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O QUARTETO DA LUTA, HISTORICIDADE,
VONTADE... E
GELASSENHEIT

Por que Lacan não é heideggeriano

O principal proponente da crítica da subjetividade é Heidegger, uma das principais referências de Lacan, pelo menos na década de 1950. Por essa razão, é fundamental esclarecer como Lacan deixou pouco a pouco de aceitar a crítica heideggeriana do cogito cartesiano como mais uma versão da “descentralização” freudiana do sujeito e passou à adoção paradoxal e contraintuitiva do cogito como sujeito do inconsciente.

O ponto de partida de Lacan é a noção freudiana de uma Bejahung (afirmação) em oposição a Verwerfung (geralmente (mal) traduzida por “forclusão”): ele interpreta a Bejahung como simbolização primordial, contra o pano de fundo da noção heideggeriana da essência da linguagem como abertura do ser. No entanto, as coisas complicam-se rapidamente aqui. Como vimos antes, em Freud há quatro formas principais ou quatro versões de “Ver-”: Verwerfung (forclusão/rejeição), Verdrängung (repressão), Verneinung (negação) e Verleugnung (renegação). Na Verwerfung, o conteúdo é expulso do simbólico, dessimbolizado, de modo que só pode retornar no Real (na forma de alucinações). Na Verdrängung, o conteúdo permanece no simbólico, mas é inacessível à consciência, relegado à Outra Cena, retornando na forma de sintomas. Na Verneinung, o conteúdo é admitido na consciência, mas é marcado por uma negação. Na Verleugnung, ele é admitido como forma positiva, mas sob a condição de Isolierung – seu impacto simbólico é suspenso, não é de fato integrado no universo simbólico do sujeito. Tomemos o significante “mãe”: ele é forcluído ou rejeitado, simplesmente não tem lugar no universo simbólico do sujeito; se é reprimido, forma a referência oculta dos sintomas; se é negado, temos a forma já familiar de “não sei quem é essa mulher no meu sonho, mas sei que não é a minha mãe!”; se é renegado, o sujeito fala calmamente sobre a mãe, reconhecendo tudo (“Sim, é claro que essa mulher é minha mãe!”), mas continua impassível diante do impacto dessa admissão. É fácil perceber como a violência da exclusão diminui aos poucos aqui: da expulsão radical, por meio da repressão (quando o reprimido retorna no simbólico) e da negação (quando o conteúdo negado é admitido na consciência), à renegação, quando o sujeito pode falar abertamente sobre o conteúdo reprimido, sem negá-lo.

Todas as quatro formas já pressupõem que a ordem simbólica está em funcionamento, pois lidam com o modo como um conteúdo se relaciona com ela; consequentemente, uma pergunta mais radical, “transcendental”, deve ser feita aqui: a da negatividade que encontra a própria ordem simbólica. O que Freud chamou de Ur-Verdrängung (repressão primordial) é um candidato para esse papel? A repressão primordial não é a repressão de um conteúdo no inconsciente, mas a repressão constitutiva do inconsciente, o gesto que cria o próprio espaço do inconsciente, a lacuna entre o sistema consciente/pré-consciente e o inconsciente. Devemos avançar aqui com muito cuidado: essa separação primordial entre Eu e inconsciente, que gera todas as variações anticartesianas comuns (“Não sou onde penso” etc.), não deve ser concebida apenas como a separação entre o Eu e a Substância inconsciente, de modo que eu perceba o núcleo do meu ser fora de mim mesmo, fora do meu alcance. A lição hegeliana de Lacan é que a descentralização é sempre redobrada: quando o sujeito se encontra descentralizado, desprovido do núcleo de seu ser, isso significa que o Outro, o lugar descentralizado do ser do sujeito, também está descentralizado, truncado, desprovido do X imperscrutável que garantiria sua consistência. Em outras palavras, quando o sujeito é descentralizado, o núcleo do seu ser não é a Substância natural, mas o “grande Outro”, a “segunda natureza”, a ordem simbólica virtual que é formada ao redor de uma falta. A lacuna que separa o sujeito do grande Outro, portanto, é simultaneamente a lacuna no cerne do próprio Outro. Essa sobreposição das duas faltas é o que torna tão difícil formular a relação ambígua entre a Ausstossung (expulsão do Real que constitui o surgimento da ordem simbólica) e a Verwerfung (a “forclusão” de um significante, do simbólico no Real) em Freud e Lacan – ora elas são relacionadas, ora distintas. François Balmès faz uma observação apropriada:

Se a Ausstossung é o que pensamos que é, trata-se de algo radicalmente diferente da Verwerfung: longe de ser o mecanismo próprio da psicose, ela seria a abertura do campo do Outro como tal. Em certo sentido, não seria a rejeição do simbólico, mas a simbolização em si. Não devemos pensar em psicose e alucinação, mas no sujeito como tal. Clinicamente, isso corresponde ao fato de que a forclusão não impede os psicóticos de habitar a linguagem.1

Essa conclusão é o resultado de uma série de questões precisas. O fato é que os psicóticos podem falar; em certo sentido, eles habitam a linguagem: “forclusão” não significa que estão excluídos da linguagem, mas a exclusão ou suspensão da eficácia simbólica de um significante-chave dentro do universo simbólico – se um significante é excluído, então devemos já estar na ordem significante. Na medida em que, para Freud e Lacan, a Verwerfung é correlata de Bejahung (a “afirmação”, o gesto primordial de assumir subjetivamente o próprio lugar no universo simbólico), a solução de Balmès é fazer a distinção entre Bejahung e uma simbolização ainda mais originária (ou “primária”) do Real, o nível zero quase mítico do contato direto entre o simbólico e o Real que coincide com o momento de sua diferenciação, o processo do advento do simbólico, do surgimento da bateria primária de significantes, cujo anverso (negativo) é a expulsão do Real pré-simbólico. Quando o Homem-lobo, com um ano de idade, viu o coitus a tergo dos pais, ficou em sua mente um traço de memória: ele foi simbolizado, mas apenas retido como traço libidinalmente neutro. Só depois de três anos ou mais – depois que as fantasias sexuais do Homem-lobo foram despertadas e ele teve curiosidade em saber de onde vêm as crianças – é que esse traço foi bejaht, propriamente historicizado, ativado na narrativa pessoal do Homem-lobo como modo de localização no universo do significado. Os psicóticos dão o primeiro passo, eles habitam a ordem simbólica; o que são incapazes de fazer é envolver-se subjetivamente ou performativamente na linguagem, “historicizar” seu processo subjetivo – em suma, realizar a Bejahung.

Como Balmès notou de maneira perspicaz, é por essa razão que a falta acontece em um nível diferente na psicose: os psicóticos continuam habitando o denso espaço simbólico do “pleno” e primordial grande Outro (maternal), eles não assumem a castração simbólica no sentido próprio de perda que é, em si, libertadora, generosa, “produtiva”, abrindo espaço para que as coisas apareçam em seu ser (significativo); para eles, uma perda só pode ser puramente privativa, uma questão de algo que lhes é tirado.

Em um movimento interpretativo arriscado, Lacan vincula essa simbolização “primária” – que é acessível aos psicóticos e precede o envolvimento subjetivo que lhes falta – à distinção de Heidegger entre a dimensão originária da linguagem como abertura do Ser e a dimensão da fala como portadora de significações (subjetivas) ou meio de reconhecimento intersubjetivo. Nesse nível originário do dizer enquanto mostrar (Sagen como Zeigen), a diferença entre significação e referência desaparece, uma palavra que diz uma coisa não a “significa”, ela a constitui ou abre em seu Ser, revela o espaço de sua existência. Esse nível é o nível da aparência como tal, não da aparência enquanto oposta à realidade por trás dela, mas sim do “puro” aparecer que “está” inteiramente em seu aparecer, por trás do qual nada existe. Em seu seminário sobre psicose, Lacan dá uma descrição interessante desse puro aparecer, e da concomitante tentação propriamente metafísica de reduzi-la a seu fundamento, a suas causas ocultas:

O arco-íris, é isso. E este é isso supõe a implicação de que vamos nos comprometer nisso até que percamos o fôlego, para saber o que há de escondido atrás, qual é a sua causa, a que poderemos reduzi-lo. Observem bem que o que desde a origem caracteriza o arco-íris e o meteoro, e todo mundo o sabe pois que é por isso que o nomearam meteoro, é que precisamente não há nada escondido atrás. Ele está inteiramente nessa aparência. O que contudo o faz subsistir para nós, a ponto de que não cessemos de nos colocar questões sobre ele, deve-se unicamente ao é isso da origem, a saber, à nomeação como tal do arco-íris. Não há nada mais que esse nome.2

O momento reflexivo inerente da “declaração” (o fato de que cada comunicação de um conteúdo, ao mesmo tempo, sempre “declara-se” como tal) é o que Heidegger identificou como o “como tal” que especifica a dimensão propriamente humana: um animal percebe uma pedra, mas não percebe essa pedra “como tal”. Essa é a “reflexividade” do significante: cada elocução não só transmite um conteúdo, como também, simultaneamente, determina como o sujeito se relaciona com esse conteúdo (nos termos do idealismo alemão, determina que cada consciência é sempre-já consciência-de-si). Em termos heideggerianos, o psicótico não é welt-los, desprovido do mundo: ele já mora na abertura do Ser.

No entanto, como costuma acontecer com Lacan, essa leitura vem acompanhada de seu oposto (assimétrico, verdadeiro): uma leitura que atribui aos psicóticos o acesso a um nível “superior” de simbolização e os priva de um nível básico “inferior”. Na medida em que Lacan interpreta a distinção freudiana entre “representações das coisas” (Sach-Vorstellungen) e “representações das palavras” (Wort-Vorstellungen) como interna à ordem simbólica – como a distinção entre simbolização primordial, o estabelecimento de uma bateria de significantes do inconsciente originário (“traços de memória”, na linguagem do jovem Freud, pré-psicanalítico), e simbolização secundária, o sistema consciente/pré-consciente da linguagem –, isso o supre de uma definição paradoxal da situação dos psicóticos: o psicótico não é aquele que regressa a um nível mais “primitivo” das representações das coisas, que “trata palavras como coisas”, como se costuma dizer; ele é, ao contrário, alguém que precisamente se dispõe das representações das palavras sem as representações das coisas3. Em outras palavras, o psicótico pode usar a linguagem normalmente, mas falta a ele o fundo inconsciente que dá às palavras que usamos sua ressonância libidinal, sua cor e seu peso subjetivo específico. Sem esse fundo, a interpretação psicanalítica é impotente, inoperante: “Na psicanálise, a verdade não tem efeito, o que não impede o psicótico de dizê-la melhor que qualquer outra pessoa”4. Essa também é uma das maneiras de entender a afirmação enganosamente “excêntrica” de Lacan, segundo a qual a normalidade é uma espécie de psicose: a definição “normal” que o senso comum dá à linguagem é como um sistema de signos artificial e secundário que usamos para transferir a informação preexistente etc. – mas essa definição ignora o nível subjacente do envolvimento subjetivo, a posição da enunciação; o paradoxo do psicótico é que ele é o único que se encaixa totalmente nessa definição, ou seja, que efetivamente usa a linguagem como instrumento neutro secundário que não diz respeito ao próprio ser de quem fala:

certos significantes não entram na escrita inconsciente, e esse é o caso do significante paternal na psicose. Isso não impossibilita sua presença no nível pré-consciente – como vemos no caso de significantes que chamamos de forcluídos na psicose e que estão à disposição do sujeito em sua linguagem.5

Essa oscilação parece indicar que existe algo errado na solução de distinguir os dois níveis, o nível da simbolização primária e o nível da Bejahung/Verwerfung. (Soluções que se baseiam apenas na distinção entre diferentes níveis são suspeitas a priori.) O que escapa é o paradoxo básico do simbólico enquanto os dois no mesmo: em última análise, a expulsão do Real do simbólico e a rejeição de um significante se sobrepõem; ou seja, no caso do Outro simbólico, as limitações externas e internas coincidem, a ordem simbólica só pode surgir como delimitada a partir do Real se for delimitada a partir de si, perdendo ou excluindo uma parte central de si mesma, não idêntica consigo. Desse modo, não há Ausstossung sem uma Verwerfung – o preço que o simbólico tem de pagar para delimitar-se do Real é seu próprio ser-truncado. É isso que visa Lacan com sua fórmula de que não existe grande Outro, não há Outro do Outro – e, como o último Lacan sabia muito bem, isso indica que, em um nível muito mais básico, todos nós somos psicóticos. No entanto, devemos ser mais precisos neste ponto: o significante que é forcluído não é simplesmente ausente, um significante faltoso, mas um significante que representa o A barrado, a falta do significante, a inconsistência/incompletude do campo simbólico. O problema do psicótico, então, não é que ele habita uma ordem (Outro) simbólica truncada, mas, ao contrário, ele habita um Outro “completo”, um Outro que carece da inscrição de sua falta.

Portanto, não há nenhuma necessidade de postular duas fases – primeiro a simbolização, o advento da bateria primária de significantes pela expulsão do Real, depois a exclusão de um significante: os dois processos são um e o mesmo, e a psicose vem depois, em um segundo estágio, quando – se – o significante que representa a própria incompletude ou inconsistência do Outro, registra essa incompletude, é forcluído. Essa Ausstossung de duas faces tem de ser distinguida da violenta medida defensiva de ejetar (o que é experimentado como) um intruso estrangeiro, até (e inclusive) o infame apelo Juden raus! [Fora judeus!], a ejeção que reaparece com toda a sua brutalidade na atual sociedade hiper-reflexiva.

A lição hegeliana da midiatização/reflexivização das nossas vidas – esse processo gera sua própria imediatez brutal – é mais bem capturada pela noção de Étienne Balibar a respeito da crueldade excessiva e não funcional como característica da vida contemporânea, uma crueldade cujas figuras variam do racista “fundamentalista” e/ou assassino religioso às explosões de violência “sem sentido” dos adolescentes e dos sem-teto em nossas megalópoles, uma violência que somos tentados a chamar de “mal do id”, uma violência sem nenhum fundamento em razões ideológicas ou utilitárias. Não podemos nos deixar levar pelo discurso sobre os estrangeiros que roubam nossos empregos ou a ameaça que eles representam para os valores ocidentais: em uma análise mais atenta, logo fica claro que esse discurso apresenta uma racionalização secundária bem superficial. No fundo, a explicação que conseguimos de um skinhead é que lhe faz bem bater em estrangeiros, porque a presença destes o perturba. O que encontramos aqui é decerto o mal do id, o Mal estruturado e motivado pelo desequilíbrio mais elementar na relação entre o Eu e a jouissance, pela tensão entre o prazer e o corpo estranho da jouissance em seu próprio âmago. O mal do id, portanto, representa o mais elementar “curto-circuito” na relação do sujeito com o objeto-causa, primordialmente ausente, de seu desejo: o que nos “incomoda” no “outro” (judeu, japonês, africano, turco) é que o outro parece nutrir uma relação privilegiada com o objeto – ou o outro possui o objeto-tesouro, depois de tê-lo tirado de nós (e é por isso que não o temos), ou constitui uma ameaça a nossa posse do objeto. Aqui podemos empregar mais uma vez o “juízo infinito” hegeliano, afirmando a identidade especulativa dessas explosões “inúteis” e “excessivas” de imediatismo violento, que denotam nada mais que o ódio puro e desnudado (“não sublimado”) contra a Alteridade, com a reflexivização global da sociedade. Talvez o maior exemplo dessa coincidência seja o destino da interpretação psicanalítica. Hoje as formações do inconsciente (dos sonhos aos sintomas histéricos) perderam definitivamente sua inocência e são totalmente reflexivizadas: as “livres associações” de um típico analisando instruído consistem, em sua maioria, em tentativas de dar uma explicação psicanalítica dos próprios distúrbios, de modo que podemos justificadamente dizer que não temos apenas interpretações junguianas, kleinianas, lacanianas etc. dos sintomas, mas sintomas que são eles próprios jungianos, kleinianos, lacanianos etc., ou seja, cuja realidade envolve uma referência implícita a uma teoria psicanalítica. O infeliz resultado dessa reflexivização global da interpretação (tudo se torna interpretação, o inconsciente interpreta a si mesmo) é que a própria interpretação do analista perde sua “eficácia simbólica” performativa, deixando o sintoma intacto na imediatez de sua jouissance idiota.

Então, em que sentido preciso aquilo que é forcluído do simbólico retorna no Real? Pensemos nas alucinações verbais: seu conteúdo é substancialmente simbólico, e elas são, no nível de seu conteúdo ordinário, plenamente compreendidas pelo sujeito (psicótico) – então, mais uma vez, em que sentido elas pertencem ao Real? Duas características interligadas as torna Reais: o isolamento e a certeza. Elas são forcluídas no sentido preciso de que não “existem” para o sujeito: elas ex-sistem, persistem e impõem-se na tessitura simbólica. São isoladas de seu contexto simbólico, que, por definição, é o contexto da confiança e da suposição, o contexto em que cada presença surge contra o pano de fundo de sua possível ausência, cada certeza é acompanhada de uma possível dúvida, e no qual acabamos por depender de uma aposta básica para acreditarmos na ordem simbólica. Na religião propriamente dita, nós não conhecemos Deus, mas arriscamos confiar e acreditar nele. O psicótico, ao contrário, procede como o grupo punk esloveno Laibach, que, quando perguntado sobre sua relação com Deus, respondeu com uma referência à frase: “In God We Trust”, escrita na nota de um dólar: “Assim como vocês, norte-americanos, nós acreditamos em Deus, mas, ao contrário de vocês, não confiamos nele”. Ou, como diz Balmès de maneira bastante sucinta, não que os psicóticos acreditem nas vozes que escutam, eles simplesmente acreditam nelas6. É por isso que os psicóticos têm absoluta certeza das vozes que escutam: eles não confiam nelas, é claro, e as consideram vozes malignas que querem machucá-los; mas sabem que as vozes são reais – essa certeza absoluta as torna reais.

 

Hegel versus Heidegger

“É hora de falar do último Hegel. Se há algo que conhecemos pouco, é o último período do pensamento de Hegel em Berlim”7. Longe de confirmar sua filosofia como uma Staatsphilosoph conservadora (ou, pelo menos, conformista), os últimos anos em Berlim foram o período em que Hegel, depois de um longo esforço, apresentou a formulação definitiva de suas principais ideias. Precisamos insistir nesse ponto em resposta sobretudo a uma crítica comum a Hegel, formulada pela primeira vez pelos “jovens hegelianos”, que diz respeito à chamada contradição entre o método dialético de Hegel e seu sistema: enquanto o método aborda a realidade em seu desenvolvimento dinâmico, discernindo em cada forma determinada as sementes de sua própria destruição e autossuperação, o sistema consegue representar a totalidade do ser como uma ordem alcançada, na qual não há nenhum desenvolvimento posterior em vista8. Nas interpretações do pensamento de Hegel desenvolvidas sob influência de Heidegger no século XX, essa contradição entre o “lógico” e o “histórico” adquire uma base mais radical: o que elas tentam delinear é um quadro ontológico mais fundamental que seja ao mesmo tempo a fonte da sistematização dialética de Hegel e o que esta última traz à tona. A dimensão histórica aqui não é simplesmente o fato da evolução interminável de todas as formas de vida, tampouco a oposição filosófica entre o jovem Hegel que tenta apreender os antagonismos históricos da vida social e o velho Hegel que esmaga compulsivamente todo conteúdo com sua máquina dialética, mas sim a tensão inerente entre o impulso sistemático de Hegel da suprassunção/automediação conceitual e um projeto ontológico mais original que, na linha de Heidegger, Alexander Koyré descreve como a historicidade da condição humana orientada para o futuro9.

A raiz do que Hegel chama de “negatividade” é o futuro (ou nossa percepção dele): o futuro é aquilo que não é (ainda), o poder da negatividade é, no fundo, idêntico ao poder do próprio tempo, essa força que corrói toda identidade estabelecida. A própria temporalidade do ser humano, portanto, não é a do tempo linear, mas da existência engajada: o homem projeta seu futuro e depois o efetiva como um desvio por meio de recursos do passado. Essa raiz “existencial” da negatividade é, segundo Koyré, ofuscada pelo sistema de Hegel, que abole a primazia do futuro e apresenta todo o seu conteúdo como um passado “suprassumido” em sua forma lógica – o ponto de vista adotado aqui não é o da subjetividade engajada, mas o do Saber Absoluto. Uma crítica semelhante a Hegel foi desenvolvida por Alexandre Kojève e Jean Hyppolite: eles tentam formular uma tensão ou antagonismo no próprio cerne do pensamento de Hegel que permanece não pensado por Hegel – não por razões fortuitas, mas de maneira necessária, e é por isso que, precisamente, esse antagonismo não pode ser dialetizado, resolvido ou “suprassumido” pela mediação dialética. O que todos esses filósofos oferecem, portanto, é uma “esquizologia” crítica de Hegel10.

Não é difícil reconhecer nessa versão da temporalidade orientada para o futuro do sujeito engajado os traços da asserção de Heidegger sobre a finitude como condição insuperável do ser humano: é nossa finitude radical que nos expõe à abertura do futuro, do horizonte daquilo que está por vir, pois transcendência e finitude são dois lados da mesma moeda. Não surpreende, portanto, que tenha sido o próprio Heidegger que propôs a mais elaborada versão dessa leitura crítica de Hegel. Não o Heidegger de Ser e tempoa, mas o último Heidegger, que tenta decifrar a dimensão não pensada em Hegel por meio de uma leitura cuidadosa da noção de “experiência” (Erfahrung) da consciência na Fenomenologia do espírito. Heidegger lê a famosa crítica de Hegel ao ceticismo kantiano (só podemos conhecer o Absoluto se o Absoluto já quiser ser bei uns, conosco) pela sua interpretação da parousia como abertura epocal do ser: parousia é o modo como o Absoluto (nome dado por Hegel à Verdade do Ser) nos é sempre-já aberto antes de qualquer esforço ativo de nossa parte; ou seja, o modo como essa abertura do Absoluto fundamenta e direciona nosso próprio esforço de apreendê-lo – ou, como os místicos e teólogos dizem, “não estarias procurando por mim se já não me tivesses encontrado”. Eis a passagem – que inclui a afirmação-chave de que o próprio Absoluto “quer estar perto de nós”, conosco, apresentar-se para nós, abrir-se para nós – que Heidegger lê como a própria formulação de Hegel da antiga noção grega de parousia: “Se através do instrumento o absoluto tivesse apenas de achegar-se a nós, como o passarinho na visgueira, sem que nada nele mudasse, ele zombaria desse artifício, se não estivesse e não quisesse estar perto de nós em si e para si”11.

Em vez de descartar essa afirmação como evidência de que Hegel continua preso à “metafísica da presença”, devemos chamar a atenção primeiro para o fato de que o próprio Heidegger oferece outra variação do mesmo tema com sua noção de Dasein enquanto das Da des Seins, o “aí” do próprio Ser, que significa que o próprio Ser “precisa” do homem como seu único “aí” e, nesse sentido, apesar de seu recuo, ele também “quer estar conosco”. Além disso, esse “quer estar conosco” é mais enigmático e complexo do que parece – podemos concebê-lo, mais uma vez, nos termos da parábola de Kafka a respeito da porta da lei, quando o homem do campo finalmente aprende que a porta estava lá apenas para ele e agora, depois de sua morte, ela será fechada. Portanto, todo o mistério do recuo, da inacessibilidade daquilo que a porta escondia estava lá só para o Homem, para fascinar seu olhar – a reticência da porta era um chamariz para ofuscar o fato de que a porta “queria estar com o homem”. Em outras palavras, o truque da porta é o mesmo da competição entre Zêuxis e Parrásio: a porta era como a pintura de uma cortina na parede, estava lá para criar a ilusão de que escondia um segredo.

Então por que, segundo Heidegger, Hegel foi incapaz de ver a dimensão própria da parousia? Isso nos leva à próxima crítica de Heidegger: a ideia hegeliana de negatividade carece de uma dimensão fenomenal (não descreve a experiência em que a negatividade apareceria como tal), Hegel nunca exemplificou sistematicamente ou revelou a diferença entre rejeição, negação, nada, “não é” etc.12. A dialética hegeliana apenas propõe a ocultação de seu próprio fundamento fenomenológico-ontológico; o nome dessa ocultação é, obviamente, subjetividade: Hegel sempre-já subordina a negatividade ao “trabalho do negativo” do sujeito, à mediação ou suprassunção conceitual de todo conteúdo fenomenal. Desse modo, a negatividade é reduzida a um momento secundário no trabalho de automediação do sujeito. Essa cegueira para seu próprio fundamento não é secundária, mas a característica que possibilita a metafísica hegeliana da subjetividade: o lógos dialético só pode funcionar contra o pano de fundo do Absage, isto é, renúncia ou dizer-não.

Não obstante, há um modo fenomenal privilegiado em que a negatividade pode ser experimentada: a dor. A via da experiência é a via da dolorosa percepção de que existe uma lacuna entre consciência “natural” e transcendental, entre “para a consciência em si” e “para nós”: o sujeito é violentamente privado do fundamento “natural” do seu ser, seu mundo inteiro entra em colapso e esse processo é repetido até que o Saber Absoluto seja alcançado. Quando ele fala na “dor transcendental” como Stimmung fundamental do pensamento de Hegel13, Heidegger segue uma linha que começa na Crítica da razão prática, de Kantb, em que este descreve a dor como a única emoção “a priori”, a emoção do meu eu patológico sendo humilhado pela injunção da lei moral. (Lacan vê nesse privilégio transcendental da dor a ligação entre Kant e Sade.)

O que Heidegger deixa escapar em sua descrição da “experiência” hegeliana como via da Verzweiflung [desespero] é a própria natureza do abismo que ele envolve: não é só a consciência natural que se quebra quando tem de se confrontar com a morte, mas também o quadro ou fundo transcendental enquanto medida do que a consciência natural experimenta como sua inadequação e fracasso – como afirma Hegel, se o que pensamos ser verdadeiro não passa pela medida da verdade, a medida tem de ser abandonada. É por isso que Heidegger não considera o abismo vertiginoso do processo dialético: não existe um padrão de verdade do qual a consciência natural se aproxime gradualmente por meio da experiência dolorosa, porque esse próprio padrão está preso no processo e, com isso, é destruído repetidas vezes.

É também por isso que a crítica que Heidegger faz à “maquinação” hegeliana não capta o mais importante. Segundo Heidegger, o processo hegeliano de experiência caminha em dois níveis – o nível da experiência vivida (Erlebnis) e o nível da maquinação conceitual (Machenschaft). No nível da experiência vivida, a consciência vê seu mundo ruir e uma nova figura do mundo surgir, e experimenta essa passagem como um mero salto, sem uma conexão lógica que una as duas posições. “Para nós”, no entanto, a análise dialética torna visível como o novo mundo surgiu enquanto “negação determinada” do mundo antigo, enquanto resultado necessário de sua crise. A autêntica experiência vivida, a abertura para o Novo, portanto, é revelada como sendo corroborado pelo trabalho conceitual: o que o sujeito experimenta como advento inexplicável de um novo mundo é, na verdade, o resultado de seu próprio trabalho conceitual acontecendo pelas suas costas e, por isso, pode ser interpretado, em última instância, como produzido pela própria maquinação conceitual do sujeito. Aqui não há experiência da alteridade genuína, o sujeito encontra apenas os resultados de seu próprio trabalho (conceitual). Mas essa crítica só vale se ignorarmos que os dois lados, o “para si” fenomenal da consciência natural e o “para nós” do trabalho conceitual subterrâneo, estão presos no abismo vertiginoso e sem fundamento de uma perda repetida. A “dor transcendental” não é apenas a dor das experiências da consciência natural, a dor de ser separado da verdade; ela também é a dolorosa percepção de que essa mesma verdade é inconsistente, não-Toda.

E isso nos leva de volta à afirmação de Heidegger de que Hegel não abarca a experiência fenomenal da negatividade: e se a negatividade nomear justamente a lacuna na ordem da fenomenalidade, algo que não aparece (e nunca pode aparecer)? Não por ser um gesto transcendental que, por definição, escapa ao nível fenomenal, mas por ser a negatividade paradoxal, difícil de ser pensada, que não pode ser subsumida em nenhum agente (experiencial ou não) – o que Hegel chama de “negatividade autorrelativa”, uma negatividade que precede todo fundamento positivo e cujo gesto negativo de recuo abre espaço para toda a positividade.

 

A casa de torturas da linguagem

Neste ponto, podemos até inverter a crítica que Heidegger faz de Hegel e dizer que Heidegger é que foi incapaz de pensar essa “dor transcendental” – e ele se desviou do caminho precisamente porque dispensou cedo demais o termo “o sujeito” para pensar o núcleo (inumano) do que é ser humano. Qual é então a dimensão da dor negligenciada por Heidegger?

Em seu “Para uma crítica da violência”, Walter Benjamin pergunta: “Será que a resolução não violenta de conflitos é um princípio possível?”14. Ele responde que sim, nas “relações entre pessoas particulares”, bem como na cortesia, compaixão e confiança: “existe uma esfera da não-violência no entendimento humano que é totalmente inacessível à violência: a esfera própria da ‘compreensão mútua’, a linguagem”15. Essa tese pertence à tradição de que a linguagem ou a ordem simbólica são concebidas como meio de reconciliação e mediação, de coexistência pacífica, em oposição ao meio violento do confronto cru e imediato16. Na linguagem, em vez de agir violentamente uns com os outros, espera-se que haja debate, troca de palavras, e essa troca, mesmo quando agressiva, pressupõe um reconhecimento mínimo do outro. E se, no entanto, os humanos excedem os animais em sua capacidade para a violência exatamente porque podem falar? Há muitas características violentas da linguagem tematizadas por filósofos e sociólogos, de Heidegger a Bourdieu. No entanto, há pelo menos um aspecto violento da linguagem que está ausente em Heidegger e é o foco da teoria lacaniana da ordem simbólica. Em toda a sua obra, Lacan varia o tema heideggeriano da linguagem como morada do ser: a linguagem não é criação e instrumento do homem, é o homem que “mora” na linguagem: “A psicanálise devia ser a ciência da linguagem habitada pelo sujeito”17. A virada “paranoica” de Lacan, a volta freudiana a mais que ele dá no parafuso, vem com sua caracterização dessa morada como casa de torturas: “Na perspectiva freudiana, o homem é o sujeito preso e torturado pela linguagem”18.

A ditadura militar na Argentina, de 1976 a 1983, inventou uma peculiaridade gramatical, um novo uso passivo dos verbos ativos: quando centenas de intelectuais e ativistas políticos da esquerda desapareceram para sempre, torturados e mortos por militares que negaram saber de seu destino, eles começaram a ser chamados de “desaparecidos”, mas o verbo era usado não no sentido simples de terem desaparecido, mas em sentido transitivo ativo: eles “foram desaparecidos” (pelos serviços militares secretos). No regime stalinista, uma inflexão irregular semelhante afetou o verbo “renunciar”: quando era anunciado publicamente que um destacado membro da nomenklatura havia renunciado ao cargo (por motivos de saúde, via de regra), todos sabiam que, na verdade, ele havia perdido a luta contra diferentes facções e diziam que ele “tinha sido renunciado” – mais uma vez, um ato normalmente atribuído à pessoa afetada (ele renunciou, ele desapareceu) é reinterpretado como resultado da atividade não transparente de outro agente (a polícia secreta desapareceu com ele, a maioria na nomenklatura o fez renunciar). Será que não devemos interpretar exatamente da mesma maneira a tese de Lacan de que o ser humano não fala, mas é falado? A questão não é que se “fale sobre” ele, que ele seja assunto da fala de outros seres humanos, mas sim que, quando (parece que) ele fala, ele “é falado” da mesma maneira que o desafortunado funcionário comunista é “renunciado”. O que essa homologia revela é a posição da linguagem, do “grande Outro”, como casa de torturas do sujeito.

De modo geral, tomamos a fala de um sujeito e todas as suas inconsistências como uma expressão de tumulto interior, emoções ambíguas e assim por diante; isso vale até mesmo para uma obra de arte literária: espera-se que a tarefa da leitura psicanalítica seja trazer à tona a turbulência psíquica interna que encontra sua expressão codificada na obra de arte. Mas está faltando alguma coisa nessa explicação clássica: a fala não registra ou expressa simplesmente a vida psíquica traumática; a entrada na fala é em si um fato traumático (“castração simbólica”). Isso quer dizer que devemos incluir o impacto traumático da própria fala na lista de traumas com que a fala tenta lidar. A relação entre o tumulto psíquico e sua expressão na fala, portanto, também deve ser invertida: a fala não expressa ou articula simplesmente os problemas psíquicos; em determinado ponto-chave, o próprio tumulto psíquico é uma reação ao trauma de habitar a “casa de torturas da linguagem”.

A “prisão da linguagem” (título de um dos primeiros livros de Fredric Jameson sobre o estruturalismo), também é, portanto, uma casa de torturas: todos os fenômenos psicopatológicos descritos por Freud, desde os sintomas de conversão inscritos no corpo até os colapsos psicóticos, são cicatrizes dessa tortura permanente, sinais de uma lacuna original e irremediável entre o sujeito e a linguagem, sinais de que o homem jamais estará em casa em sua própria casa. É isso que Heidegger ignora, esse lado escuro da nossa morada na linguagem, e é por isso que não pode haver lugar para o Real da jouissance no edifício de Heidegger, pois o aspecto torturante da linguagem concerne primeiramente às vicissitudes da libido. É também por isso que, para fazer a verdade falar, não basta suspender a intervenção ativa do sujeito e deixar a linguagem falar por si – como disse Elfriede Jelinek com extraordinária clareza: “A linguagem deve ser torturada para dizer a verdade”. A linguagem deve ser torcida, desnaturalizada, estendida, condensada, cortada e reunificada, posta para funcionar contra si própria. A linguagem enquanto “grande Outro” não é um agente de sabedoria com cuja mensagem devemos concordar, mas um meio de estupidez e indiferença cruéis. A forma mais elementar de tortura da linguagem de alguém se chama poesia – pensemos no que uma forma complexa como um soneto faz com a linguagem: ela submete o fluxo livre da fala a uma cama de Procusto feita de formas fixas de ritmo e rima.

E o que dizer do procedimento heideggeriano de ouvir a palavra silenciosa da própria linguagem, revelar a verdade que já mora dentro dela? Não surpreende que o pensamento do último Heidegger seja poético – podemos imaginar uma tortura mais violenta do que a praticada por ele, por exemplo, em sua famosa leitura da proposição de Parmênides, de que “dizer, pensar e ser são o mesmo”? Para extrairmos daí a verdade pretendida, ele precisa se referir ao significado literal das palavras (legein como reunir), deslocar de modo contraintuitivo a ênfase e a escansão da frase, traduzir cada termo de maneira descritiva e fortemente interpretativa etc. Dessa perspectiva, a “filosofia da linguagem ordinária”, do último Wittgenstein, – que vê a si mesma como um tipo de cura médica, corrigindo os usos errôneos da linguagem ordinária que dão origem aos “problemas filosóficos” – quer eliminar justamente essa “tortura” da linguagem que a forçaria a dizer a verdade (recordamos aqui a famosa crítica de Rudolf Carnap a Heidegger no fim da década de 1920, que dizia que os raciocínios de Heidegger eram baseados no mau uso do “nada” como substantivo).

O mesmo não se aplica ao cinema? O cinema também não força seu material visual a dizer a verdade por meio da tortura? Primeiro houve a “montagem das atrações” de Eisenstein, a mãe de todas as torturas cinematográficas: um corte violento de planos contínuos em fragmentos que depois são reunidos de maneira totalmente artificial; uma redução não menos violenta do corpo todo ou cena a closes de “objetos parciais” que flutuam no espaço cinematográfico, separados do Todo orgânico a que pertencem. Depois surgiu Tarkovsky, o grande inimigo de Eisenstein, que substituiu a montagem deste por seu oposto, o prolongamento do tempo, uma espécie de equivalente cinematográfico do “potro”, clássico instrumento de tortura usado para esticar os membros das vítimas. Desse modo, podemos caracterizar a polêmica de Tarkovsky contra Eisenstein como uma disputa entre dois torturadores profissionais a respeito dos méritos relativos de dispositivos diferentes.

Essa também é a principal razão por que Lacan – contra a historicização heideggeriana do sujeito como agente do domínio tecnológico na Era Moderna, contra a substituição do “sujeito” pelo Dasein como nome para a essência do ser humano – prendeu-se ao problemático termo “sujeito”. Quando sugere que Heidegger deixa escapar a dimensão crucial da subjetividade, Lacan não tem em mente o argumento humanista tolo de que Heidegger “passiviza” excessivamente o homem, transforma-o em um instrumento da relativização do Ser, ignora assim a criatividade humana etc. Ao contrário, a questão é que Heidegger deixa escapar o impacto particularmente traumático da própria “passividade” de nosso ser preso na linguagem, a tensão entre o animal humano e a linguagem: existe um “sujeito” porque o animal humano não “se encaixa” na linguagem, o “sujeito” lacaniano é o sujeito torturado, mutilado.

Os althusserianos insistem fortemente no duplo significado constitutivo do termo “sujeito”: como agente transcendental ativo, criador da (sua) realidade, e como agente passivo submetido (sujeito) a uma ordem estatal legal (sujet de l’état) – ou, para dar um aspecto lacaniano mais geral, sujeitado ao grande Outro. Aqui, no entanto, Lacan acrescenta uma dimensão mais radical da passividade: como ele afirma no seminário sobre a ética da psicanálise, o sujeito é “o que [aspecto/parte] do real padece do significante”c (ce que du réel pâtit du signifiant) – a dimensão mais elementar do sujeito não é a atividade, mas a passividade, algo duradouro. Eis como Lacan determina os ritos de iniciação que fazem um corte violento no corpo, mutilando-o:

os ritos de iniciação tomam a forma de mudar a forma desses desejos, de conferir a eles, desse modo, uma função pela qual o ser do sujeito identifica-se ou anuncia-se como tal, pela qual o sujeito, por assim dizer, torna-se totalmente homem, mas também mulher. A mutilação serve aqui para orientar o desejo, permitindo que este assuma precisamente essa função de indício, de algo que é realizado e só pode articular-se, expressar-se, em um mais além simbólico, um mais além que chamamos hoje de ser, uma realização do ser no sujeito.19

A lacuna que separa Lacan de Heidegger é discernível precisamente por sua proximidade, pelo fato de que, para designar a função simbólica em seu aspecto mais elementar, Lacan ainda usa o termo heideggeriano “ser”: no ser humano, os desejos perdem sua amarra na biologia, são operativos apenas enquanto inscritos no horizonte do Ser que é sustentado pela linguagem. No entanto, para que essa transposição da realidade biológica imediata do corpo para o espaço simbólico da linguagem aconteça, ela tem de deixar uma marca de tortura no corpo na forma de mutilação. Portanto, não basta dizer que “o Verbo se fez carne”: devemos acrescentar que, para que o Verbo se inscreva na carne, uma parte da carne – a proverbial libra de carne de Shylock – tem de ser sacrificada. Como não há harmonia preestabelecida entre Verbo e carne, é somente por esse sacrifício que a carne se torna receptiva para o Verbo.

Isso nos leva finalmente à questão da jouissance. Philippe Lacoue-Labarthe situou de modo muito preciso a lacuna que separa a interpretação lacaniana da interpretação heideggeriana (à qual Lacan se refere em abundância) de Antígona: o que está totalmente ausente em Heidegger não é só a dimensão do Real da jouissance, mas é sobretudo a dimensão do “entre duas mortes” (o simbólico e o Real) que designa a posição subjetiva de Antígona depois que ela é excomungada da pólis por Creonte. Em simetria perfeita com seu irmão Polinice, que está morto na realidade, mas cuja sua morte simbólica é negada, ou seja, o ritual do enterro, Antígona encontra-se morta simbolicamente, excluída da comunidade simbólica, embora biológica e subjetivamente ainda viva. Nos termos de Agamben, Antígona encontra-se reduzida a uma “vida nua”, a uma posição de homo sacer, cujo caso exemplar no século XX é a dos reclusos dos campos de concentração. Os riscos dessa omissão heideggeriana, portanto, são muito altos, porque dizem respeito à essência ético-política do século XX, à catástrofe “totalitária” em seu desenvolvimento extremo. Desse modo, a omissão é bastante consistente com a incapacidade de Heidegger de resistir à tentação nazista:

o “entre duas mortes” é o inferno que nosso século realizou ou ainda promete realizar, e é a isso que Lacan responde, e é por isso que quer tornar os psicanalistas responsáveis. Ele não disse que a política é o “buraco” da metafísica? A cena com Heidegger – e existe uma – está localizada em sua inteireza aqui.20

Isso também explica a ambiguidade perturbadora da descrição heideggeriana da morte nos campos de concentração como uma morte que não é mais autêntica, envolvendo a pressuposição por parte do indivíduo de sua própria morte como a possibilidade de sua maior impossibilidade, mas simplesmente como mais um processo industrial-tecnológico anônimo – as pessoas não “morrem” nos campos, são apenas industrialmente exterminadas. Portanto, Heidegger sugere obscenamente que as vítimas assassinadas nos campos de algum modo não morrem “autenticamente”, traduzindo assim seu sofrimento absoluto em uma “não autenticidade” subjetiva. A questão que ele não suscita é justamente como elas subjetivaram (se referiram a) sua condição. A morte dessas pessoas foi de fato um processo industrial de extermínio para seus algozes, mas não para elas próprias.

Balmès faz uma observação perspicaz a esse respeito: é como se a crítica clínica implícita de Lacan à analítica existencial heideggeriana do Dasein enquanto “ser-para-a-morte” dissesse que esta é apropriada apenas para a neurose e não explica a psicose21. O sujeito psicótico ocupa uma posição existencial para a qual não há lugar no mapeamento de Heidegger, a posição de alguém que, em certo sentido, “sobrevive à própria morte”. Os psicóticos não se encaixam mais na descrição heideggeriana da existência engajada do Dasein, sua vida não envolve mais o engajamento livre em um projeto futuro contra o pano de fundo da apropriação do passado; sua vida está para além do “cuidado” (Sorge), seu ser não é mais direcionado “para a morte”.

Esse excesso da jouissance que resiste à simbolização (logos) é a razão pela qual, em suas duas últimas décadas de ensinamento, Lacan insiste (às vezes de maneira quase patética) que se considera antifilósofo, alguém que se rebela contra a filosofia: a filosofia é ontologia, sua premissa básica é – como disse Parmênides, o primeiro filósofo – “pensar e ser são o mesmo”, há um acordo mútuo entre pensamento (logos como razão ou fala) e ser. Até (e inclusive) Heidegger, o Ser que a filosofia tinha em mente era sempre o ser cuja morada era a linguagem, o ser sustentado pela linguagem, o ser cujo horizonte era aberto pela linguagem; ou, como disse Wittgenstein: os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo. Contra essa premissa ontológica da filosofia, Lacan concentra-se no Real da jouissance como algo que, longe de ser simplesmente externo à linguagem (é antes “ex-timo” com relação a ela), resiste à simbolização, continua sendo um núcleo estranho dentro dela, e aparece como ruptura, corte, lacuna, inconsistência ou impossibilidade:

Desafio qualquer filósofo a explicar agora a relação existente entre o surgimento do significante e o modo como a jouissance se relaciona com o ser. [...] Nenhuma filosofia, eu afirmo, encontra-nos aqui hoje. Os miseráveis e fracassados entusiastas da filosofia que deixamos para trás a partir do início do século passado [XIX] como hábitos que estão se desfazendo, não são nada mais que um modo de dançar em volta da questão, e não de confrontá-la, a questão que é a única sobre a verdade e o que chamamos, usando o nome dado por Freud, de pulsão de morte, o masoquismo primordial da jouissance [...] Todo discurso filosófico escapa e recua aqui.22

É nesse sentido que Lacan descreve sua posição como “realismo da jouissance”. O inimigo “natural” desse realismo é, obviamente, o “panlogismo” de Hegel, menosprezado por Lacan como o clímax da ontologia, da lógica filosófica (o autodesdobramento do logos) como explicação total do ser, pelo qual o ser perde sua opacidade e torna-se totalmente transparente. Mas, como vimos, nada é simples quando se refere a Hegel. Seguindo as fórmulas lacanianas de sexuação, a afirmação de um não-Todo – “não-Todo é logos”, ou logos é não-Todo, posto que é corroído e truncado de dentro por antagonismos e rupturas, e nunca plenamente ele mesmo – não seria o anverso da tese básica de Hegel de que “nada existe que não seja logos”?

Talvez Lacan tivesse de algum modo uma obscura consciência disso tudo, como indica na passagem supracitada a curiosa e inesperada limitação da brutal relegação da filosofia aos “miseráveis e fracassados entusiastas da filosofia que deixamos para trás a partir do início do século passado”, ou seja, ao pensamento pós-hegeliano. Em outras palavras, a coisa mais óbvia a dizer seria que é exatamente o pensamento pós-hegeliano que rompe com a ontologia, afirmando a primazia de uma Vontade ou Vida translógica – no antilogos (antifilosofia) que vai do último Schelling a Schopenhauer e Nietzsche. É como se, nesse aspecto, Lacan tivesse aprendido a lição de Heidegger: a fórmula marxiana “o ser determina a consciência” não é suficientemente radical – toda a conversa sobre a vida efetiva da subjetividade engajada como oposta ao “mero pensamento especulativo” continua presa nos confins da ontologia, porque o ser (como demonstrou Heidegger) só pode surgir pelo logos. A diferença com relação a Heidegger é que Lacan, em vez de aceitar essa harmonia (mesmidade) entre o Ser e o logos, tenta levá-la mais além, a uma dimensão do Real indicada pela possível conjuntura entre o ser e a jouissance. Não admira, portanto, que, com respeito à angústia, Lacan prefira Kierkegaard a Heidegger: ele considera Kierkegaard o anti-Hegel, para quem o paradoxo da fé cristã sinaliza uma ruptura radical com a antiga ontologia grega (em contraste com a redução heideggeriana da cristandade a um momento no processo de declínio dessa ontologia na metafísica medieval). A fé é um salto existencial no que só pode parecer loucura (de um ponto de vista ontológico), uma decisão louca sem nenhuma garantia por parte da razão – o Deus de Kierkegaard está realmente “para além do Ser”, é o Deus do Real, não o Deus dos filósofos. É por isso que, mais uma vez, Lacan aceitaria a famosa declaração de Heidegger, da década de 1920, quando abandonou a Igreja Católica, de que a religião é o inimigo mortal da filosofia – mas veria isso como uma razão a mais para se prender ao núcleo do Real inerente na experiência religiosa.

O “sujeito” lacaniano nomeia uma lacuna no simbólico, seu status é Real – segundo Balmès, é por isso que Lacan, em seu seminário crucial sobre a fantasia (1966-1967), depois de passar mais de uma década lutando com Heidegger, dá o passo paradoxal e totalmente inesperado (para alguém que adota a noção heideggeriana de filosofia moderna) de Heidegger de volta a Descartes, ao cogito cartesiano. Há de fato um paradoxo aqui: Lacan primeiro aceita o argumento de Heidegger de que o cogito cartesiano, que fundamenta a ciência moderna e seu universo matematizado, anuncia o esquecimento máximo do Ser; mas, para Lacan, o Real da jouissance é justamente externo ao Ser, de modo que o que, para Heidegger, era o argumento contra o cogito torna-se, para Lacan, o argumento a favor dele – o Real da jouissance só pode ser abordado quando saímos do domínio do ser. É por isso que, para Lacan, não só o cogito não é reduzido à autotransparência do pensamento puro, mas, paradoxalmente, o cogito é o sujeito do inconsciente – uma lacuna ou corte na ordem do Ser em que o Real da jouissance se rompe.

É claro, esse cogito é o cogito “em devir”, não ainda o res cogitans, a substância pensante que participa totalmente do Ser e do logos. No seminário sobre a lógica da fantasia, Lacan interpreta a verdade do cogito ergo sum de Descartes de maneira mais radical que nos seminários anteriores, nos quais brincou sem cessar com as variações de “subverter” o sujeito. Ele começa por descentralizar o ser em relação ao pensamento – “Não sou onde penso”, o núcleo do meu ser (“Kern unseres Wesens”) não está na minha consciência(-de-si); no entanto, ele rapidamente percebe que essa leitura só prepara o terreno para o tema da Vida da irracionalista Lebensphilosophie, mais profundo que o mero pensamento ou linguagem, o que vai de encontro à tese básica de Lacan, segundo a qual o inconsciente freudiano é “estruturado como linguagem”, ou seja, é totalmente “racional” ou discursivo. Então ele passa para o “Penso onde não sou”, muito mais refinado, que descentraliza o pensamento com respeito ao meu Ser, a percepção da minha presença total: o Inconsciente é um Outro Lugar puramente virtual (in-existente, insistente) de um pensamento que escapa ao meu ser. Depois, há uma pontuação diferente: “Penso: ‘logo sou’” – meu Ser rebaixado a uma ilusão gerada pelo meu pensamento etc. O que todas essas versões têm em comum é a ênfase na lacuna que separa cogito de sum, pensamento de ser – o propósito de Lacan era destruir a ilusão da sobreposição dos dois apontando para uma fissura na aparente homogeneidade entre pensamento e ser. Foi somente no fim de seus ensinamentos que ele afirmou essa sobreposição – negativa, é claro. Em outras palavras, Lacan acabou apreendendo o ponto zero mais radical do cogito cartesiano como ponto de interseção negativa entre ser e pensar: o ponto de fuga no qual não penso e não sou. Eu não sou: não sou uma substância, uma coisa, um ente; sou reduzido a um vazio na ordem do ser, a uma lacuna, uma béance23. Eu não penso: aqui, mais uma vez, Lacan aceita paradoxalmente a tese de Heidegger de que a ciência (moderna, matematizada) “não pensa” – mas, para ele, isso significa justamente que ela rompe com o quadro da ontologia, do pensamento como logos correlativo ao Ser. Como puro cogito, eu não penso, sou reduzido ao “puro (ou pura forma de) pensamento” que coincide com seu oposto, ou seja, que não tem nenhum conteúdo e, como tal, é não-pensar. A tautologia do pensar é autoanuladora, da mesma maneira que a tautologia do ser, e é por isso que, para Lacan, o “sou aquilo que sou” anunciado pela sarça ardente a Moisés no monte Sinai indica um Deus além do Ser, Deus como Real24.

A importância dessa asserção lacaniana do cogito é que, com respeito ao par linguagem e mundo, ela garante um ponto externo a ela, um ponto mínimo da universalidade singular que é literalmente sem mundo, trans-histórico. Isso significa que estamos condenados ao nosso mundo, ao horizonte hermenêutico de nossa finitude, ou, como diz Gadamer, ao pano de fundo impenetrável dos “pré-juízos” históricos que predeterminam o campo do que podemos perceber e entender. Cada mundo é sustentado pela linguagem, e cada linguagem “falada” sustenta um mundo – é isso que Heidegger visava com sua tese sobre a linguagem como “morada do ser” –, com efeito não seria essa a nossa ideologia espontânea? Existe uma realidade complexa e infinitamente diferenciada que nós, indivíduos e comunidades incorporados a ela, sempre experimentamos da perspectiva particular e finita do nosso mundo histórico. O que o materialismo democrático rejeita furiosamente é a noção de que pode haver uma Verdade universal infinita que atravessa essa multitude de mundos – na política, isso implica supostamente um “totalitarismo” que impõe sua verdade como universal. É por isso que nos dizem para rejeitar, por exemplo, os jacobinos, que impuseram na natureza multifacetada da sociedade francesa suas noções universais de igualdade e outras verdades, e com isso acabaram necessariamente no terror. Há, assim, outra versão do axioma do materialismo democrático: “Tudo o que acontece na sociedade de hoje é consequência da dinâmica da globalização pós-moderna, ou das reações e resistências (conservadoras nostálgicas, fundamentalistas, esquerdistas antigas, nacionalistas, religiosas...) a ela” –, noção à qual a dialética materialista acrescenta sua condição: “com a exceção da política radical emancipatória (comunista) da verdade”.

É claro, a única maneira de articularmos essa verdade é dentro da linguagem – via linguagem torturante. Como Hegel já sabia, quando pensamos, pensamos na linguagem contra a linguagem. Isso nos leva de volta a Benjamin: não poderíamos aplicar sua distinção entre violência mítica e violência divina aos dois modos de violência com que estamos lidando? A violência da linguagem a que Heidegger se refere é “violência mítica”: trata-se de uma sprach-bildende Gewalt, uma violência formadora de linguagem, para parafrasearmos a definição benjaminiana da violência mítica como staats-bildend – a força do mythos enquanto narrativização ou simbolização primordial ou, nos termos de Badiou, a imposição violenta das coordenadas transcendentais de um Mundo sobre a multiplicidade do Ser. A violência do pensar (e da poesia, se a entendermos diferentemente de Heidegger) é, ao contrário, um caso do que Benjamin chama de “violência divina”, é sprach-zerstoerend, uma virada de linguagem que destrói a linguagem, que permite que o Real trans-simbólico de uma Verdade transpareça nela. A recuperação de Descartes, portanto, é apenas o primeiro passo: ela deve ser seguida da recuperação de Platão.

Ademais, a resposta à questão de Benjamin com a qual começamos não é simplesmente negativa. Existe uma “linguagem” que está fora da violência, mas Benjamin procura por ela no lugar errado. Não é a linguagem da comunicação pacífica entre os sujeitos, mas a linguagem da pura matemática, esse estudo alegre das multiplicidades. Ainda podemos chamá-la de linguagem? A resposta de Lacan é que não: ele brincava com os termos “matema” ou “escrita”.

Uma alternativa a Heidegger

O excesso do cogito sobre sua historicização também nos permite abordar de uma maneira nova a condição ambígua do Mal em Heidegger. No seminário sobre o “Tratado sobre a liberdade” de Schelling, Heidegger teve de admitir a dimensão do Mal radical que não pode ser historicizada, ou seja, reduzida ao niilismo da tecnologia moderna. É mérito de Bret Davis ter analisado detalhadamente esse impasse no pensamento de Heidegger.

O período entre Ser e tempo e os seminários sobre Nietzsche, realizados no fim da década de 1930, foi o período mais produtivo das pesquisas de Heidegger, quando, reconhecendo o grande fracasso de seu projeto original, ele buscou um novo começo. Ao apresentar a conclusão dessa busca nos seminários sobre Nietzsche, ele estabeleceu sua “grande narrativa” da história do Ocidente como a história do esquecimento do Ser, e foi somente nesse ponto que historicizou a Vontade como característica definidora da subjetividade moderna e seu violento niilismo25. É contra esse pano de fundo que as explicações do envolvimento de Heidegger com Nietzsche costumam ser dadas, um envolvimento mais perceptível em “Sobre a essência e o conceito de natureza, história e Estado”, seminário de Heidegger dado no fim de 1933 e início de 1934, quando ainda era atraído pelo decisionismo niilista da Vontade.

O ponto de partida (axioma, aliás) de nossa leitura é que certa dimensão que abriu um caminho potencial perdeu-se na elaboração do que somos tentados a chamar de ortodoxia heideggeriana tardia. É importante, portanto, retornar aos textos de Heidegger entre Ser e tempo e os seminários sobre Nietzsche e tratá-los não como obras de transição, mas como portadoras de um potencial que se tornou invisível com o estabelecimento da ortodoxia. É verdade que, em certo sentido, esses textos continuam sendo o “ponto mais baixo” de Heidegger, coincidindo mais ou menos com seu envolvimento com o nazismo. Nossa tese, no entanto, é que esses mesmos textos abrem possibilidades que apontam para uma direção totalmente diferente, ou seja, para uma política emancipatória radical. Embora não tenham sido perseguidas pelo próprio Heidegger, essas possibilidades assombram seus textos da década de 1930 como uma sombra espectral ameaçadora.

Nas eleições presidenciais de 2000 nos Estados Unidos, Al Gore, que era dado como vencedor, acabou perdendo para George W. Bush (como resultado do fiasco eleitoral na Flórida). Nos anos seguintes, Gore referiu-se algumas vezes a si mesmo como “o cara que foi o futuro presidente dos Estados Unidos” – um exemplo do futuro preso no passado, de algo que estava por acontecer, mas infelizmente não aconteceu. Do mesmo modo, em meados da década de 1930, Heidegger “era um futuro comunista”: seu envolvimento com os nazistas não foi um simples erro, mas “um passo certo na direção errada”, pois Heidegger não pode ser simplesmente descartado como um völkisch reacionário alemão26.

Portanto, examinemos mais de perto “Sobre a essência e o conceito de natureza, história e Estado”27. O ponto de partida de Heidegger envolve uma transposição imediata da diferença ontológica entre um ente (Seiendes) e seu Ser (Sein) para a relação entre um povo e seu Estado: o Estado é “um modo de Ser e um tipo de Ser do povo. O povo é o ente cujo Ser é o Estado”. Esse gesto talvez pareça problemático do ponto de vista do campo de Heidegger: o Estado seria realmente um nome para o Ser de um povo, para o horizonte ontológico do modo como o significado de Ser é revelado para um povo? Não seria o Estado um conjunto de práticas e instituições ônticas? Se o Estado é o Ser de um povo, então “é impossível, no fim das contas, pensar um povo sem Estado – o ente sem seu Ser, em certo sentido”. Isso quer dizer que os povos sem Estado estão excluídos da história do Ser? É interessante notar aqui como, em contraste com a percepção comum de Heidegger como defensor da vida provinciana, ele claramente opõe terra natal a terra pátria:

Não se deve confundir terra-natal com terra-pátria. Podemos falar de Estado só quando acrescentamos à fundação a vontade de expansão ou, em termos gerais, de interação. Terra natal é o que tenho na base de meu nascimento. Existem relações bem particulares entre mim e ela no sentido de natureza, no sentido de forças naturais. A terra natal se expressa no solo, no estar preso à terra. Mas a natureza trabalha no ser humano, funda-o, somente quando a natureza como ambiente, por assim dizer, pertence ao povo a que pertence aquele ser humano. A terra-natal torna-se o modo de Ser de um povo só quando se torna expansiva, quando interage com o exterior – quando se torna um Estado. Por essa razão, o povo ou seus subgrupos que não dão nem um passo além de sua conexão com a terra-natal e para dentro do seu modo autêntico de Ser – para dentro do Estado – correm o perigo constante de perder sua condição de povo e perecer. Esse também é o grande problema dos alemães que vivem fora das fronteiras do Reich: eles não têm uma terra-natal alemã, mas também não pertencem ao Estado dos alemães, o Reich, portanto são privados de seu modo autêntico de Ser.

Lembramos que essas linhas foram ditas em 1934 – elas não indicam que a solução desse “grande problema” é anexar ao Reich a terra-natal dos alemães que vivem no Estado alemão e assim permitir que participem plenamente de seu “modo autêntico de Ser” (isto é, o que Hitler fez alguns anos depois)? Heidegger prossegue sua análise: o que acontece a um povo (Volk) quando decide formar um Estado? “Devemos ainda investigar o que entendemos por ‘povo’, pois, na Revolução Francesa, a resposta era também: o povo”. (Note-se o tom negativo: ainda devemos investigar, pois é certo que não usamos “povo” no sentido da Revolução Francesa.) Na “decisão por um Estado”, o povo determina a si mesmo ao decidir por determinado tipo de Estado ou, para parafrasear um provérbio bem conhecido, “diga-me que tipo de Estado o povo tem e eu te direi que tipo de povo é. Os seres humanos têm consciência, não interagem apenas com as coisas como fazem os animais: eles se interessam pelas coisas, relacionam-se com elas. Os membros de um povo, portanto, conhecem seu Estado e importam-se com ele, desejam-no. Para um povo, seu Estado não é apenas um instrumento para o bem-estar, mas uma coisa que tem importância, uma coisa que ele ama e pela qual está disposto a se sacrificar, um objeto de seu eros. A constituição de um Estado não é apenas uma questão de consideração racional e de negociação, de um contrato social que regula o bem-estar dos indivíduos, mas um comprometimento com uma visão de vida compartilhada.

Desse modo, se o povo é o ente que se encontra no modo e à maneira do Estado, devemos fazer ainda a seguinte pergunta: “Que tipo de forma ou impressão o povo dá ao Estado e o Estado ao povo?”. Heidegger rejeita a primeira resposta, a forma de um organismo, como desprovida da dimensão especificamente humana; o mesmo vale para a resposta geral: “ordem”, posto que quaisquer objetos, livros, pedras, podem ser dispostos em uma ordem. “No entanto, o que nos dá uma resposta apropriada é a ordem no sentido de dominação, posição, liderança e seguidores [Herrschaft, Rang, Führung und Gefolgschaft]. Mas o que ainda permanece em aberto é: quem domina?” Em seu modo autêntico, a relação entre dominação e seguidores é fundamentada em uma vontade comum, em um comprometimento com um objetivo comum: “É somente no lugar onde líder e liderados são reunidos no destino [Schicksal] e na luta pela realização de um único ideal que nasce a verdadeira ordem”. Onde falta esse comprometimento comum que fundamenta a propensão para a luta, a dominação se transforma em exploração e a ordem é aplicada, imposta externamente ao povo. Foi isso que aconteceu na época liberal moderna: a ordem do Estado foi reduzida a uma noção abstrata de ordem, o Estado se tornou o Leviatã de Hobbes, imposto ao povo como agente da soberania absoluta que, em vez de expressar a mais profunda vontade do povo, monopolizou toda a violência e agiu como força de lei, restringindo a vontade dos indivíduos. Só depois que a dominação foi reduzida à soberania que a Revolução Francesa se tornou possível, na qual o poder soberano foi transferido ao polo oposto da ordem social, ao povo: “A essência da Revolução Francesa só pode ser devidamente compreendida e explicada a partir do princípio de soberania no absolutismo, como seu contrafenômeno”.

Na própria Alemanha, a unidade viva entre o Estado e o povo começou a se desintegrar com Bismarck:

Dizem que, além de precisar de um líder, o povo precisa também de uma tradição preservada pela aristocracia política. O Segundo Reich foi vítima de um colapso irreparável depois da morte de Bismarck, e não só porque Bismarck fracassou na criação dessa aristocracia política. Ele também foi incapaz de ver o proletariado como um fenômeno justificado em si e conduzi-lo de volta ao Estado, aproximando-se dele com o entendimento.

Ao contra-argumento óbvio de que, na Alemanha de Bismarck, os Junkers continuaram desempenhando um papel público muito maior do que em outros Estados europeus e, além disso, Bismarck “aproximou-se” do proletariado com os primeiros elementos de um Estado de bem-estar social (seguro social etc.), Heidegger provavelmente teria respondido que a Alemanha de Bismarck era um Estado moderno burocrático e autoritário par excellence. No absolutismo, bem como na democracia liberal, a unidade da vontade entre o líder e o povo se perde, portanto: o Estado movimenta-se entre os dois extremos, o poder soberano absoluto vivenciado pelo povo como autoridade exterior e o serviço ou instrumento da sociedade civil, cumprindo as tarefas necessárias para o fluxo estável da vida social em que os indivíduos perseguem seus próprios interesses. Nos dois casos, a expressão autêntica da vontade do povo por seu líder é impensável:

A questão da consciência da vontade da comunidade é um problema em todas as democracias, um problema que só pode se tornar fértil quando a vontade do líder e a vontade do povo forem reconhecidas em seu caráter essencial. Nossa tarefa hoje é direcionar a tarefa básica do nosso ser coletivo para essa realidade entre povo e líder, na qual os dois são um em realidade, pois não podem ser separados.

O que devemos acrescentar a essas linhas, ditas em 1934, para explicar por que Heidegger defendeu a posse nazista? Não teríamos aqui uma visão conservadora e autoritária simplista, que nem é tão original, já que se encaixa perfeitamente nas coordenadas da reação nacional conservadora à República de Weimar? Na verdade, a única questão em aberto parece ser onde exatamente devemos situar Heidegger no espectro delineado pelos dois extremos do nazismo comprometido e da ingenuidade política: Heidegger era (como afirma Emmanuel Faye) ou não um nazista amadurecido? Ele “introduziu o nazismo na filosofia” ou era apenas politicamente ingênuo, pego em um jogo político que não possuía nenhuma ligação direta com seu pensamento? Proponho seguir uma linha diferente: nem afirmar uma ligação direta entre o pensamento de Heidegger e o nazismo nem enfatizar a lacuna que os separa (ou seja, sacrificar Heidegger como uma pessoa ingênua ou corrupta para podermos salvar a pureza de seu pensamento), mas sim transpor essa lacuna para o cerne de seu próprio pensamento, demonstrar que o espaço para o envolvimento com o nazismo foi aberto pela falha ou inconsistência imanente de seu pensamento, pelos saltos e passagens que são “ilegítimos” nos termos desse mesmo pensamento. Em qualquer análise filosófica séria, a crítica externa tem de ser fundamentada na crítica imanente, por isso temos de mostrar como a falha visível de Heidegger (seu envolvimento com o nazismo) reflete o fato de ele ter ficado aquém de seus próprios propósitos e padrões.

 

Da vontade à pulsão

Tal crítica imanente a Heidegger tem uma longa história, começando com a tentativa precoce de Habermas de pensar “Heidegger contra Heidegger”. Há muitas outras leituras pertinentes nessa linha – basta mencionar a observação de Jean-Luc Nancy de que, já em Ser e tempo, Heidegger abandona estranhamente a analítica do Mit-Sein como dimensão constitutiva do Dasein. Nosso ponto de partida será diferente e focará uma característica que só pode surpreender os leitores dos textos que Heidegger produziu na década de 1930, principalmente do seminário “Sobre a essência e o conceito de natureza, história e Estado”: o predomínio do tema da Vontade. A terra-natal e a terra-pátria são diferentes porque só a segunda implica o Estado, ao passo que a primeira é mera “província”, uma distinção baseada no fato de que “província” representa um arraigamento passivo em determinado solo e conjunto de costumes e Estado implica uma vontade ativa de expansão e confronto com povos vizinhos. A província, portanto, carece de vontade política propriamente dita, em contraposição ao Estado, que é fundado na vontade política. O (mal-)afamado texto de Heidegger, escrito em 1934, “Por que ficamos na província?” (em que ele explica por que não aceitou um cargo na Universidade de Berlim, fazendo referência à figura um tanto ridícula do “sujeito suposto saber”, um fazendeiro simples a quem pediu conselho e que respondeu simplesmente balançando a cabeça), toma uma dimensão profética inesperada, apontando para a defesa que Heidegger fez posteriormente da província como lugar do ser autêntico, em detrimento do Estado como domínio da vontade de poder e dominação.

Como, então, devemos interpretar essa estranha persistência da Vontade que continua assombrando Heidegger não só na década de 1930, mas também depois, quando sua superação se torna o verdadeiro foco de seu pensamento? Em seu minucioso estudo sobre o assunto, Bret Davies propõe uma leitura dupla dessa persistência28: primeiro, como sinal da “Gelassenheit enquanto projeto unificado”, uma indicação de que Heidegger não teve sucesso em “desconstruir” completamente a Vontade, portanto cabe a nós, que continuamos seu caminho, realizar essa tarefa e tirar todas as consequências da Gelassenheit; segundo, como se houvesse a necessidade de distinção

entre (1) o que Heidegger chama de “a vontade” da subjetividade, um (des)afinamento fundamental que surgiu e prevaleceu em determinada época histórica da metafísica, e (2) o que temos chamado (interpretando e suplementando Heidegger) de “querer originário”, o excesso dissonante não histórico que assombra a própria essência do não querer.29

Recordamos que, em sua leitura do fragmento de Anaximandro sobre ordem e desordem, Heidegger considera a possibilidade de que um ente

pode persistir [bestehen] em sua demora unicamente para, através disto, permanecer mais presente no sentido de permanência [Bertändigen]. O que se demora transitoriamente persiste [beharrt] em sua presença. Desta maneira ela se liberta de sua demora transitória. Ela se finca na teimosia da persistência. Ela não se volta mais para as outras coisas que se presentam. Ela se paralisa como se isto fosse o fixar-se sobre a constância do que persiste.30

A tese de Davis é que esse “demorar rebelde” se refere a um querer originário não histórico, um querer que não é limitado à época da subjetividade moderna e sua vontade de poder31. Mas devemos aqui levantar uma questão mais fundamental: Vontade é o nome apropriado para o “emperramento” que descarrilha o fluxo natural? A pulsão freudiana (pulsão de morte) não seria um nome muito mais apropriado? A crítica filosófica comum à pulsão freudiana é que ela é outra versão da “Vontade” pós-hegeliana desenvolvida pela primeira vez pelo último Schelling e por Schopenhauer, e que atingiu o auge de sua formulação em Nietzsche. Seria esse o caso, no entanto?

Uma referência ao uso do som no cinema pode ser útil. Recordamos aqui a notável cena no início de Era uma vez na América, de Sergio Leone, na qual vemos um telefone tocando alto, mas, quando uma mão tira o fone do gancho, o aparelho continua tocando – como se a força vital do som fosse estranha demais para ser contida pela realidade e persistisse além de suas limitações. Ou a cena parecida em Cidade dos sonhos, de David Lynch, na qual uma cantora interpreta “Crying”, de Roy Orbison, mas, quando ela cai inconsciente no palco, a música continua. Nisso reside a diferença entre a Vontade schopenhaueriana e a pulsão (de morte) freudiana: a Vontade é a substância da vida, sua presença produtiva, em excesso com relação a suas representações ou imagens, ao passo que a pulsão é uma persistência que continua mesmo quando a Vontade desaparece ou é suspensa – a insistência que persiste mesmo quando destituída de seu suporte de vida, a aparência que persiste mesmo quando destituída de sua substância. Temos de ser bastante precisos aqui para não deixar escapar o ponto defendido por Lacan (e, portanto, não confundir desejo com pulsão): a pulsão não é um anseio infinito pela Coisa que é fixada em um objeto parcial – a “pulsão” é essa própria fixação em que reside a dimensão “de morte” de cada pulsão. A pulsão não é uma investida universal (rumo à Coisa incestuosa) que breca e depois se quebra, ela é o próprio breque, um breque no instinto, seu “emperramento”, como diria Eric Santner32. A matriz elementar da pulsão não é a de transcender todos os objetos rumo ao vazio da Coisa (que depois somente é acessível em seu substituto metonímico), mas a da nossa libido que “emperra” em um objeto particular e é condenada a circular para sempre em volta dele.

Para tentar designar o excesso da pulsão, sua demasia, emprega-se em geral o termo “animalidade”: é o que Deleuze chamou de “devir-animal” (le devenir-animal) do ser humano, expresso de modo exemplar em uma das histórias de Kafka. O paradoxo aqui é usar o termo “animalidade” para o movimento fundamental de superar a própria animalidade, de derrotar os instintos animais – a pulsão não é instinto, mas sua “desnaturalização”. No entanto, há uma lógica mais profunda nesse paradoxo: de dentro do estabelecido universo humano de significado, seu próprio gesto fundador é invisível, indiscernível de seu oposto, de modo que tem de aparecer como seu oposto. Esta é, em termos simples, a diferença básica entre a psicanálise e a cristandade: embora as duas concordem que a vida do “animal humano” é perturbada pela violenta intrusão de uma dimensão “imortal” propriamente metafísica, a psicanálise identifica essa dimensão como a da sexualidade (especificamente [in]humana), da pulsão “não morta” em oposição ao instinto animal, ao passo que a cristandade vê na sexualidade a força que arrasta os seres humanos para a animalidade e impede seu acesso à imortalidade. Esta é a “novidade” insuportável da psicanálise: não sua ênfase no papel da sexualidade como tal, mas o fato de tornar visível a dimensão “metafísica” da sexualidade humana. O paradoxo da cristandade é que, para preservar seu edifício, ela precisa suprimir violentamente essa dimensão metafísica da sexualidade, reduzi-la à animalidade. Em outras palavras, essa violenta desespiritualização da principal dimensão do ser humano é a “verdade” da elevação cristã da espiritualidade humana. Infelizmente, Hegel faz o mesmo em sua teoria do casamento – assim como Heidegger.

A questão idealista comum “existe vida (eterna) depois da morte?” deveria ser contra-atacada pela questão materialista “existe vida antes da morte?”. Essa foi a pergunta que Wolf Biermann fez em uma de suas canções – o que incomoda os materialistas é: estou realmente vivo aqui e agora, ou estou apenas vegetando, como um mero animal humano empenhado em sobreviver? Quando estou realmente vivo? Exatamente quando enceno a pulsão “não morta” em mim, a “demasia” da vida. E chego a esse ponto no momento que não ajo mais diretamente, mas quando “isso” (es) – cujo nome cristão é o Espírito Santo – age através de mim. Nesse momento, alcanço o Absoluto.

O próximo passo crucial é ver que esse “emperramento” não é apenas uma consequência de nossa deficiência ou finitude humana, de nossa incapacidade de apreender o puro Ser a partir de nossa perspectiva parcial (se assim fosse, a solução seria uma espécie de autoapagamento, uma imersão no Vazio primordial); ao contrário, esse “emperramento” atesta uma discórdia bem no âmago do próprio Ser. Extremamente pertinente aqui é a interpretação que Gregory Fried faz de toda a obra de Heidegger através da lente interpretativa de sua referência ao polemos de Heráclito (luta ou, em alemão, Krieg, Kampf ou, predominantemente em Heidegger, Auseinandersetzung), a partir do famoso fragmento 53 deste último: “A guerra é pai de todas as coisas e rei de todas as coisas: uns ela revela deuses, outros, revela humanos; de uns ela faz escravos, de outros, homens livres”33. Não é só que a identidade estável de todos os entes seja temporária, que todos desapareçam mais cedo ou mais tarde, desintegrem-se e retornem ao caos primordial; sua identidade (temporária) surge pela luta, pois a identidade estável é uma coisa que deve ser obtida pelo suplício – até mesmo a “luta de classes” já está presente aqui, na forma da guerra que “de uns faz escravos, de outros, homens livres”.

Há, no entanto, de se dar mais um passo com respeito ao polemos: é fácil postular a luta como “pai de todas as coisas” e depois elevá-la a uma harmonia superior, no sentido de que o Ser se torna a concórdia escondida dos polos que lutam, como uma música cósmica em que os opostos ecoam um ao outro harmoniosamente. Assim, para dizê-lo sem meias-palavras, essa disputa é parte da própria Harmonia ou é uma dissonância mais radical, que descarrilha a própria Harmonia do Ser? Como Davis notou de maneira perspicaz, Heidegger é ambíguo aqui, ele oscila entre a “discórdia” radicalmente aberta do Ser e sua reinscrição na reversão teleológica do Perigo em Salvação, na qual, segundo Jean-Luc Nancy, a “‘discórdia’ é, na melhor das hipóteses, o que faz a ‘unidade aparecer’”34:

Será o ser uma fuga em que toda dissonância acaba por ser necessariamente harmonizada? Ou será que o mal persegue o dom de ser como seu excesso dissonante não suprassumível? Se a primeira ideia traz o pensamento de Heidegger de volta à sistematicidade do idealismo, a segunda sugestão arrasta-o para a região inexplorada do pensar a essencial negatividade e finitude do próprio ser.35

Notamos que a mesma crítica que Heidegger fez a Schelling recai sobre o próprio Heidegger: para este, Schelling foi incapaz de “inscrever de modo inextricável a não suprassumível negatividade e finitude no cerne abissal do próprio ser”36, ou seja, foi incapaz de aceitar que a Unwesen do mal

deixou de ser a da alienação não essencial ou dialeticamente necessária de uma plenitude original; trata-se de um dissonante e originário excesso do essenciar do próprio ser. A ocorrência ambivalente do ser em sua finitude essencial implica a possibilidade inextirpável do mal.37

Essa opção suscita uma série ainda mais vertiginosa de questões. E se não existir, stricto sensu, nenhum mundo, nenhuma abertura do ser, anterior a esse “emperramento”? E se não existir nenhuma Gelassenheit perturbada pelo excesso de querer? E se for esse próprio excesso ou emperramento que abre espaço para a Gelassenheit? O fato primordial, portanto, não é a fuga do Ser (ou a paz interior da Gelassenheit), que depois é perturbada ou pervertida pelo advento do querer originário; o fato primordial é o próprio querer originário, sua perturbação da fuga “natural”. Dito de outra forma: para que o ser humano se retire da imersão total em seu ambiente para o espaço interno da Gelassenheit, essa imersão primeiro tem de ser quebrada pelo “emperramento” excessivo da pulsão. Davis fala muitas vezes do “resíduo” da vontade – expressão que só pode nos fazer lembrar de Schelling e de seu “resto indivisível” do Real, que não pode ser dissolvido ou resolvido em sua mediação ideal ou conceitual. Disso devemos tirar a conclusão de que devemos inverter a perspectiva e ver o próprio “resíduo” como constitutivo da mesma ordem positiva que ele mancha, ver a vontade não só como um obstáculo irredutível, mas como condição positiva da Gelassenheit.

A relação de Heidegger com Schelling é crucial aqui: suas leituras consecutivas do tratado sobre a liberdade de Schelling têm o mesmo papel sintomático de suas duas leituras consecutivas do coro de Antígona – em ambos os casos, a segunda leitura é uma “regressão” que não consegue resolver a tensão criativa da primeira. Segundo Heidegger, a singularidade de Schelling foi tentar elaborar um “sistema da liberdade” enquanto “metafísica do mal”: para Schelling, a liberdade não é a liberdade idealista abstrata, a liberdade do desdobramento irrestrito da Razão, mas a liberdade concreta de um ser humano preso na tensão entre Bem e Mal, e a possibilidade desse Mal efetivo e totalmente contingente não pode ser justificada nos termos da sistematicidade do Absoluto. Mas Schelling não estava pronto para defender plenamente o abismo da liberdade abandonando o quadro idealista sistemático e aceitando a finitude e a temporalidade humana como nosso horizonte intransponível.

Mas e se for justamente esse quadro idealista sistemático do Absoluto que permite Schelling dar seu passo mais radical, o de fundamentar a liberdade humana na Verrücktheit (loucura/inversão) do próprio Absoluto? No momento que abandonamos o quadro do Absoluto e entramos no espaço da finitude pós-hegeliana – no qual, conforme consta, estamos lidando “não com abstrações, noções incorporadas, mas com indivíduos vivos concretos, sua dor e suas lutas” –, a pergunta schellinguiana fundamental (“Como deve se estruturar o Absoluto para que a liberdade humana seja pensável?”) perde o sentido. Em lacanês, dentro do horizonte da finitude, somente a alienação (da humanidade que se aliena de si, de seu potencial etc.) é pensável, e não a separação (do Absoluto que se separa de si). Em termos cristãos, apenas a superação do fato de Deus se afastar do homem é pensável, não a kenosis do próprio Deus, seu esvaziamento de si e Encarnação. O próprio Schelling lutou com a radicalidade dessa conclusão:

É correto dizer dialeticamente que bem e mal são a mesma coisa vista de aspectos diferentes, ou que o mal em si, isto é, visto na raiz de sua identidade, é o bem; assim como, por outro lado, o bem, visto em sua divisão ou não identidade, é mal. [...] existe apenas um princípio para todas as coisas; é uma e a mesma essência [...] que governa com a vontade do amor e do bem e com a vontade do ódio e do mal. [...] O mal, no entanto, não é uma essência, mas um excesso dissonante [Unwesen] que tem a realidade apenas em oposição, mas não em si. E justamente por essa razão a identidade absoluta, o espírito do amor, é anterior ao mal, porque o mal só pode aparecer em oposição a ela.38

Mas devemos corrigir Schelling: o mal é ontologicamente anterior ao bem, porque o “mal” é o excesso ou a dissonância primordial na ordem natural do ser, o “emperramento” ou descarrilamento do curso natural das coisas, e o “bem” é a (re)integração secundária desse excesso. É o Unwesen que abre espaço para o surgimento de um Wesen ou, em hegelês, o Bem é o Mal autossuprassumido (universalizado). Então por que Heidegger não estava pronto para ir até o fim nesse aspecto? Por trás disso, é claro, espreita a figura de Hölderlin. Tanto Hölderlin quanto Heidegger desenvolvem a mesma lógica apocalítica escatológica em que a história culmina em perigo e devastação totais: para alcançar a salvação, devemos primeiro passar pelo maior dos perigos39. Obviamente, a ênfase de Heidegger é como essa lógica deve ser distinguida da “negação da negação” hegeliana. Mas como Heidegger distingue entre sua própria noção de “disputa” no âmago do Ser e a noção idealista alemã da negatividade no âmago do Absoluto? Uma característica diferenciadora é que, no idealismo alemão, a negatividade é um momento subordinado no movimento de automediação da Ideia, no jogo que o absoluto joga consigo mesmo, simplesmente dando corda o suficiente para que seu oposto se enforque. De acordo com Davis:

[em Hegel] o Espírito se lança para – ou melhor, põe para fora de si – o outro que não ele mesmo só para astuciosamente trazer o outro de volta a sua mesmidade original. O espírito precisa dessa reincorporação do outro, mesmo correndo o risco de alienar-se de si, sacrificando sua imediatez solitária inicial em nome da transformação incorporativa de toda alteridade em uma totalidade mediada e, desse modo, conscientemente idêntica a si mesma.40

Apesar desse avanço para a própria borda da metafísica, Schelling continua preso na mesma armadilha: sua definição de liberdade humana enquanto liberdade para o bem e para o mal indica uma mudança do autodesenvolvimento sistemático idealista do Absoluto para a abertura existencial radical do ser humano finito e efetivo. A condição dessa liberdade, no entanto, continua profundamente ambígua:

Será que o amor de Deus deixa o fundamento operar em nome da mais abrangente revelação dessa subjetividade incondicional – uma autorrevelação do controle absoluto que exigiria no mínimo a submissão de “escravos livres”? Ou esse amor sugere uma não interferência que liberta a vontade de fechamento do sistema do Absoluto, a própria vontade de subjetividade incondicional?41

Por fim, como nota Davis, Schelling opta pela segunda versão:

A vontade de amor “deixa o fundamento operar” em independência; ela permite a insurreição da vontade do fundamento para que, ao subordinar por fim essa vontade rebelde da escuridão à ordem da luz, possa manifestar sua própria onipotência. Deus deixa que os homens livremente se tornem o deus inverso, de modo que a dissonância do mal, no fim, possa servir de realce em nome da revelação da harmonia superior do amor divino.42

Por conta dessa limitação, “a corajosa tentativa de Schelling de pensar um ‘sistema de liberdade’ enquanto ‘metafísica do mal’ acaba retrocedendo a uma ‘sistematicidade’ do Absoluto. O mal é requerido e justificado em nome da revelação da onipotência da vontade divina de amor”43. Em contraste com Hegel e Schelling, como se diz, a “disputa” de Heidegger não é o jogo astucioso da automediação do Ser, mas um jogo genuinamente “aberto”, em que nada garante o resultado, pois a disputa é primordial e constitutiva, e não existe “reconciliação” que possa aboli-la. Mas esse esquema é adequado? Com respeito a Hegel, o esquema deixa passar o principal aspecto do processo dialético, a transubstanciação que marca a reversão dialética: a “mesmidade” para a qual o processo retorna depois da alienação não é “substancialmente a mesma” que a mesmidade inicial, ela é outra Mesmidade que totaliza os momentos dispersos. É por isso que a alienação ou negação é irredutível: o que acontece na “negação da negação” é a realização da negação; nela, o ponto de partida imediato é definitivamente perdido. Portanto, não há um único Sujeito Absoluto para astuciosamente jogar consigo mesmo o jogo da autoalienação – o sujeito surge, é constituído, pela alienação. Na medida em que o ponto de partida é a imediaticidade da natureza, o Espírito “retorna a si mesmo” na interiorização-de-si a partir da exterioridade da natureza, e constitui-se por meio desse “retorno-a-si-mesmo”. Ou, nos termos tradicionais de Bem versus Mal, o Bem hegeliano não é o Absoluto que medeia ou suprassume o Mal, é o próprio Mal que se universaliza e assim reaparece como Bem. Aqui, a visão de Hegel é ainda mais radical que a da disputa “aberta” entre Bem e Mal: para ele, a disputa é inerente ao Mal, ela é o Mal, e o Bem nomeia simplesmente as autossuprassunções parciais e frágeis do Mal.

 

O núcleo não histórico da historicidade

Encontramos aqui o problema da historicidade em seu sentido mais radical: uma historicidade que vai “até o fim” e não pode ser reduzida ao desdobramento ou revelação na história de um Absoluto não histórico. De certo modo, a verdadeira Kehre de Sein und Zeit para o último Heidegger é a mudança da análise formal e transcendental a-histórica para a historicidade radical44. Para colocarmos nos termos (não exatamente apropriados) do idealismo alemão, o feito de Heidegger é elaborar um transcendentalismo radicalmente historicizado: a historicidade heideggeriana é a historicidade dos próprios horizontes transcendentais, dos diferentes modos de abertura do ser, sem nenhum agente regulando o processo – a historicidade acontece enquanto um es gibt (il y a), o abismo radicalmente contingente do jogo do mundo45.

Essa historicidade radical chega a sua formulação definitiva com a passagem do Ser para o Ereignis, o que solapa totalmente a ideia do Ser como um tipo de supersujeito da história que envia para o homem suas mensagens ou épocas. Ereignis significa que o Ser é nada mais que o chiaroscuro dessas mensagens, nada mais que o modo como isso se relaciona com o homem. O homem é finito, assim como o Ereignis: a própria estrutura da finitude, a ação de Clarear ou Obscurecer sem nada por trás disso. “Isso” [it] é apenas o impessoal isso [it], um “existe”. Existe uma dimensão não histórica em atividade aqui, mas não histórica é a própria estrutura formal da historicidade em si46. É essa ênfase na historicidade radical que sempre separou Heidegger do assim chamado pensamento oriental: apesar da semelhança entre Gelassenheit e nirvana etc., atingir o nível zero do nirvana não tem sentido nenhum no horizonte do pensamento de Heidegger – seria algo como eliminar todas as sombras do encobrimento47. Como o homem do campo na história de Kafka, que descobre que a porta está lá só para ele, o Dasein tem de experimentar como o Ser precisa de nós, como nossa disputa com o Ser é a disputa do Ser consigo mesmo.

O que Heidegger chama de Ereignis é o acontecimento/chegada da Verdade, de um novo horizonte “hermenêutico” no qual os seres aparecem como aquilo que são – para Heidegger, o Ser é o “Sentido do Ser”. A diferença ontológica de Heidegger é a diferença entre os seres e seu horizonte não ôntico de significado. Alguns leitores interpretam a diferença ontológica em termos de essência versus existência – como a diferença entre o que as coisas são e o mero fato de que são – e apontam que a metafísica negligencia essa diferença quando subordina o ser a um ente essencial (Ideia, Deus, Sujeito, Vontade...). Mas, como Heidegger deixa claro na “Carta sobre o humanismo”d, a reversão sartriana que afirma a prioridade da existência sobre a essência (recordemos a perturbadora descrição de Sartre da inércia da existência sem sentido em A náuseae) continua dentro dos confins da metafísica. Para Heidegger, a questão da diferença ontológica é justamente a impossibilidade de podermos demarcar uma linha de separação entre a mera existência e seu horizonte de sentido: a historicidade radical significa que o ser é sempre-já aberto em um horizonte de significado, nunca como um ser neutro puro. Assim, quando Badiou escreve que “um poema não é guardião do ser, como Heidegger pensava, mas a exposição em linguagem dos recursos do aparecer”48, ele está construindo, do ponto de vista heideggeriano, uma oposição falsa e desprovida de significado: o que Heidegger chama de “Ser” é a “verdade do Ser”, a abertura específica do mundo enquanto horizonte do aparecer. Podemos avaliar aqui a distância que separa a noção de diferença ontológica de Heidegger da de Badiou:

Sabemos que Heidegger ligava o destino da metafísica ao mal entendimento da diferença ontológica que é o pensamento enquanto diferença entre ser e entes. Se interpretarmos os entes como o “aí” do ser, ou como a localização mundana de um múltiplo puro, ou como a aparência de um ser múltiplo – o que é possível em todos os casos –, podemos dizer que o que Heidegger chama de diferença ontológica concerne à lacuna imanente entre a lógica e a matemática. Para seguirmos Heidegger, portanto, seria apropriado chamar de “metafísica” toda orientação de pensamento que misture na mesma Ideia a lógica e a matemática.49

Uma breve nota explicativa: para Badiou, a matemática é a única ontologia verdadeira, a ciência do Ser enquanto tal, em si, que consiste nas puras multiplicidades das multiplicidades contra o pano de fundo de um Vazio, ao passo que a lógica é sempre a lógica de um mundo, a estrutura imanente das coordenadas transcendentais de certo modo de aparecer dos entes. Para Badiou, a multiplicidade dos mundos é irredutível, e não existe uma matriz unificadora superior que nos permitiria deduzir uma da outra, ou mediá-las em uma totalidade superior – nisso reside a limitação fatídica da lógica de Hegel.

Não há lugar em Heidegger para essa ideia de diferença ontológica: a diferença ontológica de Heidegger é a diferença entre os entes que aparecem e o horizonte ontológico de seu aparecer, e, dessa perspectiva, os entes fora desse aparecer são um X pré-ontológico cuja condição é totalmente ambígua e não tematizada.

Uma análise mais próxima revela como a historicidade radical adotada pelo último Heidegger resolve um impasse que assombrou a análise do Dasein em Ser e tempo, na qual dois pares ecoam um ao outro sem se sobreporem totalmente. Primeiro, há uma oposição entre Zuhanden e Vorhanden, entre estar engajado no mundo e adotar para com ele a atitude de um observador desengajado, que é um modo ontologicamente secundário (assumimos uma distância teórica quando as coisas não funcionam bem, quando nosso envolvimento encontra um obstáculo). Depois, temos a oposição entre o Dasein autêntico e seu Verfallenheit em das Man entre escolher seu projeto e assumir a própria mortalidade, e a obediência não autêntica ao anônimo “é isso que se faz”. Exatamente de que maneira esses dois pares se relacionam? Eles formam, é claro, uma espécie de quadrado semiótico cujos termos estão dispostos ao longo dos dois eixos entre o autêntico e o inautêntico e entre o engajamento no mundo e o recuar diante do mundo: há dois modos de envolvimento, o autêntico ser-no-mundo e o inautêntico “das Man”, e há dois modos de recuo, a suposição autêntica da própria mortalidade por meio da angústia e a distância inautêntica do sujeito rumo à “realidade” objetificada. A armadilha, é claro, é o fato de os dois modos inautênticos se sobreporem (pelo menos em parte): o engajamento inautêntico envolve uma manipulação tecnológica na qual a posição do sujeito é oposta à “realidade externa”.

Heidegger muitas vezes alude a uma ligação entre “das Man” e a redução das coisas a objetos vorhandene de teoria; isso, no entanto, implica o dúbio pressuposto padrão de que nosso mais comum Verfallenheit em “das Man” é estruturado pelas categorias metafísicas – quase uma espécie de juízo infinito hegeliano, uma coincidência de opostos: nesse caso, do mais vulgar e superficial, conforme a tendência predominante do que “se” deve fazer e pensar, e dos altos esforços especulativos e metafísicos de grandes pensadores ocidentais, de Platão a Hegel. A definição mais sucinta da tecnologia moderna é exatamente que ela une o Verfallenheit, a imersão nas coisas mundanas, a vontade de dominar, à distância teórica: os objetos da tecnologia não são Zuhanden, são Vorhanden; a Razão tecnológica é teórica, não prática.

A primeira tarefa de Sein und Zeit é fornecer uma descrição fenomenológica da “imediaticidade do Dasein cotidiano”, ainda não contaminada pelo tradicional aparato categorial metafísico: enquanto a metafísica fala de objetos dotados de propriedades, a fenomenologia da vida cotidiana vê as coisas que são sempre-já prontas para o uso, fazem parte de nosso engajamento, são componentes de uma estrutura de mundo significativa; enquanto a metafísica fala de um sujeito que se relaciona com o mundo, ou se opõe aos objetos no mundo, a fenomenologia vê o ser humano sempre-já inserido no mundo, engajado com as coisas etc. Aqui, a ideia é que a metafísica tradicional (que deve ser “des[cons]truída” pela fenomenologia) é um tipo de tela secundária, uma rede imposta que cobre a verdadeira estrutura da vida cotidiana. A tarefa, portanto, é prescindir dos pré-juízos metafísicos e descrever os fenômenos do modo como são em si mesmos; no entanto, como nossa atitude filosófica predominante já está profundamente infectada pela metafísica, uma descrição fenomenológica pura é a tarefa mais difícil, requer o duro trabalho de nos livrarmos da metafísica tradicional. Assim, Heidegger busca em diferentes fontes o aparato conceitual que sustente essa descrição, desde o princípio da cristandade paulina até a phronesis aristotélica.

A própria vida de Heidegger dá ocasião para um comentário irônico sobre essa tensão entre a imediaticidade da vida cotidiana e sua má interpretação metafísica: parece que, pelo menos em seus últimos anos, ele retornou ao catolicismo, pois deixou instruções para que fosse enterrado como católico, com funeral na igreja. Desse modo, enquanto na filosofia ele teorizava a imediaticidade da vida pré-metafísica, na vida cotidiana ele continuou fiel à cristandade, a qual, em sua teoria, ele tinha descartado como resultado de uma interpretação romana equivocada da abertura grega original do Ser, como o principal passo para o esquecimento onto-teológico do Ser e como uma tela metafísico-ontológica toldando a imediaticidade da vida. Por conseguinte, é como se os termos tivessem trocado de lugar: a vida imediata de Heidegger era metafisicamente estruturada, enquanto sua teoria revelava a estrutura da imediaticidade da vida cotidiana.

Como vimos, no período imediatamente posterior a Sei und Zeit, tendo chegado a um impasse em seu projeto, Heidegger buscou desesperadamente, durante alguns anos, um ponto de referência filosófico que lhe permitisse refundar esse projeto. De grande interesse aqui são suas duas tentativas de “repetir” Kant: em Kant and the Problem of Metaphysics, ele se referiu à imaginação transcendental como a chave para compreender a temporalização primordial do Ser, ao passo que, em 1930, explorou brevemente o potencial da Crítica da razão prática, interpretando o imperativo categórico como “a lei fundamental de um querer finito puro50. O ato único de decisão autêntica, a escolha de um projeto que defina nossa vida – assumido quando chegamos à beira da morte enquanto última (im)possibilidade da vida humana –, é agora interpretado nos termos kantianos da autonomia do sujeito e da liberdade autolegisladora, como ato da pura vontade que determina unilateralmente a lei da razão prática.

Heidegger sabia muito bem que Kant rejeitaria tal (re)formulação, pois, do ponto de vista de seu racionalismo universalista, ela lembra muito a vontade própria voluntária: a vontade prática pura não cria arbitrariamente sua própria lei, ela a descobre como estrutura a priori transcendental de cada atividade ética. Para Heidegger, é claro, é Kant quem permanece nos confins da metafísica racionalista universalista, incapaz de pensar a finitude do ser humano. Davis, como poderíamos esperar, levanta a suspeita de que a subordinação que Heidegger faz da vontade ética a um decisionismo da contingência histórica preparou o terreno para o envolvimento de Heidegger com o nazismo.

No entanto, precisamos ser bastante precisos aqui: a ética kantiana da autonomia da vontade não é uma ética “cognitiva”, uma ética em que reconhecemos e seguimos a Lei moral já dada. Heidegger está basicamente correto em sua leitura de Kant: em uma ação ética, eu não sigo apenas meu dever, eu decido o que é meu dever. Mas é precisamente por essa razão que Kant rejeita totalmente qualquer forma de “querer diferido” sacrificial, ou seja, um diferimento da vontade por conta da vontade do Estado ou de um Líder: a autonomia moral significa que eu respalde plenamente meu dever, que eu jamais assuma a posição perversa de ser o instrumento da Vontade do Outro. Aqui, o problema com Heidegger é que, paradoxalmente, ele não é suficientemente “decisionista subjetivista”: seu “decisionismo” inicial é quase o completo anverso de responder a – seguir – um Destino preordenado. O “subjetivismo” radical (a insistência no fato de a decisão – e a responsabilidade por ela – ser totalmente minha) e o universalismo não são opostos, mas sim dois aspectos da mesma posição da universalidade singular; aquilo a que ambos se opõem é o Destino histórico particular de uma comunidade (um povo). É aqui que surge a possibilidade de seguir Hitler: quando se reconhece nele não a voz da Razão universal, mas a voz de um Destino histórico concreto da nação alemã.

A grande mudança que ocorre no pensamento de Heidegger, a partir da década de 1930, reside na historicização radical dessa oposição: a metafísica tradicional não é mais uma falsa tela que cobre a estrutura da vida cotidiana, mas a elaboração do fundamental “afinamento” epocal, historicamente específico, que fornece a estrutura para nossa vida. Toda grande metafísica, em última análise, é uma ontologia fenomenológica da histórica “imediaticidade do Dasein cotidiano”: Aristóteles foi responsável pela ontologia que estruturou a experiência cotidiana dos cidadãos gregos; a filosofia da subjetividade moderna forneceu a estrutura do querer, da dominação e da “experiência interior”, que é a estrutura da vida cotidiana nas sociedades capitalistas dinâmicas. Saltar para fora da metafísica, portanto, não é mais apenas uma questão de ver através de uma rede ofuscante e perceber a verdadeira natureza da vida cotidiana, mas sim uma questão de mudança histórica no afinamento fundamental da própria vida cotidiana. A virada na filosofia da metafísica tradicional para a fenomenologia pós-metafísica faz parte da virada histórico-mundial (Kehre) no próprio Ser.

A ingênua pergunta que devemos fazer aqui é: como são possíveis figuras como Mestre Eckhart, Angelus Silesius e Hölderlin, como são possíveis suas insinuações de uma dimensão não metafísica (da Gelassenheit, do ohne Warum, da essência da poesia) no espaço de tal historicidade radicalizada? Eles não sugerem “a possibilidade de um excesso não histórico para a história da metafísica, um excesso que criticamente põe em dúvida o papel homogêneo de suas épocas e também sugere afirmativamente a possibilidade de participar da transição para outro começo, para além do fechamento da metafísica na vontade tecnológica de vontade”51? Deveríamos perguntar o mesmo a propósito da vida cotidiana: em nossa época de tecnologia, nossa vida diária não é totalmente determinada pela abertura epocal do Gestell, ou há algo em nossos costumes diários – encontrar uma obra de arte, admirar a beleza, uma simples imersão em alguma atividade – que resiste à tecnologia? Heidegger parece oscilar entre a noção de que tais distanciamentos estão sempre-já incluídos na tecnologia (como o turismo, o consumo artístico etc., o que nos permite revitalizar e voltar com mais energia para o universo tecnológico) e a ideia oposta de que – como a tecnologia não é redutível a máquinas etc., mas é um modo pelo qual o Ser se abre para nós – podemos continuar usando a tecnologia a distância, sem ficarmos presos no Gestell e reduzir os entes ao material para a manipulação tecnológica:

Podemos utilizar os objectos técnicos e, no entanto, ao utilizá-los normalmente, permanecer ao mesmo tempo livres deles, de tal modo que os possamos a qualquer momento largar [...] deixar esses objectos repousar em si mesmos como algo que não interessa àquilo que temos de mais íntimo e de mais próprio. [...] Deixamos os objectos técnicos entrar no nosso mundo quotidiano e ao mesmo tempo deixamo-los fora [...]. Gostaria de designar esta atitude do sim e do não simultâneos em relação ao mundo técnico com uma palavra antiga: a serenidade [Gelassenheit] para com as coisas.52

Aqui encontramos Heidegger em seu pior aspecto, encaixando-se perfeitamente na atitude “descolada” pós-moderna. Dizem que a grande sabedoria oriental reside na capacidade não de simplesmente recuar diante do mundo, mas de participar de suas relações com distância interior, “participar sem participar”, sem estar de fato engajado. Ironicamente, essa versão da Gelassenheit encontra seu equivalente em uma expressão que usamos hoje em dia: “descolado”; uma pessoa “descolada” faz tudo com um ar de indiferença e distância interior.

Da Gelassenheit à luta de classes

A mesma tensão entre historicidade e a dimensão a-histórica está em jogo no oposto da Vontade, na Gelassenheit. A Gelassenheit não é simplesmente o nome para a atitude não histórica própria do homem para com o Ser, mas também o nome do afinamento específico que seguirá o reino da tecnologia; a Vontade não é apenas o nome para a época da subjetividade moderna, mas também o nome de uma tentação eterna, a possibilidade da Unwesen, que faz parte da humanidade do homem. Mais precisamente, a Gelassenheit funciona em três níveis de temporalidade: está sempre-já aqui como constitutiva do ser humano; está por vir como atitude predominante para com o outro que começa depois da Virada; está aqui e agora como possibilidade que cada um de nós pode efetivar em sua atitude e comportamento, preparando assim o caminho para o outro começo53. Como resolveremos a ambiguidade da tentativa de Heidegger de superar a metafísica: o objetivo é chegar a seus primórdios ocultos ou ir além dela, rumo a um começo radicalmente novo, o “outro começo” que deixa para trás toda a história da metafísica? Notemos que há uma ambiguidade homóloga em Derrida, que costuma variar o tema de que o fim da “era do signo” é perceptível no horizonte, embora essa era talvez nunca acabe, nunca a deixemos para trás: hoje, a metafísica da presença atingiu seu fechamento, mas mesmo assim jamais seremos capazes de sair dela. Todo o impasse da “desconstrução” está condensado nessa estranha temporalidade da consumação eternamente posposta (diferida) do fim da metafísica, como se estivéssemos condenados a habitar eternamente o limbo do tempo do fim do tempo (metafísico). Este, talvez mais do que a democracia, é o verdadeiro “por vir” (à venir) de Derrida: sempre por vir, nunca totalmente aqui54.

Há basicamente duas maneiras de resolver esse impasse: ou a saída da metafísica é em si uma noção (metafísica) errada, de modo que essa morada no fim dos tempos é a única posição não metafísica possível, ou definimos a própria metafísica como desejo de sair de um campo de contenção, de modo que, paradoxalmente, a única maneira de sair de fato da metafísica é renunciar a esse desejo, defender totalmente nossa contenção. Como saímos desse impasse? É pertinente fazermos aqui uma referência a Kierkegaard: o Novo é Repetição, só podemos recuperar o primeiro Começo por meio de um novo que traga à tona o potencial perdido do primeiro.

Se esse for o caso, no entanto, o que acontece com a historicidade radical – radical no sentido de que o Ser não é senão os eventos da história epocal do ser, de que não existe um Ser substancial por trás disso que se abra apenas parcialmente no jogo da abertura ou do recuo?

O Ser é “finito” ou “histórico” no sentido de que ele só “é” como os eventos temporais de revelar-se/ocultar-se. A história do ser, de um lado, é a continuidade de um recuo cada vez maior do ser (e o advento correspondente da vontade), e mesmo assim, por outro lado, o ser não é nada mais que esse movimento (des)contínuo de revelar-se/ocultar-se, de conceder-se no recuo.55

Devemos dizer, então, que a história não é nada mais que o desenvolvimento epocal da disputa/“negatividade” no próprio Ser? Que a moderna Vontade de poder não é nada mais que a efetivação histórica de um potencial que mora na estrutura não histórica do próprio Ser?

O não histórico deve ser visto como algo inseparavelmente entrelaçado ao histórico, e não como independentemente contrário a este. Na verdade, é somente quando incorremos no historicismo (no sentido de relativismo histórico) que qualquer sugestão do não histórico só pode ser vista como um fracasso em pensar a historicidade56. O pensamento radical de Heidegger a respeito da historicidade, por outro lado, exige que também pensemos sua relação com o não histórico. No entanto, o não histórico [...] só “é” em suas determinações históricas, e por meio delas.57

A conclusão que tiramos daí é clara: se o ser não é nada mais que o movimento de seu revelar ou de sua abertura, então o “esquecimento do ser” também é, acima de tudo, autorrelativo, o esquecimento ou recuo dessa brincadeira histórica de revelar-se e recuar-se. E se levássemos isso em conta, “o outro começo não seria uma completa erradicação do problema do querer, mas sim uma vigilante abertura para ele, um reconhecimento atento da finitude de nosso eu, preso entre esse problema do querer e a possibilidade do não querer”58.

Devemos ressaltar aqui a invocação da vigilância, que aparece algumas vezes no livro de Davis, como na página 280 (“o outro começo seria um tempo em que o não querer, ou pelo menos seus momentos decisivos ou incisivos, se tornaria possível exatamente por meio de uma abertura vigilante a certo problema do ‘querer’, jamais totalmente erradicado?”), na página 282 e de novo na página 286: “O outro começo, nesse caso, não implicaria apenas um afinamento da peça harmoniosa da ek-sistência/in-sistência, mas também um reconhecimento vigilante do impulso à persistência, um impulso que, quando não verificado, nos levaria de volta à subjetividade voluntária”. Mas o termo “vigilância” é extremamente problemático aqui: a “vigilância” não é apenas uma atitude voluntária por excelência, que nos leva ao paradoxo pragmático de “zelar voluntariamente por nossa voluntariedade”; de modo ainda mais radical, se o que é ocultado no recuo do ser, em última análise, é o próprio jogo de revelar-se ou ocultar-se, então a atitude “vigilante” de zelar pelo esquecimento não seria a própria fonte do problema (da mesma maneira que a luta constante pelo Bem é a própria fonte do Mal)?

Para evitar esses paradoxos, temos de fazer uma escolha: ou tomamos o “impulso à persistência” como um tipo de tentação eterna da mente humana semelhante ao “mal radical” kantiano como tendência à “queda” inscrita na própria condição humana, ou asseveramos completamente essa “queda” (o “demorar rebelde” que desconjunta o fluxo da realidade) como gesto fundador do ser humano. Com respeito à política, isso muda tudo. A primeira mudança diz respeito à condição do polemos constitutivo da política. A ideia heideggeriana de que a ordem implícita no Estado é a ordem da dominação e da servidão não lembra estranhamente a noção marxista clássica do Estado como estritamente ligado à divisão da sociedade em classes? Desse modo, quando Heidegger, em sua leitura do fragmento 53 de Heráclito, insiste no modo como “o embate, a que se alude aqui, é o combate originário. Pois é ele que faz com que nasçam, pela primeira vez, os combatentes, como combatentes”59, não seria luta de classes, dentro da política, o nome dessa luta constitutiva daqueles que lutam, e não apenas um conflito entre os agentes sociais preexistentes? Recordamos aqui a lição de Louis Althusser: a “luta de classes” paradoxalmente precede as classes como grupos sociais determinados, pois cada determinação e posição de classes já é um efeito da “luta de classes”. (É por isso que “luta de classes” também é mais um nome para o fato de que a “sociedade não existe” – não existe como ordem positiva dos entes.) Em outras palavras, devemos sempre ter em mente que, para um verdadeiro marxista, “classes” não são categorias da realidade social positiva, partes do corpo social, mas categorias do Real de uma luta política que atravessa todo o corpo social, impedindo sua “totalização”.

No entanto, Heidegger ignora essa leitura do polemos como a luta entre dominantes e dominados: se a terra-natal “torna-se o modo de Ser de um povo só quando se torna expansiva, quando interage com o exterior – quando se torna um Estado”, então está claro que o polemos é primeiramente a disputa com o inimigo externo. Não surpreende que Heidegger, quando elabora a essência da política, compare solidariamente sua noção de política com duas outras noções: a ideia de Bismarck da política como arte do possível (não só cálculos estratégicos oportunistas, mas também a capacidade do líder de apreender a “possibilidade essencial” oferecida por uma constelação histórica e mobilizar o povo para ela), e a ideia de Carl Schmitt da relação antagônica entre amigo e inimigo – ou seja, a tensão com o inimigo externo – como característica definidora da política.

O paradoxo é que (como no caso da diferença sexual) Heidegger ignora a condição propriamente ontológica da luta de classes como disputa ou antagonismo que não pode ser reduzido a um conflito ôntico, pois ela sobredetermina o horizonte da aparência de todos os entes sociais ônticos. O modo de Ser do povo é a luta de classes (antagonismo social), não o Estado – o Estado existe para ofuscar esse antagonismo. Essa noção radicalizada do polemos como luta de classes nos leva à segunda mudança, intimamente ligada à primeira: outra maneira de abordar a “questão da consciência da vontade da comunidade” como “um problema de todas as democracias”. A ideia heideggeriana de comprometimento político envolve a unidade de um povo e o líder que mobiliza as pessoas em uma luta comum contra um inimigo (externo), juntando todo mundo (“aceitando” até mesmo o proletariado). No entanto, se tomamos a luta de classes como o polemos constitutivo da vida política, então o problema da vontade política comum aparecerá de uma maneira radicalmente diferente: como construir a vontade coletiva dos oprimidos na luta de classes, a vontade emancipatória que leva ao extremo o polemos de classes. (E essa vontade já não estava em ação na antiga democracia grega, já não estava operante no próprio núcleo da pólis ateniense?) Essa vontade coletiva é o componente crucial do comunismo, que

busca possibilitar a conversão do trabalho em vontade. O comunismo visa completar a transição, por meio da luta da autoemancipação coletiva, de uma necessidade sofrida para uma autodeterminação autônoma. É o esforço deliberado, em escala histórico-mundial, de universalizar as condições materiais sob as quais a livre ação voluntária deve prevalecer sobre a passividade ou o trabalho involuntário. Ou antes: o comunismo é o projeto pelo qual a ação voluntária busca universalizar as condições para a ação voluntária.60

Casos exemplares dessa atividade podem ser encontrados em

pessoas como Robespierre, Toussaint Louverture ou John Brown: confrontados com uma instituição indefensável como a escravidão, eles resolveram trabalhar imediatamente e por todos os meios disponíveis para erradicá-la, assim que surgiu a oportunidade. Che Guevara e Paulo Freire fariam o mesmo diante do imperialismo e da opressão. Hoje, o dr. Paul Farmer e seus Parceiros da Saúde no Haiti, no Chile e alhures, adotam uma abordagem semelhante quando confrontados com desigualdades indefensáveis na provisão global de assistência médica. Em cada caso, a lógica básica é a mais simples possível: uma ideia, como a ideia de comunismo, ou igualdade, ou justiça, exige que devamos lutar para realizá-la sem concessões ou demora, antes que os meios para tal realização sejam reconhecidos como factíveis ou legítimos, ou mesmo “possíveis”. É a luta deliberada pela própria realização que transformará o impossível em possível e ampliará os parâmetros do factível.61

Tal atividade coletiva realiza a “efetividade do povo e do líder, na qual os dois são uma efetividade, posto que não podem se separar”. Nessa mesma linha, Badiou propôs recentemente uma reabilitação do “culto da personalidade” revolucionário comunista62: o real de um Evento-Verdade é inscrito no espaço da ficção simbólica por meio de um nome próprio (de um líder) – Lenin, Stalin, Mao, Che Guevara. Longe de sinalizar a corrupção de um processo revolucionário, a celebração do nome próprio do líder é imanente ao processo: para colocarmos isso em termos mais diretos, sem o papel mobilizador de um nome próprio, o movimento político continua preso na ordem positiva do Ser representada pelas categorias conceituais – é somente pela intervenção de um nome próprio que surge a dimensão do “exigir o impossível”, da mudança dos próprios contornos do que aparece como possível.

E se essa “possibilidade essencial” do comunismo, ignorada pelo próprio Heidegger, em vez de sua longa e secreta fidelidade ao fascismo, for a verdade das mal-afamadas dúvidas sobre a democracia que ele expressou na entrevista concedida à revista Der Spiegel e publicada postumamente? “De que maneira um sistema político pode conciliar-se com a era tecnológica, e qual sistema político seria esse? Tenho de fazer essa pergunta. Não estou convencido de que seja a democracia”63. Como devemos interpretar essa declaração? A leitura óbvia seria que, para Heidegger, uma resposta política mais adequada que democracia liberal à era tecnológica provavelmente seria uma espécie de mobilização sociopolítica “totalitária” ao estilo nazista ou soviético; o contra-argumento não menos óbvio para essa posição é que ela ignora como a liberdade liberal-democrata e o hedonismo individualista mobilizam os indivíduos de maneira cada vez mais eficaz, transformando-os em workaholics:

Podemos nos perguntar se Heidegger estava certo ao sugerir, como fez na entrevista a Der Spiegel, que a democracia talvez não seja a resposta mais adequada à tecnologia. Com o colapso do fascismo e do comunismo soviético, o modelo liberal provou ser o veículo mais eficaz e poderoso da difusão global da tecnologia, que se tornou cada vez mais indistinguível das forças do capital.64

Mas também seria fácil responder que o advento do chamado “capitalismo de valores asiáticos” da última década justifica de maneira surpreendente a dúvida de Heidegger – é isso que há de tão perturbador na China contemporânea: a suspeita de que seu capitalismo autoritário não é apenas um resto do nosso passado, uma repetição do processo de acúmulo capitalista que aconteceu na Europa do século XVI ao XVIII, mas um sinal do futuro. E se ele sinalizar que a democracia, da maneira como a entendemos, não é mais a condição e a força motriz do desenvolvimento econômico, e sim o obstáculo a ele?

Não obstante, podemos assumir o risco de interpretar a declaração de Heidegger sobre a democracia de modo diferente: o problema com que ele luta não é apenas o problema de determinar qual ordem política se encaixa melhor na difusão global da tecnologia moderna; trata-se antes de saber se algo pode ser feito, no nível da atividade política, para acabar com o perigo ao ser humano que espreita na tecnologia moderna. Nunca passou pela cabeça de Heidegger sugerir – de modo liberal, digamos – que o fracasso do engajamento nazista foi apenas o fracasso de certo tipo de engajamento que conferia ao político a tarefa de realizar “um projeto de significância ontodestinal”, de modo que a lição desse fracasso seria simplesmente que deveríamos apoiar um envolvimento político mais modesto. Aí reside a limitação daquilo que podemos chamar de “heideggerianismo liberal” (de Hubert Dreyfus a John Caputo): do fracasso do envolvimento político de Heidegger, chegamos à conclusão de que deveríamos renunciar a qualquer envolvimento com pretensões ontodestinais e nos envolver em uma política pragmática modesta, “meramente ôntica”, deixando as questões destinais para poetas e pensadores.

A resposta dos heideggerianos tradicionais à leitura aqui proposta obviamente seria que, ao defender uma radicalização comunista da política de Heidegger, estaríamos caindo na pior armadilha do decisionismo subjetivista moderno da Vontade, substituindo um totalitarismo (fascista) por sua imagem especular de esquerda – o que, de certo modo, é ainda pior, porque, em seu “internacionalismo”, ele se esforça para apagar os últimos traços da terra mãe “provinciana”, ou seja, para deixar as pessoas literalmente sem raízes (característica que compartilha com o neoliberalismo capitalista). Contudo, não é nisso que reside o núcleo do problema; ao contrário, ele diz respeito à esfera da vida econômica capitalista: por mais louco que pareça, ou mesmo de mau gosto, o problema de Hitler é que ele não foi “suficientemente violento”, sua violência não foi suficientemente “essencial”. Hitler não agiu de fato, todas as suas ações foram fundamentalmente reações, porque ele agiu para que nada mudasse realmente, encenou um espetáculo gigantesco de pseudorrevolução para que a ordem capitalista sobrevivesse. Hannah Arendt estava certa quando (implicitamente contra Heidegger) notou que o fascismo, ainda que fosse uma reação à banalidade burguesa, continuava sendo sua negação inerente, continuava preso no horizonte da sociedade burguesa: o verdadeiro problema do nazismo não foi ter “ido longe demais” em sua arrogância subjetivista niilista de exercer o poder total, mas sim de não ter ido suficientemente longe, ou seja, sua violência ter sido uma atuação impotente que, em última análise, continuou a serviço da mesma ordem que desprezava. Os grandiosos gestos de Hitler de desprezar a autocomplacência da burguesia etc. acabaram permitindo que essa complacência sobrevivesse: longe de perturbar de fato a menosprezada ordem burguesa “decadente”, longe de tirar os alemães de sua imersão na complacência, o nazismo foi um sonho que lhes permitiu prosseguir.

É verdade que, como tentamos mostrar a propósito da condição do polemos e da vontade coletiva, Heidegger não segue até o fim a própria lógica quando defende o compromisso fascista. Para usar mais uma vez uma metáfora familiar: o fascismo quer jogar fora a água suja (o individualismo liberal-democrata que vem com o capitalismo) e guardar o bebê (as relações capitalistas de produção), e o modo como tenta fazer isso, repetimos, é jogando fora a água (o polemos radical que atravessa todo o corpo social) e mantendo o bebê (a unidade corporativista do povo). Mas é exatamente o oposto que deveria ser feito: jogar fora os bebês (as relações capitalistas, bem como sua pacificação corporativista) e manter a água suja da luta radical. Portanto, o paradoxo é que, para salvar Heidegger do nazismo, precisamos de mais vontade e luta e menos Gelassenheit65.

Esta é a verdadeira escolha que temos quando lemos os seminários “pró-nazistas” de Heidegger (1933-34): nós nos envolvemos na crítica hipócrita e nos deliciamos na Besserwisserei de nossa última posição crítica, ou nos concentramos no potencial ausente desses seminários, evocando a difícil questão de como ressuscitá-los em uma era em que, depois do grande fracasso do projeto comunista do século XX, os problemas para os quais o comunismo tentou achar uma resposta (conflitos sociais radicais, vontade coletiva) ainda estão conosco?

 

 

 

1   François Balmès, Ce que Lacan dit de l’être (Paris, Presses Universitaires de France, 1999), p. 72.

2   Jacques Lacan, O seminário, livro 3: as psicoses (trad. Aluísio Menezes, 2. ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1988), p. 357

3   François Balmès, Ce que Lacan dit de l’être, cit., p. 91.

4   Idem, Dieu, le sexe et la vérité, cit., p. 53.

5   Ibidem, p. 81.

5   Ibidem, p. 66.

7   Jean-Marie Lardic, em G. W. F. Hegel, Leçons sur les preuves de l’existence de Dieu (Paris, Aubier, 1994), p. 9.

8   Como se relacionam método e sistema no pensamento de Hegel? Segundo a doxa marxista padrão, há uma contradição entre os dois: o sistema de Hegel é conservador, enquanto seu método dialético é revolucionário, então deveríamos libertar o método das restrições do sistema. O que essa oposição ingênua não considera é a identidade entre os dois, algo como o estranho destino sobre os ensinamentos teatrais de Stanislavsky, que na Rússia era conhecido como seu “sistema” e, posteriormente, nos Estados Unidos, onde se tornou bastante influente (no Actor’s Studio etc.) como seu “método”.

9   Ver Alexandre Koyré, “Hegel à Iena”, em Études d’histoire de la pensée philosophique (Paris, Gallimard, 1971).

10   Baseio-me aqui em Catherine Malabou, La chambre du milieu (Paris, Hermann, 2009).

a   Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback, 4. ed., Bragança Paulista/Petrópolis, Universitária São Francisco/Vozes, 2009. (N. E.)

11    73, p. 64.

12   Martin Heidegger, Gesamtausgabe: Hegel (Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1993), v. 68, p. 37.

13   Ibidem, p. 103.

b   Trad. Valerio Rohden, ed. bilíngue, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2003. (N. E.)

14   Walter Benjamin, “Para uma crítica da violência”, em Escritos sobre mito e linguagem (trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves, São Paulo, Editora 34, 2011), p. 138.

15   Ibidem, p. 139.

16   Ideia propagada por Habermas (ver Jürgen Habermas, Teoria do agir comunicativo, São Paulo, Martins Fontes, 2012, v. 1 e 2), mas também não alheia a um certo Lacan (ver Jacques Lacan, “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, em Escritos, trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1998, p. 234-324).

17   Jacques Lacan, O seminário, livro 3: as psicoses, cit., p. 266.

18   Idem.

c   Idem, O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (trad. Antônio Quinet, 2. ed., Rio de Janeiro, Zahar, 2008), p. 152. (N. T.)

19   Idem, seminário de 20 de maio de 1959, em Le séminaire, livre VI: le désir et son interprétation (não publicado).

20   Philippe Lacoue-Labarthe, “De l’éthique: à propos d’Antigone”, em Collège International de Philosophie, Lacan avec les philosophes (Paris, Albin Michel, 1991), p. 28.

21   François Balmès, Ce que Lacan dit de l’être, cit., p. 73.

22   Jacques Lacan, seminário de 8 de junho de 1966, em Le séminaire, livre XIII: l’objet de la psychanalyse (não publicado).

23   Recordamos que, para Lacan, o discurso da ciência pressupõe a forclusão do sujeito – em termos simplistas, nesse discurso o sujeito é reduzido a zero: uma proposição científica deveria ser válida para qualquer pessoa que repita o mesmo experimento. No momento em que temos de incluir a posição de enunciação do sujeito, deixamos de estar na ciência para estar em um discurso de sabedoria ou iniciação.

24   François Balmès, Ce que Lacan dit de l’être, cit., p. 211-3. Aqui também podemos estabelecer uma ligação com a versão do materialismo especulativo de Meillassoux: o Real científico matematizado está fora da correlação transcendental entre logos e ser. Ver Quentin Meillassoux, After Finitude (Londres, Continuum Books, 2008).

25   Em Ereignis, seminário de 1937, considerado em geral o início de seu pensamento “maduro”, Heidegger ainda fala da “vontade de Ereignis”, uma expressão impensável alguns anos antes.

26   Mesmo em um nível político superficial, sabemos que Heidegger acompanhou a revolta estudantil do fim da década de 1960 com grande simpatia, saudou a vitória eleitoral de Willy Brandt com entusiasmo e, depois da Segunda Guerra Mundial, votou de modo mais ou menos consistente a favor dos sociais-democratas.

27   As citações que se seguem são do manuscrito do seminário de 1933-1934. Ver Martin Heidegger, “Über Wesen und Begriff von Natur, Geschichte und Staat”, em Alfred Denker e Holger Zaborowski (eds.), Heidegger-Jahrbuch 4: Heidegger und der Nationalsozialismus I (Freiburg, Karl Alber, 2010).

28   Ver Bret W. Davis, Heidegger and the Will: On the Way to Gelassenheit (Evanston, Northwestern University Press, 2007).

29   Ibidem, p. 303.

30   Martin Heidegger, “A sentença de Anaximandro”, em José Cavalcante de Souza (org.), Os pré-socráticos, cit., p. 37.

31   Para uma análise mais detalhada das vicissitudes da Vontade no desenvolvimento de Heidegger, ver o capítulo 3 de Slavoj Žižek, Em defesa das causas perdidas (trad. Maria Beatriz de Medina, São Paulo, Boitempo, 2011).

32   Ver Eric Santner, On the Psychotheology of Everyday Life (Chicago, University of Chicago Press, 2001).

33   Ver Gregory Fried, Heidegger’s Polemos: From Being to Politics (New Haven, Yale University Press, 2000).

34   Jean-Luc Nancy, The Experience of Freedom (trad. Bridget McDonald, Stanford, Stanford University Press, 1993), p. 131-2.

35   Bret W. Davis, Heidegger and the Will, cit., p. 294.

36   Ibidem, p. 291.

37   Idem.

38   F. W. J. Schelling, “Philosophical Investigations into the Essence of Human Freedom and Related Matters”, em Ernst Behler (ed.), Philosophy of German Idealism (Nova York, Continuum, 1987), p. 270-1, 278-9.

39   Peter Koslowski propôs uma variação da famosa tese de Fichte de que o tipo de filosofia que se defende depende do tipo de homem que se é: o tipo de filósofo que se é depende do tipo de teoria sobre o pecado original (a Queda) que se defende. O mesmo não é válido hoje em dia? Para os ambientalistas, o “pecado original” é a dominação cartesiana sobre a natureza reduzida a um objeto mecânico; para os marxistas, a Queda é o advento da sociedade de classes; para os heideggerianos, a Queda é o esquecimento da verdade do Ser etc.

40   Bret W. Davis, Heidegger and the Will, cit., p. 171.

41   Ibidem, p. 120.

42   Ibidem, p. 110.

43   Ibidem, p. 115-6.

44   Intérpretes atentos têm notado a multiplicidade de significados da Kehre de Heidegger; os três principais são: (1) a viragem, no pensamento de Heidegger, do Ser para o Ereignis; (2) a viragem, na história do mundo do Ser, da tecnologia para o Ereignis; (3) a disputa no próprio Ereignis entre ele e seu Unwesen, Ent-Eignis.

45   É também por isso que não há lugar para o Real lacaniano no pensamento de Heidegger. A definição mais concisa do Real é que ele é um dado sem dadidade: é simplesmente dado, sem possibilidade nenhuma de explicar seu ser-dado por nenhum agente que dê, mesmo que seja o impessoal “es gibt/il y a”, sem um horizonte fenomenológico abrindo espaço para que ele apareça. É o ponto impossível do ôntico sem o ontológico.

46   A noção heideggeriana de historicidade epocal não seria um tipo de reversão da relação kantiana entre o a priori transcendental e a multiplicidade da matéria unificada pelo quadro transcendental? Enquanto em Kant o quadro transcendental é o momento trans-histórico universal, e o ôntico, a multiplicidade empírica da matéria mutável, em Heidegger o quadro transcendental (abertura do ser) é histórico, muda com as épocas, e o ôntico (a “Terra”) é o “material” trans-histórico aberto em diferentes modos históricos de seu aparecer. Portanto, podemos ter a mesma “realidade” que aparece de maneiras diferentes, é aberta de maneiras diferentes, para pessoas que vivem em diferentes períodos históricos.

47   Quando Heidegger fala do “encobrimento do próprio encobrimento” ou do “esquecimento do esquecimento”, isso não deve ser reduzido a um duplo movimento de primeiro esquecer o Ser em nossa imersão nos seres e depois esquecer esse próprio esquecimento: esquecer é sempre também um esquecer do próprio esquecer, do contrário não é em absoluto esquecimento – nesse sentido, como diz Heidegger, não é só que o Ser se recolhe, mas é que o Ser não é senão seu próprio recolhimento. (Além disso, o encobrimento é um encobrimento do encobrimento de maneira muito mais literal: o que é encoberto não é o Ser em sua pureza, mas o fato de que o encobrimento faz parte do próprio Ser.)

d   Em Sobre o humanismo (trad. Emmanuel Carneiro Leão, 2. ed., Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1995). (N. E.)

   12. ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005. (N. E.)

48   Alain Badiou, Second manifeste pour la philosophie (Paris, Fayard, 2009), p. 39.

49   Ibidem, p. 51.

50   Martin Heidegger, The Essence of Human Freedom: An Introduction to Philosophy (trad. Ted Sadler, Londres, Continuum, 2005), p. 193.

51   Bret W. Davis, Heidegger and the Will, cit., p. 145.

52   Martin Heidegger, Serenidade (trad. Maria Madalena Andrade e Olga Santos, Lisboa, Instituto Piaget, s.d.), p. 23-4.

53   Até mesmo as palavras usadas por Heidegger para descrever os contornos do “novo começo” baseiam-se em geral em homologias ocultas com a metafísica: das Geviert – o quarteto de terra, céu, humanos, deuses – é sua versão das quatro causas aristotélicas: a terra é a causa material, o céu (a forma apolínea) é a causa formal, os humanos são os agentes da causa eficiente, e os deuses são a causa final.

54   Derrida opõe estritamente seu “por vir...” à Ideia reguladora kantiana: o por vir implica uma urgência incondicional de agir agora e é, como tal, o verdadeiro oposto de se adotar uma abordagem gradual de um Ideal inacessível. No entanto, temos de fazer dois contrapontos aqui. Primeiro, essa urgência já está em Kant, que não deveria ser considerado um espantalho. Segundo, Derrida oscila necessariamente entre essa urgência de agir no momento e a lacuna que separa cada ato (enquanto intervenção contingente) da ideia espectral de Justiça.

55   Bret W. Davis, Heidegger and the Will, cit., p. 266.

56   Tomemos o historicismo em sua forma mais radical: as atuais teorias antiessencialistas do discurso (Butler, Laclau) que explicam cada formação “estável”, inclusive nossa identidade sexual e a própria natureza, como um efeito de articulações contingentes – a visão decorrente da história é a de um “eterno presente” achatado e a-histórico, no qual o jogo da rearticulação continua indefinidamente.

57   Bret W. Davis, Heidegger and the Will, cit., p. 208.

58   Ibidem, p. 279.

59   Martin Heidegger, Introdução à Metafísica (trad. Emmanuel Carneiro Leão, 4. ed., Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1999), p. 90.

60   Peter Hallward, “Communism of the Intellect, Communism of the Will”, em Costas Douzinas e Slavoj Žižek (org.), The Idea of Communism (Londres, Verso, 2010), p. 117.

61   Ibidem, p. 112.

62   Ver Alain Badiou, “The Idea of Communism”, em Costas Douzinas e Slavoj Žižek (org.), The Idea of Communism, cit.

63   Martin Heidegger, “Only a God Can Save Us: Der Spiegel’s interview with Martin Heidegger”, em Richard Wolin (org.), The Heidegger Controversy: A Critical Reader (Cambridge, MIT Press, 1993), p. 104.

64   Miguel de Beistegui, Heidegger and the Political (Londres, Routledge, 1998), p. 116.

65   Contra a simpatia de Davis pelo zen-budismo, devemos ter em mente que o militarismo japonês serviu perfeitamente bem aos guerreiros zen que mataram a Gelassenheit.