nada. Portanto, a relação entre esses três termos ontológicos básicos – Nada, Algo, den – toma a forma de um círculo paradoxal, como o famoso desenho de Escher em que uma cachoeira interconectada forma um perpetuum mobile circular: Algo é mais que Nada, den é mais que Algo (o objeto a está em excesso com respeito à consistência do Algo, o elemento a mais que se projeta), e Nada é mais que den (que é “menos que nada”).
O problema subjacente aqui é determinar qual das negações freudianas é a primordial, qual delas abre espaço para as outras. Da perspectiva lacaniana, a candidata mais óbvia parece ser a famigerada “castração simbólica”, a perda que abre e sustenta o espaço da simbolização – recordemos o modo como Lacan, em relação ao Nome-do-Pai como portador da castração simbólica, brinca com a homofonia francesa entre le Nom-du-Père e le Non-du-Père. Mas parece mais produtivo seguir uma linha mais radical de pensamento para além do pai (père), até o que é pior (pire). Mais uma vez, a candidata mais óbvia para esse “pior” é a pulsão (de morte), um tipo de correlato freudiano do que Schelling chamou de “contração” primordial, uma fixação repetitiva e obstinada em um objeto contingente que subtrai o sujeito dessa imersão direta na realidade.
O que significa a pulsão de um ponto de vista filosófico? Em um sentido geral vago, há uma homologia entre a passagem de Kant a Hegel e a passagem do desejo à pulsão: o universo kantiano é o do desejo (estruturado em torno da falta, a inacessível Coisa-em-si), da infindável aproximação do objetivo, e é por esse motivo que, para garantir a significância de nossa atividade ética, Kant tem de postular a imortalidade da alma (como não podemos alcançar o objetivo de nossa vida terrena, temos de ter permissão para continuar ad infinitum). Para Hegel, ao contrário, a Coisa-em-si não é inacessível, o impossível acontece aqui e agora – é claro que não no sentido pré-crítico ingênuo de ter acesso à ordem transcendente das coisas, mas no sentido propriamente dialético de mudar a perspectiva e conceber a lacuna (que nos separa da Coisa) como o Real. Com respeito à satisfação, isso não significa que, em contraste com o desejo que é continuamente não satisfeito, a pulsão chega à satisfação ao alcançar o objeto que escapa ao desejo. Sim, é verdade que, em contraste com o desejo, a pulsão é satisfeita por definição, mas isso porque, nela, a satisfação é atingida no repetido fracasso de chegar ao objeto, no movimento repetido de rondar o objeto. Seguindo a linha de Jacques-Alain Miller, devemos fazer aqui uma distinção entre falta e buraco: a falta é espacial e designa um vazio dentro de um espaço, ao passo que o buraco é algo mais radical e designa o ponto em que a própria ordem espacial entra em colapso (como no “buraco negro” da física)47.
Nisto consiste a diferença entre desejo e pulsão: o desejo é fundado em sua falta constitutiva, enquanto a pulsão circunda um buraco, uma lacuna na ordem do ser. Em outras palavras, o movimento circular da pulsão obedece à estranha lógica do espaço curvo, em que a distância mais curta entre dois pontos não é uma linha reta, mas uma curva: a pulsão “sabe” que o modo mais rápido de realizar seu objetivo é circundar seu objeto-meta. No nível imediato do trato com os indivíduos, o capitalismo os interpela como consumidores, como sujeitos de desejo, provocando neles desejos cada vez mais perversos e excessivos (para cuja satisfação ele oferece produtos); além do mais, é claro, ele manipula o “desejo de desejar”, celebrando o próprio desejo de desejar sempre novos objetos e modos de prazer. No entanto, mesmo que ele já manipule o desejo, levando em conta o fato de que o desejo mais elementar é o desejo de reproduzir a si mesmo como desejo (e não de encontrar satisfação), nesse nível ainda não chegamos à pulsão. Esta é inerente ao capitalismo em um nível mais fundamental e sistêmico: é o que impulsiona todo o maquinário capitalista, é a compulsão impessoal de entrar no movimento circular infindável da autorreprodução expandida. Entramos no modo da pulsão no momento em que a circulação de dinheiro como capital torna-se um fim em si mesmo, posto que a expansão do valor só acontece dentro desse movimento constantemente renovado. (Devemos ter em mente aqui a famosa distinção de Lacan entre o alvo e a meta da pulsão: enquanto a meta é o objeto ao redor do qual circula a pulsão, o verdadeiro alvo é a continuidade interminável dessa circulação como tal.) A pulsão capitalista, portanto, não pertence a nenhum indivíduo específico – aliás, são os indivíduos que atuam como “agentes” do capital (os próprios capitalistas, os alto executivos) que têm de exibi-la.
Recentemente, Miller propôs uma distinção benjaminiana entre “angústia constituída” e “angústia constituinte”, que é importantíssima no exemplo da passagem do desejo à pulsão: a primeira designa a noção comum do abismo aterrorizante e fascinante da angústia que nos assombra, o círculo infernal dessa angústia que ameaça nos rodear, e a segunda representa o “puro” confronto com o objet petit a enquanto constituído em sua própria perda48. Miller está certo em enfatizar duas características: a diferença que separa a angústia constituída da angústia constituinte diz respeito à condição do objeto no que se refere à fantasia. No caso da angústia constituída, o objeto habita os confins de uma fantasia, ao passo que só temos angústia constituinte quando o sujeito “atravessa a fantasia” e confronta o vazio, a lacuna preenchida pelo objeto fantasmático. Por mais clara e convincente que pareça, a fórmula de Miller não leva em consideração o verdadeiro paradoxo, ou antes a ambiguidade do objeto a, a ambiguidade que concerne à questão: o objeto a funciona como objeto do desejo ou objeto da pulsão? Ou seja, quando Miller define o objeto a como o objeto que se sobrepõe a sua perda, ou surge no momento exato de sua perda (de modo que todas as suas encarnações fantasmáticas, desde o seio até a voz e o olhar, são figurações metonímicas do vazio, do nada), ele continua no horizonte do desejo – o verdadeiro objeto-causa do desejo é o vazio preenchido por suas encarnações fantasmáticas. Embora, como enfatiza Lacan, o objeto a seja também o objeto da pulsão, a relação é totalmente diferente: apesar de a ligação entre objeto e perda ser crucial nos dois casos, no caso do objeto a como objeto-causa do desejo temos um objeto que é originalmente perdido, que coincide com sua própria perda, que surge como perdido; já no caso do objeto a como objeto da pulsão, o “objeto” é diretamente a própria perda – na passagem do desejo à pulsão, nós vamos do objeto perdido à própria perda como objeto. Ou seja, o estranho movimento denominado “pulsão” não é impelido pela busca “impossível” do objeto perdido; ele é a pulsão de encenar diretamente a própria “perda” – a lacuna, o corte, a distância. Há, portanto, uma dupla distinção a ser feita aqui: não só entre o objeto a em sua condição fantasmática e pós-fantasmática, mas também, dentro desse mesmo domínio pós-fantasmático, entre o objeto-causa perdido do desejo e o objeto-perda da pulsão.
É isso que Lacan quer dizer com “satisfação das pulsões”: uma pulsão não traz satisfação porque seu objeto é um substituto para a Coisa, mas porque a pulsão transforma de certo modo o fracasso em triunfo – nela, o próprio fracasso de atingir a meta, a repetição dessa falha, a circulação infindável em volta do objeto, gera uma satisfação própria. Em termos ainda mais incisivos, o objeto da pulsão não se relaciona com a Coisa como um preenchimento de seu vazio: a pulsão é literalmente um contramovimento ao desejo, ela não se esforça por uma plenitude impossível e depois, ao ser forçada a renunciar a essa plenitude, prende-se a um objeto parcial enquanto seu resto – a pulsão é literalmente o próprio “impulso” de romper o Todo da continuidade em que estamos inseridos, introduzir um desequilíbrio radical dentro dele, e a diferença entre pulsão e desejo é exatamente que, no desejo, esse corte, essa fixação em um objeto parcial é, por assim dizer, “transcendentalizada”, transposta para um substituto do vazio da Coisa.
Portanto, quando Hegel conclui sua Enciclopédia afirmando que “a ideia eterna essente em si e para si, que eternamente se ativa, engendra, e desfruta, como espírito absoluto” (“die ewige an und für sich seiende Idee sich ewig als absoluter Geist betätigt, erzeugt und genießt”)49, ele não está descrevendo um movimento circular repetitivo de alienar-se ou perder-se para recuperar-se de novo, um movimento que estranhamente lembra a definição lacaniana de castração como movimento em que o objeto se perde para ser recuperado na escala do desejo? Mas esse movimento repetitivo de perder-se e recuperar-se, de alienação e desalienação – um movimento que, como Hegel explicita, proporciona gozo –, não estaria estranhamente próximo do movimento circular da pulsão?
O exuberante Hegel in Spinoza, de Gregor Moder50, trata da oposição mais elementar: falta ou curvatura? Em termos freudianos, essa oposição aparece como a oposição entre desejo ou pulsão: o desejo é estruturado em volta de sua falta constitutiva, cada objeto determinado do desejo é, como diz Lacan, a “metonímia de uma falta”, ao passo que a pulsão, em vez de perseguir um objeto impossível que eternamente escapa ao sujeito, encontra satisfação em sua via curva, ao circular seu objeto. Em termos mais filosóficos, aplicada à noção de Substância, essa diferença entre falta e curvatura pode ser formulada conforme as seguintes opções: (1) a Substância é faltosa, tolhida, organizada em torno da ausência, e o sujeito situa-se nessa falta, é essa falta; (2) a Substância não é a falta de nada, não existe uma falta em torno da qual ela se organiza; a Substância é simplesmente curva, invertida em si mesma, como uma fita de Möbius. O maior ensinamento da psicanálise é que a vida humana nunca é “simplesmente vida”: os seres humanos não estão simplesmente vivos; eles são possuídos pela estranha pulsão de gozar a vida em excesso, apaixonadamente ligados a um excedente que se sobressai e desencaminha o curso normal das coisas.
O paradoxo básico aqui é que a dimensão especificamente humana – pulsão oposta ao instinto – surge no exato momento em que aquilo que era originalmente um mero subproduto é alçado a alvo autônomo: os homens deixaram de ser “reflexivos”; ao contrário, veem como meta direta o que, para um animal, não tem nenhum valor intrínseco. Em resumo, o grau zero da “humanização” não é outra “mediação” da atividade animal, sua reinscrição como momento subordinado de uma totalidade superior (por exemplo, comemos e procriamos para desenvolver nossos potenciais espirituais superiores), mas um estreitamento de foco radical, a elevação de uma atividade de pouca importância a um fim em si mesmo. Nós nos tornamos “humanos” quando ficamos presos em um circuito fechado e autopropulsor de repetição do mesmo gesto e nele encontramos satisfação. Podemos nos lembrar aqui de toda a cena arquetípica dos desenhos animados: um gato pula no ar e gira em seu próprio eixo, mas, em vez de despencar no chão de acordo com as leis normais da gravidade, ele fica suspenso, levitando e dando voltas, como se estivesse preso em um circuito de tempo, repetindo indefinidamente o mesmo movimento circular51. Em momentos desse tipo, o curso “normal” das coisas, isto é, o ficar preso na inércia imbecil da realidade material, é suspenso por um instante; entramos na esfera mágica da animação suspensa, de uma espécie de rotação etérea autossustentável. Esse movimento rotatório, em que o progresso linear do tempo é suspenso em um circuito de repetição, é a pulsão em sua manifestação mais elementar. Isso, mais uma vez, é a “humanização” em nível zero: esse circuito autopropulsionado que suspende ou interrompe o encadeamento temporal linear. Essa passagem do desejo à pulsão é crucial, se quisermos apreender a verdadeira natureza da “diferença mínima”: em seu aspecto mais fundamental, a diferença mínima não é o X imperscrutável que eleva um objeto ordinário a um objeto de desejo, mas a torção interna que curva o espaço libidinal e assim transforma instinto em pulsão.
Consequentemente, o conceito de pulsão torna falsa a alternativa “ser queimado pela Coisa ou manter-se distante dela”: para a pulsão, a “própria Coisa” é a circulação ao redor do vazio (ou melhor, do buraco). A pulsão como tal é a pulsão de morte – não no sentido de almejar a negação universal ou a dissolução de toda particularidade, mas, ao contrário, no sentido do “espontâneo” fluxo vital da geração e corrupção que “emperra” em alguma particularidade acidental e circula indefinidamente em volta dela. Se a Vida é uma música tocada em um velho LP (o que definitivamente ela não é), a pulsão surge quando, por causa de um arranhão no disco, a agulha emperra e o mesmo trecho se repete sem parar. A constatação especulativa mais profunda é que a universalidade surge apenas quando um fluxo particular emperra em um momento singular. Essa noção freudiana de pulsão nos leva à ambiguidade radical da dialética de Hegel: ela segue a lógica da pulsão ou não? A lógica de Hegel é a lógica da purificação, do “desemperramento”: mesmo quando um sujeito coloca o todo de seu investimento libidinal em um fragmento contingente de ser (“Estou disposto a arriscar tudo por isso!”), esse fragmento contingente – o objet petit a de Lacan – é, em sua indiferente acidentalidade, um operador da purificação, do “desemperramento” de todo (outro) conteúdo particular. Em lacanês, esse objeto é uma metonímia da falta. Aqui o desejo do sujeito é o vazio transcendental, e o objeto é um preenchimento ôntico contingente desse vazio. Na pulsão, em contrapartida, o objeto a não é apenas a metonímia da falta, mas uma espécie de mancha transcendental, irredutível e insubstituível em sua própria singularidade contingente, e não apenas um preenchimento contingente ôntico de uma falta. Enquanto a pulsão envolve o emperramento em um objeto-mancha contingente, a negatividade dialética envolve um processo constante de “desemperramento” de todo conteúdo particular: a jouissance “apoia-se em” algo, depende de sua particularidade – é isso que falta em Hegel, mas vigora em Freud.
A relação entre a negatividade em Hegel e a pulsão de morte (ou compulsão à repetição) em Freud, portanto, é uma relação bem específica que está muito além da (oculta) identidade categórica dos dois: o que Freud visava com sua noção de pulsão de morte – mais precisamente, a principal dimensão dessa noção que o próprio Freud não via, alheio à plena significância de sua descoberta – é o núcleo “não dialético” da negatividade hegeliana, a pura pulsão à repetição sem nenhum movimento de suprassunção ou idealização. O paradoxo é que a pura repetição (em contraste com a repetição enquanto suprassunção idealizadora) é sustentada exatamente por sua impureza, pela persistência de um elemento “patológico” contingente que o movimento de repetição emperra e continua emperrado. A questão mais importante, portanto, é: poderia Hegel pensar o “resto indivisível” gerado por cada movimento de idealização ou suprassunção? Antes de concluir rapidamente que não, devemos lembrar que, no que tem de mais radical, o objeto a lacaniano (nome desse “resto indivisível”) não é um elemento substancial que perturba o mecanismo formal de simbolização, mas uma curvatura puramente formal da própria simbolização.
O objeto a e a pura repetição estão intimamente ligados: o a é o excesso que põe a repetição em movimento e evita ao mesmo tempo seu sucesso (que consistiria em recapturar plenamente o que se tenta repetir). E, na medida em que Hegel não pode pensar a pura repetição (uma repetição que ainda não foi pega no movimento de suprassunção ou idealização), o objeto a é simultaneamente o objeto ausente em Hegel e o modo pelo qual esse objeto é ausente: assim como, segundo Derrida, mal se pode perceber e distinguir a diferença entre a Aufhebung hegeliana e sua noção de différance, também mal se pode perceber a diferença entre Hegel e o que Hegel não considera (não pode pensar): não se trata de uma diferença positiva (em que poderíamos identificar com clareza o que está ausente), mas de uma “pura” diferença, uma mudança quase imperceptível na ênfase virtual ou espectral do que Hegel realmente diz. Para expor essa mudança, só precisamos repetir Hegel.
Paradoxalmente, a repetição fornece a resposta hegeliana (ausente) à questão crítica de Heidegger sobre como Hegel fracassa no desenvolvimento do conteúdo fenomenológico da própria noção central de negatividade: em seu nível zero, a negatividade não é uma aniquilação destrutiva do que quer que exista; ela surge antes como uma repentina imobilização do fluxo normal das coisas – em dado momento as coisas emperram, uma singularidade persiste para além de seu próprio termo. Em sua leitura de um fragmento de Anaximandro sobre ordem e desordem, Heidegger considera a possibilidade de que um ente possa
persistir [bestehen] em sua demora unicamente para, através disto, permanecer mais presente no sentido de permanência [Bertändigen]. O que se demora transitoriamente persiste [beharrt] em sua presença. Desta maneira ela se liberta de sua demora transitória. Ela se finca na teimosia da persistência. Ela não se volta mais para as outras coisas que se presentam. Ela se paralisa como se isto fosse o fixar-se sobre a constância do que persiste.52
É assim que, segundo Deleuze, o Novo surge pela repetição: as coisas fluem, seguem seu curso usual da mudança incessante, e depois, de repente, alguma coisa emperra, interrompe o fluxo, impondo-se como Novo por meio de sua própria persistência. Assim, é como se a ligação excessiva, o Sim excessivo para um objeto parcial, fosse uma determinação reflexiva da negatividade, um momento de determinação opositiva no qual a negatividade se encontra entre os de sua espécie (Verdrängung, Verwerfung...).
O excesso em Hegel, ou o incontável, não deveria ser situado no ponto em que o próprio Hegel introduz o inexplicável? Quando apresenta no fim da Grande lógica um tipo de descrição formal do processo dialético, ele diz que seus momentos podem ser contados como três ou quatro – é a negatividade que pode ser contada duas vezes, como negação direta e como negação autorrelativa. Esse excesso de negatividade que é a pulsão de morte – a compulsão cega à repetição, o que Hegel não leva em conta nem a propósito da sexualidade nem da populaça – talvez explique sua incapacidade de pensar a exploração no sentido marxista estrito: Lacan já tinha chamado a atenção para a ligação entre a mais-valia e o mais-gozar (a mais-valia é o excesso que surge na própria troca equivalente entre trabalhador e capitalista). O elemento descentralizado que é “explorado” no processo dialético, portanto, é o terceiro/quarto momento da negatividade autorrelativa, essa força produtiva cega e repetitiva.
Aqui, o problema subjacente é como devemos interpretar as esporádicas e experimentais, mas ainda assim inequívocas, autorrelativizações e/ou auto-historicizações de Hegel – os fatos que ainda precisam ser descobertos pelas ciências naturais, a impossibilidade de apreensão da essência espiritual de territórios como a América do Norte e a Rússia, as consequências de sua argumentação a favor da necessidade da guerra e a caracterização de seu próprio pensamento como o ponto de partida atingido pelo espírito “por agora”. A solução de Robert Pippin, ou seja, a distinção entre o “Hegel eterno” e o Hegel histórico do sistema, é a armadilha que devemos evitar, posto que reintroduz uma lógica normativa, uma lacuna entre a posição hegeliana “ideal” e suas realizações históricas. A atitude propriamente hegeliana é rejeitar qualquer ideal trans-histórico que nos permita medir e avaliar todas as realizações empírico-históricas do sistema hegeliano e considerar as mudanças no próprio ideal. (Muito mais adequada é a ideia de Andrew Cutrofello de que Gilles Deleuze, o grande anti-hegeliano contemporâneo, encarna uma repetição de Hegel nos dias atuais.) Nosso ponto de partida deveria ser que o “Saber Absoluto” envolve um reconhecimento tanto do fechamento histórico radical (não existe metalinguagem, não há como olhar para si mesmo a partir de fora) quanto de uma abertura radical do futuro (o foco de Catherine Malabou em Future of Hegel). Ademais, a tarefa é pensar (para além de Hegel) essa abertura radical com (ou até mesmo como) repetição: para Hegel, repetição é suprassunção ou idealização (digamos, do nome de César no título de César), ou seja, ele não pode pensar a pura repetição de Kierkegaard e Freud. O excesso de negatividade em relação à ordem social reconciliada não seria também o excesso da repetição em relação à suprassunção? A tarefa que Hegel nos deixou, a grande lacuna em seu pensamento, é como pensar esse excesso (perceptível em muitos níveis, como a necessidade de guerra, a ameaça de loucura...) sem cair de volta em um historicismo relativista? Essa referência ao excesso persistente da negatividade – desde a possibilidade sempre presente da loucura como constitutiva da subjetividade até a necessidade da guerra como forma social da explosão da universalidade abstrata – também é crucial para compreender o que Hegel quer dizer com “reconciliação”, que, em contraste com uma atitude “crítica”, caracteriza a dimensão do Absoluto. A reconciliação não significa que o sujeito acaba conseguindo se apropriar da Alteridade que ameaça a identidade com ele mesmo, mediando-o ou interiorizando-o (isto é, suprassumindo-o). Muito pelo contrário, a reconciliação hegeliana contém um tom resignado: precisamos nos reconciliar com o excesso da negatividade – enquanto condição ou fundamento positivo de nossa liberdade – para reconhecer nossa substância no que parece ser um obstáculo.
Na pura repetição kierkegaardiana e freudiana, como vimos, o movimento dialético da sublimação encontra a si mesmo, seu próprio núcleo, fora de si mesmo, na forma de uma compulsão “cega” à repetição. É aqui que devemos aplicar a grande máxima hegeliana a respeito da interiorização do objeto exterior: ao lutar com seu oposto exterior, a repetição cega não suprassumível, o movimento dialético luta contra seu próprio fundamento abissal, contra seu próprio núcleo; em outras palavras, o derradeiro gesto da reconciliação é reconhecer nesse excesso ameaçador da negatividade o núcleo do próprio sujeito. Esse excesso tem diferentes nomes em Hegel: “noite do mundo”, necessidade de guerra, de loucura etc. Talvez o mesmo seja válido para a oposição básica entre a negatividade hegeliana e freudiana: justamente na medida em que há uma lacuna intransponível entre elas (a negatividade hegeliana idealiza e suprassume todo conteúdo particular no abismo de sua universalidade, ao passo que a negatividade da pulsão freudiana é expressa em seu “emperramento” em um conteúdo particular contingente), a negatividade freudiana fornece (literalmente) a “base material” para a idealização da negatividade. Em termos mais simples, cada negatividade idealizadora/universalizadora tem de ser ligada a um conteúdo “patológico” contingente específico, que serve como seu “sinthoma”, no sentido lacaniano (se o sinthoma é desemaranhado ou desintegrado, a universalidade desaparece). O modelo exemplar dessa ligação é a dedução de Hegel da necessidade da monarquia hereditária: o Estado racional enquanto totalidade universal que medeia todo conteúdo particular tem de ser incorporado na figura “irracional” contingente do monarca (podemos também aplicar a mesma matriz ao tratamento que Hegel dá à populaça). Esse excesso da pulsão enquanto pura repetição é a fonte “descentralizada” do valor que Hegel não pôde conceituar, o correlato libidinal da força de trabalho que produz a mais-valia.
Isso significa que, uma vez no mundo freudiano-kierkegaardiano da pura repetição, podemos esquecer Hegel? Claude Lévi-Strauss escreveu que a proibição do incesto não é uma pergunta sem resposta, mas o oposto: uma resposta sem pergunta, a solução de um problema desconhecido. O mesmo vale para a pura repetição: ela é uma resposta ao problema hegeliano, seu núcleo oculto, e é por isso que ele só pode ser situado de maneira adequada na problemática hegeliana – uma vez que entramos no mundo pós-hegeliano, o conceito de repetição é “renormalizado” e perde sua força subversiva. A relação é semelhante àquela entre o fim de Don Giovanni, de Mozart, e o romantismo pós-mozartiano: a cena da morte de dom Giovanni gera um excesso assustador, que perturba as coordenadas do universo de Mozart; entretanto, embora aponte para o romantismo, esse excesso perde sua força subversiva e é “renormalizado” quando chegamos ao romantismo propriamente dito.
Mas isso não nos leva de volta, paradoxal e inesperadamente, à questão da Aufhebung, dessa vez aplicada à própria relação entre Hegel e sua “repetição” pós-hegeliana? Certa vez Deleuze caracterizou seu próprio pensamento como uma tentativa de pensar como se Hegel não tivesse existido, afirmando repetidas vezes que esse era um filósofo que deveria simplesmente ser ignorado, e não estudado. O que escapou a Deleuze foi que seu pensamento a respeito da pura repetição só funciona como uma suprassunção esquisita de Hegel. Nessa última vingança exemplar de Hegel, o grande tema hegeliano do caminho para a verdade como parte da verdade – para se chegar à escolha certa, é preciso começar com a escolha errada – reafirma a si mesmo. A questão não é que não deveríamos ignorar Hegel, mas sim que só podemos nos permitir ignorá-lo depois de um longo e árduo estudo de Hegel.
Portanto, chegou a hora de repetir Hegel.
1 Essa lista me foi sugerida por Mladen Dolar.
2 Jacques Lacan, Le séminaire, livre XXIX: l’insu que sait de l’une-bévue s’aile a mourre, 14 dez. 1976 (não publicado).
3 Nessa mesma linha, é hora de declarar Bach o maior modernizador da música europeia, o principal responsável por inserir a música no universo newtoniano formalizado pela ciência. Antes de Bach, a música era percebida dentro do horizonte renascentista da harmonia mundi: suas harmonias eram concebidas como parte da harmonia global do universo, expressa na harmonia das esferas celestes, da matemática (pitagórica), da sociedade como organismo social, do corpo humano – todos esses níveis refletiam-se harmoniosamente uns nos outros. Na época de Bach, um paradigma totalmente diferente começou a surgir: o paradoxo de uma escala “bem temperada”, em que os sons musicais devem ser arranjados em uma ordem que não se baseia em uma harmonia cósmica superior, mas tem estrutura racional (e, no fundo, arbitrária). (Sim, é verdade que Bach era obcecado pelo misticismo pitagórico dos números e seus significados secretos, mas a condição dessa obsessão é exatamente a mesma das fantasias gnósticas e obscurantistas de Newton, que constituíam mais de dois terços de seu trabalho escrito: uma reação ao verdadeiro avanço, uma incapacidade de assumir todas as suas consequências.) Esta foi a verdadeira fidelidade de Bach (no sentido badiouniano): tirar todas as consequências dessa descosmologização da música. Não podemos nos iludir aqui com todo o discurso sobre a profunda espiritualidade de Bach e sua obra ser dedicada a Deus: em sua prática musical, ele era um materialista radical (no sentido moderno, matematizado e formalizado), que explorava as possibilidades imanentes do novo formalismo musical. É a reafirmação “italiana” da melodia emocional (realizada também por seu filho, que, ao seguir essa linha, cometeu uma espécie de parricídio e foi, durante um curto período, até mais popular que o pai) que marcou a reação idealista-expressiva contra a inovação materialista de Bach.
4 G. W. F. Hegel, Hegel’s Science of Logic, cit., p. 58.
5 Idem, Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, v. 3, cit., § 381, p. 15. Ênfase minha.
5 Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 162.
7 G. W. F. Hegel, Hegel’s Science of Logic, cit., p. 571.
8 Fredric Jameson, The Hegel Variations, cit., p. 2.
9 Um exemplo primorosamente vulgar de lalangue em esloveno: todo esloveno (honesto) sabe do que trata o sorriso da Mona Lisa. Os eslovenos não têm palavrões próprios, por isso precisam emprestá-los, sobretudo do sérvio e do croata, mas também do italiano. Por isso sabem que “mona” é uma palavra italiana popular para “vagina” e “lisa” (pronunciado “leeza”) é a raiz do verbo esloveno “lamber”.
10 Søren Kierkegaard, Concluding Unscientific Postscript (trad. David F. Swenson e Walter Lowrie, Princeton, Princeton University Press, 1968), p. 68.
11 Ibidem, p. 272.
12 Ibidem, p. 108.
13 G. K. Chesterton, “The Slavery of the Mind”, em The Collected Works of G. K. Chesterton (São Francisco, Ignatius, 1990), v. 3, p. 290.
14 Citado em Georg Büchner, Complete Plays and Prose (Nova York, Hill and Wang, 1963), p. xiii.
15 Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte (trad. Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2011), p. 25.
16 G. W. F. Hegel, Hegel’s Science of Logic, cit., p. 562-3.
17 E é fácil ver por que Hegel menciona não só a vida espiritual, mas também a vida orgânica: a vida orgânica já aponta para a “conversão” que suprassume a causalidade mecânica. Em virtude da unidade orgânica de um corpo vivo, uma parte fraca (o cérebro) pode direcionar os movimentos de partes muito maiores e mais fortes – ou seja, para explicar como funciona um organismo, é preciso recorrer a um mínimo de idealidade, de ligações que não podem ser reduzidas à interação mecânica das partes físicas.
18 G. W. F. Hegel, Fé e saber (trad. Oliver Tolle, São Paulo, Hedra, 2009), p. 48.
19 Nas mãos de Marx, isso seria dito da seguinte maneira: entre as espécies de produção, sempre há uma que dá um caráter específico à universalidade da produção dentro de um dado modo de produção. Nas sociedades feudais, a produção artesanal estrutura-se como um outro domínio da agricultura, enquanto no capitalismo a agricultura é “industrializada”, isto é, torna-se um dos domínios da produção industrial.
20 Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 171.
21 E Hegel estava longe de atribuir qualquer prioridade à língua alemã. Um detalhe biográfico interessante: na década de 1810, quando considerava o convite de um amigo holandês para ocupar um cargo universitário em Amsterdã, ele não só começou a aprender holandês, como imediatamente bombardeou o amigo com perguntas a respeito das idiossincrasias da língua holandesa, como os jogos de linguagem, para conseguir desenvolver seus pensamentos em holandês.
22 G. W. F. Hegel, Lectures on the Philosophy of History, cit., p. 277.
23 Mark Wrathall, How to Read Heidegger (Nova York, Norton, 2006), p. 94-5.
24 Jacques Lacan, O seminário, livro 20: mais, ainda (trad. M. D. Magno, 2. ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1985), p. 115.
25 G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie (Frankfurt, Suhrkamp, 1979), p. 450. (Werke, v. 18.)
26 Fredric Jameson, The Hegel Variations, cit., p. 82-3.
27 Ibidem, p. 80.
28 Para uma análise mais detalhada da noção dos dois vácuos, ver o capítulo 8.
29 François Balmès, Dieu, le sexe et la vérité (Ramonville Saint-Agne, Érès, 2007), p. 150.
30 Ibidem, p. 166.
31 Em Alain Badiou, Logics of Worlds (Londres, Continuum, 2009).
a Famosa frase de Lacan que, traduzida literalmente, significa “os não tolos erram”. Apresenta homofonia com “le nom du père” (o nome do pai). (N. T.)
b René Descartes, Discurso do método (3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983), p. 41-2. (N. E.)
32 G. K. Chesterton, The Book of Job (Londres, Cecil Palmer & Hayward, 1916), p. xxii-xxiii.
33 Esses nomes se referem aos dois exemplos mencionados no Interlúdio 1 (a piada russa sobre Rabinovitch e a noção antagônica de sociedade em Adorno).
34 Baseio-me aqui em Mladen Dolar, “Brecht’s Gesture”, 11th International Istanbul Biennial Reader: What Keeps Mankind Alive? (Istambul, İstanbul Kültür ve Sanat Vakfı, 2009).
35 Devo essa observação a Fredric Jameson.
36 Ver G. W. F. Hegel, Filosofia do direito, cit., p. 174-80.
c Ibidem, § 280, p. 266. (N. T.)
d Ver nota do tradutor na p. 54 deste volume. (N. E.)
37 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte I, § 87, p. 72.
38 Sigmund Freud, Conferências introdutórias sobre psicanálise, partes I e II (trad. José Luís Meurer, Rio de Janeiro, Imago, 1996), p. 225. (Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, v. 15.)
39 Talvez seja por isso que a psicanálise tenha sido inventada por um judeu: os judeus, como nação, não são o caso exemplar da persistência do Velho que recusa sua suprassunção?
40 Gilles Deleuze, Diferença e repetição, cit., p. 265.
41 Como acabamos de ver, a matriz formal do processo dialético impede de antemão a possibilidade de que a luta até a morte entre o futuro senhor e o futuro escravo chegará ao fim com a morte de um deles. É Hegel quem elimina aqui as consequências destrutivas e efetua um compromisso na forma de um pacto simbólico – pouco antes do fim da luta, um dos combatentes admite a derrota, deixando claro que não está pronto para lutar até a morte.
42 Note-se que o Nome-do-Pai, significante que é sempre o significante da negação (proibição) – le-Nom-du-Père [o Nome-do-Pai] como le-Non-du-Père [o Não-do-Pai] – é, para Lacan, o significante central no inconsciente.
43 Johann Wolfgang Goethe, carta a Schiller de 16 de agosto de 1797, em Companheiros de viagem: Goethe e Schiller (apresentação, seleção, tradução e notas de Cláudia Cavalcanti, São Paulo, Nova Alexandria, 1993), p. 126. Devo agradecer a Frauke Berndt (Frankfurt), que propôs uma leitura perspicaz dessa passagem.
44 De uma maneira algo patética, poderíamos dizer o mesmo das ruínas do 11 de Setembro: uma pessoa melancólica as veria na “verdade” dos sonhos arrogantes do esplendor dos Estados Unidos, isto é, já veria nas próprias Torres Gêmeas as ruínas do porvir, ao passo que um otimista goethiano veria nelas um símbolo do espírito empreendedor daquela outra “cidade tão desenvolvida” que logo substituirá as ruínas por novos prédios.
45 De maneira estritamente homóloga, para Hegel, a consciência-de-si surge da limitação da consciência: não posso atingir o objeto que viso, ele se esquiva da minha apreensão, em tudo que posso alcançar eu descubro meu próprio produto – então volto o olhar para minha própria atividade e para o modo como ela “põe” o que me aparece como pressuposto.
46 Um caso exemplar de Isolierung é a forma como a relação da China com a fome ocorrida durante o Grande Salto Adiante baseia-se em uma economia simbólica específica: embora o horror seja reconhecido formalmente (os “erros” de Mao), ele continua sendo tratado como tabu (o reconhecimento é puramente formal e é acompanhado da proibição de entrar em detalhes).
47 Ver Jacques-Alain Miller, “Le nom-du-père, s’en passer, s’en servir”. Trechos disponíveis em: <http://www.lacan.com/jamsem2.htm>.
48 Idem.
49 G. W. F. Hegel, A filosofia do espírito, cit., p. 364.
50 Ver Gregor Moder, Hegel in Spinoza (Liubliana, Analecta, 2009).
51 Encontramos a mesma cena em algumas comédias musicais que usam elementos de pastelão: quando um bailarino rodopia, ele permanece suspenso no ar por um tempo um pouco longo demais, como se, por um breve instante, conseguisse suspender a lei da gravidade. E não seria esse efeito justamente o maior objetivo da arte da dança?
52 Martin Heidegger, “A sentença de Anaximandro”, em José Cavalcante de Souza (org.), Os pré-socráticos (trad. José Cavalcante de Souza et al., 2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1978), p. 37. (Coleção “Os pensadores”.)