Em 2008, diante de sua má colocação nas pesquisas de opinião, o republicano Mike Huckabee, candidato à eleição presidencial dos Estados Unidos, e uma figura que parece ter saído de um filme de Frank Capra, se não de um romance de Dickens, disse: “Conheço os especialistas e sei o que dizem, que a matemática não resolve nada. Não me especializei em matemática, eu me especializei em milagres. E nesses eu ainda acredito”. Vale a pena citar esse caso não para nos divertir com o nível do debate político nos Estados Unidos, mas porque ele aponta negativamente para um componente central do pensamento de Badiou; mais precisamente, ele junta matemática e milagres. É óbvio que, ao falar de milagres, devemos ter em mente a ressalva de Lacan de que a única “irracionalidade” que ele admite é a dos números irracionais na matemática – de maneira homóloga, os únicos “milagres” que um materialista radical reconhece são os milagres matemáticos. O “milagre” nada mais é que o surgimento repentino do Novo, irredutível a suas condições precedentes, de alguma coisa que “põe” retroativamente suas condições. Todo ato autêntico cria suas próprias condições de possibilidade.
Mas o que é esse elemento “irracional”? Como apontou Badiou, o que define um “mundo” não é em primeiro lugar suas características positivas, mas o modo como sua estrutura se relaciona com sua própria impossibilidade inerente (seu próprio ponto de impossibilidade). A matemática clássica considera a raiz quadrada de -1 uma exterioridade irrelevante, um contrassenso que deve ser ignorado, ao passo que a matemática moderna realiza esse cálculo impossível, designando-o com a letra I (“número imaginário”): “historicamente, a matemática divide-se e refaz-se, criando restrições que ocupam esses lugares impossíveis: a raiz quadrada de -1 é batizada de número imaginário, que depois é usado em um novo espaço de cálculos”1.
Isso é similar ao conceito de Cantor sobre as diferentes modalidades do infinito: o transfinito e assim por diante. A distinção direta entre “transfinito” e “infinito”, como elaborada por Cantor, ajusta-se mal à distinção hegeliana entre “verdadeira infinidade” e “má” ou “falsa infinidade”: na “má infinidade”, nunca atingimos de fato o infinito, isto é, é sempre possível adicionar mais uma unidade a qualquer número, e “infinidade”, aqui, refere-se exatamente a essa possibilidade constante de adicionar, a essa impossibilidade de atingir o último elemento da série. Mas e se tratarmos esse conjunto de elementos eternamente “abertos” à adição como uma totalidade fechada e estabelecermos o infinito como um elemento próprio, como o quadro exterior do conjunto interminável de elementos que ele contém? O transfinito seria então um número ou um elemento com a propriedade paradoxal de ser impassível à adição ou subtração: se adicionarmos ou subtrairmos uma unidade, ele continua o mesmo2. Kant não construiu de modo semelhante o conceito de “objeto transcendental”? Somos tentados aqui a arriscar um trocadilho: Kantor. O objeto transcendental é externo à série infindável de objetos empíricos: nós os atingimos porque tratamos essa série infindável como fechada e pomos um objeto vazio fora dela, a própria forma de um objeto, que enquadra a série. Também é fácil perceber outra homologia com o objet petit a, o objeto-causa lacaniano do desejo: este é também “transfinito”, ou seja, um objeto vazio que enquadra a série infindável de objetos empíricos. Nesse sentido preciso, nossos dois objetos a, a voz e o olhar, são “transfinitos”: nos dois casos, lidamos com um objeto vazio que enquadra a “má infinitude” do campo do visível e/ou audível, dando corpo ao que, constitutivamente, escapa a esse campo (nesse sentido, o objeto-olhar é um ponto cego dentro do campo do visível, ao passo que o objeto-voz por excelência é o silêncio, naturalmente)3.
Na discussão com os atenienses relatada nos Atos dos Apóstolos, Paulo faz um uso inteligente do fato de que os atenienses, com seu oportunismo pragmático, construíram uma estátua para um deus desconhecido acima das estátuas de todos os deuses conhecidos – eles queriam estar seguros de que sua série de estátuas incluía uma referência a uma divindade que ignoravam, uma referência que poderia ser excluída ou descartada de seu pandemônio panteísta. Paulo comenta astuciosamente que existe em Atenas uma estátua do Deus único de quem ele fala; o truque é que ele substitui o artigo indefinido por um definido: aquela não é a estátua de um deus desconhecido (como os monumentos ao soldado desconhecido, que se referem em geral a um anônimo morto em batalha), mas a estátua do deus desconhecido, que representa o (único verdadeiro) deus que é/continua desconhecido, obliterado pelo caos resplandecente do politeísmo. Paulo não estaria também interiorizando o ponto de impossibilidade do universo pagão?
O mesmo vale para o capitalismo: sua dinâmica de perpétua autorrevolução baseia-se no adiamento interminável de seu ponto de impossibilidade (crise ou colapso final). Aquilo que para os antigos modos de produção representava uma exceção perigosa é, para o capitalismo, uma normalidade: no capitalismo, a crise é interiorizada, ou seja, levada em conta como o ponto de impossibilidade que o estimula em uma atividade contínua. Estruturalmente, o capitalismo está sempre em crise, e é por isso que está em contínua expansão: ele só pode reproduzir-se “pegando emprestado do futuro”, em uma fuite en avant para o futuro. O ajuste de contas final, quando todas as dívidas são pagas, não chega nunca. Marx propôs um nome para o ponto social de impossibilidade: “luta de classes”.
Talvez devêssemos estendê-la à própria definição de humanidade: no fundo, o que distingue os seres humanos dos animais não é uma característica positiva (fala, fabricação de ferramentas, pensamento reflexivo etc.), mas o advento de um novo ponto de impossibilidade batizado por Freud e Lacan de das Ding, a derradeira referência impossível-real do ponto de desejo. A diferença entre o homem e o macaco, tida em geral como experimental, adquire aqui toda a sua significância: quando se vê diante de um objeto que está fora de seu alcance, o macaco desiste de alcançá-lo depois de algumas tentativas frustradas e concentra-se em um objeto mais modesto (uma parceira sexual menos atraente, por exemplo); já o ser humano persiste no esforço e permanece fixado no objeto impossível.
É por isso que o sujeito como tal é histérico ou, mais precisamente, o sujeito que estabelece a jouissance como absoluto, que responde ao absoluto da jouissance na forma de um desejo insatisfeito. Tal sujeito é capaz de se relacionar com um termo que permanece fora dos limites do jogo; na verdade, essa relação com um termo que está “fora do jogo” é constitutiva do próprio sujeito. A histeria, portanto, é a maneira “humana” e elementar de instituir um ponto de impossibilidade na forma de jouissance absoluta. Afinal, não seria o “il n’y a pas de rapport sexuel” de Lacan também um ponto de impossibilidade constitutivo do ser humano? Desde Dennett, quando tentam explicar a consciência, os cognitivistas enumeram uma série de capacidades especificamente humanas que “não podem funcionar de fato sem a consciência”; mas e se, em vez de nos concentrarmos “no que (só) podemos fazer com a consciência”, mudássemos de campo e perguntássemos qual é o ponto de impossibilidade específico da consciência? O que não podemos fazer com a consciência? Como a consciência se relaciona com aquilo de que não podemos ser conscientes a priori? Qual falha insuperável deu origem à consciência? A consciência, em seu nível zero, não seria uma falha, a de enfrentar uma impossibilidade radical? Aqui ressurge a questão da mortalidade: quando Heidegger afirma que apenas o homem é mortal, e não os animais, isso significa mais uma vez que a morte é a última possibilidade de impossibilidade para o ser humano, seu ponto inerente de impossibilidade, algo com que conjecturamos e nos relacionamos, em contraste com o animal, para quem a morte é simplesmente externa.
Muitos cognitivistas (de Pinker a McGinn) tentam explicar o paradoxo da consciência(-de-si) afirmando que sua incapacidade de “conhecer a si mesma”, de explicar a si mesma como um objeto no mundo, é consubstancial com a própria consciência, seu constituinte inerente. (Pinker oferece uma versão evolucionista mais científica – a consciência não surge com o objetivo de entender/explicar a si mesma, mas com outras funções evolucionárias –, ao passo que McGinn4 oferece uma versão teórica mais pura do motivo por que a consciência é necessariamente um enigma para si mesma.) O que temos aqui não é nada menos que uma explicação biológica evolutiva para o surgimento da metafísica. No entanto, surge de repente uma contrapergunta heideggeriana, saída do quadro referencial de Ser e tempoa a consciência não questiona necessariamente a si mesma, perguntando-se sobre o enigma que a priori ela é incapaz de responder? (Como diz o próprio Heidegger, o Dasein é uma entidade que questiona seu próprio ser.) De que maneira essa propriedade surge na lógica evolucionária? A questão não é apenas que, no topo dessas funções adaptativas (como encontrar o próprio caminho no ambiente etc.), a consciência também se incomoda com enigmas que não têm nenhuma função adaptativa ou evolucionária (humor, arte, questões metafísicas). A outra questão (crucial) é que esse suplemento inútil, essa fixação compulsiva em problemas que a priori não podem ser resolvidos, possibilitou retroativamente uma explosão de procedimentos (técnicas, descobertas) que, por si sós, tiveram grande valor para a sobrevivência. É como se o animal humano, para afirmar sua primazia sobre os outros seres vivos na luta pela sobrevivência, tivesse de abandonar a própria luta pela sobrevivência e concentrar-se em outras questões. A vitória na luta pela sobrevivência só pode ser ganha como um subproduto: se nos concentramos diretamente na luta, nós a perdemos. Somente um ser obcecado por problemas impossíveis ou insolúveis pode avançar no conhecimento possível. Isso significa que, em contraste com a luta pela sobrevivência travada pelos animais, a luta dos homens já é “reflexiva”, como diria Heidegger, experimentada como horizonte de significado para sua existência. O desenvolvimento da tecnologia ou a luta por poder ocorrem em (e como) uma certa abertura do Ser, em vez de ser um imediato “fato da vida”5.
Quando McGinn afirma que, na realidade, não há nenhum mistério no fato de o cérebro gerar consciência (somos para sempre impedidos cognitivamente de entender esse processo, assim como o entendimento da física quântica está além das capacidades cognitivas dos macacos), temos uma dupla ironia: não apenas tentamos incessantemente entender a consciência, em claro contraste com os macacos (que não se interessam pela física quântica), como nem mesmo os seres humanos conseguem entender realmente a física quântica (no sentido estrito de transpô-la para o horizonte do significado). Se afirmarmos que tratamos aqui de “uma incompatibilidade entre a própria natureza desses problemas e o aparato computacional com que a seleção natural nos equipou”6, o verdadeiro enigma não é o enigma do significado da vida como tal, mas, antes, por que investigamos com tanta persistência o significado da vida em primeiro lugar? Se a religião e a filosofia são (ao menos em parte) “a aplicação de ferramentas mentais a problemas que não fomos projetados para resolver”7, como essa má aplicação acontece, e por que é tão persistente? Devemos ressaltar o pano de fundo kantiano dessa posição: Kant já afirmava que a mente humana é sobrecarregada de questões metafísicas que, a priori, não pode responder. Essas questões não podem ser afastadas; elas fazem parte da própria natureza humana.
Vamos imaginar que os cientistas descubram um gigantesco asteroide que certamente se chocará com a Terra daqui a 35 anos, não só destruindo toda a vida humana, como também alterando a órbita do nosso planeta ao redor do Sol. Como as pessoas reagiriam? A ordem social e ética entraria em colapso? As pessoas perderiam todo o pudor e rapidamente tentariam realizar suas fantasias sexuais e outras mais? No entanto, a verdadeira pergunta é: não sabemos que, em um futuro muito mais distante (assim esperamos), alguma coisa desse tipo de fato acontecerá e a humanidade desaparecerá sem deixar rastros? Então, qual é a diferença? A situação é semelhante à famosa anedota sobre George Bernard Shaw: durante um jantar, ele perguntou a uma bela aristocrata a seu lado se ela passaria uma noite com ele por 10 milhões de libras; quando a moça, sorridente, disse que sim, ele perguntou se faria o mesmo por 10 libras; ela teve um acesso de fúria por ser sido tratada como uma vagabunda barata, e ele respondeu calmamente: “Não me venha com essa, nós já estabelecemos que seus favores sexuais podem ser comprados, agora estamos apenas discutindo o preço...”. A diferença, é claro, é a mesma em relação à morte: o evento deve pertencer a um momento futuro suficientemente distante para podermos ignorá-lo, para fingirmos que não sabemos nada a seu respeito e, assim, agirmos como se não tivéssemos conhecimento dele. É por isso que quase todo mundo, apesar de saber muito bem que morrerá um dia, recusa-se a saber de antemão o exato momento da própria morte: as pessoas se recusam secretamente a acreditar que vão morrer, e conhecer o momento exato da morte tornaria a morte futura plenamente efetiva. Kafka escreveu: “A lamentação em volta do leito de morte é, na verdade, a lamentação diante do fato de que a morte, em seu verdadeiro sentido, não aconteceu”8. Mas e se não houver morte “em seu verdadeiro sentido”? E se a morte for sempre e por definição “imprópria”, algo que aparece no lugar e no momento errados?
O ponto de impossibilidade é uma característica do objeto a lacaniano: ele designa o que é subtraído da realidade (enquanto impossível) e assim lhe dá consistência – se for incluído na realidade, ele causa uma catástrofe. Em que sentido o objeto a, como quadro da realidade, é mais-gozar? Em relação ao cinema, pensemos na “produção de um casal”, tema que enquadra muitas narrativas hollywoodianas a respeito de um grande evento histórico, como uma guerra ou uma catástrofe natural; esse tema é literalmente o mais-gozar ideológico do filme. Embora apreciemos em sentido direto as tomadas espetaculares da catástrofe (a batalha, a inundação, o naufrágio...), o mais-gozar é fornecido pela subnarrativa sobre o casal, que cria um “quadro” para o evento espetacular – em Impacto profundo, o asteroide que se choca com a Terra materializa a raiva da filha diante do novo casamento do pai; em Reds, a Revolução de Outubro une os amantes; em Jurassic Park, os ferozes dinossauros materializam a rejeição agressiva da autoridade paterna e do cuidado da figura do pai etc. É esse quadro, mediante seu mais-gozar, que nos “suborna libidinosamente” a aceitar a ideologia da história. Um exemplo de subjetividade arruinada pela inclusão de uma catástrofe é fornecido pelo herói de Perfume (romance de Patrick Süskind e filme de Tom Tykwer)9. Lacan complementou a lista de objetos parciais de Freud (seios, fezes, pênis) com mais dois objetos: a voz e o olhar. Talvez devêssemos acrescentar mais um item a essa série: o cheiro. Perfume parece apontar nessa direção. Grenouille, o desafortunado herói do romance, é inodoro, os outros não podem sentir seu cheiro; mas ele próprio tem um olfato tão extraordinário que é capaz de detectar pessoas a grandes distâncias. Quando sua mulher ideal morre em um acidente, ele tenta recriar (não a mulher em sua existência corpórea, já que Perfume é um verdadeiro anti-Frankenstein, mas) o cheiro dela; para isso, mata 25 moças e raspa a pele delas para subtrair seus odores, misturando-os para criar o perfume ideal. Esse perfume ideal é o odore di femmina definitivo, a “essência” da feminilidade: os seres humanos comuns, sempre que o sentem, perdem toda a reserva racional e envolvem-se em uma orgia sexual. Assim, quase no fim do romance, quando Grenouille é preso pelos assassinatos e sentenciado à morte, basta que ele balance diante da multidão um lenço embebido no perfume e todos param imediatamente de gritar por sua morte e começam a se despir para participar de uma orgia. A essência da feminilidade é o que Lacan chamou de objet petit a, o objeto-causa do desejo, o que está “em você mais que você mesmo” e, desse modo, me leva a desejá-lo; é por isso que Grenouille tem de matar as virgens para extrair sua “essência”, ou, como diz Lacan: “Amo-te, mas há algo em ti que amo mais do que tu, o objet petit a, por isso te destruo”.
O destino de Grenouille é trágico, no entanto: por ser inodoro, ele é puro sujeito, sem um objeto-causa do desejo nele mesmo e, como tal, nunca desejado pelos outros. Com essa condição, ele ganha acesso direto ao objeto-causa do desejo: enquanto os indivíduos comuns desejam outras pessoas por causa da sedução do objeto a que há nelas, Grenouille tem acesso direto a esse objeto. Os indivíduos comuns só podem desejar na medida em que se tornam vítimas de uma ilusão: eles pensam que desejam outro indivíduo por causa da pessoa que o outro é; em outras palavras, eles não têm consciência de que seu desejo é causado pela “essência” ou pelo odor que não tem nada a ver com a pessoa como tal. Como Grenouille pode contornar a pessoa e ir direto ao objeto-causa do desejo, ele consegue evitar essa ilusão – e é por isso que, para ele, o erotismo é um jogo ridículo de seduções. O preço que ele paga por isso, no entanto, é o fato de nunca aceitar a ilusão inversa de que alguém o ama: ele está sempre ciente de que o que leva os outros a adorá-lo não é ele mesmo, mas seu perfume. A única maneira de sair dessa situação, a única maneira de se pôr como objeto do desejo dos outros é suicidar-se. Essa é a última cena do romance, quando ele joga perfume em si mesmo e é literalmente estraçalhado e devorado por um bando de ladrões, mendigos e prostitutas.
Essa violenta redução da coisa a seu objeto a não seria também um exemplo do que Badiou chama de subtração? Subtraímos da coisa seu núcleo descentralizado e deixamos seu corpo morto para trás. O oposto dessa subtração, e também uma maneira de gerar o objeto a, é a protração. Um exemplo disso é dado por uma das técnicas formais de Tarkovsky, que, dada sua origem soviética, ironicamente, só evoca a (mal-)afamada “lei” dialética da inversão da quantidade em qualidade, suplementando-a com uma espécie de “negação da negação” (excluída por Stalin da lista dessas “leis” por ser hegeliana demais, não devidamente “materialista”). Nas palavras de Sean Martin:
Tarkovsky sugeriu que, se uma tomada é prolongada, é natural que o público fique entediado. Mas se a tomada é mais prolongada ainda, surge outra coisa: a curiosidade. Tarkovsky sugere essencialmente que se dê tempo ao público para habitar o mundo que é mostrado pela tomada – não se trata de assistir, mas de olhar, explorar.10
Talvez o grande exemplo desse procedimento seja a famosa cena de O espelho, de Tarkovsky, em que a heroína, que trabalha como revisora em um jornal na União Soviética em meados da década de 1930, sai correndo para a redação com medo de ter deixado passar um erro tipográfico obsceno no nome de Stalin11. Martin está certo ao destacar uma característica inesperada dessa cena – sua beleza física imediata.
É como se Tarkovsky se contentasse em apenas ver [a atriz] Margarita Terekhova correr na chuva, descer as escadas, atravessar o pátio, percorrer os corredores. Aqui, Tarkovsky revela a presença da beleza em algo aparentemente mundano e, paradoxalmente (dada a época), potencialmente fatal para Maria, caso o erro que ela pensa ter deixado passar tivesse sido impresso.12
Esse efeito de beleza é gerado precisamente pela duração excessiva da cena: em vez de simplesmente vermos Maria correndo e, imersos na narrativa, nos preocupar se ela chegará a tempo de evitar a catástrofe, somos atraídos a observar a cena, a nos dar conta de suas características fenomenais, da intensidade dos movimentos e assim por diante. O filme 4 meses, 3 semanas e 2 dias (Romênia, 2007), de Cristian Mungiu, ambientado em 1987, nos últimos anos do governo de Nicolae Ceausescu, conta a história de Otilia e Gabita, duas universitárias que vivem em Bucareste. Quando Gabita engravida, Otilia marca um encontro com o sr. Bebe em um hotel, onde ele deverá fazer um aborto (abortos eram proibidos e severamente punidos na época). O pavoroso e repulsivo sr. Bebe (uma versão romena da figura de Javier Bardem em Onde os fracos não têm vez) exige favores sexuais de Otilia como pagamento pela operação. Otilia concorda para o bem da amiga, o aborto é feito, mas, no fim do filme, ela fica sozinha, porque perde o respeito da amiga por quem se sacrificou. Durante todo o filme, a ameaça de que o sr. Bebe fará algo terrível (matar Gabita, deixando-a sangrar até morrer etc.) permanece como pano de fundo; no entanto, a elegância do filme é tanta que essa ameaça é puramente virtual, nada acontece, tudo sai como o planejado e, no entanto, o resultado é um amargo desespero. A postergação interminável da ameaça de uma ação funciona de maneira semelhante à protração de Tarkovsky: ela eleva o sr. Bebe ao objeto a, a uma sublime figura do Mal.
Tarkovsky, no entanto, cede com demasiada frequência à tentação de reinserir esse excesso de fenomenalidade na hermenêutica. Recordemos aqui a diferença entre o clássico romance de ficção científica Solaris, de Stanislaw Lemb, e a versão para o cinema de Tarkovsky. Solaris é um planeta com uma superfície oceânica fluida que se movimenta continuamente e, de tempos em tempos, imita formas reconhecíveis, não só estruturas geométricas elaboradas, mas também crianças gigantescas ou construções humanas. Embora todas as tentativas de se comunicar com o planeta fracassem, os cientistas sustentam a hipótese de que Solaris é um cérebro maciço que, de alguma maneira, lê nossa mente. Logo depois de aterrissar lá, o herói Kelvin encontra a seu lado na cama sua falecida esposa, Harey, que havia se suicidado anos antes, depois de ter sido abandonada por ele. Kelvin entende que Harey é uma materialização de suas fantasias traumáticas mais profundas. Solaris, o Cérebro gigante, materializa as fantasias mais profundas que dão suporte a nosso desejo. Vista dessa maneira, a história trata da jornada interior do herói, sua tentativa de lidar com uma verdade reprimida ou, como o próprio Tarkovsky disse em uma entrevista: “De fato, a missão de Kelvin em Solaris talvez tivesse apenas um objetivo: mostrar que o amor do outro é indispensável para a vida de qualquer um. Um homem sem amor não é mais um homem”. Em um claro contraste, o romance de Lem concentra-se na presença externa inerte do planeta Solaris, dessa “Coisa que pensa” (para usar a expressão de Kant, que cabe perfeitamente aqui): o ponto principal do filme é precisamente que Solaris continua sendo um Outro impenetrável, com o qual a comunicação é impossível – sim, ele nos devolve nossas fantasias renegadas mais íntimas, mas continua totalmente impenetrável. (Por que faz isso? É uma resposta puramente mecânica? Para fazer um jogo demoníaco conosco? Para nos ajudar – ou nos convencer – a confrontar nossas verdades renegadas?) Seria interessante incluir o filme de Tarkovsky no mesmo segmento das releituras comerciais que Hollywood faz de romances que servem de base para seus filmes: Tarkovsky faz exatamente o mesmo que faria o mais ínfimo produtor de Hollywood, reinserindo o encontro com a Alteridade no quadro referencial da produção do casal.
No entanto, talvez haja uma ligação entre esses dois aspectos de Tarkovsky. De modo geral, na metafísica pré-crítica, a “finidade” era associada ao empirismo materialista (“somente os objetos materiais finitos realmente existem”), enquanto a “infinidade” era o domínio do espiritualismo idealista. Em uma reversão inesperada, hoje, o principal argumento para o espiritualismo baseia-se na irredutibilidade da finitude humana como horizonte intransponível de nossa existência, enquanto as formas contemporâneas do materialismo científico radial mantêm vivo o espírito da infinidade. O argumento usual do espiritualismo é o seguinte: não deveríamos esquecer que o sonho tecnológico de controle total sobre a natureza não passa de um sonho, que nós, seres humanos, continuamos para sempre fundados em nosso mundo finito, com seu imperscrutável pano de fundo, e que é essa finitude, a própria limitação de nosso horizonte, que abre espaço para a espiritualidade propriamente dita. Assim, paradoxalmente, todas as formas atuais de espiritualidade enfatizam que nós não somos espíritos livres e flutuantes, mas estamos irredutivelmente incorporados em um mundo vivido material; todas pregam o respeito por essa limitação e nos alertam sobre a arrogância “idealista” do materialismo radical – podemos citar como exemplo o caso da ecologia. Em contraste com a atitude espiritualista da limitação, a atitude científica radical que reduz o homem a um mecanismo biológico promete o controle tecnológico total sobre a vida humana, sua recriação artificial, sua regulação biogenética e bioquímica e, por fim, sua imortalidade na forma da redução do nosso Si interior a um programa de computador que pode ser copiado de um dispositivo para outro. A base científica da afirmação de que a imortalidade é factível reside na hipótese da chamada “independência de substrato”: “mentes conscientes poderiam em princípio ser implantadas não só em neurônios biológicos a base de carbono (como os que estão em nossa cabeça), mas também em algum outro substrato computacional, como os processadores a base de silicone”13.
A terceira figura do objeto a, depois da subtração e da protração, é a obstrução: o objeto a enquanto agente da Astúcia da Razão, o obstáculo que sempre perturba a realização de nossos objetivos. Outro exemplo do cinema: o foco libidinal de Onde os fracos não têm vez, dirigido pelos irmãos Coen, é a figura do assassino patológico representado por Javier Bardem – uma implacável máquina de matar, com uma ética toda própria, fiel à própria palavra, uma figura daquilo que Kant chamaria de Mal diabólico. No fim do filme, quando ele obriga a esposa do herói a escolher cara ou coroa para decidir se vai viver ou morrer, ela retruca que ele não deveria se esconder por trás da contingência de um jogo de cara ou coroa – é a vontade dele que decidirá matá-la. Ele responde que ela não entendeu: ele, a vontade dele, é como a moeda. A chave desse personagem é o fato de que ele representa não uma pessoa da vida real, mas um ente da fantasia, uma encarnação do puro objeto-obstáculo, o “X” imperscrutável do Destino Cego que sempre, em uma bizarra mistura de acaso e necessidade inexorável, intervém para destruir a realização dos planos e intenções do sujeito, garantindo que, de um modo ou de outro, as coisas sempre deem errado.
O personagem de Bardem, portanto, é o oposto do resignado xerife (Tommy Lee Jones), que está sempre reclamando da louca violência dos tempos modernos – é a ele que o título do filme se refere. Eles são o anverso um do outro: o xerife como o Mestre agora impotente, o fracasso da autoridade paternal; a figura de Bardem como a incorporação da causa de seu colapso. Assim, a maneira apropriada de interpretarmos Onde os fracos não têm vez é imaginando, em primeiro lugar, a mesma história sem a figura de Bardem: apenas o triângulo formado pelo herói, que foge com o dinheiro depois de topar por acaso com o local do tiroteio dos gângsteres, pelos gângsteres, que contratam um freelancer (Woody Harrelson) para recuperar o dinheiro, e pelo xerife, que observa essa interação de uma distância segura, jogando uns contra os outros e garantindo um resultado feliz (ou ao menos justo). A figura de Bardem é o quarto elemento, o objeto a que arruína o jogo.
Outra maneira de colocar a questão é que o objeto a evita que a carta chegue ao destinatário. Mas será que evita mesmo? Não há em ação aqui uma Astúcia da Razão, tanto que o próprio fracasso em chegar ao nosso destino nos convence a mudar nossa perspectiva e redefinir nosso destino? O prêmio Darwin 2001 para o ato mais estúpido do ano foi conferido postumamente a uma desafortunada romena que acordou no meio de seu cortejo fúnebre; depois de se arrastar para fora do caixão e perceber o que estava acontecendo, ela saiu correndo apavorada e, ao atravessar uma rua movimentada, foi atingida por um caminhão e morreu na hora – assim, foi colocada de volta no caixão e o cortejo prosseguiu. Não seria esse o maior exemplo do que chamamos de destino – de uma carta que chega a seu destinatário?
O destino do “testamento” de Nikolai Bukharin, uma carta escrita para sua esposa, Anna Larina, em 1938, às vésperas de sua execução, é um caso trágico da mesma coisa. Bukharin exorta a esposa a “lembrar-se de que a grande causa da URSS ainda vive, e isso é o mais importante. Os destinos pessoais são transitórios e miseráveis, em comparação”14. A carta desapareceu nos arquivos secretos soviéticos e só foi entregue a Anna Larina em 1992 – ela só pôde ler a carta depois da queda da União Soviética. A carta de Bukharin chegou ao seu destino – ao seu destinatário – no momento certo; podemos dizer até que ela foi entregue tão logo foi possível, ou seja, quando a situação histórica possibilitou que a entrega produzisse um efeito de verdade. Bukharin considerava seu destino pessoal insignificante em comparação com o sucesso da grande causa histórica da URSS – a continuidade dessa causa garantiu que sua morte não fosse insignificante. Lida depois do fim da URSS, a carta nos coloca diante da insignificância da morte de Bukharin: não há um grande Outro para redimi-lo, ele morreu literalmente em vão.
A lição geral é que, para interpretarmos uma cena ou uma enunciação, às vezes o principal é localizar o verdadeiro destinatário. Em um dos melhores romances de Perry Mason, o advogado assiste ao interrogatório de um casal em que o marido explica, com uma riqueza incomum de detalhes, o que aconteceu, o que viu e o que pensa ter acontecido. Por que esse excesso de informação? A resposta é que o próprio casal cometeu o assassinato e, como o marido sabia que em breve eles seriam presos como suspeitos e mantidos separados, ele aproveitou a oportunidade para contar à esposa a história (falsa) a que ambos deveriam se prender – o verdadeiro destinatário do discurso interminável não era a polícia, mas a mulher.
Subtração, protração, obstrução: três versões do mesmo objeto excessivo/faltoso, um objeto que nunca está em seu devido lugar, ausentando-se sempre e excedendo-o. Encontramos todas essas três dimensões do objeto a na estrutura formal do próprio capitalismo: subtração (da mais-valia enquanto movens de todo o processo); protração (o processo capitalista é interminável por definição, pois seu principal objetivo é a reprodução do próprio processo); e obstrução. A lacuna entre a experiência subjetiva (dos indivíduos perseguindo seus interesses) e os mecanismos sociais objetivos (que aparecem como um Destino incontrolável e “irracional”) está inscrita na própria noção de capitalismo e, por conta dessa lacuna, há sempre a ameaça de que os planos e as intenções dos indivíduos sejam sabotados, impedidos. É nessa lacuna que devemos situar a violência sistêmica própria do capitalismo.
Aos três modos como o objeto a distorce a realidade ao inseri-la em si mesmo, devemos acrescentar um quarto: a destruição. O que acontece no caso de um sujeito pós-traumático não é a destruição do objeto a? É por isso que tal sujeito é destituído da existência engajada e reduzido ao estado “vegetativo” da indiferença. No entanto, devemos ter em mente que essa destruição também leva à perda da própria realidade, é sustentada pelo objeto a – quando é destituído do excesso, o sujeito perde de vez aquilo com relação a que o excesso é excesso. É por isso que os “muçulmanos”, os “mortos vivos” dos campos de concentração, eram reduzidos à “vida nua” e representavam ao mesmo tempo o puro excesso (a forma vazia), que permanece quando todo o conteúdo da vida humana é tirado do sujeito. Para entender de modo apropriado a dimensão histórico-mundial do sujeito pós-traumático, devemos reconhecer nessa forma extrema de subjetividade a efetivação de uma possibilidade que se anuncia no cogito cartesiano: a dessubstancialização do sujeito, isto é, sua redução ao ponto evanescente do “eu penso”, não é a mesma operação que dá origem ao cogito? Como tal, o cogito – o sujeito moderno, ou melhor, o sujeito da modernidade – não deveria ser descartado com tanta pressa como um “eurocêntrico”. Podemos argumentar que o cogito representa um tipo de excesso não histórico que serve de base e sustentação para toda forma de vida histórica.
Esses paradoxos indicam que, no objeto a, forma e conteúdo coincidem: o objeto a é o “resto indivisível” que escapa à forma simbólica e, ao mesmo tempo, a pura forma, uma distorção puramente formal do conteúdo (protração etc.). Mais precisamente, essa oscilação do objeto a entre forma e conteúdo envolve quatro reversões dialéticas consecutivas, em uma espécie de negação complexa da negação. É sintomático que, quando Lacan e seus seguidores descrevem um processo que tenha uma estrutura clara de “negação da negação”, eles se apressem quase compulsivamente a acrescentar que isso não tem sentido hegeliano – não seria esse um mecanismo de defesa por excelência, a negação de uma proximidade desconfortável? Como fica, então, a “negação da negação” em Lacan? Sua versão é compatível com a de Hegel? Posto que em Lacan, em aparente contradição com Hegel, o duplo movimento da “negação da negação” produz um excesso ou resto, o do objeto a, comecemos com Miller, que, em um comentário ao Seminário XVI, introduziu uma mudança fundamental na condição do objet petit a, o objeto-causa do desejo: a passagem da amostra corporal (objeto parcial: seios, fezes...) a pura função lógica. Em seu seminário, “Lacan não descreve os objetos a como extrações corporais, mas os constrói como uma consistência lógica, a lógica vindo no lugar da biologia. A consistência lógica é como uma função que o corpo deve satisfazer através de diferentes extrações corporais”15.
Essa passagem é a do intruso estrangeiro, os grãos de areia na máquina significante que evita seu funcionamento fluido, a algo que é totalmente imanente à máquina. Quando Lacan descreve os circuitos e as viradas do espaço simbólico por conta das quais sua interioridade se sobrepõe a sua exterioridade (“ex-timidade”), ele não descreve apenas o lugar estrutural do objeto a (mais-gozar): o mais-gozar não é nada mais que essa mesma estrutura, esse “circuito interior” do espaço simbólico. Isso pode ser esclarecido em relação à lacuna que separa a pulsão do instinto: embora a pulsão e o destino tenham o mesmo “objeto”, o mesmo alvo, o que os diferencia é que a pulsão se satisfaz não por atingir seu alvo, mas por circundá-lo, repetindo o fracasso de atingi-lo. Podemos dizer, é claro, que o que impede a pulsão de atingir seu objetivo é o objeto a, que é descentralizado com relação a ela, de modo que, mesmo que o alvo seja atingido, o objeto nos escapa e somos obrigados a repetir o processo; no entanto, esse objeto a é puramente formal, é a curvatura do espaço da pulsão – por isso o “caminho mais curto” para atingir o objeto não é mirá-lo como alvo, mas circundá-lo, rodeá-lo.
Essa passagem é profundamente hegeliana e cria uma espécie de “negação da negação”: começamos com o consistente “grande Outro”, a ordem simbólica fechada em si mesma; depois, na primeira negação, essa consistência é perturbada pelo resto do Real, uma sobra traumática que persiste em não ser integrada ao simbólico e, com isso, perturba seu equilíbrio, tornando-a “barrada”, introduzindo nela uma lacuna, uma falha ou um antagonismo, em suma, a inconsistência; a segunda negação, entretanto, requer uma mudança de perspectiva em que apreendemos essa sobra intrusiva do Real como o único elemento que garante a mínima consistência do inconsistente grande Outro. Tomemos como exemplo a lógica da luta de classes: ela torna a sociedade “inconsistente”, antagônica, e perturba seu equilíbrio; contudo, ela é também o que mantém unido todo o corpo social, seu princípio estruturador subjacente, posto que todos os fenômenos são sobredeterminados pela luta de classes. Em um nível mais prosaico, não é a própria luta de classes, uma tensão básica, que em geral mantém unidos elementos diferentes? Quando a luta desaparece, os elementos se separam em uma coexistência estéril e indiferente. Do mesmo modo, embora o trauma seja o que perturba o equilíbrio do espaço simbólico do sujeito, ele é ao mesmo tempo o derradeiro ponto de referência da vida psíquica do sujeito – toda a sua atividade simbolizante visa, em última instância, lutar com o trauma, reprimi-lo, deslocá-lo etc.
E ainda há mais: não só o elemento intruso “mantém unido” o grande Outro, que na ausência dele se desintegraria, como esse elemento, o objeto a, não tem realidade objetal positiva, sua condição é puramente a condição da consistência lógica: ele é logicamente implícito, pressuposto, como a causa das inconsistências do/no grande Outro, isto é, só pode ser percebido retroativamente, mediante seus efeitos. Pensemos em um atrator na matemática: todas as linhas ou pontos positivos em sua esfera de atração só podem se aproximar dele indefinidamente, sem nunca atingir de fato sua forma – a existência dessa forma é puramente virtual, não é senão a forma para onde tendem as linhas e os pontos. Contudo, exatamente como tal, a forma virtual é o Real desse campo: o centro imóvel em volta do qual circulam todos os elementos.
Assim, a lógica hegeliana dessas viradas pode ser representada de maneira ainda mais precisa: não há apenas três momentos em ação aqui, mas quatro. Primeiro, a consistência do grande Outro; segundo, o grande Outro feito inconsistente pelo objeto a enquanto resto intrusivo; terceiro, esse objeto como garantidor da “consistência” do grande Outro (múltiplas simbolizações inconsistentes só podem ser “totalizadas” enquanto uma rede de reações ao objeto intruso); e, por fim, voltamos ao princípio, embora em um nível diferente – não há nenhum objeto que, de fora, perturbe a consistência do grande Outro; o objeto a enquanto “Real” é apenas um nome para a virada puramente formal, o circuito interno, da própria ordem simbólica.
Na medida em que carece de imagem especular, seria então o objeto a o objeto vampírico (vampiros, como sabemos, não são refletidos em espelhos)? Parece que sim: os vampiros não são versões da lamela, do objeto parcial não morto? No entanto, talvez o oposto é que seja apropriado como imagem do objeto a: quando observamos uma coisa diretamente, nós não vemos “isso” – esse “isso” só aparece quando olhamos para a imagem refletida da coisa, como se houvesse algo mais do que na realidade, como se somente a imagem refletida pudesse revelar o elemento misterioso que procuramos em vão na realidade do objeto. Em termos deleuzianos, a imagem refletida dessubstancializa a coisa, privando-a de sua densidade e profundidade, reduzindo-a a uma superfície plana, e é somente por meio dessa redução que o objeto a puramente não substancial torna-se perceptível16.
Talvez essa dupla condição do objeto a também forneça uma pista para a relação entre a pulsão de morte e o supereu. Há algum tempo, Eric Santner apresentou uma questão crítica a respeito de minha obra:
O elo, algumas vezes até mesmo a identidade [...] entre o órgão sem corpo e o supereu. Devemos simplesmente colapsar o supereu e a pulsão de morte dessa maneira? Tudo não depende de manter pelo menos uma linha tênue entre eles? Não deveríamos falar de uma superegoização da pulsão?17
Como frisa Santner, lidamos aqui com uma cisão paraláctica, não com a polaridade cósmica de duas forças opostas: o órgão sem um corpo e o supereu não são como yin e yang ou os princípios de luz e escuridão. Além disso, a tensão em questão é assimétrica, os dois polos não estão equilibrados, o aspecto do órgão sem corpo (OsC) tem prioridade de certa maneira – mas que tipo de prioridade? Não lidamos aqui com mais um caso de lógica da autoalienação, em ação desde Marx e Nietzsche até Deleuze, de um poder de gênese que pouco se reconhece em seu próprio produto; em outras palavras, da mesma maneira que, para Marx, o capitalismo é o resultado do trabalho coletivo voltado contra si próprio, sua própria origem, ou, para Nietzsche, o ressentimento moral é a produtividade da vida voltada contra si mesma, o excesso do supereu é o excesso do OsC voltado contra si próprio. Interpretada dessa maneira, a tarefa torna-se a de retornar o resultado alienado para sua origem, reestabelecendo o excesso de OsC sem a distorção do supereu. Isso, no entanto, é a mesma lógica que deveríamos evitar a todo custo18.
Podemos dar um passo adiante e ligar essa dualidade entre supereu e pulsão à dualidade na condição do objeto a: pois não seria o “supereu”, como nome do excesso da pulsão, o objeto em seu aspecto de realidade material, o intruso estrangeiro que “me enlouquece” com seus pedidos impossíveis, e não seria o OsC o objeto em seu aspecto de estrutura puramente formal? Os dois aspectos têm a mesma estrutura autopropulsora de um circuito: quanto mais obedece ao supereu, mais culpado se sente o sujeito, mais se prende a um movimento repetitivo homólogo ao da pulsão que circula seu objeto. A passagem do primeiro para o segundo aspecto é estruturalmente similar à da piada de Rabinovitch, ou do problema que é sua própria solução: o que, no nível do supereu, surge como um impasse (quanto mais obedeço, mais me sinto culpado...) transforma-se em sua própria fonte de satisfação (que não é o objeto da pulsão, mas a atividade de circundá-lo repetidamente)19.
Assim, de volta aos dois aspectos do objeto a (sua realidade corporal e sua consistência lógica): por mais que sejam antinômicas, elas se encaixam – mas como exatamente? A primeira formulação de Miller é a de um buraco (espaço vazio) e o elemento contingente que o preenche: “O pequeno a, quando designado como estrutura topológica e como consistência lógica, tem, se assim posso dizer, a substância do furo e, em seguida, são as peças avulsas do corpo que vêm se moldar nessa ausência”20. Essa formulação, no entanto, parece demasiado simples. O paradoxo de um objeto que só “é” a sua estrutura formal não desaparece? De que maneira devemos realizar a passagem que, nos termos dos mestres clássicos, poderíamos chamar de passagem do materialismo metafísico/mecânico para o materialismo dialético? Em Lógica do sentido, ao mostrar que as duas séries (do significante e do significado) contêm sempre uma entidade paradoxal que é “duplamente inscrita” (ou seja, simultaneamente excesso e falta), Deleuze apresenta um modelo que nos permite apreender a mediação de forma e conteúdo: um excesso do significante em relação ao significado (o significante vazio sem significado) e a falta do significado (o ponto sem sentido dentro do campo do Sentido). Em outras palavras, tão logo surge a ordem simbólica, introduz-se uma diferença mínima entre um lugar estrutural e o elemento que ocupa ou completa esse lugar: um elemento é sempre precedido, em termos lógicos, pelo lugar na estrutura que ele completa. As duas séries, portanto, também podem ser descritas como a estrutura formal “vazia” (significante) e a série de elementos que completam os espaços vazios na estrutura (significado). Dessa perspectiva, o paradoxo consiste no fato de que as duas séries nunca se sobrepõem: sempre encontramos um ente que é ao mesmo tempo (com respeito à estrutura) um lugar vazio, inocupado, e (com respeito aos elementos) um objeto esquivo, que se move rapidamente, um ocupante sem lugar. Dessa forma, produzimos a fórmula lacaniana da fantasia $-a, posto que o matema para sujeito é $, um lugar vazio na estrutura, um significante elidido, enquanto o objeto a é, por definição, um objeto excessivo, um objeto que carece de um lugar na estrutura. Por conseguinte, a questão não é simplesmente que existe o excesso de um elemento em relação aos lugares disponíveis na estrutura, ou o excesso de um lugar que não tem nenhum elemento para completá-lo. Um lugar vazio na estrutura ainda sustentaria a fantasia de um elemento que surgirá para preencher o lugar; um elemento excessivo que carece de lugar ainda sustentaria a fantasia de um lugar ainda desconhecido, à espera de ser preenchido. A questão é antes que o lugar vazio na estrutura é estritamente correlato ao elemento errante que carece de lugar: não se trata de dois entes diferentes, mas do mesmo ente inscrito nas duas superfícies de uma fita de Möbius. Em suma, o sujeito como $ não pertence às profundezas: ele surge de uma virada topológica da própria superfície. O próprio Miller não aponta nessa direção um pouco mais adiante, no mesmo texto?
Quando Lacan fala de um buraco no nível do grande Outro, ele diz que o buraco não é falta, mas o que permite, ao contrário, nas elucubrações lógicas de Lacan, o círculo interior do Outro ser considerado como combinado ao círculo mais exterior, quase como sua inversão. Lacan diz de passagem que é a própria estrutura do objeto a, ou melhor, que o objeto a é essa estrutura em que o mais interior combina-se ao mais exterior na sua virada.21
O “ou melhor” tem de ser lido com todo o seu peso: da estrutura do objeto ao objeto estranho que não é nada mais que essa estrutura, sua identidade substancial é meramente um espectro reificado. Esse objeto “é” o sujeito, o correlato objetal impossível/Real do sujeito. Essa correlação esquisita subverte a correlação transcendental comum entre sujeito e objeto: nela, o sujeito é correlacionado com o próprio objeto impossível/Real, que tem de ser excluído do campo da realidade para que o sujeito possa se relacionar com esse campo. Com o intuito de delinear esse caráter único do objeto a como a encarnação de um vazio, da falta ou perda do objeto primordial que só pode surgir como sempre-já perdido, Lacan o opõe a duas outras figuras do nada, o nada da destruição e a negatividade hegeliana que é a “nulificação” constitutiva da subjetividade, o nada como momento inicial na instauração do sujeito. Em contraste com essas duas versões, ele relaciona o objeto a ao que Kant chamou de der Gegenstand ohne Begriff, o objeto sem conceito (não coberto por nenhum conceito). O objeto a é, como tal, “irracional”, no sentido absolutamente literal de estar fora de toda razão, de toda relação enquanto proporção. Em outras palavras, quando um elemento particular resiste a ser suprassumido sob um conceito universal, o objeto a, “o que está em ti mais do que tu mesmo”, é justamente aquele je ne sais quoi que evita essa suprassunção.
Aqui, no entanto, devemos persistir como hegelianos consistentes e resistir à tentação empirista: o fato de que a afirmação da existência de um elemento particular vai contra o conceito universal que supostamente cobre ou contém esse elemento não deveria ser descartado como um caso de riqueza do conteúdo particular que sobrepuja os arcabouços conceituais abstratos. O excesso empírico seria interpretado de forma mais precisa como um indício da falha ou inconsistência inerente do próprio conceito universal. Assim, quando Lacan diz que “somente com o discurso analítico um universal pode encontrar seu verdadeiro fundamento na existência de uma exceção, e por esse motivo é certo que podemos distinguir, em qualquer caso, o universal que é fundamentado desse modo a partir de todo uso desse mesmo universal feito comum pela tradição filosófica”22, ele (como sempre) ignora a unicidade da “universalidade concreta” hegeliana. Arriscamos aqui um exemplo político. Quando, para dar esperanças à esquerda radical, certos intelectuais dizem que, de fato, existe hoje um agente emancipatório autêntico (em geral distante, no Haiti, na Venezuela ou no Nepal...), essa afirmação triunfante (“Veja bem, não estamos sonhando, está em ação um processo revolucionário autêntico!”) serve justamente como um fetiche que nos permite evitar o confronto com a impropriedade do conceito geral de ação radical emancipatória para a luta global de hoje. Isso significa que, na oposição entre conceito e realidade (existência real), o objeto a está do lado do conceito: ele não é o excesso da realidade, mas um buraco ou uma rachadura imanente no edifício conceitual.
Portanto, o objeto a não é o núcleo da realidade que resiste à suprassunção pelo quadro conceitual imposto pelo sujeito; ele é, ao contrário, a objetificação do desejo do sujeito: a condição daquilo que me faz desejar um objeto está ligada irredutivelmente a minha perspectiva “subjetiva”, não se trata apenas de uma propriedade objetiva do ser amado – aquele X que me fascina no ser amado só existe para mim, não para uma visão “objetiva”. Podemos dar ainda mais um passo e argumentar que a mediação subjetiva aqui é dupla: longe de simplesmente representar o excesso no objeto que escapa à apreensão do sujeito, o objeto a é, em sua forma mais elementar, o que vejo no olhar do outro. Em outras palavras, o que me escapa em um objeto libidinal não é uma propriedade transcendente, mas a inscrição de meu próprio desejo no objeto: o que vejo no outro é o desejo do outro por mim, ou seja, leio nos olhos do outro minha própria condição enquanto objeto (de desejo), o modo como apareço para o outro.
Isso nos leva à condição paradoxal da voz e do olhar, o paradigmático objeto a na teoria de Lacan. Como vimos, a voz e o olhar são dois objetos acrescentados por Lacan à lista de Freud dos “objetos parciais” (seios, fezes, falo). Como objetos, eles não estão do lado do sujeito que vê/escuta, mas do lado do que o sujeito vê ou escuta. Recordemos aqui a cena arquetípica de Hitchcock: a heroína (Lilah em Psicose ou Melanie em Os pássaros) aproxima-se de uma casa misteriosa e aparentemente vazia; ela olha para a casa, mas o que torna a cena tão perturbadora é o fato de que nós, espectadores, temos a vaga impressão de que de certo modo a casa devolve o olhar. O ponto crucial, é claro, é que esse olhar não deveria ser subjetivado: não se trata simplesmente de “há alguém na casa”; ao contrário, estamos lidando com uma espécie de vazio, um olhar a priori cuja origem não pode ser atribuída a uma realidade determinada – a heroína “não pode ver tudo”, há um ponto cego naquilo que ela olha, e o objeto retorna seu olhar a partir desse ponto cego. A situação é homóloga com a voz: é como se, quando falamos o que quer que digamos seja uma resposta a uma abordagem primordial do Outro – somos sempre-já abordados e, outra vez, esse abordar é vazio, não pode ser atribuído a um agente específico, mas é uma espécie de vazio a priori, a “condição de possibilidade” formal da nossa fala, assim como o objeto que retorna o olhar é uma espécie de “condição de possibilidade” formal da nossa visão de absolutamente tudo. O que acontece na psicose é que esse ponto vazio no outro, no que vemos e/ou ouvimos, é efetivado, torna-se parte de uma realidade efetiva: o psicótico ouve de fato a voz do Outro primordial dirigindo-se a ele, sabe que está sendo observado o tempo todo. De modo geral, a psicose é concebida como uma forma de falta no que se refere ao estado de coisas “normal”: algo está ausente, o significante-chave (a “metáfora paternal”) é rejeitado, forcluído, excluído do universo simbólico, e retorna no Real sob a forma de aparições psicóticas. No entanto, não devemos nos esquecer do anverso dessa exclusão: a inclusão. Lacan afirmou que a consistência de nossa “experiência da realidade” depende de excluir dela o objeto a: para que tenhamos um “acesso normal à realidade”, algo deve ser excluído, “primordialmente reprimido”. Na psicose, essa exclusão é inacabada: o objeto (nesse caso, o olhar ou a voz) é incluído na realidade, e o resultado é a desintegração do “senso de realidade”, a perda da realidade23.
François Balmès24 chama a atenção para a ambiguidade radical no modo como o Lacan da década de 1950 define a relação entre o Real, o simbólico e a falta: ele oscila entre a tese de que o simbólico introduz a falta-de-ser no Real – não há falta antes do advento do simbólico, apenas uma positividade rasa do Real – e a tese de que o ser surge apenas com o simbólico – não há ser anterior ao do simbólico. Confrontados com essa ambiguidade, devemos ser sábios o bastante para evitar a facílima solução heideggeriana de que estamos simplesmente lidando com dois significados diferentes de “ser”: “Ser” no sentido ontológico da abertura na qual as coisas aparecem, e “ser” no sentido ôntico da realidade, dos entes que existem no mundo (o que surge com o simbólico é o horizonte ontológico do Ser, ao passo que seu anverso é a falta-de-ser, isto é, o fato de o ser humano enquanto aí-do-Ser (Dasein) carecer do lugar na ordem positiva da realidade – de não poder ser reduzido a um ente no mundo – pois ela é o lugar da própria abertura de um mundo). Balmès busca a solução ao longo de um caminho totalmente diferente: ele nota com grande discernimento que Lacan resolve o problema, “criando uma resposta tirada da questão”25, ao perceber a questão como sua própria resposta. Ou seja, o ser e a falta-de-ser coincidem, são dois lados da mesma moeda – o claro no horizonte em que as coisas “são” plenamente só surge se algo for excluído (“sacrificado”) dele, se alguma coisa estiver “faltando em seu lugar apropriado”. Mais precisamente, o que caracteriza um universo simbólico é a lacuna mínima entre seus elementos e os lugares que eles ocupam: as duas dimensões não coincidem totalmente, como no caso da positividade rasa do Real, e é por isso que, na ordem diferencial dos significantes, a ausência enquanto tal pode ser tomada como característica positiva. Isso nos leva de volta à hipótese “ontológica” básica de Lacan: para que essa lacuna entre os elementos e seus lugares estruturais aconteça, algo – algum elemento – tem de ser radicalmente (constitutivamente) excluído; o nome dado por Lacan a esse objeto que está sempre (por definição, estruturalmente) ausente em seu próprio lugar e coincide com a própria falta é, obviamente, o “objeto pequeno a”, o objeto-causa do desejo ou do mais-gozar, o objeto paradoxal que dá corpo à própria falta-de-ser. O “objeto pequeno a” é o que deveria ser excluído do arcabouço da realidade, aquilo cuja exclusão constitui e sustenta o próprio arcabouço. E, como acabamos de ver, o que acontece na psicose é exatamente a inclusão desse objeto no arcabouço da realidade: ele aparece dentro da realidade na forma de objeto alucinado (a voz ou o olhar que assombra um paranoico etc.)26.
É possível conceber essa tensão entre o objeto a e o arcabouço da realidade no nível da relação entre as próprias dimensões visual e auditiva, de modo que a própria voz funcione como o objeto a do visual, ou seja, como ponto cego a partir do qual o quadro devolve o olhar? Essa parece ser a lição dos filmes falados. Ou seja, o efeito de acrescentar uma trilha de fala a um filme mudo foi o exato oposto da esperada “naturalização”, de uma imitação da vida ainda mais “realista”. O que aconteceu desde os primórdios do cinema falado foi a estranha autonomização da voz, batizada por Chion de “acousmatisation”27: o surgimento de uma voz que nem está ligada a um objeto (uma pessoa) dentro da realidade diegética nem é simplesmente a voz de um comentador externo, mas uma voz espectral que flutua livremente em um misterioso domínio intermediário e, desse modo, adquire a dimensão horripilante da onipresença e da onipotência, a voz de um Mestre invisível – de O testamento do dr. Mabuse, de Fritz Lang, à “voz da mãe” em Psicose, de Hitchcock. Na cena final de Psicose, a “voz da mãe” abre literalmente um buraco na realidade visual: a imagem na tela torna-se uma superfície ilusória, um encanto dominado secretamente pela voz incorpórea de um Mestre invisível ou ausente, uma voz que não pode ser atribuída a nenhum objeto na realidade diagética – como se o verdadeiro sujeito da enunciação da voz da mãe de Norman fosse a própria morte, a caveira que vemos por um breve instante, quando o rosto de Norman desaparece pouco a pouco da tela.
Em Estética, Hegel menciona uma estátua egípcia sagrada que todos os dias, ao pôr do sol, como que por milagre, emitia um som profundamente reverberante. Esse som misterioso, que ressoa dentro de um objeto inanimado, é uma boa metáfora para o nascimento da subjetividade. No entanto, devemos ter cuidado para não perder a tensão, o antagonismo entre o grito silente e o tom vibrante, o momento em que o grito silente ressoa. A verdadeira voz-objeto é muda, fica “presa na garganta”, e o que de fato reverbera é o vazio: a ressonância sempre acontece em um vácuo – o tom como tal é originalmente o lamento pelo objeto perdido. O objeto está lá enquanto o som permanece silente; no momento em que ressoa, no momento em que “transborda”, o objeto é evacuado e essa vacuidade dá origem ao $, o sujeito barrado que lamenta a perda do objeto. É claro que esse lamento é profundamente ambíguo: o maior horror seria o horror de uma voz-objeto aproximando-se demais de nós, de modo que a reverberação da voz fosse ao mesmo tempo uma conjuração destinada a manter o objeto-voz a uma distância adequada. Agora podemos responder a esta questão muito simples: “Por que ouvimos música?”. Para evitar o horror do encontro com a voz enquanto objeto. O que Rilke disse sobre a beleza vale também para a música: ela é um encanto, uma tela, a última cortina que nos protege do confronto direto com o horror do objeto (vocal). Quando a intricada tapeçaria musical se desintegra ou se desfalece em um grito puro e desarticulado, nós enfrentamos a voz enquanto objeto. Nesse sentido preciso, como afirma Lacan, voz e silêncio se relacionam como figura e fundo: o silêncio não é (como poderíamos pensar) o fundo contra o qual surge a figura de uma voz; ao contrário, o próprio som reverberante fornece o fundo que torna visível a figura do silêncio. Assim chegamos à fórmula da relação entre voz e imagem: a voz não persiste simplesmente em um nível diferente com relação ao que vemos; antes, ela aponta para uma lacuna no campo do visível, para a dimensão do que escapa ao nosso olhar. Em outras palavras, essa relação é mediada por uma impossibilidade: em última análise, ouvimos as coisas porque não podemos ver tudo28.
O próximo passo é reverter a lógica da Voz como preenchimento da lacuna constitutiva do corpo: o anverso da Voz que dá corpo ao que nunca podemos ver, ao que escapa ao nosso olhar, é uma imagem que torna presente o fracasso da voz – uma imagem pode surgir como lugar-tenente para um som que ainda não ressoa, mas permanece preso na garganta. O grito, de Munch, por exemplo, é silente por definição: diante dessa pintura, nós “ouvimos (o grito) com os olhos”. No entanto, o paralelo aqui não é perfeito: ver o que não podemos ouvir não é o mesmo que ouvir o que não podemos ver. Voz e olhar relacionam-se um com o outro como vida e morte: a voz vivifica, ao passo que o olhar mortifica. Por essa razão, “ouvir-se falar” (s’entendre parler), como demonstrou Derrida, é o próprio âmago, a matriz fundamental, de experimentar-se como ser vivente, ao passo que sua correspondente na esfera do olhar, “ver-se olhar” (se voir voyant) representa inequivocamente a morte: quando o olhar como objeto não é mais o ponto cego esquivo no campo do visível, mas é incluído nesse campo, encontramos a própria morte. Basta lembrarmos que no estranho encontro com o duplo (Doppelgänger) o que escapa ao nosso olhar é sempre os olhos dele: estranhamente, o duplo parece sempre olhar de lado, nunca devolve nosso olhar olhando direto em nossos olhos – no momento em que o fizesse, nossa vida acabaria29.
Foi Schopenhauer quem afirmou que a música nos põe em contato com a Ding an sich: ela exprime diretamente a pulsão da substância vital, algo que as palavras só podem significar. Por essa razão, a música “captura” o sujeito no Real de seu ser, contornando o desvio de sentido: na música, ouvimos o que não podemos ver, a força vital vibrante por trás do fluxo da Vorstellung. Mas o que acontece quando esse fluxo da substância vital é suspenso, descontinuado? Aqui, surge uma imagem, uma imagem que representa a morte absoluta, a morte além do ciclo de morte e renascimento, corrupção e geração. Muito mais horripilante do que ver com nossos olhos – ouvir a vibrante substância vital além da representação visual, esse ponto cego no campo do visível – é ouvir com nossos olhos, ver o silêncio absoluto que marca a suspensão da vida, como na Medusa, de Caravaggio: o grito da Medusa não é silente por definição, “preso na garganta”, e essa pintura não nos dá uma imagem do momento em que a voz falha?30
Contra esse pano de fundo do “ouvir o que não se pode ver” e “ver o que não se pode ouvir”, é possível delinear o lugar ilusório da “metafísica da presença”. Retornemos por um momento à diferença entre “ouvir-se falar” e “ver-se olhar”: somente o segundo caso envolve a reflexão propriamente dita, isto é, o ato de reconhecer-se em uma imagem (externa); no primeiro, lidamos com a ilusão de uma autoafecção imediata, que impede até a mínima distância de si mesmo implícita na noção do reconhecimento de si na imagem refletida. Em contraste com Derrida, somos tentados a dizer que a ilusão fundadora da metafísica da presença não é apenas a ilusão do “ouvir-se falar”, mas uma espécie de curto-circuito entre “ouvir-se falar” e “ver-se olhar”: um “ver-se olhar” no modo de “ouvir-se falar”, um olhar que recupera a imediatez da autoafecção vocal. Em outras palavras, devemos sempre nos lembrar de que, a partir da theoria de Platão, a metafísica baseia-se na predominância do olhar; assim, como devemos combinar isso com o “ouvir-se falar”? A “metafísica” reside justamente na noção de um olhar que espelha a si mesmo, anula a distância da reflexão e atinge a imediatez do “ouvir-se falar”. Em outras palavras, a “metafísica” representa a ilusão de que, na antagônica relação entre “ver” e “ouvir”, é possível anular a discórdia – a impossibilidade – que faz a mediação entre os dois termos (ouvimos as coisas porque não podemos ver tudo e vice-versa), bem como fundi-los em uma única experiência de “ver no modo de ouvir”.
É verdade que a experiência do s’entendre parler dá fundamento à ilusão da transparente autopresença do sujeito que fala; no entanto, a voz não seria ao mesmo tempo o que destrói de maneira mais radical a autopresença e a autotransparência do sujeito? Eu me ouço falar, contudo o que ouço nunca é plenamente eu mesmo, e sim um parasita, um corpo estranho em meu próprio cerne. Esse estranho em mim mesmo adquire existência positiva com diferentes disfarces, desde a voz da consciência e do hipnotizador até o perseguidor na paranoia. A voz é aquilo que, no significante, resiste ao sentido; ela representa a inércia opaca que não pode ser recuperada pelo sentido. É somente a dimensão da escrita que explica a estabilidade do sentido ou, segundo as palavras imortais de Samuel Goldwyn: “Um contrato verbal não vale o papel em que é escrito”. Como tal, a voz não está nem viva nem morta: sua condição fenomenológica primordial é, ao contrário, a do morto-vivo, de uma aparição espectral que sobrevive de algum modo a sua própria morte, ou seja, o eclipse do sentido. Em outras palavras, ainda que seja verdade que a vida de uma voz pode se opor à letra morta da palavra escrita, essa vida é a vida estranha de um monstro não morto, e não a autopresença viva e “saudável” do Significado.
Para tornar manifesta essa voz estranha, basta dar uma rápida olhada na história da música – que parece ser uma espécie de contra-história da história da metafísica ocidental, enquanto domínio da voz sobre a escrita. Aqui, o que encontramos repetidas vezes é uma voz que ameaça a Ordem estabelecida e, por isso, tem de ser controlada, subordinada à articulação racional da palavra falada e escrita, solidificada na escrita. Para mostrarmos o perigo que nos espreita, Lacan cunhou o neologismo jouis-sens (gozo no sentido), o momento em que a voz que canta se separa de sua ancoragem no sentido e se precipita em um destrutivo gozo de si. O problema, portanto, é sempre o mesmo: como evitamos que a voz se transforme em um destrutivo gozo de si que “afemina” a confiável Palavra masculina? A voz funciona aqui como um “suplemento” no sentido derridiano: tentamos contê-la, regulá-la, subordiná-la à Palavra articulada, porém não podemos prescindir totalmente dela, pois uma dose apropriada é vital para o exercício do poder (basta lembrar o papel das canções militares patrióticas na construção das comunidades totalitárias). No entanto, essa breve descrição pode dar a impressão errada de que estamos lidando com uma simples oposição entre a Palavra articulada “repressora” e a voz “transgressora”: de um lado, a Palavra articulada que disciplina e regula a voz como meio de afirmar a autoridade e a disciplina social; de outro, a Voz do gozo de si que age como meio de libertação, rompendo as amarras disciplinares da lei e da ordem. Mas o que dizer das envolventes “canções de marcha” dos Fuzileiros Navais dos Estados Unidos – com ritmo imbecilizante e conteúdo sadicamente sexualizado –, não seriam um caso exemplar de consumo do gozo de si a serviço do Poder? O excesso da voz é, portanto, radicalmente insolúvel.
O poder mágico da voz como objeto talvez seja mais bem reproduzido no final do capítulo 1 de O caminho de Guermantes, terceira parte de Em busca do tempo perdido. Em uma cena memorável, o narrador Marcel, usando o telefone pela primeira vez, conversa com sua avó:
após alguns instantes de silêncio, ouvi de súbito aquela voz que eu julgava erroneamente conhecer tão bem, pois até então, cada vez que minha avó conversava comigo, o que ela me dizia eu sempre o acompanhara na partitura aberta de seu rosto, onde os olhos ocupavam enorme espaço; mas sua própria voz, escutava-a hoje pela primeira vez. E porque essa voz me surgia mudada em suas proporções desde o instante em que era um todo, e assim me chegava sozinha e sem o acompanhamento das feições do rosto, descobri quanto era doce aquela voz; talvez mesmo nunca o tivesse sido a esse ponto, pois minha avó, sentindo-me distante e infeliz, julgava poder abandonar-se à efusão de uma ternura que, por “princípios” de educação, ela habitualmente recalcava e escondia. A voz era doce, mas também como era triste, primeiro devido à própria doçura, quase filtrada, mais do que nunca o seriam algumas vozes humanas, de toda dureza, de todo elemento de resistência aos outros, de todo egoísmo; frágil à força de delicadeza, parecia a todo instante prestes a quebrar-se, a expirar em um puro correr de lágrimas; a seguir, tendo-a sozinha comigo, vista sem a máscara do rosto, nela reparava, pela primeira vez, os desgostos que a tinham marcado no decurso da vida.c
Aqui, a descrição muito precisa de Proust aponta estranhamente para a teoria lacaniana: a voz é subtraída de sua “natural” totalidade do corpo a que pertence, do qual surge como um objeto parcial autônomo, um órgão magicamente capaz de sobreviver sem o corpo do qual é órgão – é como se ela estivesse “sozinha comigo, vista sem a máscara do rosto”. Essa subtração a retira da realidade (ordinária) e a transporta para o domínio virtual do Real, em que ela persiste como um espectro não morto que assombra o sujeito: “Eu gritava: ‘Vovó, vovó’, e desejaria beijá-la; mas, perto de mim só tinha aquela voz, fantasma tão impalpável como o que talvez viesse me visitar quando minha avó morresse”d. Como tal, essa voz sinaliza uma distância (vovó não está aqui) e ao mesmo tempo uma obscena e excessiva proximidade, uma presença mais íntima, mais penetrante, do que a do corpo diante de nós:
Presença real a dessa voz tão próxima na separação efetiva! Mas também antecipação de uma separação eterna! Com muita frequência, escutando desse modo, sem ver quem me falava de tão longe, pareceu-me que essa voz clamava das profundezas de onde não se sobe, e conheci a ansiedade [angústia] que ia me estreitar um dia, quando uma voz voltasse assim (sozinha e já não presa a um corpo que eu não devia rever nunca mais).e
O termo “angústia”f deve ser interpretado no sentido lacaniano preciso: para Lacan, a angústia não é sinal da perda do objeto, mas sim de sua proximidade excessiva. A angústia surge quando o objeto a surge diretamente na realidade, aparece nela – exatamente o que acontece quando Marcel ouve a voz da avó separada do corpo dela e descobre “quanto era doce aquela voz”: obviamente essa doçura é a quintessência extraída que leva ao intenso investimento libidinal de Marcel na avó. É dessa maneira, aliás, que a psicanálise aborda o impacto subjetivo libidinal das novas invenções tecnológicas: “a tecnologia é um catalisador, ela amplia e melhora o que já existe”31 – nesse caso, um fato fantasmático virtual, como o de um objeto parcial32. E, é claro, essa realização muda toda a constelação: uma vez que a fantasia é realizada, uma vez que o objeto fantasmático aparece diretamente na realidade, a realidade deixa de ser a mesma.
Devemos mencionar aqui a indústria de acessórios sexuais: encontramos no mercado o chamado “Stamina Training Unit”, um instrumento de masturbação parecido com uma lanterna a pilha (para não causar constrangimento quando transportado por aí). Coloca-se o pênis ereto no orifício localizado na ponta do objeto, que se movimenta para cima e para baixo até que se atinja a satisfação. O produto é encontrado em diferentes cores, ajustes e formas que imitam os três orifícios (boca, vagina e ânus). O que temos, nesse caso, não é nada mais que o objeto parcial (zona erógena) sozinho, desprovido do fardo adicional e constrangedor da pessoa. A fantasia (de reduzir o parceiro sexual a um objeto parcial) é diretamente realizada, portanto, e isso muda toda a economia libidinal das relações sexuais.
Isso nos leva à questão: o que acontece com o corpo quando é separado de sua voz, quando a voz é subtraída da inteireza da pessoa? Por um breve instante, vemos “um mundo privado da fantasia, privado do sentido e do quadro afetivo, um mundo desconjuntado”33. A avó aparece para Marcel fora do horizonte fantasmático do significado, a rica tessitura da longa experiência prévia que ele teve dela como pessoa cordial e encantadora. De repente, ele a vê “rubra, pesada e vulgar, enferma, devaneando, passeando por um livro os olhos um tanto alucinados, uma velha acabada que eu não conhecia”. Vista depois da fatídica conversa ao telefone, privada do quadro de fantasia, a avó é como um polvo encalhado na praia – uma criatura que se move com elegância na água, mas transforma-se em um pedaço de carne nojento e pegajoso quando está fora dela. Eis a descrição que Proust nos dá desse efeito:
ao entrar no salão sem que minha avó estivesse avisada do meu regresso, a encontrei lendo. Eu estava ali, ou melhor, ainda não estava, pois ela não o sabia e, como uma mulher que a gente surpreende no ato de fazer um trabalho que esconderá ao entrarmos, estava entregue a pensamentos que jamais havia mostrado diante de mim. De mim – por esse privilégio que não dura e em que temos, durante o breve instante do regresso, a faculdade de assistir bruscamente à nossa própria ausência – não havia ali senão o testemunho, o observador, de chapéu e capa de viagem, o estranho que vem tirar uma foto dos lugares que nunca mais há de ver. O que se fez em meus olhos, mecanicamente, quando avistei minha avó, foi mesmo uma fotografia. [...] Jamais vemos os seres queridos a não ser no sistema animado, no movimento permanente de nossa incessante ternura, a qual, antes de deixar chegar até nós as imagens que nos apresentam o seu rosto, arrebata-as em seu turbilhão, atira-as sobre a ideia que fazemos deles desde sempre, fá-las aderir a ela, coincidir com ela. [...] Mas que, em vez do nosso olhar, seja uma objetiva puramente material, uma placa fotográfica, que haja contemplado, e então o que havemos de ver, por exemplo no pátio do Instituto, em vez da saída de um acadêmico que quer chamar um fiacre, será sua vacilação, suas precauções para não cair para trás, a parábola de sua queda, como se estivesse embriagado, ou como se o solo estivesse coberto de gelo. Dá-se o mesmo quando uma cruel cilada do acaso impede a nossa inteligente e piedosa ternura de acorrer a tempo para ocultar a nossos olhos o que eles jamais devem contemplar, quando aquela é ultrapassada por estes que, chegando primeiro e entregues a si mesmos, funcionam mecanicamente à maneira de películas, mostrando-nos, em vez do ser amado que há muito já não existe, mas cuja morte a nossa ternura jamais quisera nos fosse revelada, o ser novo que cem vezes ao dia ela revestia de uma querida aparência falsa. [...] eu, para quem a minha avó era ainda eu próprio, eu que nunca a vira senão em minha alma, sempre no mesmo lugar do passado, através da transparência de lembranças contíguas e superpostas, de repente, em nosso salão que fazia parte de um mundo novo, o do Tempo, aquele em que vivem os estranhos de quem se diz “está bem envelhecido”, eis que pela primeira vez e apenas por um instante, pois desapareceu logo, avistei no canapé, à luz da lâmpada, rubra, pesada e vulgar, enferma, devaneando, passeando por um livro os olhos um tanto alucinados, uma velha acabada que eu não conhecia.g
Essa passagem deve ser interpretada contra seu fundo kantiano implícito: uma rede encobre nossas percepções cruas das pessoas amadas, isto é, “antes de deixar chegar até nós as imagens que nos apresentam o seu rosto, [ela] arrebata-as em seu turbilhão, atira-as sobre a ideia que fazemos deles desde sempre, fá-las aderir a ela, coincidir com ela”; essa rede – uma teia complexa de experiências passadas, afetos etc., que colore nossas percepções cruas – desempenha exatamente o papel de um horizonte transcendental que dá sentido a nossa realidade. Quando privados dessa rede, das coordenadas fantasmáticas do significado, deixamos de ser participantes engajados no mundo, vemo-nos confrontados com as coisas em sua dimensão numenal: por um momento, vemos as coisas como elas são “em si mesmas”, independentemente de nós – ou, como diz Proust em uma frase maravilhosa, temos “a faculdade de assistir bruscamente à nossa própria ausência”. Quando o objeto-fantasia é subtraído da realidade, não é só a realidade observada que muda, mas também o próprio sujeito que a observa: ele é reduzido a um olhar que observa como as coisas se parecem em sua própria ausência (recordamos aqui a antiga fantasia de Tom Sawyer/Huck Finn sobre estar presente no próprio funeral). E isso não é justamente o que faz da câmera algo tão estranho? A câmera não é nosso olho separado do nosso corpo, perambulando por aí e gravando as coisas como são em nossa ausência?
Então, para recapitular: a voz da avó, ouvida pelo telefone, separada do corpo, surpreende Marcel – trata-se da voz de uma mulher velha e frágil, não a voz daquela avó de quem ele se lembra. E a questão é que essa experiência colore a percepção que ele tem da avó: depois, quando a visita, ele a percebe de outra maneira, como uma velha desconhecida e sonolenta diante de um livro, alquebrada pela idade, rubra e vulgar, e não a avó encantadora e atenciosa de quem ele se lembrava. É dessa maneira que a voz enquanto objeto parcial autônomo pode afetar nossa percepção do corpo a que ela pertence. A lição é justamente que a experiência direta da unidade de um corpo, na qual a voz parece ser coerente com seu todo orgânico, envolve uma mistificação necessária; para chegar à verdade, é preciso dissociar essa unidade, concentrar-se em um de seus aspectos isolados e depois permitir que esse elemento dê cor a nossa percepção. Em outras palavras, encontramos aqui mais um caso da máxima anti-hermenêutica de Freud, segundo a qual se deve interpretar en détail, não en masse. Situar cada característica do ser humano no Todo orgânico da pessoa é perder não só seu significado, mas também o verdadeiro significado do próprio Todo. Nesse sentido, pessoa e sujeito devem ser opostos: o sujeito é descentralizado com relação à pessoa, ele tira sua mínima consistência de uma característica singular (“objeto parcial”), o objet petit a, o objeto-causa do desejo.
Aquilo a que temos de renunciar, portanto, é a noção de uma realidade primordial e plenamente constituída, em que a visão e o som se completam harmoniosamente: no momento que entramos na ordem simbólica, uma lacuna intransponível separa para sempre o corpo humano de “sua” voz. A voz adquire autonomia espectral, jamais pertence ao corpo que vemos falar, existe sempre um mínimo de ventriloquia em ação: é como se a própria voz do falante o tornasse oco e, de certo modo, falasse “por si só” através dele34. Em outras palavras, essa relação é mediada por uma impossibilidade: em última análise, nós ouvimos as coisas porque não podemos ver tudo. No mito da caverna, ao descrever os prisioneiros que veem apenas as sombras projetadas na parede diante deles, Sócrates pergunta: “E se no fundo da prisão se fizesse também ouvir um eco? Sempre que falasse alguma das estátuas, não achas que eles só poderiam atribuir a voz às sombras em desfile?”35. Com isso, não estaria ele se referindo à lacuna entre o corpo que fala e a voz que fala, a lacuna constitutiva de nossa experiência de um sujeito que fala?
Podemos até dar um passo adiante e afirmar que essa lacuna é a da castração. Assim, o maior sonho modernista de “ver vozes” é o sonho de entrar em um universo onde a castração é suspensa – não admira que o Talmude declare que o eleito “viu as vozes”. É por isso que diretores de cinema como Eisenstein, Chaplin e até Hitchcock resistiram tanto a adotar o som – como se quisessem prolongar sua permanência no paraíso silente, onde a castração é suspensa. O próprio Hitchcock esperava que seus espectadores “tivessem olhos auditivos”36. A voz sedutora e desencarnada que ameaça nos engolir, portanto, atesta ao mesmo tempo o fato da castração.
Essa mesma lição, concernente à tensão entre aparência corporal e a voz enquanto objeto parcial excêntrico, sofre uma virada sexualizada na história de Jacó. Jacó se apaixona por Raquel e quer se casar com ela; o pai dela, no entanto, quer que ele se case com Lea, a irmã mais velha de Raquel. Para que Jacó não seja enganado pelo pai ou por Lea, Raquel o ensina a reconhecê-la à noite, na cama. Antes do ato sexual, porém, Raquel sente-se culpada e conta para a irmã quais eram os sinais. Lea pergunta a Raquel o que acontecerá se Jacó reconhecer sua voz. Elas decidem que Raquel se deitará embaixo da cama e, enquanto Jacó estiver fazendo amor com Lea, Raquel fará os sons e ele não perceberá que está fazendo sexo com a irmã errada37.
Em Bem está o que bem acaba, de Shakespeareh, também podemos imaginar Diana escondida embaixo da cama em que Helena e Bertram estão copulando, fazendo os sons apropriados para que Bertram não perceba que não está fazendo sexo com ela – a voz dela funciona como suporte para a dimensão fantasmática. Como gostais, também de Shakespearei, propõe uma versão diferente da lógica do duplo engano. Orlando está completamente apaixonado por Rosalinda; esta, para testar seu amor dele, disfarça-se de Ganimedes e, como homem, interroga Orlando a respeito do amor que sente. Ela ainda assume a personalidade de Rosalinda (em um disfarce duplo, ela finge ser ela mesma, interpretando um Ganimedes que interpreta Rosalinda) e convence sua amiga Célia (disfarçada de Aliena) a casá-los em uma cerimônia falsa. Rosalinda literalmente finge fingir que é o que ela é: a própria verdade, para triunfar, tem de ser representada em um engano redobrado – assim como em Bem está o que bem acaba, em que o casamento, para ser confirmado, tem de ser consumado na forma de um caso extraconjugal38.
Qual é então a relação entre a voz (e o olhar) e a tríade imaginário-simbólico-Real? Quando Pascal, um jansenista, diz que a imagem autêntica de Deus é a fala, devemos interpretar essa afirmação literalmente e insistir na “imagem” como um termo geral, cuja subespécie é a fala: o ponto defendido por Pascal não se resume à questão iconoclasta comum de que a fala, e não a imagem visual, é o domínio do divino; ao contrário, a fala continua sendo uma imagem paradoxal que se suprassume enquanto imagem e assim evita a armadilha da idolatria. A fala (o simbólico) destituída de sua mediação pela imagem (o imaginário) desintegra-se em si mesma, como fala sem sentido. (Recordamos aqui as últimas palavras de Moses und Aaron, a formidável obra iconoclasta de Schoenberg e uma das candidatas ao título honorífico de “última ópera”: “O Wort, das mir fehlt!” [Ó palavra que me falta!] – descrição bastante apropriada da situação de Moisés depois de rejeitar furiosamente as imagens.) Para um lacaniano, a solução é simples (ou melhor, elementar no sentido holmesiano): devemos interpretar a afirmação da fala como a verdadeira imagem de Deus ao lado da tese básica do jansenista sobre o “dieu caché” (deus oculto) – a palavra torna (a imagem de) Deus o vazio na imagem, o que é oculto na imagem e pela imagem que vemos. A imagem torna-se, portanto, uma tela que se oferece como visível para esconder o que é invisível – no sentido da dialética da aparência desenvolvida por Lacan: o simbólico é aparência enquanto aparência, uma tela que esconde não outro conteúdo verdadeiro, mas o fato de que não há nada para esconder. Em outras palavras, a verdadeira função de uma tela enganosa não é esconder o que está por trás dela, mas exatamente criar e sustentar a ilusão de que existe algo que ela esconde.
Essa noção do Outro faltoso revela também uma nova abordagem da fantasia, concebida precisamente como uma tentativa de preencher essa falta do Outro, de reconstituir a consistência do grande Outro39. Por essa razão, fantasia e paranoia estão inerentemente ligadas: em seu aspecto mais elementar, a paranoia é uma crença no “Outro do Outro”, em mais um Outro que, oculto por trás do Outro da realidade social explícita, controla (o que nos aparece como) os efeitos imprevistos da vida social e assim garante sua consistência. Essa postura paranoica ganhou impulso com a digitalização constante da vida cotidiana: uma vez que nossa existência (social) está totalmente exteriorizada, materializada no grande Outro da rede mundial de computadores, é fácil imaginar um programador malvado apagando nossa identidade digital e, desse modo, privando-nos de nossa existência social, transformando-nos em não pessoas.
No domínio da ideologia, o objeto fantasmático primordial, a mãe de todos os objetos ideológicos, é o objeto do antissemitismo, o chamado “judeu conceitual”: por trás do caos do mercado, da degradação dos costumes etc., está a conspiração judaica. Segundo Freud, a atitude do homem para com a castração envolve uma clivagem paradoxal: sei que a castração não é uma ameaça efetiva, que não ocorrerá de fato e, no entanto, sou assombrado por sua perspectiva. O mesmo vale para a figura do “judeu conceitual”: ele não existe (como parte de nossa experiência da realidade social), mas, por essa razão, eu o temo ainda mais – em suma, a própria não existência do judeu na realidade funciona como o principal argumento para o antissemitismo. Isso equivale a dizer que o discurso antissemita constrói a figura do judeu como um ente semelhante a um fantasma, que não pode ser encontrado em lugar nenhum da realidade, e depois usa essa mesma lacuna entre o “judeu conceitual” e os judeus de fato existentes como o argumento definitivo para o antissemitismo. Desse modo, somos aprisionados em uma espécie de círculo vicioso: quanto mais normais as coisas parecem, mais suspeitas despertam e mais apavorados ficamos. Nesse sentido, o judeu é como o falo materno: ele não existe na realidade, mas, por essa razão, sua presença fantasmática e espectral dá origem a uma angústia insuperável. Nisso consiste também a definição mais sucinta do Real lacaniano: quanto mais meu raciocínio (simbólico) me diz que X não é possível, mais seu espectro me assombra – como aquele corajoso inglês que não só não acreditava em fantasmas, como também não tinha medo deles.
Aqui se impõe uma homologia entre o “judeu conceitual” e o Nome-do-Pai: neste, também temos uma cisão entre conhecimento e crença (“Sei perfeitamente que meu pai é na verdade uma criatura imperfeita, confusa e impotente, mas mesmo assim acredito em sua autoridade simbólica”). O pai empírico nunca está à altura de seu Nome, de seu mandato simbólico – e se estiver à altura dele, estaremos lidando com uma constelação psicótica (o pai de Schreber, no caso analisado por Freud, era um exemplo claro de pai que viveu à altura de seu Nome). Assim, a “transubstanciação” ou “suprassunção” (Aufhebung) do pai real no Nome-do-Pai não é estritamente homóloga à “transubstanciação” do judeu empírico no (ou na forma de aparição do) “judeu conceitual”? A lacuna que separa os judeus efetivos da figura fantasmática do “judeu conceitual” não é da mesma natureza que a lacuna que separa a pessoa empírica e sempre deficiente do pai do Nome-do-Pai, de seu mandato simbólico? Nos dois casos, uma pessoa real age como a personificação de uma ação fictícia irreal – o pai efetivo como substituto para a ação da autoridade simbólica e o judeu efetivo como substituto para a figura fantasmática do “judeu conceitual”.
Por mais convincente que pareça, essa homologia é enganosa: no caso do judeu, a lógica usual da castração simbólica é invertida. Em que consiste exatamente a castração simbólica? Um pai real exerce autoridade na medida em que se coloca como a encarnação de um agente simbólico transcendente, ou seja, na medida em que aceita que não é ele, mas o grande Outro que fala através dele (como o milionário do filme de Claude Chabrol que inverte a queixa de ser amado só pelo dinheiro: “Se pelo menos eu encontrasse uma mulher que me ame pelos meus milhões, e não por mim!”). Reside nisso a principal lição do mito freudiano do parricida, do pai primordial que, depois de sua morte violenta, volta mais forte que nunca na forma de seu Nome, como uma autoridade simbólica: se o pai real tem de exercer uma autoridade paternal simbólica, ele deve, em certo sentido, morrer enquanto vivo – é sua identificação com a “letra morta” do mandato simbólico que dá autoridade a sua pessoa ou, para parafrasear o antigo lema contra os povos nativos da América: “Pai bom é pai morto!”.
Por essa razão, nossa experiência com a figura paterna oscila necessariamente entre falta e excesso: sempre há pai “demais” ou “de menos”, nunca a medida certa – “ou ele falta como presença, ou, como presença, está presente demais”40. Por um lado, temos o tema recorrente do pai ausente, culpado por tudo, até (e inclusive) pela taxa de criminalidade entre os adolescentes; por outro, quando o pai está efetivamente “aí”, sua presença é necessariamente experimentada como perturbadora, vulgar, prepotente, indecente, incompatível com a dignidade da autoridade parental, como se sua presença como tal já fosse um excesso intruso.
Essa dialética entre falta e excesso explica a inversão paradoxal em nossa relação com uma figura de Poder: quando essa figura (pai, rei...) não consegue mais exercer com êxito sua função, essa falta é necessariamente (mal) percebida como um excesso, o soberano é criticado por ter “autoridade demais”, como se estivéssemos lidando com um “excesso brutal de Poder”. Esse paradoxo é típico da situação pré-revolucionária: quanto mais um regime é inseguro de si, de sua legitimidade (por exemplo, o Ancien Régime na França, antes de 1789), quanto mais hesita e faz concessões à oposição, mais é atacado pela oposição como um tirano. A oposição, é claro, age como histérica, já que sua crítica ao exercício de poder excessivo do regime esconde seu oposto – a verdadeira crítica é que o regime não é bastante forte, não está à altura de seu mandato de poder.
Outra homologia que deve ser rejeitada pela mesma razão é aquela entre o Nome-do-Pai e a Mulher fantasmática. A afirmação de Lacan de que “a Mulher não existe” (la Femme n’existe pas) não significa que nenhuma mulher empírica, de carne e osso, jamais será “Ela” ou não vive à altura do ideal inacessível da Mulher (ou o pai “real”, empírico, nunca vive à altura de sua função simbólica, de seu Nome). A lacuna que separa para sempre toda mulher empírica da Mulher não é a mesma entre a função simbólica vazia e seu portador empírico. O problema com a mulher, ao contrário, é que não é possível formular sua função simbólica ideal vazia – é isso que Lacan tem em mente quando afirma que “a Mulher não existe”. A “Mulher” impossível não é uma ficção simbólica, mas um espectro fantasmático cujo suporte é o objeto a, não o S1. Aquele que “não existe”, no mesmo sentido que a Mulher não existe, é o primordial gozo do Pai (o mítico pai pré-edipiano, que tem o monopólio sobre todas as mulheres do grupo), e por esse motivo seu status é correlativo ao da Mulher.
O problema com a maioria das críticas sobre o “falocentrismo” de Lacan é que, via de regra, elas se referem ao “falo” e/ou à “castração” de uma maneira metafórica pré-conceitual e inspirada no senso comum: de modo geral, nos estudos cinematográficos feministas, por exemplo, toda vez que um homem se comporta de maneira agressiva com uma mulher ou afirma sua autoridade sobre ela, podemos ter certeza de que suas ações serão designadas como “fálicas”; toda vez que uma mulher é enquadrada, exibida como frágil, acossada e assim por diante, é muito provável que sua experiência seja designada como “castradora”. O que se perde aqui é precisamente o paradoxo do falo como significante da castração: se tivermos de afirmar nossa autoridade “fálica” (simbólica), o preço é que temos de renunciar à posição de agente e consentir em funcionar como o meio pelo qual o grande Outro age e fala. Na medida em que o falo enquanto significante designa a ação da autoridade simbólica, sua característica crucial é o fato de que ele não é “meu”, não é o órgão de um sujeito vivente, mas o lugar em que um poder externo intervém e inscreve-se em meu corpo, um lugar em que o grande Outro age por mim – em suma, o fato de que o falo é um significante quer dizer que, acima de tudo, ele é estruturalmente um órgão sem corpo, de certa maneira “separado” de meu corpo. Essa caraterística crucial do falo, sua separabilidade, torna-se patente no uso do falo de plástico (“dildo”) nas práticas sadomasoquistas entre lésbicas, em que ele circula como um brinquedo – o falo é uma coisa séria demais para que seu uso se restrinja a criaturas estúpidas como os homens41.
Entretanto, há uma diferença essencial entre essa autoridade simbólica garantida pelo falo como significante da castração e a presença espectral do “judeu conceitual”: apesar de lidarmos em ambos os casos com a cisão entre conhecimento e crença, as duas cisões são de natureza fundamentalmente diferente. No primeiro caso, a crença diz respeito à autoridade simbólica pública “visível” (não obstante minha consciência da imperfeição e debilidade do pai, eu ainda o aceito como figura de autoridade), ao passo que no segundo caso eu acredito no poder de uma aparição espectral invisível42. O fantasmático “judeu conceitual” não é uma figura paternal de autoridade simbólica, um portador ou meio de autoridade pública “castrado”, mas algo decididamente diferente, um estranho tipo de duplo da autoridade pública, que perverte seu papel lógico: ele tem de agir na sombra, invisível aos olhos públicos, irradiando uma onipotência espectral, à maneira de um fantasma. Por causa dessa condição imperscrutável e esquiva do núcleo de sua identidade, o judeu é visto – em contraste com o pai “castrado” – como incastrável: quanto mais abreviada é sua existência efetiva, social, pública, mais ameaçadora se torna sua ex-sistência fantasmática e esquiva43.
Essa lógica fantasmática de um Mestre invisível – e, justamente por isso, todo-poderoso –, estava claramente em ação no modo de funcionamento da figura de Abimael Guzman (“presidente Gonzalo”, líder do Sendero Luminoso, no Peru) antes de ele ser preso: o fato de sua existência ser incerta (não se sabia se ele existia de fato ou se era apenas um mito) só fez crescer seu poder. O misterioso mestre do crime Keyser Soeze, do filme Os suspeitos, de Bryan Singer, é outro exemplo. No filme, ninguém tem certeza se ele existe realmente – como diz uma das personagens, “Não acredito em Deus, mas mesmo assim tenho medo dele”. As pessoas têm medo de vê-lo ou, quando são obrigadas a encará-lo, têm medo de mencionar o fato – sua identidade é mantida em segredo absoluto. No fim do filme, ficamos sabendo que Keyser Soeze é, na verdade, o elemento mais miserável do grupo de suspeitos, um banana manco e sem amor-próprio, como Alberich em O anel dos Nibelungos, de Wagner. É importantíssimo esse contraste entre a onipotência do agente invisível do poder e o modo como esse mesmo agente é reduzido a um fraco estropiado, no momento em sua identidade é revelada. A característica fantasmática que explica o poder exercido por essa figura do Mestre não é seu lugar simbólico, mas um ato em que ele mostrou sua vontade implacável e sua disposição de dispensar totalmente as considerações humanas comuns (Keyser Soeze teria atirado a sangue frio na mulher e nos filhos para evitar que uma quadrilha inimiga o chantageasse, ameaçando matá-los; esse ato é estritamente homólogo à renúncia ao amor de Alberich).
Em resumo, a diferença entre o Nome-do-Pai e o “judeu conceitual” é a diferença entre uma ficção simbólica e um espectro fantasmático: na álgebra lacaniana, entre S1, o Significante-Mestre (o vazio significante da autoridade simbólica), e o objet petit a44. Quando é dotado de autoridade simbólica, o sujeito age como um apêndice desse título simbólico, ou seja, é o grande Outro que age através dele. No caso da presença espectral, ao contrário, o poder que eu exerço baseia-se em “algo em mim mais que eu mesmo”, o que é mais bem exemplificado pelos diversos thrillers de ficção científica, de Alien a O escondido: um corpo alienígena indestrutível, que representa a substância vital pré-simbólica, e um parasita gosmento e repugnante que invade minhas entranhas e assume o controle.
Voltamos assim à piada de Chabrol sobre o milionário: quando alguém diz que me ama não por mim, mas por minha posição simbólica (poder, riqueza), minha situação é decididamente melhor do que quando alguém diz que me ama porque sente em mim a presença de “algo mais do que eu mesmo”. Se o milionário perde seus milhões, a pessoa que o amava por sua riqueza simplesmente perderá o interesse por ele e o abandonará, sem nenhum trauma mais profundo; no entanto, se sou amado por “algo em mim mais do que eu mesmo”, a própria intensidade desse amor pode se transformar facilmente em nada menos que uma aversão arrebatadora, uma tentativa violenta de aniquilar o mais-objeto em mim que perturba quem está comigo45. Assim, podemos nos solidarizar com o pobre milionário: é muito mais reconfortante saber que uma mulher me ama por meus milhões (poder ou glória), porque essa consciência permite que eu me mantenha a uma distância segura, evite ser pego em uma relação intensa demais, expondo ao outro o próprio cerne do meu ser. Quando o outro vê em mim “algo mais do que eu mesmo”, o caminho está aberto para o paradoxal curto-circuito entre amor e ódio, para o qual Lacan cunhou o neologismo l’hainamoration [amódio]46.
Essa dualidade entre ficção simbólica e aparição espectral só pode ser percebida na completa ambiguidade que cerca a noção de fantasia. Esta oferece um caso exemplar da dialética coincidentia oppositorum: de um lado, a fantasia em seu aspecto beatífico, em sua dimensão estabilizante, o sonho de um estado sem perturbações, fora do alcance da depravação humana; de outro, a fantasia em sua dimensão desestabilizante, cuja forma elementar é a inveja – tudo que me “irrita” no Outro, as imagens obsessivas do que ele ou ela pode estar fazendo longe do meus olhos, as imagens de como ele ou ela me engana e conspira contra mim, de como ele ou ela me ignora e se entrega a um gozo tão intenso que está além da minha capacidade representá-lo etc. (é isso, por exemplo, que incomoda Swann em Odette, no filme Um amor de Swann). A lição fundamental do chamado totalitarismo não concerne à codependência desses dois aspectos da noção de fantasia? Quem afirma ter realizado plenamente a fantasia 1 (a ficção simbólica) teve de recorrer à fantasia 2 (a aparição espectral) para explicar sua falha – o anverso forcluído da harmoniosa Volksgemeinschaft nazista voltou na forma de sua obsessão paranoica com a conspiração judaica. De maneira semelhante, o fato de os stalinistas descobrirem cada vez mais inimigos do socialismo foi o anverso inevitável de sua pretensão de ter realizado o ideal do “novo homem socialista”. (Talvez a libertação do domínio infernal da fantasia 2 forneça o critério mais sucinto para a santidade.)
Fantasia 1 e fantasia 2, ficção simbólica e aparição espectral, são, portanto, dois lados da mesma moeda: na medida em que uma comunidade experimenta sua realidade como regulada ou estruturada pela fantasia 1, ela precisa negar sua impossibilidade inerente, o antagonismo em seu próprio âmago – e a fantasia 2 dá corpo a essa negação. Em suma, para manter o controle, a fantasia 1 depende da efetividade da fantasia 2. Lacan reescreveu o “penso, logo existo” de Descartes como “sou aquilo que pensa ‘logo existo’” – o importante, é claro, é a não coincidência dos dois “sous”, e a natureza fantasmática do segundo. A afirmação patética da identidade étnica deveria ser submetida à mesma reformulação: no momento em que “sou francês (alemão, judeu, norte-americano...)” é reescrito como “sou aquilo que pensa ‘logo sou francês’”, a lacuna no cerne da minha identidade torna-se visível – e a função do “judeu conceitual” é justamente tornar essa lacuna invisível.
O que é, então, a fantasia? O desejo “realizado” (encenado) na fantasia não é o desejo do sujeito, mas o desejo do outro – ou seja, a fantasia, uma formação fantasmática, é a resposta para o enigma do “che vuoi?” (“o que você quer?”), que reproduz a posição primordial e constitutiva do sujeito. A questão original do desejo não é exatamente “o que você quer?”, mas “o que os outros querem de mim?”, “o que veem em mim?”, “o que sou para os outros?”. A criança está integrada em uma rede complexa de relações, servindo como uma espécie de catalisador e campo de batalha para os desejos daqueles que a cercam; pai, mãe, irmãos e irmãs etc. travam suas batalhas em volta dela. Embora esteja muito ciente desse papel, a criança não compreende que objeto ela é para os outros ou qual é a natureza exata dos jogos que acontecem a seu redor. A fantasia dá à criança uma resposta para esse enigma – em seu nível mais fundamental, a fantasia me diz o que sou para os meus outros. Mais uma vez, o antissemitismo, a paranoia antissemita, revela de maneira exemplar esse caráter radicalmente intersubjetivo da fantasia: a fantasia social da conspiração judaica é uma tentativa de responder à pergunta: “O que a sociedade quer de mim?”, revelar o significado dos eventos sombrios dos quais sou obrigado a participar. Por isso, a teoria da “projeção”, segundo a qual o antissemita “projeta” na figura do judeu a parte renegada de si próprio, é inadequada – a figura do “judeu conceitual” não pode ser reduzida a uma exteriorização do “conflito interno” do antissemita; ao contrário, ela atesta (e tenta lidar com) o fato de que o sujeito é originalmente descentralizado, parte de uma rede opaca, cujo significado e lógica escapam a seu controle.
Por isso, a questão da traversée du fantasme (como estabelecer uma distância mínima do quadro fantasmático que organiza o gozo do sujeito, como suspender sua eficácia) não é crucial apenas para a cura psicanalítica e sua conclusão – em nossa era de tensão racista renovada, de antissemitismo universalizado, talvez ela seja também a questão política mais importante. A impotência da atitude iluminista tradicional é mais bem exemplificada pelo antirracista que, no nível da argumentação racional, produz uma série de razões convincentes para rejeitar o Outro racista e, no entanto, é claramente fascinado pelo objeto de sua crítica. Consequentemente, todas as suas defesas caem por terra quando acontece uma crise real (quando a pátria está em perigo, por exemplo), como no clássico filme hollywoodiano em que o vilão, apesar de ser “oficialmente” condenado no fim, é o foco de nosso investimento libidinal (Hitchcock dizia que um filme é tão atraente quanto seu vilão). O principal problema não é como denunciar e defender racionalmente o inimigo – tarefa que pode levar com facilidade ao fortalecimento do controle sobre nós –, mas como quebrar o feitiço (fantasmático). O propósito da traversée du fantasme não é se livrar da jouissance (à maneira do velho puritanismo de esquerda); ao contrário, estabelecer uma distância mínima da fantasia significa que eu, por assim dizer, “desprendo” a jouissance de seu quadro fantasmático e a reconheço como insolúvel, como um resto indivisível, que não é nem inerentemente “reacionário”, dando suporte à inércia histórica, nem é uma força libertadora que me permite destruir as restrições da ordem existente.
Na versão cinematográfica de O processo, de Kafka, Orson Welles realiza de maneira exemplar essa quebra do feitiço fantasmático, reinterpretando o lugar e a função da famosa parábola da “porta da lei”. No filme, a história é contada duas vezes: logo no início, ela funciona como um prólogo e é lida e acompanhada de velhas projeções (falsas); pouco antes do fim, ela é contada a Josef K. não pelo padre (como no romance), mas pelo advogado de Josef K. (interpretado pelo próprio Welles), que se encontra inesperadamente com o padre e K. na catedral. A história sofre uma estranha virada, que diverge do romance de Kafka: quando o advogado se empolga e começa a falar do assunto, K. o interrompe e diz: “Eu soube. Todos soubemos. A porta foi feita só para ele”. O que se segue é um diálogo difícil, em que o advogado aconselha K. a “declarar insanidade”, dizer-se vítima de um plano diabólico, arquitetado por uma misteriosa entidade estatal. K., no entanto, rejeita o papel de vítima: “Não pretendo ser um mártir” “Nem a vítima da sociedade?” “Não sou vítima da sociedade, sou membro dela...”. Em seu último acesso de fúria, K. afirma que a verdadeira conspiração (do Poder) consiste exatamente na tentativa de convencer os indivíduos de que eles são vítimas de forças irracionais impenetráveis, tudo é uma loucura, o mundo é absurdo e sem sentido. Em seguida, quando K. sai da catedral, dois policiais à paisana já estão a sua espera; eles o levam para um terreno baldio e o dinamitam. Na versão de Welles, portanto, o motivo da morte de K. é o oposto do motivo implícito no romance – ele representa uma ameaça ao poder quando desmascara, ou “vê claramente”, a ficção sobre a qual se fundamenta a estrutura de poder existente.
A leitura que Welles faz de O processo difere das duas abordagens predominantes de Kafka: a perspectiva religiosa-obscurantista e a ingênua perspectiva humanista esclarecida. De acordo com a primeira, K. é culpado de fato: o que o torna culpado é exatamente o protesto de sua inocência, sua arrogante confiança na argumentação racional ingênua. A mensagem conservadora dessa leitura, que vê K. como representante de um interrogatório esclarecido, é inconfundível: o próprio K. é o verdadeiro niilista, e age como o proverbial elefante na loja de porcelanas – sua confiança na razão pública o deixa totalmente cego para o Mistério do Poder, para a verdadeira natureza da democracia. A Corte surge para K. como uma entidade misteriosa e obscena, que o bombardeia com demandas e acusações “irracionais” exclusivamente por causa da perspectiva subjetivista distorcida de K.; como lhe diz o padre na catedral, a Corte é indiferente, não quer nada dele. Na leitura contrária, Kafka é visto como um escritor profundamente ambíguo, que revelou a base fantasmática da máquina burocrática totalitarista, embora ele mesmo tenha sido incapaz de resistir a sua atração fatal. Nisso reside a inquietude sentida por muitos leitores “esclarecidos” de Kafka: no fim, ele próprio não participa da máquina infernal descrita por ele, fortalecendo assim o controle dessa máquina, em vez de quebrar seu feitiço?
Embora Welles pareça concordar com a segunda leitura, as coisas não são inequívocas: de certo modo, ele dá mais uma volta no parafuso e eleva a “conspiração” à segunda potência – como diz K. na versão de Welles, a verdadeira conspiração do Poder está na própria ideia de conspiração, na ideia de uma entidade misteriosa que detém de fato o controle das coisas, na ideia de que, por trás do Poder público visível, há outra estrutura de poder, “maluca”, obscena, invisível. Essa outra lei oculta age como parte do “Outro do Outro” no sentido lacaniano, a parte da metagarantia da consistência do grande Outro (a ordem simbólica que regula a vida social). Os regimes “totalitários” eram especialmente hábeis em cultivar o mito de um poder paralelo secreto, invisível e, por isso mesmo, todo-poderoso, uma espécie de “organização dentro da organização” (KGB, maçonaria ou outra qualquer) que compensava a flagrante ineficiência do Poder público legal e assim garantia o bom funcionamento da máquina social. Esse mito não só não é subversivo, como serve de suporte definitivo para o Poder. A contrapartida norte-americana perfeita é (o mito de) J. Edgar Hoover, personificação do “outro poder” obsceno por trás do presidente, o duplo misterioso do poder legítimo. Hoover manteve-se no poder colecionando arquivos secretos que lhe garantiam controle sobre toda a elite estabelecida no poder e na política, mas ele mesmo participava regularmente de orgias homossexuais vestido de mulher. Quando o advogado de K. lhe oferece como último recurso o papel de vítima/mártir de uma conspiração oculta, K. o recusa, porque tem plena consciência de que, ao aceitá-lo, estaria entrando na mais pérfida armadilha do Poder.
Essa miragem obscena do Poder do Outro coloca em jogo o mesmo espaço fantasmático da famosa propaganda da Smirnoff, que também manipula a primor a lacuna entre a liberdade e a “outra superfície” do espaço da fantasia: a câmera, que está atrás de uma garrafa de vodca levada por um garçom em uma bandeja, perambula pelo convés de um luxuoso transatlântico; sempre que ela passa por um objeto, nós o vemos primeiro como ele é na realidade cotidiana e, depois, quando o vidro transparente da garrafa se interpõe entre o nosso olhar e o objeto, nós o vemos distorcido na dimensão da fantasia (dois homens de fraque viram dois pinguins, o colar no pescoço de uma dama se transforma em uma cobra, os degraus da escada viram teclas de piano etc.). A Corte em O processo, de Kafka, tem a mesma existência puramente fantasmagórica; seu predecessor é o castelo de Klingsor, em Parsifal, de Wagner. Como seu controle sobre o sujeito é inteiramente fantasmático, basta quebrar o feitiço por meio de um gesto de distanciamento e a Corte (ou o castelo) vira pó. Nisso reside a lição política de Parsifal e O processo, de Welles: se tivermos de combater o poder social “eficaz”, precisamos primeiro quebrar seu controle fantasmático sobre nós47.
“Atravessar a fantasia” não significa sair da realidade, mas fazê-la “vacilar”, aceitar seu não-Todo inconsistente. A noção de fantasia como uma espécie de tela ilusória que torna indistinta nossa relação com os objetos parciais parece corresponder perfeitamente ao senso comum a respeito do que os psicanalistas deveriam fazer: é claro que deveriam nos libertar das amarras das fantasias idiossincráticas, possibilitando nosso confronto com a realidade como ela é. É isso precisamente que Lacan não tem em mente – o que ele visa é exatamente o oposto. Em nossa experiência diária, estamos imersos na “realidade” (estruturada ou apoiada pela fantasia), mas essa imersão é perturbada por sintomas que atestam o fato de que outro nível reprimido de nossa psique resiste à imersão. Portanto, “atravessar a fantasia” significa paradoxalmente identificar-se plenamente com a fantasia – com a fantasia que estrutura o excesso que resiste a nossa imersão na realidade cotidiana. Na breve formulação de Richard Boothby:
“Atravessar a fantasia”, portanto, não significa que o sujeito abandona seu envolvimento com caprichos fantasiosos e acomoda-se a uma “realidade” pragmática, mas o oposto: o sujeito é submetido ao efeito da falta simbólica que revela o limite da realidade cotidiana. Atravessar a fantasia, no sentido lacaniano, é ser mais profundamente solicitado pela fantasia do que antes, no sentido de ser levado para uma relação ainda mais íntima com o verdadeiro núcleo da fantasia que transcende as imagens.48
Boothby está certo em enfatizar a estrutura de uma fantasia à maneira de Jano: uma fantasia é pacificadora, apaziguadora (fornece um cenário imaginário que nos permite suportar o abismo do desejo do Outro) e ao mesmo tempo demolidora, perturbadora, inassimilável em nossa realidade. A dimensão ideológico-política dessa ideia de “atravessar a fantasia” foi esclarecida pelo papel singular que o grupo de rock Top Lista Nadrealista (A lista dos maiores surrealistas) desempenhou na Guerra da Bósnia, durante o cerco de Sarajevo: suas apresentações irônicas, que satirizavam a situação da população de Sarajevo em meio à guerra e à fome, começaram a ser bem vistas não só pela contracultura, mas também pelos cidadãos em geral (o programa de TV do grupo foi transmitido durante a guerra e tornou-se extremamente popular). Em vez de lamentar seu destino trágico, o grupo mobilizava todos os clichês sobre os “bósnios estúpidos” tão comuns na Iugoslávia e identificava-se totalmente com eles – a questão era que o caminho para a verdadeira solidariedade surge do confronto direto com as fantasias obscenas racistas que circulam no espaço simbólico, de uma identificação divertida com elas, e não de sua negação em defesa daquilo com o que “as pessoas se parecem”.
Isso nos leva ao que, para Lacan, é a grande armadilha ética: dar valor de sacrifício a um gesto fantasmático de privação, algo que só pode ser justificado com referência a um significado mais profundo. Essa parece ser a armadilha em que caiu A vida de David Gale, filme que tem a característica duvidosa de ter sido a primeira produção hollywoodiana a fazer uma referência explícita a Lacan49. Kevin Spacey interpreta um professor de filosofia que é contra a pena de morte, um sujeito que, bem no início do filme, é visto falando do “grafo do desejo” de Lacan. Ele dorme com uma aluna, perde o emprego, é rejeitado pela comunidade, acusado do assassinato de uma amiga muito próxima e acaba no corredor da morte, quando uma repórter (Kate Winslet) vai entrevistá-lo. Certa de que ele era culpado, ela começa a ter dúvidas quando ele lhe diz: “Pense bem, eu era um dos maiores opositores à pena de morte e agora estou aqui, no corredor da morte”. Ao fazer sua pesquisa, Winslet encontra uma fita que revela que o assassino não é ele – mas é tarde demais, ele já foi executado. No entanto, ela leva a fita a público e as impropriedades da pena de morte são devidamente reveladas. Nos últimos minutos do filme, Winslet recebe outra versão da fita que esclarece toda a verdade: a mulher supostamente assassinada se suicidou (ela morreria de câncer, de qualquer maneira), e Spacey estava presente no momento do suicídio. Em outras palavras, ele estava envolvido em uma complexa trama ativista contra a pena de morte: ele sacrificou a si mesmo pelo bem maior de expor o horror e a injustiça da pena de morte. O que torna interessante o filme é que, retroativamente, vemos que esse ato se fundamenta na leitura que Spacey faz de Lacan no início do filme: a partir da constatação (correta) a respeito do apoio fantasmático do desejo, ele chega à conclusão de que todos os desejos humanos são vãos e propõe-se ajudar os outros, até mesmo com o sacrifício de alguém, como único caminho ético apropriado. Aqui, considerado por padrões propriamente lacanianos, o filme fracassa: endossa uma ética da abnegação pelo bem dos outros; é por isso que o herói faz de jeito que Winslet receba a fita – porque, no fundo, ele precisa do reconhecimento simbólico de seu ato. Não importa quão radical seja o autossacrifício do herói, o grande Outro ainda está aí.
É contra esse pano de fundo que devemos interpretar a mediação entre imaginário e simbólico em Lacan: o imaginário relaciona-se com o visto, e o simbólico, por assim dizer, reduplica a imagem, mudando o foco para o que não pode ser visto, para a imagem que vemos ofuscada ou que nos cega. Lacan explica de modo muito preciso as implicações desse reduplicar: não é apenas que, com o simbólico, o imaginário volte-se para a aparência e esconda uma realidade oculta – a aparência que o simbólico gera é a da própria aparência, ou seja, a aparência de que há uma realidade escondida por trás da aparência visível. O nome preciso para essa aparência de algo que não tem existência própria, que existe apenas em seus efeitos e, assim, só parece que aparece, é “virtualidade” – o virtual é o X invisível, o vazio cujos contornos só podem ser reconstruídos a partir de seus efeitos, como um polo magnético que só existe na medida em que atrai fragmentos de metal que se reúnem em volta dele. Com respeito à diferença sexual, o ente virtual fundamental, o X invisível mais elementar que só “parece que aparece”, é o falo materno: o falo materno é imaginado – não diretamente, mas como um ponto de referência para sempre invisível:
Quando Lacan falava do registro imaginário, ele falava de imagens que podiam ser vistas. O pombo não se interessa pelo vazio. Se houver vazio no lugar da imagem, o pombo não se desenvolverá e o inseto não se reproduzirá. Mas é fato que, ao introduzir o simbólico, Lacan não renuncia falar do imaginário. Ele, inclusive, ainda falará muito do imaginário, só que de um imaginário que mudou completamente de definição. O imaginário pós-simbólico é muito diferente do imaginário pré-simbólico, anterior à introdução desse registro. Em que se transforma o conceito do imaginário, uma vez introduzido o do simbólico? Em alguma coisa muito precisa. O mais importante do imaginário é o que não se pode ver. Em particular, para tomar o pivô da clínica que se desenvolve no Seminário, livro 4: a relação de objeto, é o falo feminino, o falo materno. É um paradoxo chamá-lo falo imaginário quando, em termos precisos, não se pode vê-lo, é quase como se fosse questão de imaginação. Quer dizer que antes, nas celebríssimas observações e teorizações de Lacan sobre o estádio do espelho, seu registro imaginário era essencialmente ligado à percepção. Agora, uma vez introduzido o simbólico, há uma disjunção entre o imaginário e a percepção e, de certo modo, esse imaginário se liga com a imaginação. [...] Isso já implica a conexão entre o imaginário e o simbólico, assim como uma tese que se separa de toda percepção: o imaginário faz tela ao que não se pode ver.50
Na medida em que o falo materno é velado por definição, isso nos leva à função ontológica constitutiva/positiva do véu: o próprio véu/tela/imagem cria a ilusão de que há algo por trás de dele – como se diz na linguagem cotidiana, com o véu, sempre “resta algo para a imaginação”. Devemos considerar essa função ontológica em seu aspecto mais forte e literal: é não escondendo nada que o véu cria o espaço para algo ser imaginado – o véu é o operador original da criação ex nihilo ou, como Hegel diz na Fenomenologia, “por trás da assim chamada cortina, que deve cobrir o interior, nada há para ver; a não ser que nós entremos lá dentro – tanto para ver como para que haja algo ali atrás que possa ser visto”51. Algumas páginas antes, ele diz isso em termos ainda mais fortes: nossa percepção é limitada ao mundo sensível; para além desse mundo, só há o vazio:
para que haja algo nesse vazio total, que também se denomina sagrado, há que preenchê-lo, ao menos com devaneios: fenômenos que a própria consciência para si produz. Deveria ficar contente de ser tão maltratado, pois nada merece de melhor. Afinal, os próprios devaneios ainda valem mais que seu esvaziamento.52
É óbvio que Hegel não está dizendo que o mundo sensível é o único real, e que o “verdadeiro Além suprassensível” não passa de um produto de nossa imaginação; o mundo sensível é um mundo de esvanecimento, autoanulação, aparências – nisso reside o idealismo de Hegel –, mas não há uma “verdadeira realidade” por trás dele. A única “verdadeira realidade” é o fato de as aparências serem “meras aparências”, a transformação da realidade sensível imediata em aparência: “O suprassensível é, pois, o fenômeno como fenômeno”53. Temos, portanto, dois níveis de aparência: as aparências do mundo sensível direto e a aparência, dentro desse mundo de aparências, dos objetos que são “elevados à dignidade de uma Coisa”, ou seja, que dão corpo – ou apontam além delas – para o que está além da aparência: “Graças ao véu, a falta de objeto se transforma em objeto e o ‘mais-além’ faz sua entrada no mundo”54 – essa lacuna é fundamental e não captada pelo “niilismo” budista, no qual temos apenas aparências achatadas e o Vazio. E do mesmo modo que, como diz Freud, o real se inscreve em um sonho na forma de sonho dentro de um sonho, o real além das aparências aparece como uma aparência dentro da aparência, como o que Platão chamou de “imitação da imitação”. Lacan observa com perspicácia que é por isso que Platão se opunha de maneira tão categórica à pintura: não porque a pintura está ainda mais distante da verdadeira realidade do que a realidade sensível que ela imita, mas porque, na pintura, a verdadeira realidade aparece dentro de uma realidade sensível ordinária: “O quadro não rivaliza com a aparência, ele rivaliza com o que Platão nos designa mais além da aparência como a Ideia. E porque o quadro é essa aparência que diz que ela é o que dá aparência que Platão se insurge contra a pintura como contra uma atividade rival da sua”55.
É por isso que Um corpo que cai, de Hitchcock, é um filme antiplatônico, uma destruição materialista sistemática do projeto platônico: a fúria assassina que se apossa de Scottie quando ele descobre finalmente que Judy (que ele tentou transformar em Madeleine) é (a mulher que ele conhecia como) Madeleine – a fúria do platônico enganado quando percebe que o original que ele queria reproduzir em uma cópia perfeita já é uma cópia. O choque não é que o original se revela como cópia – uma enganação comum contra a qual o platonismo sempre nos alerta –, mas que (aquilo que tomamos como) a cópia revela-se como o original. O choque de Scottie no momento do reconhecimento é também um choque kafkaesco. Da mesma maneira que, no fim da parábola da porta da lei, o homem do campo aprende que a porta existia somente para ele, em Um corpo que cai Scottie tem de aceitar que o espetáculo fascinante de Madeleine, a quem ele seguia em segredo, era representado apenas para seu olhar, seu olhar estava incluído nele desde o princípio.
Isso nos leva à teologia implícita de Lacan (e Hegel): se Deus é o fundamento definitivo de todas as coisas, a razão de “existir algo em vez de nada”, então Deus é o próprio véu: existe algo em vez de nada graças ao véu que nos separa do vazio do Nada. A declaração “Deus é o véu” deve ser interpretada como um juízo especulativo hegeliano que une dois conteúdos opostos: (1) Deus é o supremo devaneio com o qual nossa imaginação preenche o vazio por trás do véu; (2) Deus é o próprio véu enquanto supremo poder criativo:
a imagem esconde. A imagem que mostra é também a imagem que esconde, ela mostra para esconder. Todos os comentários de Lacan sobre as imagens a partir daquele momento giram em torno disso. [...] Assim, a imagem como algo que se apresenta, e, a fortiori, em se tratando da imagem de um quadro, essa imagem que se dá a ver é um embuste, já que ela vela o que se encontra por trás dela. Nisso, ele retoma toda uma retórica clássica convidando os homens a desconfiar, a rejeitar as imagens como enganadoras. Mas, ao mesmo tempo – eu disse que inicialmente a imagem esconde, comentei isso –, o véu que esconde faz existir o que não se pode ver. Este é o esquema apresentado por Lacan no Seminário, livro 4: a relação de objeto: aqui, o sujeito, um ponto; [depois] o véu. Do outro lado, outro ponto, nada. Se não há véu, constata-se não haver nada. Se, entre o sujeito e o nada, há um véu, tudo é possível. Com o véu, podemos jogar, imaginar coisas, um certo simulacro também pode ajudar. Ali onde não havia nada antes do véu, há, talvez, alguma coisa, há, pelo menos, o mais além do véu, e, nesse sentido, por meio desse “talvez”, o véu cria algo ex nihilo.
O véu é um Deus. Quando Leibniz pergunta gentilmente por que as coisas são, mais do que não são, podemos responder a Leibniz o seguinte: se há algo e não o nada, é por haver um véu em algum lugar. Disse “gentilmente” por ser um tanto tarde, isto é, já há alguma coisa. Melhor teria sido pensar nisso um pouco antes de criar esse mundo... Dirijo-me, aqui, [...] ao Deus que cria ex nihilo. Com essa função do véu, introduz-se a tela que converte o nada em ser. Isso importa para todos nós, uma vez que chegamos vestidos. Podemos esconder o que há e, ao mesmo tempo e da mesma forma, o que não há. Esconder o objeto e esconder a um só tempo, com a mesma facilidade, a falta de objeto. A própria vestimenta está nesse movimento de mostrar e esconder. O travesti mostra alguma coisa ao mesmo tempo em que a esconde. Isso quer dizer que ele dá a ver algo diferente do que mostra. Graças ao véu, a falta de objeto se transforma em objeto e o “mais-além” faz sua entrada no mundo, de tal modo que, com o véu, diz Lacan, já há no imaginário o ritmo simbólico do sujeito: o objeto e o “mais além”.56
A consequência dessa constatação é nada menos que a destruição das duas posições filosóficas pré-hegelianas básicas, a metafísica pré-crítica de uma “verdadeira” realidade substancial por trás das aparências e o transcendentalismo crítico de Kant. Para apreendermos essa consequência na íntegra, devemos dar o importante passo desde o véu que mascara o Vazio para o olhar do Outro, o olhar como objeto: o Em-si por trás do véu, o que o véu mascara, não é uma realidade transcendente substancial, mas o olhar do Outro, o ponto a partir do qual o Outro devolve o olhar. O que não vejo no que vejo é o próprio olhar, o olhar como objeto.
Daí o axioma de Lacan: em todo quadro há um ponto cego, e o quadro para o qual eu olho devolve o olhar (olha de volta para mim) a partir desse ponto. É contra esse pano de fundo que devemos interpretar a tese de Lacan sobre o caráter reflexivo da pulsão freudiana, como a postura do “se faire...” (a pulsão visual não é a pulsão de ver, mas, em contraste com o desejo de ver, a pulsão de se fazer visto etc.). Aqui, Lacan não aponta para a teatralidade mais elementar da condição humana? Nossa maior aspiração não é observar, mas fazer parte de um mundo encenado, de expor-se ao olhar – não o olhar determinado de uma pessoa na realidade, mas o puro Olhar inexistente do grande Outro. Era para esse olhar que os antigos romanos esculpiam detalhes no topo dos aquedutos, invisíveis ao olho humano; o olhar para o qual os antigos incas faziam desenhos gigantescos nas pedras, cujas formas só podiam ser vistas do alto; o olhar para o qual os stalinistas organizaram seus gigantescos espetáculos públicos. Definir esse olhar como “divino” já é “gentrificar” seu status, privá-lo de sua natureza “acusmática”, do fato de ser um olhar de ninguém, um olhar que flutua livremente, sem portador. As duas posições correlatas, do ator no palco e do espectador, não são ontologicamente equivalentes ou contemporâneas: originalmente, não somos observadores do drama da realidade, mas fazemos parte do quadro representado pelo vazio de um olhar não existente, e é apenas em um momento secundário que assumimos a posição de quem olha para o palco. A posição “impossível” e insuportável não é a do ator, mas do observador, do público.
Isso nos leva a uma possível definição lacaniana de fantasia como um cenário imaginário que representa uma cena impossível, algo que só poderia ser visto da perspectiva da impossibilidade57. Uma cena de fantasia é o que merece de fato ser chamado de “presença aurática”. Na medida em que envolve o ponto de impossibilidade, podemos dizer também que ela representa o objet petit a. E, na verdade, o par lacaniano formado por significante e objeto a não corresponde à diferença entre representação e presença? Embora os dois sejam substitutos, lugares-tenentes do sujeito, o significante o representa, enquanto o objeto brilha em sua presença. Nesse sentido, podemos falar sobre – cito aqui Jacques-Alain Miller – “a representação do sujeito pelo objeto a, salvo que a palavra ‘representação’ não serve. Devemos propor uma expressão, uma representação, uma identificação?”58. Justamente porque o objeto a não representa o sujeito, não devemos uni-los (como na fórmula da fantasia: $-a), limitando-nos a
colocar apenas o a e enchê-lo de raios em volta, raios por causa da presença implícita, da presença como apagamento do sujeito, pois, em vez da representação, da expressão, da identificação, trata-se aqui de um apagamento. [...] O sujeito está presente essencialmente no seu apagamento, no seu modo de ser apagado, o que [Lacan] nomeia, com uma grande economia de palavras, usando o neologismo effaçon [apagão].59
Aqui, a virada de Lacan é que essa presença do objeto a preenche a lacuna, a falha, da representação – sua fórmula é a do objeto a acima da barra, abaixo da qual há o S(A), significante do outro barrado, inconsistente. O objeto presente é um preenchimento, um tapa-buraco (bouchon); desse modo, quando confrontamos a tensão entre o simbólico e o Real, entre significado e presença – o evento da presença que interrompe o fluxo suave do simbólico, que se manifesta em suas lacunas e inconsistências –, devemos nos concentrar no modo como o Real corrói por dentro a própria consistência do simbólico. E talvez devamos passar da afirmação de que “a intrusão do Real corrói a consistência do simbólico” para a afirmação muito mais forte de que “o Real não é nada mais que a inconsistência do simbólico”.
Heidegger gostava de citar um verso de Stefan George: Kein Ding sei wo das Wort gebricht – nenhuma Coisa existe onde se rompe a palavra. Quando falamos da Coisa, esse verso deve ser invertido: Ein Ding gibt es nur wo das Wort gebricht – uma Coisa existe apenas onde se rompe a palavra. A ideia de que as palavras representam coisas ausentes é rechaçada: a Coisa é uma presença que surge onde as palavras (representações simbólicas) falham, é uma coisa que representa a palavra ausente. Nesse sentido, um objeto sublime é “um objeto elevado à dignidade da Coisa”: o vazio da Coisa não é um vazio na realidade, mas, em primeiro lugar, um vazio no simbólico, e o objeto sublime é um objeto no lugar da palavra falhada60. Essa talvez seja a definição mais sucinta de aura: ela envolve um objeto quando ocupa um vazio (buraco) dentro da ordem simbólica. Isso indica que o domínio do simbólico é não-Todo – é tolhido a partir de dentro61.
Repetindo, o que é presença? Imaginemos a conversa de um grupo em que todos sabem que um deles tem câncer e sabem que todos do grupo sabem disso; eles conversam sobre tudo, os livros que leram, os filmes que viram, seus contratempos profissionais, política... tudo para evitar o assunto do câncer. Em uma situação como essa, podemos dizer que o câncer está totalmente presente, uma presença pesada que lança sua sombra sobre tudo o que as pessoas dizem, e que só vai piorando à medida que se tenta evitá-la.
Então, e se a verdadeira linha de separação não for a que separa a presença e a representação simbólica, mas a que cruza essa divisão, cindindo a partir de dentro cada um dos dois momentos? O “estruturalismo” tem o crédito eterno de ter “desermeneutizado” o próprio campo do simbólico, de ter tratado a tessitura significante como independente do universo da experiência do significado; e a maior realização das elaborações do último Lacan a respeito do Real é ter revelado uma “presença” intrusiva traumática que provoca estragos em cada experiência aurática significativa da Presença. Lembramos aqui A náusea, de Sartre, uma das paradigmáticas abordagens literárias do Real: é muito difícil, contraintuitivo, subsumir o lodo repugnante do Real inerte sob a categoria da “aura”. A aura não é precisamente uma “domesticação” do Real, uma tela que nos protege de seu impacto traumático? O tema de uma presença “deste lado da hermenêutica” é central para Lacan, para quem a psicanálise não é hermenêutica, especialmente não uma forma profunda. A psicanálise lida com o sujeito contemporâneo ao advento do Real moderno, que surge quando o significado é evacuado da realidade: não só o real científico acessível nas fórmulas matemáticas, mas também, de Schelling a Sartre, o abismo proto-ontológico da inércia do “mero real” desprovido de qualquer significado. Para Lacan, portanto, não há necessidade de uma hermenêutica psicanalítica – a religião cumpre essa função perfeitamente bem.
Aqui, Significado e Sentido devem ser contrapostos: o Significado pertence ao grande Outro, é o que garante a consistência de todo o campo da experiência, enquanto o Sentido é uma ocorrência contingente local no mar do não sentido. Em termos lacanianos, o Significado pertence ao nível do todo, enquanto o Sentido é não-Todo: o Significado definitivo é garantido pela religião (mesmo que pareçam não ter significado, como assassinatos, fome ou desastres, toda essa confusão tem um Significado superior, do ponto de vista de Deus), ao passo que o Sentido é materialista, algo que surge “do nada”, em uma explosão mágica, digamos, de uma metáfora inesperada. O Significado é assunto da hermenêutica, o Sentido é assunto da interpretação, como na interpretação do sentido de um sintoma que, de maneira precisa, desvirtua e solapa a totalidade do Significado. O Significado é global, o horizonte que abrange detalhes que em si mesmos parecem não ter significado; o Sentido é uma ocorrência local no campo do não sentido. O Significado é ameaçado de fora pelo não Significado; o Sentido é interno ao não Sentido, é produto de um encontro sem sentido, contingente ou de sorte. As coisas têm Significado, mas fazem Sentido.
A noção lacaniana de interpretação, portanto, é oposta à hermenêutica: ela envolve a redução do significado ao não sentido do significante, e não a revelação de um significado secreto62. E ainda “mais embaixo”, se posso dizer dessa forma, há o nível do que Lacan chama de sinthomas em oposição aos sintomas – nós significantes de jouis-sense, sentido gozado, “significado” que penetra diretamente na materialidade de uma letra63. O conto “Santa Cecília, ou O poder da música”, de Heinrich von Kleist, traduz perfeitamente a voz (cantante) em sua estranha encarnação da jouissance “feia”. A ação se passa em uma cidade alemã, dividida entre protestantes e católicos, durante a Guerra dos Trinta Anos. Os protestantes planejam provocar uma carnificina em uma grande igreja católica durante a missa da meia-noite; quatro pessoas se infiltram para iniciar a confusão e dar o sinal para que os outros comecem o massacre. No entanto, uma estranha reviravolta acontece quando uma linda freira, supostamente morta, acorda milagrosamente e dirige o coro em uma canção sublime. A música fascina os quatro bandidos: eles não conseguem iniciar a confusão e, como não dão o sinal, a noite prossegue em paz. Mesmo depois do evento, os quatro protestantes continuam entorpecidos: eles são internados em um manicômio, onde, durante anos, sentam-se e rezam o dia inteiro. Todos os dias, à meia-noite, eles se levantam e cantam a sublime canção que ouviram naquela noite fatídica. Aqui, obviamente, surge o horror, pois o canto divino original que produziu um efeito tão milagroso, redentor e pacificador, torna-se com a repetição uma imitação obscena repulsiva. O que temos aqui é um caso exemplar da tautologia hegeliana como a grande contradição: “Voz é... voz”, a voz etérea e sublime do coro de uma igreja encontra a si mesma, em sua alteridade, na grotesca cantoria dos lunáticos. Isso inverte efetivamente a clássica versão da reviravolta obscena – a do rosto de uma garota delicada que, de repente, é distorcido pela fúria, e ela começa a suar e proferir blasfêmias indizíveis (a garota possuída de O exorcista etc.). Essa versão revela o horror e a corrupção por trás de uma superfície delicada: o semblante da inocência desintegra-se e percebemos de súbito a intensa obscenidade por trás dela – o que poderia ser pior que isso? Precisamente o que acontece no conto de Kleist: o maior horror não ocorre quando a máscara da inocência se desintegra, mas quando o texto sublime é (mal) apropriado pelo falante errado. Na versão clássica, temos o objeto direto (um rosto inocente e delicado) no lugar errado (envolvido em profanações blasfemas), ao passo que, em Kleist, o objeto errado (os bandidos brutais) no lugar certo (tentando imitar o sublime ritual religioso) gera uma profanação muito mais profunda.
Não obstante, surgem aqui duas questões: como essa prática subversiva se relaciona com a prática semelhante (embora definitivamente não subversiva) das “canções de marcha”? Onde está a diferença? Por que a primeira prática é subversiva e a segunda não? Além disso, que procedimento paralelo poderia subverter a ideologia dominante nos regimes socialistas estatais? Há uma música que chega bem perto disso: “Gruss an die Partei (Chormusik Nr. 5 für grossen Chor, Bass-Solo und grosses Orchester)”, de oito minutos e quarenta segundos de duração, composta em 1976 por Paul Dessau (último colaborador de Brecht), com letra – de novo! – de Heiner Müller (sucessor não oficial de Brecht como principal dramaturgo da Alemanha Oriental) e citações de um discurso de Erich Honecker, então secretário-geral do Partido Socialista Unificado da Alemanha (Sozialistische Einheitspartei Deutschlands, SED). A série de tons “Es-E-D” aparece repetidamente na música. A lenda de Honecker como um poeta não reconhecido era uma piada comum na Alemanha Oriental: a ideia era tirar um trecho de um dos seus discursos e acrescentar um verso a cada tantas palavras, criando um poema moderno abstrato. Em Lied der Partei [Saudação ao partido], de Müller e Dessau, exemplo supremo do que os alemães chamavam de Polit-Byzantinismus, a piada é feita de tal maneira que (como costumava acontecer nos países comunistas) não está claro se o intuito de Müller era fazer uma paródia secreta ou se ele escreveu (ou escolheu) as palavras cruzando os dedos. O que sobressai é a extrema disparidade, ou mesmo certa tensão, entre a música atonal totalmente modernista e não melódica e a completa banalidade das palavras. Vejamos os três primeiros “poemas” de Honecker:
Coisas notáveis foram realizadas
Com a força do povo
E pelo bem-estar do povo
No elo fraternal com a União Soviética
Nunca tanto foi feito
Na comunidade
Dos Estados socialistas
Pela paz e segurança
Pela liberdade do povo
Muitas coisas ainda restam a ser feitas
Do jeito comunista
Ano após ano64
A obscenidade atinge o auge no último “poema”, em que, perto do fim, em comemoração à passagem do socialismo para o comunismo, as injunções e declarações hostis, acompanhadas do som brutal da bateria, transformam-se momentaneamente em um canto silente e mais suave, como o clímax de um hino religioso, sinalizando que, depois da difícil luta da nossa era de socialismo, a harmonia do comunismo acabará triunfando.
Hoje todos vemos:
O imperialismo bate em retirada
O progresso
Marcha adiante
Com o poder de todo o povo
Do presente do socialismo
Ao futuro
Do comunismo
Aqui, a fronteira entre o Sublime (do Estado bizantino) e o ridículo é de fato insolúvel – basta imaginarmos Honecker, depois de um discurso no Congresso do Partido, cantando essas palavras e sendo acompanhado de coro (formado pelos representantes) e orquestra, para nos vermos no meio de Diabo a quatro, dos irmãos Marx. Mas rir de espetáculos assim talvez seja fácil demais – talvez nos façam deixar escapar o verdadeiro destinatário, o mesmo olhar imaginado ou inexistente como o olhar impossível dos incas, vindo de cima. Em suma, a noção fantasmática mais elementar não é a de uma cena fascinante para a qual olhamos, mas a noção de que “há alguém lá fora nos olhando”: não um sonho, mas a noção de que “somos personagens no sonho dos outros”. Longe de sinalizar uma patologia subjetiva, esse olhar fantasmático é sine qua non da nossa normalidade, em contraste com a psicose, em que esse olhar aparece como parte da realidade. Para esclarecer esse ponto crucial, vamos começar esclarecendo o status do olhar e da voz na teoria psicanalítica, tendo sempre em mente suas três diferentes condições na neurose, na psicose e na perversão65.
(1) Na neurose, lidamos com a cegueira histérica ou a perda da voz, ou seja, a voz ou o olhar estão incapacitados. Na psicose, ao contrário, há um a mais do olhar ou da voz, pois o psicótico experimenta a si mesmo como visto (paranoico) ou ele ouve (tem alucinações com) vozes que não existem66. Em contraste com essas duas situações, o pervertido usa a voz e o olhar como instrumento, “faz coisas” com elas.
(2) O par voz e olhar também deveria ser relacionado com o par Sach-Vorstellungen e Wort-Vorstellungen: as “representações das coisas” envolvem o olhar, nós vemos as coisas, ao passo que as “representações das palavras” envolvem a voz (“imagens vocais”), nós ouvimos as palavras.
(3) Além disso, olhar e voz estão ligados, respectivamente, ao Id (pulsão) e ao supereu: o olhar mobiliza a pulsão escópica, ao passo que a voz é o meio da instância do supereu que exerce pressão sobre o sujeito. Mas também não podemos nos esquecer de que o supereu retira sua energia do Id, o que significa que a voz do supereu também mobiliza as pulsões. No que se refere às pulsões, a voz e o olhar estão relacionados, portanto, como Eros e Tânatos, pulsão de vida e pulsão de morte: o olhar “sidera”, desvia, transfixa ou imobiliza o rosto do sujeito, transformando-o em um ente petrificado à maneira da Medusa. A constatação do Real mortifica, ela está para a morte (a cabeça da Medusa é em si um olhar transfixado/petrificado, e vê-la não me petrifica – ao contrário, eu mesmo me transformo em um olhar transfixado), assim como a voz sedutora está para o elo maternal pré-edípico além/abaixo da Lei, para o cordão umbilical que vivifica (da canção de ninar materna à voz do hipnotizador).
(4) A relação entre os quatro objetos parciais (oral, anal, voz, olhar) é a de um quadrado estruturado ao longo dos dois eixos de demanda/desejo e para o Outro/do Outro. O objeto oral envolve uma demanda voltada para o Outro (a mãe, para que me dê o que quero), ao passo que o objeto anal envolve uma demanda do Outro (na economia anal, o objeto do meu desejo é reduzido à demanda do Outro – evacuo regularmente para satisfazer a demanda do Outro). De maneira homóloga, o objeto escópico envolve um desejo voltado para o Outro (mostrar-se, permitir-se ser visto), ao passo que o objeto vocal envolve um desejo do Outro (demonstrar o que se quer de mim). Em termos ligeiramente diferentes: o olhar do sujeito envolve sua tentativa de ver o outro, ao passo que a voz é uma invocação (Lacan: “pulsão invocatória”), uma tentativa de provocar uma resposta do Outro (Deus, o rei, a pessoa amada); é por isso que o olhar mortifica/pacifica/imobiliza o Outro, ao passo que a voz o vivifica, tenta obter dele um gesto.
(5) Como o olhar e a voz se inscrevem no campo social? Em primeiro lugar, como vergonha e culpa: a vergonha de que o Outro veja demais, veja-me em minha nudez; a culpa desencadeada pela audição do que os outros dizem de mim67. A oposição entre voz e olhar não está ligada então à oposição entre supereu e ideal do eu? O supereu é uma voz que assombra o sujeito e o declara culpado, ao passo que o ideal do eu é o olhar diante do qual o sujeito sente vergonha. Desse modo, há uma cadeia tripla de equivalências: olhar-vergonha-ideal do eu, e voz-culpa-supereu.
Isso nos leva à lição propriamente ontológica da psicose, das alucinações psicóticas em que “o que foi forcluído do simbólico retorna no Real”, a lição que solapa efetivamente o cogito cartesiano enquanto percipiens (sujeito que percebe) externo ao perceptum. A lição é:
o percipiens não é exterior ao perceptum, mas incluso. Há uma espécie de ser do próprio perceptum que não lhe é exterior. Não se deve partir da ideia de uma representação na qual o mundo exterior seria convocado diante do sujeito certo de sua existência. É preciso pensar a inclusão do sujeito da percepção no percebido. A respeito das alucinações, por exemplo, [...] não basta dizer que o sujeito percebe o que não se encontra no perceptum, tampouco perguntar-se se o sujeito acredita, ou pensar que isso não tem consistência. Por que ninguém além do sujeito pode experimentar isso? [...] O que Lacan enfatiza nas alucinações verbais, é que elas têm uma estrutura linguística própria e que não se deve pensá-las a partir de um erro ou de uma doença do sujeito, mas como exploração da própria estrutura da linguagem. O sujeito não unifica o percebido, não há um poder de síntese exterior ao percebido, ele está incluído nele. [...]
Quando se trata da percepção, mais precisamente da percepção visual, da relação com o escópico, trata-se de restabelecer o percipiens no perceptum. Uma presença a mais, um “a mais” esquecido da teoria clássica. Mas há também uma ausência. É preciso referir-se ao conceito de realidade em Freud. A objetividade da realidade supõe, segundo Freud, [...] que a libido não invada o campo perceptivo. Isto quer dizer que, para Freud, a condição da objetividade da realidade é um desinvestimento libidinal. Sua tradução ingênua é a ética do cientista suposto aplicar-se meticulosamente a fim de não pôr em jogo suas paixões pessoais, apagar toda libido, ou pelo menos a libido sciendi, para descrever ou investigar a realidade. Mas essa suposta ética do cientista traduz a exigência de deslibidinalização da percepção, que Lacan traduz em seu código como a extração do objeto a. E, nisso, a condição de “objetividade da realidade” – entre aspas porque o sujeito está sempre incluído, como diz Lacan: o perceptum é sempre impuro – é que a realidade seja um deserto de gozo. Esse gozo se condensa no objeto a, de tal maneira que a presença do percipiens no perceptum é correlativa ao que aparece como uma ausência de mais-de-gozar. Quando estudamos a visão, seja em psicologia, medicina ou oftalmologia, ela é uma relação com a realidade sem gozo. Razão pela qual Lacan distingue o campo da visão do que ele chama de campo escópico, isto é: a realidade e o gozo. Lacan desenvolveu uma teoria do campo escópico ao estudar de que maneira a pulsão se presentifica nesse campo.68
Essa estrutura do campo escópico em oposição ao campo da visão, essa experiência de que “quando olho para o mundo, sempre sinto que, de algum modo, as coisas olham de volta para mim” – em oposição ao puro sujeito cartesiano que percebe o mundo ao longo de linhas geométricas claras – fornece o dispositif mínimo subjacente da religião. “Deus” é, em sua forma mais elementar, esse olhar do Outro devolvido pelos objetos, um olhar imaginado certamente (procuramos em vão por ele na realidade), mas não menos real. Esse olhar existe apenas para o sujeito que deseja, como objeto-causa de seu desejo, e não na realidade (exceto para o psicótico). No amor apaixonado, há momentos em que a pessoa amada sente que o amante vê nela alguma coisa de que ela mesma não tem consciência – é somente através do olhar do amante que ela toma consciência dessa dimensão que existe nela. O que a pessoa amada sente nesses momentos é “o que há nela mais que ela mesma”, o je ne sais quoi que causa o desejo do amante por ela e existe somente para o olhar do amante, que, de certa forma, é o correspondente objetal do desejo, a inscrição do desejo em seu objeto. O que o amante vê é a parte perdida de si mesmo contida no outro (envolvida por ele). Como tal, o objeto-olhar não pode ser reduzido a um efeito da ordem simbólica (o grande Outro): “o olhar permanece do lado do Outro, mesmo se o Outro não existe”69.
Em razão de sua inexistência, o status desse objeto-causa imaterial não é ontológico, mas puramente ético – talvez esse sentimento do olhar do outro que “vê mais em mim do que eu mesmo” seja a experiência deontológica de nível zero, o que originalmente me impulsiona para a atividade ética cujo objetivo é me tornar adequado para a expectativa escrita no olhar do outro. Não há como não nos lembrarmos dos dois últimos versos do famoso soneto de Rilke, “Torso arcaico de Apolo”: “denn da ist keine Stelle / die dich nicht sieht. Du musst dein Leben ändern” (“pois lá não há lugar que não te mire. Precisas mudar de vida”). Peter Sloterdijk, que usou o segundo verso como título de um livro70, observou a enigmática interdependência subjacente das duas declarações: do fato de que não há nenhum lugar (na Coisa que é o torso de Apolo, de Auguste Rodin) que não nos olhe de volta, segue-se o chamado de que, de alguma maneira, nós (os observadores da escultura) temos de mudar de vida – mas como? Nessa grandiosa leitura do poema de Rilke, em um subcapítulo chamado “A ordem vinda da pedra”, Sloterdijk ilustra como o torso diz respeito ou concerne a mim, dirige-se a mim, como o objeto devolve o olhar – esse olhar devolvido pelos objetos é a “aura”, o mínimo da “religiosidade”, essa capacidade de ser afetado pelo olhar do Outro/Coisa, de “vê-la vendo”71. Sujeito e objeto trocam de lugar, mas não totalmente: eu permaneço sujeito e o objeto permanece objeto, pois eu não me torno um objeto do grande Outro subjetivado – isso só acontece na perversão. Como afirma Sloterdijk, esse outro que olha é fantasiado, nunca é parte da realidade, é somente “suposto” (unterstellt)72 – um suposto olhar. A religião autêntica nunca dá o passo fatídico além dessa suposta condição do Outro que nos olha – no momento em que damos esse passo, encontramo-nos na psicose: o psicótico sabe-se ser visto na realidade. Nisso também reside a maior diferença entre conhecimento e crença: posso conhecer os objetos que vejo (perspectiva de Descartes), mas só posso acreditar que eles devolvem meu olhar. Mais precisamente, o que devolve o olhar é, por definição, o objeto e não outro sujeito, como na psicose. Talvez seja por isso que, não obstante, haja um núcleo psicótico em todas as religiões, na medida em que cada religio transforma a Ding em outro Sujeito do qual emana o olhar. As implicações clínicas dessa condição puramente virtual do olhar (e da voz), portanto, são claras: o que caracteriza a psicose, a experiência psicótica, é o fato de esse olhar precisamente não ser mais um Real virtual, mas sim incidir na realidade perceptível – o psicótico pode “ver” o objeto-olhar (ou “ouvir” o objeto-voz). O principal que não podemos nos esquecer é que o contraponto ao psicótico não é um sujeito “normal”, que só vê “o que realmente existe aí”, mas um sujeito do desejo que se relaciona com um Real virtual do olhar ou da voz:
Não percebemos o que Lacan aqui designa como objetos. O que ele chama de olhar ou voz não é o tom, o sopro, menos ainda o sentido. A voz é o que já está presente em cada cadeia de significante, e o que ele chama de olhar não é algo que encontre no olho ou que saia do olho. Quer dizer, desses objetos, olhar e voz, ele dá uma definição exterior à percepção, e podemos aproximar esses dois termos a partir do percebido, embora eles só se constituam realmente quando a percepção não for possível. [...] É na experiência do psicótico que a voz não pode ser ouvida e o olhar que ninguém vê encontram sua existência. É com o psicótico que Lacan introduz a teoria da percepção, para fazê-la explodir, para não reduzir a experiência do psicótico à experiência suposta normal. [...]
Na experiência psicótica, voz e olhar não se elidem. É privilégio do psicótico perceber os objetos lacanianos: voz e olhar. Ele percebe a voz presente em cada cadeia significante. Basta haver cadeia significante para haver voz, basta um pensamento articulado para fazer perceber a presença de uma voz. O psicótico experimenta em si mesmo e dolorosamente o olhar que vem do mundo, mas são “as coisas que o olham”, alguma coisa “se” mostra. Disso decorre o famoso exemplo da lata de sardinhas, a pequena e célebre anedota de Lacan, lembrada hoje, que vem precisamente para dar um simulacro de uma experiência psicótica: “este objeto me olha e estou no perceptum desse objeto”. Lacan diz que o quadro está no meu olho. Esta é a verdade da teoria da representação, mas eu estou dentro do quadro73.
É neste ponto que intervém a teoria lacaniana da arte visual: com respeito ao olhar traumático incorporado em um objeto, a pintura é o processo de “domar a megera”, ela aprisiona ou doma esse olhar:
o quadro dá prazer ao espectador que, na realidade, encontra algo de belo, e isso apazigua nele a angústia da castração, porque nada falta. O espectador pode ver o olhar no quadro, mas um olhar encarcerado, o olhar materializado sob a forma de pinceladas. Assim, o quadro [...] é como uma prisão para o olhar. Lacan faz uma exceção à pintura expressionista, pois ela tenta ativar o olhar que há dentro do quadro, e pelo fato de o espectador se sentir olhado e capturado pelo espetáculo.74
Não surpreende que o expressionismo seja associado em geral à angústia: a angústia surge quando o olhar-objeto é exibido de maneira muito direta75. Benjamin observou que a aura que cerca um objeto sinaliza que ele devolve o olhar; ele só se esqueceu de acrescentar que o efeito “aurático” surge quando esse olhar é encoberto, “gentrificado” – no momento em que a cobertura é removida, a aura transforma-se em pesadelo, o olhar torna-se o olhar da Medusa.
Isso nos leva de volta à principal diferença entre o sujeito cartesiano da perspectiva geométrica e o sujeito freudiano do espaço curvo do desejo: o objeto-olhar (ou o objeto-voz) existe não para um olhar neutro que observa a realidade, mas para um olhar sustentado pelo desejo; o que vejo no objeto que desejo é o contraponto objetal ao meu próprio desejo – em outras palavras, vejo meu próprio olhar como objeto. Kant é cartesiano demais nesse ponto, e é por esse motivo que a faculdade do desejo é, para ele, totalmente “patológica”: para Kant, não há objeto-causa do desejo a priori, cada desejo é desejo por algum objeto “patológico” contingente. Lacan complementa Kant, ampliando a noção da crítica transcendental à faculdade do desejo: do mesmo modo que, para Kant, nossa razão pura (teorética) implica formas universais a priori, e do mesmo modo que nossa faculdade “prática” também é “pura”, motivada pela universalidade a priori da lei moral, para Lacan, nossa faculdade do desejo também é “pura”, pois, para além de todos os objetos “patológicos”, ela é sustentada por objetos não empíricos, e é por isso que a fórmula mais sucinta para o empenho de Lacan é, em termos kantianos precisos, a crítica do desejo puro. No entanto, devemos acrescentar (posto que nem sempre isso está claro para o próprio Lacan) que essa adição de uma “faculdade pura do desejo” não só completa o edifício kantiano, mas também coloca em movimento sua reconfiguração radical – em suma, temos de ir de Kant a Hegel. É somente com Hegel que a “reflexividade” fundamental e constitutiva do desejo é levada em conta (um desejo que sempre-já é desejo de/por um desejo, que é um “desejo do Outro” em todas as variações desse termo: desejo o que meu outro deseja; quero ser desejado pelo meu outro; meu desejo é estruturado pelo grande Outro, o campo simbólico em que estou encarnado; meu desejo é sustentado pelo abismo do real (Outro-Coisa). O que funciona como objeto no espaço curvo dessa reflexividade do desejo é um X que solapa as coordenadas mais elementares da filosofia moderna, a oposição entre realismo objetivista e idealismo transcendental. O objeto-causa do desejo não faz parte da “realidade objetiva” substancial (procuramos em vão por ele entre as propriedades e os componentes das coisas que nos cercam), tampouco de outro sujeito, mas sim do “objeto” impossível/insubstancial que é o próprio sujeito que deseja. A intervenção desse objeto puramente virtual e inexistente, porém real, que “é” o sujeito significa que o sujeito não pode ser situado na “realidade objetiva” como parte dela, não posso me incluir na realidade e me ver como parte da realidade, tampouco o sujeito pode pôr-se como agente da constituição transcendental da realidade. É aqui que a passagem de Kant a Hegel tem de ser realizada, a passagem da constituição transcendental para a autoinclusão dialética do sujeito na substância. A fórmula mais sucinta de Lacan para essa inclusão é: “O quadro está em meu olho, mas eu, eu estou no quadro”. O quadro está em meu olho: enquanto sujeito transcendental, sou o horizonte sempre-já dado de toda realidade, mas, ao mesmo tempo, eu mesmo estou no quadro: só existo por meio do meu contraponto ou congênere no mesmo quadro constituído por mim; eu, por assim dizer, tenho de incidir em meu próprio quadro, no universo cujo quadro eu constituo, do mesmo modo que, na encarnação cristã, Deus, o criador, incidir na sua própria criação.
Do ponto de vista transcendental, essa inclusão do sujeito em seu próprio perceptum só pode ser pensada como a constituição de si do sujeito transcendental como elemento da realidade (constituída): eu “me” constituo como ente interno ao mundo, a “pessoa humana” que sou “eu”, com um conjunto de propriedades ônticas positivas etc. Mas a autoinclusão do próprio eu transcendental no campo de seu próprio perceptum não faz sentido do ponto de vista transcendental: o eu transcendental é o quadro a priori da realidade que, por essa mesma razão, está isento dela. Para Lacan, no entanto, essa inclusão autorreferencial é justamente o que acontece com o objet petit a: o próprio eu transcendental, $, é “inscrito no quadro” como seu ponto de impossibilidade.
Uma declaração é atribuída a Hitler: “Temos de matar o judeu dentro de nós”. A. B. Yehoshua fez um comentário apropriado:
Essa representação devastadora do judeu como uma espécie de entidade amorfa que pode invadir a identidade de um não judeu sem que ele seja capaz de detectá-la ou controlá-la origina-se do sentimento de que a identidade judaica é extremamente flexível, precisamente por ser estruturada como uma espécie de átomo cujo núcleo é rodeado de elétrons virtuais em uma órbita mutável.76
Nesse sentido, os judeus são efetivamente o objet petit a dos gentios: o que está “nos gentios mais que os próprios gentios” não é outro sujeito que encontro diante de mim, mas um alienígena, um estranho dentro de mim, o que Lacan chamou de lamela, um intruso amorfo de plasticidade infinita, um monstro “alienígena” não morto que nunca pode ser reduzido a uma forma definida. Nesse sentido, a declaração de Hitler diz mais do que quer dizer: contra seu pretenso sentido, ela confirma que os gentios precisam da figura antissemita do “judeu” para manter sua identidade. Portanto, não é só que “o judeu está dentro de nós” – Hitler se esqueceu fatidicamente de acrescentar que o antissemita, sua identidade, também está no judeu77. Aqui podemos mais uma vez determinar a diferença entre o transcendentalismo kantiano e Hegel: o que os dois veem, obviamente, é que a figura antissemita do judeu não deve ser reificada (em termos mais ingênuos, ela não corresponde aos “judeus reais”), mas é uma fantasia ideológica (“projeção”), ela está “no meu olho”. Hegel acrescenta que o próprio sujeito que fantasia o judeu está “no quadro”, sua existência depende da fantasia do judeu enquanto uma “pequena parte do Real” que sustenta a consistência de sua identidade: se excluirmos a fantasia antissemita, o sujeito do qual ele é a fantasia desintegra-se. O que importa não é o lugar do Si na realidade objetiva, o real impossível “do que sou objetivamente”, mas sim como eu me localizo em minha própria fantasia, como minha fantasia sustenta meu ser como sujeito.
Em termos filosóficos, a tarefa é pensar o surgimento ou devir do sujeito a partir da autocisão da substância: o sujeito não é diretamente o Absoluto, ele surge do autobloqueio da substância, ou seja, da impossibilidade de a substância afirmar-se totalmente como Um. Aqui, a posição de Hegel é única: o sujeito é quem opera a (auto)finitização do Absoluto, e “conceber o Absoluto não só como Substância, mas também como Sujeito” significa conceber o Absoluto como falho, marcado por uma impossibilidade inerente. Ou, tomando emprestados os termos da interpretação da física quântica: o Absoluto hegeliano é difratado, cindido por uma impossibilidade/obstáculo – virtual/real – inerente. O principal ponto de virada no caminho até Hegel é Fichte: o último Fichte estava às voltas com o problema correto, que depois foi solucionado por Hegel. Depois de radicalizar o sujeito transcendental kantiano em um “eu absoluto” que põe a si mesmo, Fichte tentou até o fim da vida descobrir como limitar esse eu absoluto, como pensar a primazia do absoluto trans-subjetivo (“Deus”) sobre o eu sem cair de volta em um “dogmatismo” pré-crítico. (Esse problema é esboçado pela primeira vez no famoso fragmento de sistema de Hölderlin.) Frederick Beiser está certo em apontar que o problema básico de todo o idealismo alemão pós-kantiano é como limitar a subjetividade: a tentativa de Fichte de pensar um Absoluto trans-subjetivo baseia-se em um insight correto, mas ele é incapaz de realizar essa tarefa com êxito; posteriormente, Schelling e Hegel ofereceram duas saídas diferentes para esse impasse fichtiano.
O olhar externo é “impossível” no sentido preciso de que seu lugar é muito intensamente investido de libido para ser ocupado por um sujeito humano. Recordamos aqui o momento mágico de Um corpo que cai, de Hitchcock, quando, no restaurante Ernie’s, Scottie vê Madeleine pela primeira vez: esse plano fascinante não é o plano do ponto de vista de Scottie. Somente depois que Elster se junta a Madeleine, quando o casal se distancia de Scottie e se aproxima da saída do restaurante, é que temos, como contraplano do plano de Scottie no bar, o plano de Madeleine e Elster a partir de seu ponto de vista. A ambiguidade entre subjetivo e objetivo é fundamental. Precisamente na medida em que o perfil de Madeleine não é mostrado do ponto de vista de Scottie, o plano de seu perfil é totalmente subjetivado e retrata de certa forma não o que Scottie realmente vê, mas o que ele imagina, ou seja, sua visão interna alucinatória (lembremos que, enquanto vemos o perfil de Madeleine, o fundo vermelho da parede do restaurante parece ficar cada vez mais intenso, quase ameaçando explodir em brasas e transformar-se em uma chama amarela – como se a paixão de Scottie estivesse diretamente inscrita no fundo). Portanto, não surpreende que, embora não veja o perfil de Madeleine, Scottie aja como se estivesse misteriosamente atraído por ele, profundamente afetado por ele. Nesses dois planos excessivos, encontramos o “cine-olho” em sua mais pura manifestação: como o plano que é de certo modo “subjetivado”, sem que o sujeito seja dado78.
Temos assim, duas vezes, o mesmo movimento que vai do excesso da “subjetividade sem agente-sujeito” ao procedimento-padrão da “sutura” (a troca dos planos objetivo e subjetivo: primeiro vemos a pessoa olhando e depois vemos o que a pessoa vê). O excesso, portanto, é “domesticado”, cativado ao ser pego na relação especular entre sujeito e objeto, conforme exemplificado pela troca do plano objetivo pelo contraplano em primeira pessoa. Essa cena pode ser conectada a outro momento maravilhoso no filme: a cena noturna no quarto de Judy, no hotel Empire, para onde o casal volta depois do jantar no restaurante Ernie’s. Nessa cena, vemos o perfil de Judy, que é completamente escuro (em contraste com o perfil deslumbrante de Madeleine no Ernie’s). Passamos desse plano para um plano frontal de seu rosto, em que o lado esquerdo é totalmente escuro e o lado direito é iluminado por uma estranha luz verde (do neon que fica do lado de fora do quarto).
Em vez de interpretar esse plano como uma simples indicação do conflito interior de Judy, devemos considerar sua total ambiguidade ontológica: Judy é retratada como uma protoentidade, ainda não de todo ontologicamente constituída (um ectoplasma esverdeado mais a escuridão), como encontramos em algumas versões do gnosticismo. É como se, para existir inteiramente, sua metade escura estivesse à espera de ser preenchida pela imagem etérea de Madeleine. Em outras palavras, temos aqui, literalmente, o outro lado do magnífico plano de perfil de Madeleine no Ernie’s, seu negativo: a metade escura de Madeleine que ainda não vimos (o rosto esverdeado e angustiado de Judy), mais a metade escura que será preenchida pelo perfil deslumbrante de Madeleine. Nesse exato momento em que Judy é reduzida a menos-que-um-objeto, a uma mancha pré-ontológica disforme, ela é subjetivada – esse meio-rosto angustiado, totalmente incerto de si mesmo, designa o nascimento do sujeito. Recordamos aqui a proverbial resolução imaginária do paradoxo de Zenão sobre a divisibilidade infinita: se prolongarmos a divisão, chegaremos a um ponto em que uma parte não poderá mais ser dividida em partes menores, mas em uma parte (menor) e nada – esse nada “é” o sujeito. Não seria essa exatamente a divisão de Judy no plano supracitado? Vemos metade de seu rosto, enquanto a outra é um vazio escuro. E, mais uma vez, a tarefa é deixar esse vazio sem nada, não preenchê-lo projetando nele o lodo repugnante chamado “riqueza da personalidade”.
Esse vazio não é o resultado de uma “abstração” da plenitude concreta da existência humana; esse vazio é primordial, constitutivo da subjetividade, e precede todo conteúdo que poderia preenchê-lo. E põe um limite ao senso comum de que nossa conversa com os outros deveria seguir o caminho da sinceridade cristalina, evitando os extremos tanto da etiqueta hipócrita quanto da intimidade intrusiva e injustificável. Talvez seja a hora de reconhecer que esse imaginário caminho do meio tenha de ser suplementado com seus dois polos extremos: a “fria” discrição da etiqueta simbólica, que nos permite manter distância de nossos vizinhos, e o risco (excepcional) da obscenidade, que nos permite estabelecer um elo com o outro no Real de sua jouissance.
Vamos concluir com um exemplo mais político de resistência ao impulso de projetar. O tema teológico-político dos dois corpos do rei (desenvolvido por Ernst Kantorowicz em um livro clássico com o mesmo título) retorna violentamente no stalinismo na forma dos dois corpos do Líder (lembremo-nos dos procedimentos stalinistas no tratamento do corpo do Líder, desde o retoque das fotos até a conservação do corpo em um mausoléu). Como afirmou Eric Santner, o anverso do corpo sublime é um corpo não morto em putrefação, repulsivo no sentido literal do alemão entsetzlich, de-posto, o que resta depois que o rei perde o título. Esse resto não é o corpo biológico do rei, mas o excesso de um horrível espectador “não-morto”; é por isso que os stalinistas colocam o corpo do Líder morto em um mausoléu: para evitar sua putrefação79.
Quando a soberania do Estado passa do Rei para o Povo, o problema se transforma no do Corpo do povo, de como encarnar o Povo, e a solução mais radical é tratar o Líder como o Povo encarnado. Entre esses dois extremos, há muitas outras possibilidades – por exemplo, a singularidade de Marat assassinado, de Jacques-Louis David, “a primeira pintura modernista”, segundo T. J. Clark. A excentricidade da estrutura geral da pintura é raramente notada: a metade superior da obra é quase toda preta. (Não se trata de um detalhe realístico: o cômodo onde Marat de fato morreu era decorado com um papel de parede cheio de vida.) O que representa esse vazio escuro? O corpo opaco do Povo, a impossibilidade de representar o Povo? É como se o fundo opaco da pintura (o Povo) a invadisse, ocupando toda a metade superior. O que acontece aqui é estruturalmente homólogo a um procedimento formal visto com frequência no film noir e nos filmes de Orson Welles, quando o desacordo entre a personagem e o fundo entra em ação: quando uma personagem se move em um quarto, por exemplo, o efeito é que os dois estão ontologicamente separados de certo modo, como se um plano tosco fosse projetado ao fundo e víssemos claramente que o ator não está no quarto, mas movimentando-se diante de uma tela sobre a qual é projetada a imagem do quarto. Em Marat assassinado, é como se víssemos Marat na banheira diante de uma tela escura sobre a qual um fundo falso ainda não foi projetado – é por isso que esse efeito também pode ser descrito como um efeito da anamorfose: nós vemos a figura, mas o fundo permanece uma mancha opaca; para enxergarmos o fundo, teríamos de borrar a figura. E é impossível termos a figura e o fundo no mesmo foco.
Não seria essa a mesma lógica do terror jacobino – os indivíduos devem ser aniquilados para que o Povo se torne visível; a Vontade do Povo só se torna visível pela destruição terrorista do corpo do indivíduo? Nisso reside a singularidade de Marat assassinado: ela admite que não pode borrar o indivíduo para representar diretamente o Povo; tudo o que pode fazer para se aproximar o máximo possível de uma imagem do Povo é mostrar o indivíduo em seu ponto de desaparição – o corpo torturado, mutilado, contra o borrão que “é” o Povo.
No entanto, temos aqui uma sublimação mínima em jogo: o que vemos em Marat assassinado é o corpo (sublime) de Marat, não sua carne (escoriada). Ou seja, todos sabemos que Marat sofria de uma doença que cobria sua pele de escaras e provocava coceira constante – sua pele quase queimava, literalmente. A única forma de evitar a dor e a vontade constante de se coçar era entrando na água. O Marat “real”, portanto, era como a “criatura do lago”, incapaz de sobreviver na luz e ao ar livre, alguém que só prospera em um elemento aquático “não natural”. Significativamente, David omite essa característica no retrato (assim como os retratos de Stalin omitem as cicatrizes que denigrem seu rosto): a pele das partes do corpo de Marat que conseguimos ver (rosto, ombros e braço) é suave e brilhante; além disso, há uma clara dessexualização de seu rosto, os traços são levemente arredondados e quase femininos. Referindo-nos à oposição paulina entre corpo e carne (os cristãos se livram da carne e entram no Corpus Christi, o corpo da Igreja), na qual a carne pertence aos judeus presos no ciclo da Lei e de sua transgressão (a Lei distingue a carne do corpo), podemos dizer que Marat assassinado também transforma a carne do “real” Marat em um corpo, de acordo com os aspectos cristológicos da pintura (a mão de Marat pendendo como se fosse Cristo; seu sacrifício pelo Povo, libertando e redimindo as pessoas etc.). Costuma-se falar de um Cristo fracassado – mas por que fracassado? Como afirmou Thomas Altizer, também na cristandade, somente o sofrimento pode ser representado vividamente, não a glória celestial que vem depois.
É impressionante que essa pintura inquietante e perturbadora tenha sido adorada pelas multidões revolucionárias de Paris – prova de que o jacobinismo ainda não era “totalitário”, ainda não se baseava na lógica fantasmática de um Líder que é o Povo. Sob Stalin, esse tipo de pintura seria inimaginável, a parte superior teria de ser preenchida – digamos, com o sonho de um Marat moribundo, retratando a vida feliz de um povo livre, que dança e comemora sua liberdade. A grandeza dos jacobinos está em sua tentativa de manter a tela vazia, de resistir a preenchê-la com projeções ideológicas. Desse modo, eles deram início a um processo que, na arte, culminou no minimalismo de Kazimir Malevich, com sua redução da pintura ao ato de registrar a diferença mínima e puramente formal entre o quadro e o fundo: Malevich é para a Revolução de Outubro o que Marat foi para a Revolução Francesa.
Depois da radicalidade minimalista das pinturas realizadas na década de 1910 e no início da década de 1920, com variações sobre o tema de um quadrado em uma superfície, a última década de produção de Malevich (1925-1935) foi marcada por um retorno à pintura figurativa; é claro que não se trata do antigo realismo – figuras “achatadas”, compostas por porções de cores abstratas, mas ainda assim porções claramente reconhecíveis como figuras (na maioria das vezes mulheres e camponeses). Esse retorno pode ser descrito como um mero compromisso com a nova política cultural, como uma reverência à pressão oficial? O próprio Malevich sinaliza sua persistência, sua fidelidade a essa ruptura “minimalista”, em seu último Autorretrato (1933) realista, em que uma mão aberta com os dedos esticados traça o contorno do quadrado ausente. O mesmo vale para Retrato da esposa do artista e Mulher trabalhadora, ambos do mesmo ano: a Virgem Maria se torna uma trabalhadora, o Menino Jesus desaparece, mas as mãos guardam a marca da forma da criança80. Não devemos nos esquecer de que o minimalismo das pinturas de “quadrado e superfície” não era um ponto zero assintótico, mas um ponto de partida, uma preparação do terreno diante de um novo começo. O fim é sempre um novo começo, e é por isso que devemos rejeitar o tema da abordagem assintótica do zero: nunca estamos realmente lá onde está a Coisa Real, só podemos chegar até o ponto da diferença/distância mínima, de estarmos quase lá. A lição hegeliana é que o ponto zero é o ponto que devemos ultrapassar para começar de novo “a partir do zero” – na arte, o quadrado negro de Malevich em uma superfície branca é uma marca do ponto zero liminar da diferença mínima que cria as condições para um novo começo.
Mas o que indica esse retorno à figuralidade? A partir da década de 1920, Malevich não só fez muitas pinturas de camponeses (e também de trabalhadores e esportistas), como começou a se vestir como um. Seus camponeses são pintados de modo abstrato-dessubjetivado: as figuras são reduzidas a formas planas extremamente coloridas, o rosto é simplificado em um círculo preto ou dividido geometricamente em partes simétricas coloridas, como em Meninas no campo (1928-1932), Esportistas (1928-1932), Camponesa (1930), Camponeses (1930), Figura vermelha (1928-1932) e Homem correndo (início da década de 1930; atrás dele há uma cruz vermelha). Como interpretar essa dessubjetivação? Temos aqui, de fato, uma defesa do campesinato contra a brutal mecanização e coletivização? “Rostos sem rosto, rostos que perderam a barba, bonecos sem braços, seres estigmatizados ou crucificados: os ícones de Malevich mostram a humanidade como vítima de uma devastação apocalítica niilista. Parece que foram congeladas na expectativa do fim do mundo.”81 Mas se essa é a mensagem, então ela pressupõe como padrão um retrato totalmente realista dos camponeses com traços ricos; em outras palavras, essa leitura implicaria que Malevich abandonasse seu avanço minimalista, reinterpretando-o retroativamente como uma representação da “insensibilidade” do homem moderno, não como um ato de libertação artística. Se, ao contrário, levarmos em conta a contínua fidelidade de Malevich a seu minimalismo, então os “rostos sem rosto” dos camponeses podem ser lidos como a instanciação de uma nova dimensão da subjetividade, do “sujeito dessubjetivado” pós-ideológico.
Essa leitura nos permite estabelecer uma ligação inesperada entre Malevich e Um corpo que cai, de Hitchcock: as formas negras que representam rostos nas últimas pinturas de Malevich pertencem à mesma série da qual faz parte o perfil escuro da cabeça de Judy em Um corpo que cai. Além disso, com respeito à história da pintura, podemos colocar Malevich como o terceiro e conclusivo termo da série composta por David, Munch e Malevich. Recordamos aqui a Madona, de Munch, em que o voluptuoso corpo feminino é desenhado dentro de uma moldura dupla; no pequeno espaço entre as duas linhas que formam a moldura, entre traços que lembram gotas de esperma, vemos um pequeno homúnculo, nada menos que a figura de O grito. Esse homúnculo está desesperado não por causa de uma falta ou vazio, mas porque é sobrepujado pelo fluxo do gozo excessivo: a Madona versus o esperma na moldura representa a incestuosa Coisa-Gozo versus os restos do mais-gozar.
A linha que parte de David, passa por Munch e chega a Malevich é clara. Em Munch, a figura de “Marat” é espremida na moldura, reduzida a um homúnculo, ao passo que o vazio escuro que cobre a maioria das pinturas de David é preenchido aqui pelo objeto incestuoso impossível. No quadro de Malevich, temos uma espécie de negação irônica da negação: a redução é total, tanto a moldura quanto o centro são reduzidos a nada, tudo o que resta é a diferença mínima, a linha puramente formal que separa a moldura do conteúdo que ela emoldura.
1 Oliver Feltham, “On Changing Appearances in Lacan and Badiou”, Umbr(a), n. 1, 2007, p. 121.
2 À primeira vista, talvez pareça que estamos muito longe de Hegel: o conceito de transfinito de Cantor – como algo que persiste para além do futuro, mantém-se lado a lado com ele e é isento dele como seu quadro eterno – não representa um caso exemplar daquilo que Hegel chama de “infinito abstrato”, que, na medida em que é externamente oposto ao finito e o exclui, é, em si mesmo, outra vez finito? E, em contrapartida, o “verdadeiro infinito” hegeliano não é imanente ao finito, não é a própria totalidade orgânica do finito em seu movimento de autossuprassunção? No entanto, é justamente essa noção “orgânica” do infinito como totalidade viva do finito que permanece no nível da Substância, pois, nele, o infinito ainda não é para si: é fundamental para Hegel que o infinito apareça, seja “posto como tal”, em sua diferença com o finito – somente assim passamos de Substância a Sujeito. Para Hegel, o “sujeito” enquanto poder da negatividade absoluta designa o ponto em que o infinito é posto como tal, em sua relação negativa com tudo o que é finito.
3 A rigor, o mesmo vale para a dimensão transcendental como tal. O campo da nossa experiência é, em princípio, “aberto”, infinito, alguma coisa sempre pode ser acrescentada a ele; chegamos à dimensão transcendental quando decidimos tratar esse campo “aberto” da experiência como um campo fechado, totalmente enquadrado, e tematizar o quadro que, embora não seja parte da nossa experiência, delineia a priori seus contornos.
4 Ver Colin McGinn, The Mysterious Flame: Conscious Minds in a Material World (Nova York, Basic Books, 2000).
a Trad. Fausto Castilho, ed. bilíngue, Petrópolis, Vozes, 2012. (N. E.)
5 Além disso, é inacreditável quão kantianas são essas formulações (recordamos a famosa frase de Kant, “’Eu’, ou ‘ele’, ou ‘aquilo’, a coisa que pensa” [Crítica da razão pura, §B404, A346]), e é por isso que ficamos tentados a aplicar nelas a solução ou virada kantiana: essa incognoscibilidade da consciência para consigo mesma é sua própria solução, posto que a consciência é essa lacuna no/do ser.
5 Steven Pinker, Como a mente funciona (trad. Laura Teixeira Motta, São Paulo, Companhia das Letras, 1998), p. 590.
7 Ibidem, p. 550.
8 Franz Kafka, The Blue Octavo Notebooks (org. Max Brod, Cambridge, Exact Change, 1991), p. 53.
9 Ver Patrick Süskind, Perfume: história de um assassino (trad. Flávio R. Kothe, 29. ed., Rio de Janeiro, Record, 2012).
10 Sean Martin, Andrei Tarkovsky (Harpenden, Pocket Essentials, 2005), p. 49.
11 Tarkovsky faz referência à lenda de que, no auge do Grande Expurgo, uma edição do Pravda quase foi publicada com um erro de impressão no nome de Stalin: “Sralin” – “cagão”, do verbo “srat”, cagar. No fim da cena, aliviada por não ter deixado passar o erro fatal, a atriz sussurra a palavra no ouvido de uma amiga.
12 Sean Martin, Andrei Tarkovsky, cit., p. 135.
b Trad. José Sanz, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2003. (N. E.)
13 Nick Bostrom, “Playthings of a Higher Mind”, Times Higher Education Supplement, 16 maio 2003. Também conhecido como: “The Simulation Argument: Why the Probability That You Are Living in a Matrix is Quite High” [O argumento da simulação: por que é alta a probabilidade de estarmos vivendo em uma Matrix].
14 Anna Larina, This I Cannot Forget: The Memoirs of Nikolai Bukharin’s Widow (Nova York, W. W. Norton, 1993), p. 355.
15 Jacques-Alain Miller, “Uma leitura do Seminário, livro 16: de um Outro ao outro”, Opção lacaniana, n. 48, mar. 2007, p. 12.
16 Uma das histórias de Na solidão da noite, um filme de terror antológico, joga com esse mesmo registro: um casal muda-se para uma casa em cuja sala de estar há um espelho antigo; ao anoitecer, quando olha para o espelho, o marido vê uma cena totalmente diferente da realidade da sala, um cômodo antiquado com uma lareira. A explicação é que, dois séculos antes, um terrível assassinato foi cometido naquela mesma sala, e é “lembrado” pelo espelho.
17 Conversa privada.
18 A referência direta às fórmulas de sexuação (supereu “masculino” versus “pulsão” feminina) também tem seus limites.
19 Segundo Freud, o amor surge do desejo inibido: o objeto cuja consumação (sexual) é evitada é posteriormente idealizado como objeto de amor. É por isso que Lacan estabelece uma ligação entre amor e pulsão: o espaço da pulsão é definido pela lacuna entre sua meta (objeto) e seu alvo, o que não significa atingir diretamente seu objeto, mas circundá-lo, repetir o fracasso em alcançá-lo – amor e pulsão compartilham essa estrutura de inibição. E essa mesma passagem não determina também o status do Evento badiouiano com referência ao modo como ele se relaciona com a ordem do Ser? Um Evento inscreve-se na ordem do Ser deixando nela seus traços, ou melhor, um Evento não é senão uma certa distorção ou virada na ordem do Ser. Os quatro estágios no desenvolvimento do objeto a podem efetivamente ser aplicados ao Evento em sua relação com o Ser: (1) há a ordem do Ser; (2) essa ordem é deixada incompleta ou inconsistente pelo milagre de um Evento; (3) esse Evento surge como ponto virtual de consistência que só torna legível a tessitura inconsistentemente distorcida do Ser; e (4) o Evento surge como nada mais que essa distorção do Ser. Mas talvez essa referência a Lacan também nos permita identificar o que falta ao esquema de Badiou: não seria possível pensar essa distorção do Ser independentemente do (ou anteriormente ao) Evento, de modo que o “Evento”, no fim, nomeie uma “fetichização” da distorção imanente da tessitura do Ser em seu objeto-causa virtual? E o nome freudiano-lacaniano para isso não é pulsão, a pulsão de morte?
20 Jacques-Alain Miller, “Uma leitura do Seminário, livro 16: de um Outro ao outro”, cit., p. 20.
21 Ibidem, p. 18.
22 Jacques Lacan, Seminário de 3 de março de 1972, ...ou pire, não publicado.
23 Na medida em que esse objeto é o objeto fantasmático elementar (ver o matema da fantasia de Lacan, $-a), outra maneira de colocar o mesmo problema é dizer que nosso senso de realidade se desintegra no momento que a realidade chega muito perto de nossa fantasia fundamental. Aqui, devemos ter cuidado para não deixar escapar o paradoxo: quando exatamente acontece a experiência de “perda da realidade”? Não, como poderíamos imaginar, quando o abismo que separa “palavras” e “coisas” cresce demais, de modo que a “realidade” não parece mais se encaixar no quadro ou horizonte da nossa pré-compreensão simbólica, mas, ao contrário, quando a “realidade” corresponde às “palavras” de forma mais estrita, quando o conteúdo de nossas palavras é realizado de maneira excessivamente “literal”. Basta recordarmos a reação estranha de Freud quando, depois de fantasiar durante muitos anos sobre a Acrópole, ele a visitou pela primeira vez: Freud ficou tão encantado com o fato de que as coisas que leu desde jovem existissem de fato e parecessem exatamente como eram descritas nos livros, que sua primeira reação foi um sentimento avassalador de “perda da realidade” – “Não, isso não pode ser real...”.
24 Ver François Balmès, Ce que Lacan dit de l’être (Paris, Presses Universitaires de France, 1999).
25 Ibidem, p. 138.
26 Balmès também observa essa circularidade assimétrica na relação entre o Real, a realidade e a simbolização: a realidade é o Real domesticado – de forma mais ou menos grosseira – pelo simbólico; dentro desse espaço simbólico, o Real volta como seu corte, lacuna, ponto de impossibilidade (ver, por exemplo, François Balmès, Ce que Lacan dit de l’être, cit., p. 177).
27 Ver Michel Chion, La voix au cinéma (Paris, Cahiers du Cinéma, 1982).
28 Se imaginarmos os respectivos campos do que vemos e do que ouvimos como dois círculos em interseção, essa interseção não é apenas o que vemos e ouvimos; ela tem dois lados: a voz que vemos (mas não ouvimos) e a imagem do que ouvimos (mas não vemos).
29 No entanto, embora não seja possível “ver-se olhar”, é possível, pela mesma razão, “ver-se [ser] visto” (se voir être vu) – nisso consiste o gozo do exibicionismo: ver-se sendo exposto ao olhar do outro. Por outro lado, a própria possibilidade de “ouvir-se falar” impede “ouvir-se ser ouvido” (s’entrendre être entendu) –, como disse Lacan, quem “se ouve ser ouvido” é precisamente quem “ouve vozes”, psicóticos com alucinações auditivas. Ver Jacques Lacan, O seminário, livro 8: a transferência (2. ed., Rio de Janeiro, Zahar, 2010), p. 300.
30 George Balanchine montou uma curta peça orquestrada composta por Webern (todas eram curtas) em que, quando a música acaba, os bailarinos continuam dançando em completo silêncio, como se não percebessem que a música que fornecia a substância para a dança já havia acabado. É como o morto-vivo que habita as frestas do tempo vazio: seus movimentos, sem suporte vocal, é o que nos permite ver não só a voz, mas também o próprio silêncio.
c Marcel Proust, Em busca do tempo perdido (trad. Fernando Py, Rio de Janeiro, Ediouro, 2009), v. 2, p. 115. (N. T.)
d Ibidem, p. 116. (N. T.)
e Ibidem, p. 114. (N. T.)
f Na edição inglesa usada por Žižek (The Guermantes Way, trad. C. K. Scott Moncrieff, Nova York, Modern Library, 1952), “anxiété” (ansiedade) é traduzida por “anxiety”; esse termo, aliás, também costuma traduzir “angoisse” (angústia). (N. T.)
31 Mladen Dolar, “Telephone and Psychoanalysis”, Filozofski Vestnik, v. 29, n. 1, 2008, p. 12. Aqui, baseio-me amplamente nesse texto.
32 Acontece algo parecido na seção psicanalítica, quando, precisamente, o paciente é reduzido a uma voz: “da voz ordinária a psicanálise tira uma voz de telefone” (Mladen Dolar, “Telephone and Psychoanalysis”, cit., p. 22).
33 Ibidem, p. 11.
g Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, cit., v. 2, p. 119-20. (N. T.)
34 A questão, por conseguinte, não é só que a voz preenche o buraco da imagem: a voz recorta ao mesmo tempo esse buraco. O que temos aqui, mais uma vez, é o paradoxo da fantasia que preenche a lacuna que ela mesma abre: o elemento que ela oculta é o mesmo que ela revela, isto é, o mesmo processo de ocultação cria o conteúdo oculto, cria a impressão de que há algo a ocultar. Uma das cenas filme Alta ansiedade, de Mel Brooks, passa-se durante uma conferência sobre psicanálise, e duas crianças sentam-se na primeira fila da plateia. O conferencista, diante das crianças curiosas e questionadoras, sente-se envergonhado quando começa a falar de perversão, falo, castração etc.; para contornar o problema, traduz o complexo jargão psicanalítico em um “linguajar infantil” (“papai ameaça cortar o pintinho do menino” etc.). Aqui, a mancada está no fato de que a própria tentativa de adaptar o conteúdo para não assustar as crianças (e assim neutralizar o impacto traumático) torna-o acessível para elas – se o conferencista tivesse simplesmente lido o texto original, as crianças não teriam a menor ideia do conteúdo.
35 Platão, A República (trad. Carlos Alberto Nunes, 3. ed., Belém, Edufpa, 2000), 515b, p. 320.
36 Peter Conrad, The Hitchcock Murders (Londres, Faber & Faber, 2000), p. 159.
37 Galit Hasan-Rokem, Web of Life: Folklore and Midrash in Rabbinic Literature (Stanford, Stanford University Press, 2000).
h Trad. Beatriz Viégas-Faria, Porto Alegre, L&PM, 2007. (N. E.)
i Trad. Beatriz Viégas-Faria, Porto Alegre, L&PM, 2009. (N. E.)
38 No segundo semestre de 2007, a imprensa bósnia registrou um curto-circuito comunicativo maluco: uma esposa, decepcionada com o casamento, fez contato com um marido, também decepcionado, em uma sala de bate-papo na internet; ambos encontraram no parceiro virtual (conhecido apenas por um pseudônimo) o que faltava ao parceiro da vida real e apaixonaram-se perdidamente. A mulher escreveu: “Acho que enfim encontrei alguém que me entende, pois ele, assim como eu, estava preso em um casamento infeliz”. O casal virtual acabou decidindo correr o risco de se encontrar na vida real – e descobriu que o parceiro virtual era o cônjuge na vida real! O decepcionado casal da vida real construiu um casal ideal no espaço virtual.
39 Um paciente latino-americano contou a seu analista um sonho em que sentiu uma compulsão insuportável de comer doces. O analista foi sábio o bastante para evitar qualquer referência precipitada à pulsão oral etc. e concentrou-se na expressão espanhola “comer um doce”, que significa engolir uma mentira ou fantasia (dizer que alguém “me deu um doce para comer” significa que ele me convenceu com mentiras reconfortantes). O sonho, portanto, revelava a ânsia do paciente de ser protegido por uma teia de fantasias com o intuito de suavizar o impacto do Real.
40 Jacques Lacan, O seminário, livro 8: a transferência (trad. Dulce Duque Estrada, Rio de Janeiro, Zahar, 1992), p. 289.
41 Se tivéssemos de especular por que o falo enquanto órgão foi escolhido para funcionar como o significante fálico, a característica que o “predispõe” para esse papel seria a característica evocada por santo Agostinho: o falo é o órgão da força/potência, contudo é um órgão cuja exibição de potência escapa essencialmente ao controle do sujeito – com a suposta exceção de alguns sacerdotes hindus, não se pode provocar uma ereção à vontade, por isso ela atesta uma força estranha que age no cerne do sujeito.
42 A outra (má) interpretação, intimamente relacionada à primeira, concerne à oposição entre a economia fálica e a pluralidade polimórfica das posições do sujeito: segundo a visão-padrão, a tarefa da economia fálica é moldar a dispersa pluralidade pré-edípica das posições do sujeito em um sujeito unificado, subordinado ao domínio do Nome-do-Pai (portador e retransmissor da autoridade social), e, como tal, o sujeito ideal do Poder (social). Aqui, devemos colocar em discussão a suposição subjacente de que o Poder se exerce via sujeito edípico unificado e inteiramente submetido à Lei paternal fálica e, inversamente, que a dispersão do sujeito unificado em uma multitude de posições do sujeito, por assim dizer, destrói automaticamente a autoridade e o exercício do Poder. Contra esse lugar-comum, precisamos ressaltar mais algumas vezes que o Poder sempre nos interpela, aborda, como sujeitos cindidos, e que, para se reproduzir, ele depende de nossa cisão: a mensagem com que o discurso de poder nos bombardeia é inconsistente por definição, sempre há uma lacuna entre o discurso público e o suporte fantasmático. Longe de ser uma espécie de fraqueza secundária, ou seja, um sinal da imperfeição do Poder, essa cisão é constitutiva de seu exercício. Com respeito à chamada forma “pós-moderna” de subjetividade que condiz com o capitalismo tardio, devemos dar mais um passo: o sujeito “pós-moderno” é compreendido, no nível do discurso público, como um amontoado de múltiplas “posições subjetivas” (um yuppie economicamente conservador, mas sexualmente “iluminado”).
43 Para uma exposição clara das diferentes versões de “Sei muito bem, mas...”, ver Octave Mannori, “Je sais bien, mais quand même...”, em Clefs pour l’imaginaire, ou l’autre scène (Paris, Seuil, 1968). Para uma leitura política dessa declaração, ver Slavoj Žižek, For They Know Not What They Do (Londres, Verso Books, 2002).
44 A mesma lógica parece valer no populismo anticomunista de direita, que ultimamente vem ganhando força nos países ex-socialistas do Leste Europeu: sua resposta para os problemas atuais, inclusive o econômico, é que, embora tenham oficialmente perdido o poder, os comunistas continuam mexendo os pauzinhos, controlando as alavancas do poder econômico, dominando a mídia e as instituições estatais. Os comunistas são vistos, desse modo, como uma entidade fantasmática ao modo dos judeus: quanto mais perdem poder público e tornam-se invisíveis, mais forte se torna sua onipresença fantasmática, seu controle indistinto. Essa ideia fixa dos populistas – segundo a qual o que está surgindo nos países pós-socialistas não é o “verdadeiro” capitalismo, mas uma falsa imitação, cujos controle e poder efetivos permanecem nas mãos de ex-comunistas travestidos de novos capitalistas – também oferece um caso exemplar de ilusão, cujo mecanismo foi exposto pela primeira vez por Hegel: o que os populistas não reconhecem é que sua oposição a esse “falso” capitalismo é, na verdade, uma oposição ao capitalismo tout court, isto é, eles, e não os ex-comunistas, são os verdadeiros herdeiros ideológicos do socialismo – não admira que os populistas sejam impelidos a ressuscitar a antiga oposição comunista entre a democracia “formal” e a “verdadeira”. Em suma, estamos lidando com mais um exemplo da ironia do processo revolucionário, já descrita por Marx: de repente, os revolucionários percebem, surpresos, que eram meros mediadores efêmeros, cujo “papel histórico” era preparar o terreno para a dominação dos antigos com um novo disfarce.
45 Um exemplo clássico dessa oposição entre a autoridade simbólica e o Mestre espectral invisível é dado em O ouro do Reno, de Wagner, como oposição entre Wotan e Alberich.
46 Na verdade, a posição do milionário é ainda mais complexa. Quando uma mulher diz a um homem: “Não amo você por seus milhões (ou seu poder...), mas pelo que você realmente é!”, isso significa o quê? Quanto mais ela “diz isso com sinceridade”, tanto mais é vítima de uma espécie de ilusão de perspectiva e tanto menos nota que o próprio fato de que (as pessoas sabem que) sou milionário (ou um homem de poder) afeta a percepção que as pessoas têm do que eu sou “em mim mesmo”, independentemente dessa minha propriedade. Enquanto eu for rico, as pessoas me verão como uma personalidade forte e independente, mas, no momento em que eu perder meus milhões, elas verão em mim de repente um frouxo tapado (ou vice-versa). Em suma, o paradoxo reside no fato de que somente uma mulher que (sabe que) me ama por meus milhões é capaz de me ver como eu realmente sou, pois minha riqueza não distorce mais sua percepção.
47 E se houve – e, na verdade, sempre há – uma conspiração ou um escândalo de corrupção em que o próprio poder estatal esteja envolvido? A lógica fantasmática da Conspiração impede efetivamente a revelação pública das conspirações atuais, dos casos de corrupção etc. – a eficácia da lógica fantasmática da Conspiração requer que o Inimigo continue sendo uma entidade imperscrutável, cuja verdadeira identidade jamais poderá ser revelada plenamente.
48 Richard Boothby, Freud as Philosopher (Nova York, Routledge, 2001), p. 275-6.
49 A vida de David Gale (2003), dirigido por Alan Parker e escrito por Charles Randolph, conta a história de um texano que leciona filosofia na Webster University, em Viena.
50 Jacques-Alain Miller, “As prisões do gozo”, Opção Lacaniana, n. 54, maio 2009, p. 17-8.
51 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., § 165, p. 118.
52 Ibidem, § 146, p. 104.
53 Ibidem, § 147, p. 104.
54 Jacques-Alain Miller, “As prisões do gozo”, cit., p. 19.
55 Jacques Lacan, O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (trad. M. D. Magno, 2. ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1996), p. 109.
56 Jacques-Alain Miller, “As prisões do gozo”, cit., p. 18-9.
57 Aqui encontramos a limitação do procedimento de Descartes da exaustão da ficção: não posso fingir que não sou. É exatamente isso que acontece na fantasia, cujas coordenadas elementares são a retração do sujeito a um olhar que observa o mundo como se imagina que ele é na ausência do sujeito.
58 Jacques-Alain Miller, “The Prisons of Jouissance”, lacanian ink 33, 2009, p. 45.
59 Ibidem, p. 45-6.
60 Pippin observou o contraste entre o sublime kantiano e o sublime religioso: enquanto este visa provocar um assombro humilhante (não sou ninguém diante do poder divino infinito e inconcebível), na visão “herética” de Kant, a experiência do sublime é um processo de duas etapas que culmina na asserção da “supremacia absoluta do homem sobre toda a natureza em virtude de sua vocação moral e sua independência de qualquer condição ou poder” (Robert Pippin, The Persistence of Subjectivity, cit., p. 294).
61 Essa falta ou imperfeição do (grande) Outro é expressa de maneira maravilhosamente simples em uma piada sobre dois amigos que tentam acertar uma lata com uma bola. Depois de acertá-la várias vezes, um deles diz: “Mas que diabo, errei!”. O amigo, um religioso fanático, reclama: “Como se atreve a falar assim, que blasfêmia! Tomara que Deus puna você, acertando-o com um raio!”. Algum tempo depois, o raio realmente cai, mas acerta o religioso, que, gravemente ferido e quase morrendo, olha para o céu e pergunta: “Mas por que acertaste a mim, meu Deus, e não o verdadeiro culpado?”. Uma voz grave ressoa do céu: “Mas que diabo, errei!”.
62 Existe certo literalismo anti-hermenêutico que pertence ao núcleo da espiritualidade judaica. David Grossman contou-me uma anedota pessoal encantadora: pouco antes do conflito árabe-israelense de 1967, quando ele soube pelo rádio da ameaça dos árabes de jogar os judeus no mar, sua reação foi fazer aulas de natação – uma reação judaica paradigmática, se é que isso existe, no espírito da longa conversa entre Josef K. e o padre (o capelão da cadeia) que se segue à parábola da porta da lei.
63 O sinthoma deve ser oposto ao matema: embora ambos pertençam ao espaço enigmático “entre natureza e cultura”, entre dados sem sentido e significado – ambos são pré-semânticos, fora do domínio do significado, e não obstante são significantes e, como tais, irredutíveis à tessitura sem significado dos dados positivos –, “sinthoma” é o nome dado à fórmula mínima que fixa/registra o que Eric Santner chamou de “demasiadidade”? O sinthoma é uma fórmula que condensa o excesso de jouissance, e essa dimensão claramente falta no matema, cujos casos exemplares são declarações científicas matematicamente formalizadas – os matemas não implicam nenhum investimento libidinal, eles são neutros, dessubjetivados.
64 Música e letra disponíveis no álbum Die Partei hat immer Recht: Eine Dokumentation in Liedern (Amiga, BMG 74321394862).
65 Baseio-me aqui em Paul-Laurent Assoun, Leçons psychanalytiques sur le regard et la voix (Paris, Anthropos, 2001), v. 1 e 2.
66 Essa diferença também pode ser relacionada com a diferença entre a incapacidade de agir e o passage à l’acte: a posição histérica envolve um ato bloqueado, a procrastinação, a oscilação, gestos vazios (que funcionam como “atuação”, um gesto teatral, em vez de um ato verdadeiro); a posição psicótica envolve o Real de um violento passage à l’acte que suspende o próprio grande Outro.
67 Aqui, o mais perturbador é a ignorância do Outro, como no famoso sonho em que ando nu na rua ou em algum lugar público, mas as pessoas me ignoram e se comportam como se nada de extraordinário estivesse acontecendo – isso é muito mais perturbador do que as expressões de choque diante da minha nudez.
68 Jacques-Alain Miller, “As prisões do gozo”, cit., p. 21-2.
69 Ibidem, p. 25.
70 Ver Peter Sloterdijk, Du musst dein Leben ändern (Frankfurt, Suhrkamp, 2009).
71 Ibidem, p. 45.
72 Ibidem, p. 44.
73 Jacques-Alain Miller, “As prisões do gozo”, cit., p. 23.
74 Ibidem, p. 25.
75 Note-se que, para Lacan, em contraste com Heidegger e Freud, a angústia tem seu objeto, que é o objeto-causa do desejo, o objet petit a em todas as suas versões. A angústia não surge quando o objeto está ausente, mas no caso de sua proximidade excessiva.
76 A. B. Yehoshua, “An Attempt to Identify the Root Cause of Antisemitism”, Azure, n. 32, 2008, p. 71.
77 É óbvio que estou parafraseando a declaração de Lacan: “O quadro está em meu olho, mas eu, eu estou no quadro”.
78 Esse ponto de vista impossível costuma ser usado em piadas. Uma piada chinesa sobre sexo relata uma conversa entre dois irmãos que ainda são fetos no útero da mãe; um diz para o outro: “Adoro quando papai vem nos visitar, mas por que ele é tão grosseiro no fim de cada visita e cospe na gente?”. O outro responde: “É verdade, nosso tio é mais legal: ele sempre vem com um chapéu de borracha na cabeça e não cospe na gente!”.
79 O escândalo do suposto abuso sexual cometido por Dominique Strauss-Kahn contra uma camareira em Nova York, no início de 2011, colocou-nos diante de uma nova variação do tema dos “dois corpos do rei”. Nesse caso, tínhamos os dois corpos do banqueiro: o “juízo infinito sobre DSK” afirma a identidade definitiva do corpo sublime de um banqueiro importante e o ridículo corpo tumescente de um sedutor compulsivo. Algo semelhante pode ser encontrado em filmes como Percy Jackson e Thor, nos quais, respectivamente, um deus grego antigo e um deus nórdico (Perseu e Thor) encontram-se no corpo de um adolescente norte-americano confuso.
80 É significativo que essa persistência seja sinalizada pela mão agindo como um “órgão sem corpo” autônomo, transmitindo uma mensagem própria.
81 Gilles Neret, Malevich (Colônia, Taschen, 2003), p. 84.