8
A ONTOLOGIA DA FÍSICA QUÂNTICA

O que Badiou chama de Evento, em sua forma mais básica, não é o próprio advento da representação ou aparecer a partir da absoluta estupidez do ser? De modo que o Evento propriamente dito (o Evento-Verdade no sentido de Badiou) é o Para-si do Em-si do aparecer? Na medida em que o aparecer é sempre aparecer para um pensamento (para um sujeito pensante), podemos ir mais além e dizer que o advento de um pensamento como tal é um Evento – como Badiou gosta de dizer, o pensamento como tal é comunista.

A pergunta-chave, portanto, é: como o pensamento é possível em um universo de matéria? Como pode o pensamento surgir da matéria? Assim como o pensamento, o sujeito (Si) também é imaterial: sua unicidade, sua identidade consigo, não é redutível a seu suporte material. Precisamente eu não sou meu corpo: o Si só pode surgir contra o pano de fundo da morte de seu ser substancial, do que é “objetivamente”. Desse modo, mais uma vez, como podemos explicar o surgimento da subjetividade a partir da ontologia “incompleta”? Como essas duas dimensões (o abismo/vazio da subjetividade, a incompletude da realidade) devem ser pensadas em conjunto? Devemos aplicar aqui algo como um princípio antrópico fraco: como deve ser estruturado o Real de modo que permita o surgimento da subjetividade (em sua eficácia autônoma, não como mera “ilusão do usuário”)?

Isso nos coloca em confronto com uma dura escolha: o vazio da subjetividade é um domínio (“região”) particular da incompletude/vazio “universal” da realidade, ou essa incompletude já é em si um modo de subjetividade, tal que a subjetividade é sempre-já parte do Absoluto e a realidade nem sequer é pensável sem a subjetividade (como em Heidegger, em que não há Sein sem Da-Sein como sua localidade)? É a respeito desse ponto preciso que Ray Brassier me critica por escolher a segunda opção “transcendental”, incapaz que sou de pensar o Vazio do Ser como tal sem subjetividade; do meu ponto de vista, no entanto, Brassier está seguindo Meillassoux, que paga um preço fatídico por suspender a dimensão transcendental – o preço da regressão a uma ontologia “ingênua” das esferas ou níveis ao estilo de Nicolai Hartmann: realidade material, vida, pensamento. Uma atitude que devemos evitar a todo custo.

 

O problema ontológico

O primeiro passo para resolver esse impasse é inverter a noção “realista” padrão de uma realidade ontológica plenamente constituída, que existe “lá fora, independe de nossa mente” e, por isso, é apenas “refletida” de modo imperfeito na cognição humana – a lição do idealismo transcendental de Kant deve ser totalmente absorvida aqui: é o ato subjetivo da síntese transcendental que transforma o arranjo caótico de impressões sensoriais em “realidade objetiva”. Ignorando descaradamente a objeção de que estamos confundindo o nível ontológico com o empírico, devemos recorrer à física quântica: é o colapso das ondas quânticas no ato da percepção que fixa as oscilações quânticas em uma única realidade objetiva. Além disso, esse ponto deve ser universalizado: cada figura da realidade está enraizada em um ponto de vista determinado. Até mesmo em um nível mais próximo de nós, sabemos quão diferente a “realidade” aparece para um sapo ou um pássaro, a começar pela diferente tapeçaria de cores: cada ser vivo percebe (e interage com) sua própria “realidade”. E deveríamos levar essa ideia ao extremo da dúvida cartesiana: a própria noção de grandeza deve ser relativizada. Como sabemos que a Via Láctea não é simplesmente uma partícula de pó de outro universo? Por que, quando pensamos em alienígenas, sempre admitimos que, embora possam ser maiores ou menores que nós, eles vivem em um mundo proporcionalmente da mesma ordem e grandeza que o nosso? Talvez os alienígenas já estejam aqui, mas sejam tão pequenos ou tão grandes que nem sequer percebemos uns aos outros. Lembramos que o próprio pensamento só existe para os seres que pensam, mas também apenas para os seres de uma grandeza física comparável à nossa: se observássemos a nós mesmos de uma distância muito curta (ou muito longa), não haveria nenhum significado ou pensamento discernível em nossos atos, e nosso cérebro seria apenas uma peça gigantesca (ou minúscula) da matéria viva1.

É contra esse pano de fundo que podemos traçar os contornos do que talvez só possa ser designado pelo oximoro “materialismo transcendental” (proposto por Adrian Johnston): toda a realidade é transcendentalmente constituída, “correlativa” a uma posição subjetiva, e, levando o raciocínio às últimas consequências, para sair desse círculo “correlacionista”, é preciso não tentar chegar diretamente ao Em-si, mas sim inscrever essa correlação transcendental na própria Coisa. O caminho para o Em-si passa pela lacuna subjetiva, posto que a lacuna entre o Para-nós e o Em-si é imanente ao Em-si: a própria aparência é objetiva, nisso reside a verdade do problema realista de “como passamos da aparência para-nós para a realidade em-si”.

Pode parecer que a característica definidora básica do materialismo é o senso comum que nos faz confiar na realidade do mundo exterior – não vivemos nas fantasias de nossa imaginação, presos nessa rede, pois há um mundo rico e cheio de vida aberto para nós lá fora. Mas essa é a premissa que deve ser eliminada por qualquer forma séria de materialismo dialético: não existe uma realidade “objetiva”, toda realidade já é transcendentalmente constituída. A “realidade” não é o núcleo duro e transcendente que escapa a nossa apreensão, acessível somente em uma abordagem perspectivística distorcida; antes, ela é a própria lacuna que separa diferentes abordagens perspectivísticas. O “Real” não é o X inacessível, é a própria causa ou obstáculo que distorce nossa visão sobre a realidade, impede nosso acesso direto a ela. A verdadeira dificuldade é pensar a perspectiva subjetiva conforme inscrita na própria “realidade”.

É verdade que, no nível mais elementar das ciências naturais, as rupturas e mudanças epistemológicas não deveriam ser fundamentadas diretamente nas rupturas ou mudanças ontológicas na própria Coisa – nem toda limitação epistemológica é indicação de incompletude ontológica. A passagem epistemológica da física clássica para a teoria da relatividade não significou que essa mudança em nosso conhecimento foi correlata a uma mudança na própria natureza, ou que na época de Newton a própria natureza era newtoniana e essas leis mudaram misteriosamente com a chegada de Einstein – nesse nível, claramente, o que mudou foi nosso conhecimento da natureza, não a natureza. Mas isso não é tudo: existe, não obstante, um nível em que a ruptura epistemológica da física moderna deve ser correlacionada à mudança ontológica – o nível não do conhecimento, mas da verdade como posição subjetiva a partir da qual o conhecimento é gerado. O que falta em Meillassoux é a dimensão da verdade em sua oposição ao conhecimento: verdade enquanto conhecimento autorreflexivo “engajado” ou “prático” que é validado não por meio de sua adequatio rei, mas pelo modo como ele se relaciona com a posição do sujeito da enunciação (uma declaração que é factualmente “verdadeira” pode ser “existencialmente” mentirosa). Essa é a dimensão que Meillassoux ignora em sua explicação crítica do Transcendental: como, para ele, não há verdade fora do conhecimento, o Transcendental é descartado como engodo.

Não seria possível definir a premissa (idealista) de Hegel como a afirmação de que, no fundo, todo conhecimento pode ser gerado a partir da verdade? Hegel tenta superar o “formalismo” kantiano – a lacuna irredutível que separa a forma transcendental de seu conteúdo contingente heterogêneo – explorando sua “mediação” total, ou seja, reduzindo o conhecimento objetivo a uma forma de aparência naturalizada ou reificada da verdade dialética. O argumento científico padrão é que esse procedimento tem um limite. Tomemos a ciência em sua forma mais “subjetiva”, na física quântica, que (na interpretação de Copenhague, pelo menos) afirma efetivamente que a cognição de um objeto cria (ou pelo menos transforma) o objeto: a própria medição, pelo colapso da função de onda, faz aparecer a realidade empírica como a conhecemos. Não obstante, seria errado dizer que as grandes revoluções na história da física (o surgimento da física newtoniana, da teoria da relatividade e da física quântica) ou da biologia (a sistematização de Carl von Linné, o evolucionismo de Darwin etc.) são simultaneamente (dialeticamente mediadas pela) transformação de seu objeto, do mesmo modo que, para György Lukács, a aquisição da consciência-de-si por parte do proletariado (tornar-se ciente de sua missão histórica) muda seu objeto (por meio dessa percepção, o proletariado, em sua realidade social, transforma-se em um sujeito revolucionário). O máximo que podemos dizer a respeito das ciências naturais é que, como diz Lukács, a própria natureza é uma categoria histórica, nossa compreensão básica do que conta como “natureza” muda com as grandes rupturas históricas: no século XVII absolutista, a natureza aparecia como um sistema hierárquico de espécies e subespécies; no dinâmico século XIX, caracterizado pela competição capitalista, a natureza aparecia como o lugar da luta evolutiva pela sobrevivência (é fato bem conhecido que Darwin elaborou sua teoria transpondo as ideias de Malthus para a natureza); no século XX, a natureza era uma regra vista através das lentes da teoria de sistemas; e já se tornou lugar-comum traçar um paralelo entre a mudança para a dinâmica autopoiética e auto-organizadora dos processos naturais nas últimas décadas e a passagem para novas formas da dinâmica capitalista, seguindo o declínio do Estado de bem-estar social centralizado.

No entanto, seria dar um passo longo e fatídico se concluíssemos a partir dessas mediações históricas de nossa ideia de natureza que, no decorrer das mudanças históricas fundamentais, a natureza também muda: quando a teoria de Einstein substituiu a de Newton, ninguém teria afirmado que isso refletia ou indicava uma mudança homóloga em seu objeto de cognição, na própria natureza. O que Einstein fez foi oferecer uma teoria científica da natureza mais profunda e mais adequada. A natureza não se tornou ontologicamente indeterminada com o advento da física quântica; a descoberta do “princípio de incerteza” significa que ela sempre foi assim, e não importa quanto essas descobertas científicas sejam “historicamente mediadas”: elas se referem a uma realidade externa ao processo histórico. Para os filósofos transcendentais, é muito fácil aplicar aqui a notória distinção entre as condições de descoberta para determinada teoria científica e as condições de sua validade (embora a competição capitalista tenha sido uma condição histórica necessária para a descoberta de Darwin, isso não quer dizer que ela também condicione o valor de verdade da teoria da evolução): as afirmações ontológicas de uma teoria científica são fortes e, no fundo, incompatíveis com sua relativização historicista ou transcendental. Afirmar que a física moderna faz parte da cultura de dominação e exploração pelo masculino é uma coisa, dizer que suas premissas subjacentes básicas são formadas com antecedência por essa cultura já é exagero. Além disso, como notou Meillassoux, a afirmação transcendental clássica de que a validade de toda ciência natural “objetiva” é restringida pelo horizonte a priori que constitui seu domínio, isto é, as teorias só são válidas e significativas nesse horizonte, também vai longe demais.

A dificuldade aqui é como pensar a relação entre conhecimento científico e verdade histórica, se nenhuma das duas coisas pode ser reduzida à outra. Talvez a solução seja dada por Hegel. Ele parece deduzir ou gerar todo o conhecimento a partir do processo autorrelativo da Verdade somente quando concebemos seu sistema como um círculo fechado de deduções necessárias; no momento em que levamos totalmente em conta a retroatividade radical do processo dialético, a própria “dedução” torna-se a ordenação retroativa de um processo contingente. Tomemos, por exemplo, a impossibilidade de reconciliar a teoria da relatividade e a física quântica em uma consistente Teoria de Tudo: não há como resolver a tensão entre as duas por meio de uma reflexão dialética “imanente” na qual o problema em si torna-se sua própria solução. Tudo o que podemos fazer é esperar um avanço científico contingente – só assim será possível reconstruir retroativamente a lógica do processo.

Como vimos, o preço que Meillassoux paga por eliminar o complexo Verdade, Evento e Sujeito é o retorno de uma ingênua teoria dos níveis: realidade física, vida, mente. A dimensão transcendental do materialismo transcendental impede esse regresso à ontologia ingênua: e se descobrirmos que essa hierarquia é falsa? Que os golfinhos, por exemplo, pensam melhor que nós? Somente o materialismo transcendental pode fornecer uma leitura materialista do simples fato (observado pelo “materialista cristão” Peter van Inwagen em um encontro inesperado da filosofia contemporânea com Hegel) de que objetos ordinários como cadeiras, computadores etc., simplesmente não existem: por exemplo, uma cadeira não é efetivamente, por si mesma, uma cadeira – tudo o que temos é um ajuntamento de “símplices” (objetos mais elementares “arranjados à maneira de uma cadeira”); desse modo, embora uma cadeira funcione como cadeira, ela é composta por múltiplas partes (madeira, pregos, tecido...) que são, em si mesmas, totalmente indiferentes a esse argumento; não há, stricto sensu, nenhum “todo” do qual o prego faz parte. É só com os organismos que temos um Todo. Aqui, a unidade é minimamente “para si”; as partes nunca interagem de fato2. Como observado por Lynn Margulis, a célula, forma elementar de vida, é caracterizada precisamente pelo mínimo de autorrelação, um mínimo exclusivamente pelo qual pode surgir o limite entre o dentro e o fora que caracteriza um organismo. E, como afirma Hegel, o pensamento é apenas mais um desenvolvimento desse Para-si.

Na biologia, por exemplo, nós temos, no nível da realidade, apenas a interação corporal. A “vida propriamente dita” surge no nível minimamente “ideal”, como no evento imaterial que dá a forma de unidade ao corpo vivo e lhe permite “permanecer o mesmo” durante toda a incessante mudança dos componentes materiais. O problema básico do cognitivismo evolutivo – aquele do surgimento desse padrão de vida ideal – não é senão o velho enigma metafísico da relação entre caos e ordem, entre o Múltiplo e o Um, entre as partes e o todo. Como podemos ter “ordem sem custos”, isto é, como a ordem pode surgir da desordem inicial? Como podemos explicar um todo que é mais que a simples soma de suas partes? Como pode o Um com sua autoidentidade distinta surgir da interação de seus múltiplos constituintes? Uma série de pesquisadores contemporâneos, de Margulis a Francisco Varela, sustenta que o verdadeiro problema não é como um organismo e seu ambiente interagem ou se conectam, mas o oposto: como um organismo autoidêntico distinto surge de seu ambiente? Como uma célula forma a membrana que separa seu interior de seu exterior? O verdadeiro problema, portanto, não é como um organismo se adapta a seu ambiente, mas como existe algo, um ente distinto, que deve se adaptar em primeiro lugar. E é aqui, neste ponto crucial, que a linguagem biológica dos dias de hoje começa a lembrar, de maneira muito estranha, a linguagem de Hegel.

Essa relação entre o empírico e o transcendental-histórico fica ainda mais complicada com o fato de que, nas últimas décadas, o progresso tecnológico na física quântica deu origem a um novo domínio, o da “metafísica experimental”, algo impensável no universo científico clássico: “questões que antes acreditávamos fazer parte apenas do debate filosófico têm sido levadas para a órbita da investigação empírica”3. Tudo aquilo que até agora era assunto de “experimentos mentais” está se tornando assunto de experimentos reais em laboratório – um bom exemplo disso é a experiência da fenda dupla, de Einstein, Rosen e Podolsky, primeiro apenas imaginada, depois realizada por Alain Aspect. As proposições propriamente “metafísicas” testadas são o status ontológico da contingência, o status de localidade da causalidade, o status da realidade independente da observação que se faça dela (ou outra forma de interação com ela) etc. Não obstante, devemos tomar cuidado aqui para não superestimar as consequências filosóficas dessa “metafísica experimental”: a própria possibilidade de “testar empiricamente” as chamadas proposições metafísicas (epistemológicas e ontológicas básicas) atesta uma ruptura radical que não pode ser explicada em termos empíricos.

É aí que Stephen Hawking erra quando, logo no início do best-seller O grande projeto, proclama triunfante que “a filosofia está morta”4. Com os últimos avanços na física quântica e na cosmologia (teoria-M), afirma ele, a chamada metafísica experimental chegou ao apogeu. É claro que, examinando mais de perto, descobrimos que ainda não chegamos lá – quase, mas não de todo. Além disso, seria fácil rejeitar essa afirmação demonstrando a contínua pertinência da filosofia para o próprio Hawking (sem falar no fato de que seu próprio livro definitivamente não é ciência, mas uma generalização popular bastante problemática): Hawking se baseia em uma série de pressupostos metodológicos e ontológicos que ele toma como certos. Apenas duas páginas depois de afirmar que a filosofia está morta, descreve seu próprio método como um “realismo que depende do modelo”, baseado “na ideia de que nosso cérebro interpreta o estímulo dos nossos órgãos sensoriais fazendo um modelo do mundo. Quando tal modelo é um sucesso na explicação dos eventos, nossa tendência é atribuir a ele [...] a qualidade de realidade”; no entanto, “se dois modelos (ou teorias) predizem acuradamente os mesmos eventos, não podemos dizer que um é mais real do que o outro; em vez disso, somos livres para usar aquele que seja mais conveniente”5. Se existe uma posição filosófica (epistemológica), podemos dizer que essa é uma delas (e bastante vulgar, por sinal). Isso sem mencionar o outro fato de que esse “realismo modelo-dependente” é simplesmente fraco demais para cumprir a tarefa que Hawking lhe atribui, a tarefa de fornecer o quadro epistemológico para interpretar os conhecidos paradoxos da física quântica, sua incompatibilidade com a ontologia inspirada no senso comum. No entanto, apesar de todas essas características problemáticas, temos de admitir que a física quântica e a cosmologia têm implicações filosóficas e confrontam a filosofia com um desafio6.

Posição semelhante tem Nicholas Fearn, cujo “sintoma” já é discernível no sumário de seu livro: o capítulo mais longo (“Pós-modernismo e pragmatismo”) é um capítulo que abrange tudo o que foi excluído do horizonte do livro, por sua escolha do que é filosofia7. A dualidade no título do capítulo é significativa: “pós-modernismo” como o exterior e “pragmatismo” (principalmente Rorty) como a inscrição desse exterior dentro do campo do pensamento analítico-cognitivo. O tema permanente do livro é a transposição gradual dos problemas filosóficos em problemas científicos – a filosofia, presa em dilemas insolúveis, atinge a maturidade quando anula ou supera a si mesma colocando seus problemas em termos científicos. A ontologia geral, portanto, torna-se física quântica junto com a teoria da relatividade; a epistemologia, a explicação cognitiva de nossa aquisição de conhecimento; a ética, a investigação evolutiva sobre o advento das normas morais e sua função adaptativa. É desse modo que Fearn explica elegantemente o fato de que, em algumas disciplinas filosóficas, tendem a proliferar abordagens fora de sintonia com o pensamento científico atual: isso “é o que poderíamos esperar num campo que foi abandonado pelos exércitos regulares da filosofia e deixado a guerrilheiros que se recusam a aceitar a derrota”8. Em suma, uma vez que o problema é totalmente transposto para termos que em princípio possibilitam sua solução científica, não há mais nada que os filósofos possam fazer: os mais sérios caminharão para outro lado, enquanto os que ficarem serão simplesmente guerrilheiros das velhas posições que resistem à inevitável derrota – e, paradoxalmente, seu próprio predomínio (isto é, a ausência de filósofos “sérios”) é mais um sinal de derrota. O exemplo de Fearn é o do problema do livre-arbítrio versus o determinismo natural: o fato de a maioria dos filósofos que trabalham hoje nesse campo ser formada por incompatibilistas indica simplesmente que os compatibilistas já venceram a batalha com sua explicação naturalística de que (o que queremos dizer com) a liberdade pode ser unida ao determinismo, de modo que eles têm “coisas melhores a fazer que reocupar um território já conquistado”9.

Como podemos sair desse impasse? Adrian Johnston está certo ao enfatizar o caráter engajado da filosofia de Badiou, sua disponibilidade para correr riscos, engajando-se em prol de feitos científicos, políticos e artísticos particulares: o pensamento de Badiou não é uma reflexão distante, ele “salta para dentro do mundo” com coragem e liga seu destino ao de uma descoberta científica, um projeto político, um encontro amoroso etc. Essa disposição de um filósofo para se envolver com uma mancha histórica “patológica” impura e contingente é o que Badiou visa quando fala sobre ciência, arte, política e amor como as quatro “condições” da filosofia, e é também nesse sentido que devemos interpretar a declaração de Lenin de que, com cada grande descoberta científica, a definição de materialismo muda radicalmente. Hoje, a descoberta científica que precisa ser repensada na filosofia é a física quântica – como devemos interpretar suas implicações ontológicas, enquanto evitamos a dupla armadilha do empirismo pragmático superficial e o idealismo obscurantista (“a mente cria a realidade”)? O Materialismo e empiriocriticismo, de Lenina, precisa ser totalmente reescrito – primeiro abandonando a noção ingênua supracitada da realidade material plenamente constituída como a única realidade verdadeira fora da nossa mente. Essa noção de realidade material como “tudo” baseia-se na negligenciada exceção de sua constituição transcendental. A definição mínima de materialismo baseia-se na admissão de uma lacuna entre o que Schelling chamou de Existência e Fundamento da Existência: antes da realidade plenamente existente, existe uma caótica protorrealidade não-Toda, uma flutuação virtual pré-ontológica de um real ainda não plenamente constituído. Esse real pré-ontológico é o que Badiou chama de multiplicidade pura, em contraste com o nível das aparências, que é o nível da realidade constituída pelo horizonte transcendental do mundo. É por isso que, em uma estranha reversão da distribuição de predicados, o idealismo contemporâneo insiste na corporeidade, na densidade imperscrutável e na inércia da matéria, enquanto o materialismo é cada vez mais “abstrato”, reduzindo a realidade a um processo reproduzido nas fórmulas matemáticas e nas permutações formais dos elementos10.

Franz Brentano, de quem Husserl tomou a noção de intencionalidade, propôs o conceito de teleiosis para resolver o problema do paradoxo do movimento, de Zenão (em cada dado momento, uma flecha no ar ocupa certo ponto no espaço, então quando ela se move?); a teleiosis representa a orientação virtual de um ponto efetivo. Tomemos duas flechas em determinado ponto no tempo, uma delas em repouso e a outra atravessando o ar: embora cada uma ocupe determinado ponto no espaço, elas não o ocupam ao mesmo tempo, porque sua respectiva teleiosis é diferente – a teleiosis da primeira flecha é zero, ao passo que a teleiosis da segunda é positiva (sua força depende da velocidade do movimento) e com uma dada direção. Essa potencialidade do movimento faz parte da efetividade de um objeto: se quisermos descrever um objeto em sua realidade plena, temos de incluir sua teleiosis. Não encontramos algo estritamente homólogo no cálculo diferencial? A primeira motivação para o estudo da chamada diferenciação foi o problema da linha tangencial: como podemos descobrir, para uma dada curva, o declive da linha reta que é tangencial à curva em um dado ponto? Quando tentamos determinar a inclinação de uma linha que “toca” uma dada curva em um dado ponto, não estamos tentando determinar a direção espacial daquele ponto, sua teleiosis? Não surpreende que, em sua grande Lógica, na seção sobre “Quantum”, Hegel passe dúzias de páginas discutindo cálculo diferencialb e rejeite justamente a noção que costuma ser atribuída a ele de que o infinito matemático “é chamado de infinito relativo, ao passo que o infinito metafísico ordinário – pelo qual é entendido o abstrato, o falso infinito – é chamado de absoluto”:

a rigor, meramente relativo é esse infinito metafísico, pois a negação que ele expressa só é oposta a um limite de maneira que esse limite persiste fora dele e não é suprassumido por ele; o infinito matemático, ao contrário, verdadeiramente suprassumiu dentro de si o limite finito porque o mais além deste último está unido a ele.11

A ideia metafísica comum de infinito concebe-o como um Absoluto que persiste em si para além do finito: o limite que o separa do finito é externo a ele, pois a negação do finito não faz parte da identidade do Absoluto. No caso do infinito matemático, ao contrário, o infinito não é algo fora da série de números finitos, mas sim a infinidade dessa mesma série. O limite que separa o infinito do finito é imanente ao finito – podemos dizer que o infinito matemático não é nada mais que esse limite. No cálculo diferencial, esse limite como tal é autonomizado, tornado independente: quando calculamos a inclinação da linha reta que é tangencial à curva em determinado ponto, estamos efetivamente calculando a inclinação (direção espacial) de um dado ponto da curva, a direção espacial de algo cuja extensão espacial é reduzida ao infinitamente pequeno, a zero. Isso significa que, no resultado do cálculo diferencial, nós temos uma relação quantitativa entre dois termos (uma linha reta e uma curva) cuja quantidade é reduzida a zero (um ponto), ou seja, temos uma relação quantitativa que permanece depois que a quantidade dos dois relata é abolida; mas quando subtraímos a quantidade de um ente, o que permanece é sua qualidade, de modo que o paradoxo do cálculo diferencial é que a relação quantitativa expressa nesse resultado funciona como uma qualidade: “Os assim chamados infinitesimais expressam o desaparecimento dos lados da razão como quanta, e o que permanece é sua relação quantitativa somente enquanto qualitativamente determinada”12.

E como, para Hegel, o tempo é a suprassunção (negação da negação) do espaço, também podemos dizer que a teleiosis é a inscrição do tempo no espaço no sentido de espaço-tempo, do tempo como outra dimensão (quarta) do espaço: a teleiosis suplementa as três dimensões que determinam a posição espacial de um objeto com a dimensão virtual e temporal de seu movimento espacial. Uma definição puramente espacial que imobiliza seu objeto produz uma abstração não efetiva, não uma realidade plena; o caráter inacabado (ontologicamente incompleto) da realidade que nos obriga a incluir a virtualidade da teleiosis na definição de um objeto é, portanto, não sua limitação, mas uma condição positiva de sua existência efetiva. O mesmo vale para objetos históricos amplos: a definição de uma nação deveria incluir seu passado e futuro, suas memórias e ilusões. Para parafrasear um antigo crítico de Renan, nação é um grupo de pessoas unidas por uma visão errada de seu passado, pelo ódio que sentem hoje por seu próximo e por ilusões perigosas a respeito de seu futuro. (Por exemplo, os eslovenos de hoje são unidos pelos mitos sobre o reino esloveno no século XVIII, pelo ódio que sentem [neste momento] pelos croatas e pela ilusão de que seguem um caminho para se tornarem a próxima Suíça.) Cada forma histórica é uma totalidade que engloba não só seu passado posto retroativamente, mas também seu próprio futuro, um futuro que, por definição, nunca é realizado: é o futuro imanente desse presente, de modo que, quando a forma presente se desintegra, destrói também seu passado e seu futuro13. É também dessa maneira que devemos entender a difração em relação às bordas indefinidas de um objeto: não pelo senso comum de que, quando o analisamos mais de perto, suas linhas de demarcação são imprecisas, mas no sentido de que a virtualidade dos movimentos futuros de um objeto faz parte da realidade desse objeto.

Com esse exemplo vemos que, na falta de outro motivo, o gesto de Lenin deveria ser repetido no contexto de denúncia das apropriações espiritualistas da física quântica. Por exemplo, não há ligação direta, ou mesmo sinal de equiparação, entre a liberdade (humana) e a indeterminação quântica: a simples intuição nos diz que, se uma ocorrência depende do puro acaso, se não existe nenhuma causalidade em que possamos fundamentá-la, isso de modo algum a torna um ato de liberdade. Liberdade não é ausência de causalidade, ela ocorre não quando não há causalidade, mas quando meu livre-arbítrio é a causa de um evento ou decisão – quando alguma coisa acontece não sem uma causa, mas porque eu queria que acontecesse. Do lado oposto, Dennett consegue rapidamente naturalizar a liberdade, ou seja, igualando-a à necessidade, com o desenvolvimento de um potencial interno: um organismo é “livre” quando nenhum obstáculo externo impede que ele realize suas inclinações internas – mais uma vez, a simples intuição nos diz que não é isso que entendemos como liberdade.

Para evitar sucumbir a especulações semelhantes sobre como, segundo a física quântica, a mente cria a realidade e assim por diante, a primeira coisa que devemos considerar é que as proposições da física quântica só funcionam dentro de um aparato complexo de formalização matemática: se confrontamos suas implicações paradoxais (sincronicidade, tempo que retrocede etc.) com nossa ontologia tirada do senso comum, ignorando o aparato da formalização matemática, o caminho fica aberto para o misticismo da Nova Era. A segunda coisa que devemos considerar, no entanto, é que o universo quântico não é matemático no sentido de envolver o desenvolvimento imanente das consequências dos axiomas iniciais, mas sim totalmente científico no sentido de se basear em medições e, com isso, expor-se à contingência do conteúdo empírico. É por isso que o senso comum científico (o que Althusser chamava de “ideologia espontânea dos cientistas”) descarta questões sobre as implicações ontológicas da física quântica como irrelevantes para a ciência:

É visão comum entre muitos físicos atuais que a mecânica quântica não nos fornece absolutamente nenhum retrato da “realidade”! O formalismo da física quântica, nessa visão, deve ser encarado simplesmente assim: um formalismo matemático. Esse formalismo, conforme argumentariam muitos físicos quânticos, não nos diz essencialmente nada sobre uma realidade quântica efetiva do mundo, mas simplesmente nos permite calcular a probabilidade de realidades alternativas de fato ocorrerem.14

Mas há uma verdade nessa rejeição: traduzir os fenômenos quânticos para um contexto mais amplo para impressionar o público é errado e enganador – na nossa realidade, os objetos não ocupam dois lugares ao mesmo tempo etc. Contudo, a questão ontológica ainda persiste, mesmo que continue sem resposta: qual é o status ontológico dos fenômenos abrangidos pela fórmula quântica? Embora obviamente não façam parte de nossa realidade cotidiana, eles devem ter um status que não pode ser reduzido à imaginação ou aos construtos discursivos dos cientistas.

A chamada interpretação de Copenhague da mecânica quântica, associada a Bohr, deu origem a uma abundância de outras interpretações que tentaram resolver o que era visto como um impasse. Entre elas, citamos: o colapso da função de onda pela consciência ou pela gravidade; a ideia de que a função de onda nunca entra em colapso, pois todas as possibilidades são efetivadas em mundos diferentes; a decoerência que explica o colapso pela interação do objeto com seu ambiente aleatoriamente flutuante etc. Todos esses impactos deveriam ser interpretados segundo o modelo da difração: como tentativas de “renormalizar” o traumático choque ontológico da física quântica. Para Anton Zeilinger: “A busca de interpretações diferentes da interpretação de Copenhague costuma ser motivada pela tentativa de escapar de suas consequências radicais, ou seja, de um ato de repressão cognitiva por parte dos proponentes”15. Formulada por Evelyn Fox Keller, essa noção de “repressão cognitiva” refere-se à “relutância em abandonar os princípios básicos da física clássica: a objetividade e a cognoscibilidade da natureza”16. Não poderíamos aplicar aqui a noção de difração? A interpretação de Copenhague não funcionaria como um tipo de obstáculo, um ponto de impossibilidade, causando difração epistemológica, isto é, dando origem a uma multiplicidade de interpretações conflitantes que tentam “renormalizar” seu excesso, reinscrevê-la no espaço epistemológico e ontológico tradicional?

Há grandes debates sobre o momento exato do colapso da função de onda; as três posições principais encaixam-se perfeitamente na tríade lacaniana de Real, simbólico e imaginário: o real da medição (quando o resultado é registrado pela máquina de medição, estabelecendo contato entre a microrrealidade quântica e a macrorrealidade ordinária), o imaginário da percepção (quando o resultado é percebido por uma consciência) e a inscrição simbólica (quando o resultado é inscrito na linguagem compartilhada pela comunidade de pesquisadores). Esse debate não sinaliza uma espécie de inconsistência ontológica na física quântica? Esta última explica o colapso da função de onda (e assim o surgimento da realidade “ordinária”) no que se refere ao ato da percepção ou registro (uma única realidade surge pelo ato de medição), mas depois explica (ou antes descreve) essa medição no que se refere à realidade ordinária que só pode surgir por meio dela (a máquina de medição é atingida por elétrons etc.), e isso obviamente envolve um circulus vitiosus. Uma solução plausível aqui é explicitamente teológica: a única maneira de explicar a realidade do universo como tal é postular um ponto de observação externo a ela, que só pode ser algo como o olho de Deus.

No entanto, existe outra maneira de pensar esse paradoxo. Quando Jacques-Alain Miller enfatiza a imanência do percipiens no perceptum como movimento crucial de Lacan na teoria do campo da visão, seria legítimo ligar isso à física quântica, que também afirma a imanência do observador no observado? Obviamente, há diferenças que se destacam: na física quântica, o observador não é imanente ao observado no sentido de ser inscrito nele, mas sim em um sentido mais elementar de seu ato de observação ser constitutivo do observado. Além disso, esse observador não é o sujeito lacaniano (do desejo), mas o sujeito da ciência, o sujeito para quem a realidade é “achatada”, para quem não há ponto cego na realidade a partir do qual o objeto devolve o olhar. Em outras palavras, devemos ter em mente que a noção lacaniana da imanência do percipiens no perceptum refere-se à percepção sustentada pelo desejo: o ponto na figura percebida a partir do qual o objeto devolve o olhar é o ponto “impossível” no qual o objeto-causa do desejo está localizado. Trata-se do contraponto objetal ao desejo do sujeito, o que me atrai “em ti mais do que tu mesmo”, e como tal é apenas perceptível, na verdade apenas ex-siste, por uma percepção sustentada pelo desejo.

Claramente, a física quântica tem consequências ontológicas esquisitas. A origem dessa esquisitice é a dualidade entre onda (estendida) e partícula (compacta) que surgiu como um enigma observado por De Broglie quando ele tentou conceber o elétron como uma partícula: “Se um elétron em um átomo de hidrogênio fosse uma partícula compacta, como poderia ‘saber’ o tamanho de uma órbita para seguir somente aquelas órbitas permitidas pela fórmula de Bohr, hoje bastante conhecida?”17. A solução de Bohr para a condição ontológica de complementaridade (onda ou partícula) é:

o sistema microscópico, o átomo, [não existe] em si e por si. Temos sempre de incluir em nossa discussão – implicitamente, pelo menos – os diferentes aparatos experimentais macroscópicos usados para mostrar cada um dos dois aspectos complementares. Com isso, tudo corre bem, pois, em última instância, o que revelamos é apenas o comportamento clássico desse aparato [...]; embora os físicos falem sobre os átomos e outros entes microscópicos como se fossem coisas físicas efetivas, na verdade eles não passam de conceitos que usamos para descrever o comportamento de nossos instrumentos de medição.18

É fundamental que essa descrição seja dada na linguagem vulgar usada para falar da realidade externa do dia a dia – consequentemente, é tentador aplicar aqui a distinção althusseriana preliminar entre “objeto real” e “objeto de conhecimento”: os únicos objetos reais com que lidamos na física quântica são os objetos da realidade ordinária; a esfera quântica não tem status ontológico próprio, é apenas um “objeto de conhecimento”, um construto conceitual cuja função é fornecer a fórmula para explicar o comportamento de objetos medidos que sejam parte da realidade ordinária. Desse modo, não faz o menor sentido falar de processos quânticos como constituintes da esfera autônoma do ser: na realidade, não existem objetos que possam estar em dois lugares ao mesmo tempo etc., “tudo o que existe” ontologicamente é nossa realidade ordinária, o que está “mais além” são apenas as fórmulas matemáticas que dão certa credibilidade àquilo que nossos instrumentos medem, e não um tipo de insight sobre “o que a Natureza está tentando nos dizer”19. Nossa experiência da realidade cotidiana, portanto, continua sendo o pano de fundo fenomenológico e o fundamento da teoria quântica.

Devemos resistir à tentação de interpretar o modo como a física quântica destrói a ideia comum de que a realidade existe independentemente de nossa percepção como sinal de um “significado mais profundo”, de uma outra realidade mais “espiritual” – até mesmo John Wheeler, que não é alheio à leitura “espiritualista” da física quântica, deixou claro que a “‘consciência’ não tem absolutamente nada a ver com o processo quântico. Estamos lidando com um evento que se faz conhecer por um ato irreversível de amplificação, por uma inscrição indelével, um ato de registro. [...] [O significado] é uma parte separada da história, é importante, mas não deve ser confundido com ‘fenômeno quântico’”20.

Apesar de Bohr evitar essa armadilha, seu limite trai sua falta de reflexão transcendental propriamente filosófica, discernível na inconsistência fundamental ontológica de seu relato de como aquilo que percebemos como “realidade externa” ordinária só surge por meio do colapso da função de onda no ato de medição: se a realidade empírica ordinária constitui-se pela medição, como explicamos os próprios aparatos de medição que fazem parte dessa mesma realidade empírica? Não estaríamos lidando aqui com uma petitio principii, isto é, o explanandum não faz parte do explanans?

 

Conhecimento no Real

Um fato raramente considerado é que as proposições da física quântica que desafiam nossa visão comum da realidade material refletem outro domínio, o da linguagem, da ordem simbólica – é como se os processos quânticos estivessem mais próximos do universo da linguagem do que poderíamos encontrar na “natureza”, como se, no universo quântico, o espírito humano se encontrasse fora de si mesmo, na forma de seu duplo estranho “natural”. Tomemos a caracterização lacaniana das “ciências duras” que tratam do que ele chama de savoir dans le réel (conhecimento no real): é como se houvesse um conhecimento das leis da natureza inscrito diretamente no Real dos objetos e dos processos naturais – uma pedra, por exemplo, “sabe” a que leis da gravidade obedecer quando cai. Em outro exemplo do “conhecimento no real” científico, Ernest Rutherford questiona como uma partícula sabe aonde ir quando salta de um “trilho” para outro em volta do núcleo do átomo – trilhos que não existem enquanto objetos materiais, mas são trajetórias puramente ideais. Talvez pareça que reside aí a diferença entre natureza e história: na história humana, as “leis” são normas que podem ser esquecidas ou desobedecidas.

Em seu aspecto mais ousado, a física quântica parece admitir o paradoxo do proverbial gato que fica suspenso no ar nos desenhos animados, ou seja, da momentânea suspensão ou “esquecimento” do conhecimento no real. Imaginemos que temos de pegar um avião no dia X para receber uma fortuna recém-herdada que deve ser entregue no dia seguinte, mas não temos dinheiro para comprar a passagem. Então descobrimos que a contabilidade da companhia aérea funciona de tal maneira que, se fizermos o pagamento da passagem nas 24 horas seguintes a nossa chegada, ninguém saberá que não pagamos a passagem antes do embarque. De maneira homóloga,

a energia de uma partícula pode flutuar violentamente desde que por um tempo muito curto. Portanto, assim como o sistema de contabilidade da companhia de aviação “permite” que você “tome emprestado” o dinheiro da passagem desde que o reponha com suficiente rapidez, também a mecânica quântica permite que uma partícula “tome emprestada” a energia, desde que esta seja devolvida dentro de um período de tempo determinado pelo princípio da incerteza de Heisenberg. [...] Mas a mecânica quântica nos força a levar a analogia um passo adiante. Imagine uma pessoa que tem a compulsão de sair pedindo dinheiro a todos os amigos. [...] Pede e paga, pede e paga – sem parar nem esmorecer, tomando dinheiro apenas para pagá-lo em seguida. [...] flutuações frenéticas de energia e de momento também ocorrem perpetuamente no universo, em escalas microscópicas de espaço e tempo.21

É assim que, mesmo em uma região vazia do espaço, uma partícula surge do Nada, “tomando emprestada” sua energia do futuro e pagando por ela (com sua aniquilação) antes que o sistema perceba que o empréstimo foi feito. A rede inteira pode funcionar desse modo, em um ritmo de empréstimo e aniquilação, um tomando emprestado do outro, deslocando o débito para o outro, atrasando o pagamento – é realmente como se o domínio das subpartículas estivesse jogando com o futuro à moda de Wall Street. Isso pressupõe uma lacuna mínima entre sua realidade bruta imediata e o registro dessa realidade em algum meio (do grande Outro): podemos trapacear, desde que o segundo momento (registro) esteja atrasado em relação ao primeiro. O que torna a física quântica tão estranha é que podemos trapacear “na realidade”, com nosso próprio ser. Em outras palavras, a “fantasmagoria” da física quântica não é sua heterogeneidade radical com relação ao senso comum, mas sua estranha semelhança com o que consideramos especificamente humano – aqui, de fato, somos tentados a dizer que a física quântica “desconstrói” a oposição binária comum entre natureza e cultura. Façamos uma breve consideração dessa lista de características22:

(1) Dentro da ordem simbólica, a possibilidade como tal possui uma efetividade que lhe é própria, ou seja, ela produz efeitos reais – por exemplo, a autoridade do pai é fundamentalmente virtual, uma ameaça de violência. De maneira semelhante, no universo quântico, a trajetória efetiva de uma partícula só pode ser explicada se levarmos em conta todas as suas possíveis trajetórias em sua função de onda. Em ambos os casos, a efetivação não abole simplesmente o arsenal prévio de possibilidades: o que poderia ter acontecido continua a ecoar no que acontece de fato enquanto seu pano de fundo virtual.

(2) Tanto no universo simbólico quanto no universo físico, encontramos o que Lacan chama de “conhecimento no real”: na famosa experiência da fenda dupla, se observarmos a trajetória de um elétron para descobrir por qual das duas fendas ele passará, ele se comportará como partícula; se não o observarmos, ele exibirá as propriedades de uma onda – como se soubesse de alguma maneira que está sendo observado ou não. Tal comportamento não é limitado ao universo simbólico no qual nossa atitude de “considerar a nós mesmos como X” nos faz agir como X?

(3) Quando tentam explicar o colapso da função de onda, os físicos quânticos recorrem sempre à metáfora da linguagem: esse colapso ocorre quanto um evento quântico “deixa um rastro” no aparato de observação, quando é “registrado” de alguma maneira. Temos aqui uma relação de exterioridade – um evento torna-se plenamente ele mesmo, realiza-se, só quando seus arredores “tomam nota” dele – o que reflete o processo da realização simbólica na qual um evento se efetiva plenamente apenas por meio de seu registro simbólico, de sua inscrição em uma rede simbólica que lhe é exterior.

(4) Além disso, há uma dimensão temporal a essa exterioridade do registro: passa-se sempre um mínimo de tempo entre um evento quântico e seu registro, e esse mínimo atraso abre espaço para uma espécie de trapaça ontológica com as partículas virtuais (um elétron pode criar um próton e assim violar o princípio da energia constante, com a condição de reabsorvê-lo suficientemente rápido, antes que seu ambiente “note” a discrepância). Esse atraso também abre caminho para a retroatividade temporal: o registro presente decide o que pode ter acontecido – por exemplo, na experiência da fenda dupla, se um elétron é observado, ele não se comportará apenas (agora) como partícula, seu passado também se tornará retroativamente (“terá sido”) o de uma partícula, de maneira homóloga ao universo simbólico no qual uma intervenção radical do presente (advento de um novo Significante-Mestre) pode retroativamente reescrever o (significado do) passado inteiro23. Na medida em que a retroatividade é uma característica crucial da dialética hegeliana, e na medida em que a retroatividade só é pensável em uma ontologia “aberta” da realidade não plenamente constituída, a referência a Hegel talvez possa ser de alguma ajuda para destacar as consequências ontológicas da física quântica.

Até que ponto podemos sustentar esse paralelo? Trata-se apenas de uma metáfora aproximada? Ele atesta o fato de que toda a nossa compreensão da realidade já é sobredeterminada pela ordem simbólica, de modo que até nossa apreensão da realidade é sempre-já “estruturada como linguagem”? Ou devemos arriscar um passo adiante e afirmar que existe algo que lembre estranhamente (ou aponte para) as estruturas simbólicas já presentes na própria realidade “física”? Se chegarmos de fato a essa conclusão, toda a “ideologia filosófica espontânea” da lacuna que separa natureza e cultura (uma forma de ideologia muitas vezes discernível no próprio Lacan) tem de ser abandonada. De acordo com essa “ideologia espontânea”, a natureza representa a primazia da efetividade sobre a potencialidade, seu domínio é o domínio da pura positividade do ser onde não há faltas (lacunas) no sentido simbólico estrito; no entanto, se levarmos a sério as consequências ontológicas da física quântica, então temos de supor que a ordem simbólica preexiste em uma forma natural “selvagem”, ainda que naquilo que Schelling chamaria de potência inferior. Desse modo, temos de postular uma espécie de tríade ontológica de protorrealidade quântica (oscilações quânticas pré-ontológicas), realidade física ordinária e nível virtual “imaterial” dos Eventos Sensoriais. De que maneira esses três aspectos se relacionam?

A característica básica da realidade simbólica é sua incompletude ontológica, seu “não-Todo”: ela não tem consistência imanente, é uma multiplicidade de “significantes flutuantes” que só podem ser estabilizados pela intervenção de um Significante-Mestre – em claro contraste, assim parece, com a realidade natural, que é o que é, sem nenhuma intervenção simbólica. Mas é isso mesmo? A principal característica ontológica da física quântica não é que a protorrealidade quântica também precisa de um “ponto de estofo” homólogo (aqui chamado de colapso da função de onda) para estabilizar-se na realidade ordinária dos objetos cotidianos e dos processos temporais? Desse modo, encontramos aqui também a lacuna (temporal) entre a protorrealidade inconsistente e a instância descentralizada de seu registro, que a constitui como realidade plena: aqui também a realidade não é plenamente ela mesma, mas sim descentralizada com relação a si mesma; ela se torna ela mesma retroativamente, por meio de seu registro. Na filosofia, essa lacuna é prefigurada na distinção de Schelling entre Existência e Fundamento da Existência, entre realidade e protorrealidade. Devemos retroceder um pouco: no que consiste a revolução filosófica de Schelling? De acordo com a doxa acadêmica, Schelling rompeu com o fechamento idealista da automediação do Conceito ao afirmar uma bipolaridade mais equilibrada entre Ideal e Real: a “filosofia negativa” (análise da essência conceitual) deve ser suplementada pela “filosofia positiva” que trata da ordem positiva da existência. Na natureza, tanto quanto na história humana, a ordem ideal racional só pode prosperar tendo como pano de fundo o Fundamento impenetrável das paixões e pulsões “irracionais”. O clímax do desenvolvimento filosófico, o ponto de vista do Absoluto, não é, portanto, a “suprassunção” (Aufhebung) da realidade em seu Conceito ideal, mas o meio neutro das duas dimensões – o Absoluto é ideal-real. Tal leitura, no entanto, oculta o verdadeiro avanço de Schelling, ou seja, a distinção, feita pela primeira vez em seu ensaio sobre a liberdade humana, de 180724, entre Existência (lógica) e o Fundamento impenetrável da Existência, o Real das pulsões pré-lógicas. Esse domínio proto-ontológico das pulsões não é simplesmente a “natureza”, mas o domínio espectral da realidade ainda não plenamente constituída. A oposição de Schelling entre o Real proto-ontológico das pulsões (o Fundamento do Ser) e o próprio Ser, pleno e ontologicamente constituído (que, é claro, é “sexuado” como a oposição do Feminino e do Masculino), portanto, desloca radicalmente os pares filosóficos comuns de Natureza e Espírito, Real e Ideal, Existência e Essência etc. O Fundamento real da Existência é impenetrável, denso, inerte, embora seja ao mesmo tempo espectral, “irreal”, não pleno e ontologicamente constituído, enquanto a Existência é ideal, embora seja ao mesmo tempo, em contraste com o Fundamento, plenamente “real”, plenamente existente.

As implicações teológicas dessa lacuna entre a protorrealidade e sua plena constituição pelo registro simbólico são de especial interesse: na medida em que “Deus” é o agente que cria as coisas ao observá-las, a indeterminação quântica nos compele a postular um Deus que é onipotente, mas não onisciente. “Se Deus desintegra as funções de onda de coisas grandiosas para a realidade pela Sua observação, os experimentos quânticos indicam que Ele não está observando as pequenas”25. A trapaça ontológica com as partículas virtuais é uma maneira de trapacear o próprio Deus, a instância máxima que toma nota de tudo o que acontece; em outras palavras, o próprio Deus não controla os processos quânticos, e nisso consiste a lição ateísta da física quântica. Einstein estava certo quando afirmou que “Deus não trapaceia” – mas ele se esqueceu de acrescentar que ele mesmo pode ser trapaceado. Na medida em que a tese materialista é que “Deus é inconsciente” (Deus não conhece), a física quântica é essencialmente materialista: existem microprocessos (oscilações quânticas) não registradas pelo sistema.

Devemos recordar aqui o paradoxo da medição quântica. Na experiência da fenda dupla, quando partículas são bombardeadas uma a uma através das fendas, elas formam – se não estiverem sendo observadas – o padrão de uma onda. Visto que o padrão de onda pressupõe interação entre as partículas, e visto que cada partícula viaja sozinha nessa experiência, com o que elas interagem? A partícula habita um espaço sincrônico atemporal onde pode interagir com o passado e o futuro? Ou interage consigo mesma? Isso nos leva à noção de superposição: a partícula interage consigo mesma, de modo que toma ao mesmo tempo todos os caminhos possíveis, que são “superpostos” um ao outro. Isso não lembra a ideia de Nietzsche de “sombra mais curta”, o momento em que um objeto não é percebido pelo outro, mas pela própria sombra – ou, antes, o momento em que o objeto não é o Um efetivo, mas simplesmente um composto de suas múltiplas sombras, de mais-que-nada ou menos-que-zeros? O enigma dessa experiência da fenda dupla é triplo, portanto:

(1) mesmo se dispararmos os elétrons individualmente, um após o outro, e mesmo se não medirmos sua trajetória, eles formarão um padrão de onda – mas como isso é possível? Com o que cada elétron individual interage? (Com ele mesmo.)

(2) mesmo se medirmos (ou não) o trajeto depois que os elétrons passarem pelas fendas, o padrão ainda dependerá de nossa medição – mas como isso é possível, posto que a medição acontece depois da passagem pela fenda? É como se pudéssemos mudar retroativamente o passado.

(3) mesmo se não fizermos nenhuma medição, o simples fato de o aparato de medida (e, com ele, a possibilidade da medição) existir faz o elétron se comportar como partícula – mas como isso é possível, se ele não foi afetado de forma nenhuma pelo aparato de medição?

Mais uma vez, há duas abordagens desviantes para esse enigma: a espiritualista (a mente [do observador] cria a realidade, o universo tem de ser observado por Deus para existir) e a naturalização hiperprecipitada (o colapso da função de onda não precisa de observador no sentido de uma consciência, a observação representa o simples registro pelo ambiente, então tudo na natureza é o tempo todo “observado” pelo ambiente com que ele interage). O enigma básico é o seguinte: uma vez que o resultado da medição depende de nossa livre escolha do que medir, a única maneira de evitar a implicação de que nossa observação cria a realidade é negar nosso livre-arbítrio ou adotar uma solução malebranchiana (“o mundo conspira para correlacionar nossas livres escolhas às situações físicas que observamos”)26.

A ingênua e realista pergunta: “Como se parece a realidade objetiva sem mim, independentemente de mim?”, é um pseudoproblema, posto que se baseia em uma abstração violenta da própria realidade que ela tenta apreender: a “realidade objetiva” como conjunto matematizado de relações é “para nós” o resultado de um longo processo de abstração conceitual. Isso não desvaloriza o resultado, tornando-o dependente de nosso “ponto de vista subjetivo”, mas envolve um paradoxo: a “realidade objetiva” (o modo como a construímos através da ciência) é um Real que não pode ser vivenciado como realidade. Em seu esforço para apreender a realidade “independentemente de mim”, a ciência matematizada “me” apaga da realidade, ignorando (não o modo transcendental como constituo a realidade, mas sim) o modo como faço parte da realidade. A verdadeira pergunta, por conseguinte, é como eu (enquanto lugar onde a realidade aparece para si mesma) surjo na “realidade objetiva” (ou, de modo mais incisivo, como pode um universo de significado surgir no Real desprovido de significado). Como materialistas, devemos levar em conta dois critérios aos quais deve corresponder uma resposta adequada: (1) a resposta deve ser genuinamente materialista, sem trapaças espiritualistas; (2) devemos aceitar que a noção materialista-mecanicista ordinária da “realidade objetiva” não cumprirá a tarefa. É aqui que entra a física quântica: os paradoxos da experiência da fenda dupla demonstram de maneira muito clara que o domínio protorreal das partículas e ondas quânticas obviamente não é redutível ao nosso conceito-padrão de “realidade externa”, suas propriedades não correspondem ao nosso conceito de processos e objetos materiais que ocorrem “lá fora”; no entanto, o domínio das partículas e ondas quânticas é também um Real sem significado.

Devemos agora levar em conta a sutil diferença entre o princípio da incerteza de Heisenberg e o da complementaridade de Bohr, a diferença entre a incompletude meramente epistemológica e a plenamente ontológica: se o argumento de Heisenberg é que não podemos estabelecer a posição e o momento simultâneos de uma partícula porque o próprio ato de medição intervém na constelação medida e perturba suas coordenadas, o argumento de Bohr é muito mais forte e diz respeito à própria natureza da realidade em si – as partículas em si mesmas não têm posição e momento determinados, portanto devemos abandonar a ideia de “realidade objetiva” preenchida por coisas dotadas de um conjunto plenamente determinado de propriedades.

Para Heidegger, a diferença ontológica é, em última instância, fundamentada em nossa finitude: o que Heidegger chama de Evento (Ereignis) é o abismo definitivo fora do qual o Ser se revela para nós em uma multiplicidade de horizontes historicamente destinados, e o Ser se abre ou se fecha porque nem todos os seres se abrem para nós. Em termos mais claros, há uma diferença entre entes mundanos e o horizonte de sua abertura porque os entes se abrem para nós em um horizonte sempre enraizado em nossa finitude. Aqui, no entanto, devemos repetir a passagem de Kant a Hegel: Heidegger jamais confunde a abertura ontológica dos entes com sua produção ôntica – para ele, a ideia de humanos enquanto o Ser-aí da abertura do Ser não significa que os entes só existam para os seres humanos, e não independentemente deles. Se toda a humanidade fosse dizimada, os entes ainda estariam aí enquanto anteriores ao surgimento do homem, eles só não ex-sistiriam no sentido ontológico pleno de aparecer no horizonte do Ser. Mas e se transpusermos a diferença ontológica (diferença entre os entes e o “nada” do horizonte ontológico de sua abertura) para a Coisa-em-si e a (re)concebermos enquanto incompletude ontológica da realidade (como sugere a física quântica)? E se postularmos que as “Coisas-em-si” surgem contra o pano de fundo do Vazio ou Nada, sendo esse Vazio concebido na física quântica não apenas como um vazio negativo, mas como presságio de toda realidade possível? Esse é o único “materialismo transcendental” verdadeiramente consistente que é possível depois do idealismo transcendental de Kant. Para os verdadeiros dialéticos, o maior mistério não é: “Por que existe algo, em vez de nada?”, mas sim: “Por que existe nada, em vez de algo?”. Como é possível que, quanto mais analisamos a realidade, mais vazio encontramos?

Isso significa que a diferença ontológica não deveria ser limitada à finitude dos seres humanos para quem os entes aparecem dentro do horizonte (historicamente) dado de um mundo, ou seja, contra o pano de fundo do recuo, na inextricável mistura de revelar-se e ocultar-se. Essa estrutura da realidade como “não-Toda” deve ser tomada em termos plenamente ontológicos: não é que, em nosso horizonte finito, o Em-si da realidade sempre apareça contra o pano de fundo de seu recuo e encobrimento; a realidade é “em si” não-Toda. Em outras palavras, a estrutura da abertura ou do encobrimento – o fato de as coisas sempre surgirem de seu truncado Vazio de fundo, nunca plena e ontologicamente constituído – é a da própria realidade, não só de nossa percepção finita. Talvez esteja aí a maior consequência ontológica da física quântica: seus experimentos mais ousados e brilhantes demonstram não que a descrição de realidade que ela oferece seja incompleta, mas que a própria realidade é ontologicamente “incompleta”, indeterminada – a falta que assumimos como efeito de nosso conhecimento limitado da realidade faz parte da própria realidade. De maneira propriamente hegeliana, portanto, é nossa própria limitação epistemológica que nos situa no Real: o que aparece como limitação de nosso conhecimento é característica da própria realidade, seu “não-Todo”.

Mais uma vez, isso significa que a passagem de Kant para Hegel deveria ser repetida a propósito de Heidegger: a história heideggeriana do Ser é, no fundo, uma versão historicamente radicalizada do transcendentalismo kantiano. Para Heidegger, a história do Ser é a história das aberturas epocais do Sentido do Ser destinadas ao homem; como tal, essa história é o limite definitivo do que podemos conhecer – todo conhecimento que temos já pressupõe e transita em uma abertura historicamente dada do Ser, a brincadeira abissal dessas aberturas que simplesmente “acontecem” é o máximo a que podemos chegar. A implicação ontológica da física quântica não é que podemos ir além e penetrar na própria realidade, mas sim que a limitação posta por Heidegger pertence ao próprio Em-si. Não seria essa a implicação subjacente do conceito quântico de Nada (Vazio) como prenhe de uma multiplicidade de entes que podem surgir dele, ou seja, “do nada”? A Realidade-em-si é o Nada, o Vazio, e desse Vazio surgem constelações parciais e não ainda plenamente constituídas da realidade; essas constelações nunca são “todas”, são sempre ontologicamente truncadas, como se fossem visíveis (e existentes) apenas de determinada perspectiva limitada. Só existe uma multiplicidade de universos truncados: do ponto de vista do Todo, não há nada além do Vazio. Ou, arriscando uma formulação simplificada, “objetivamente” não há nada, pois todos os universos determinados só existem a partir de uma perspectiva limitada.

A resposta mais clara para o enigma sobre “o que aconteceu antes do Big Bang, aquele ponto singular em que todas as leis da física são suspensas”, é, portanto, nada. Para Paul Davies, defensor dessa visão, o Big Bang é o começo absoluto de tudo – ele não aconteceu no tempo, mas criou o próprio tempo; sendo assim, a pergunta sobre “o que aconteceu antes” é tão despropositada quanto a pergunta a respeito do “que é mais norte que o polo Norte”. Caso contrário, tudo o que acontece agora seria a cópia infinitamente repetível de algo que já aconteceu. De acordo com a leitura “teológica” padrão, a densidade infinita pontual da matéria no ponto de singularidade que é o Big Bang representa o Começo absoluto, o imperscrutável ponto de criação em que Deus interveio de maneira direta e criou o universo. O Big Bang, então, é uma espécie de cordão umbilical que liga diretamente o universo material a uma dimensão transcendental. Tal universo em expansão é finito no tempo e no espaço, embora sem limites por causa da curvatura do espaço. No entanto, há alguns problemas nessa ideia. Segundo certas medições, existem traços de matéria mais antigos que o momento que se calcula que o Big Bang aconteceu em nosso universo. A solução pode ser que nosso universo é como um salão de espelhos cujo eco visual faz o espaço parecer mais amplo do que é. Por conta desse eco, quando um mesmo sinal de outra galáxia chega até nós por dois caminhos diferentes, parece que estamos diante de galáxias diferentes (ou uma mesma galáxia está ao mesmo tempo em dois lugares distantes).

Nick Bostrom propôs uma solução mais radical para tais inconsistências: nosso universo é uma sofisticada simulação de computador, um tipo de realidade virtual programada por uma civilização incomparavelmente mais desenvolvida que a nossa. O programa é tão perfeito que nos possibilita, enquanto seres simulados, vivenciar emoções e a ilusão da liberdade. De tempos em tempos, no entanto, o sistema sofre panes, ele viola as próprias regras (ou talvez aplique “códigos de trapaça”), e experimentamos os efeitos como “milagres” ou Ovnis27. Essa versão é concebida basicamente como um cenário biológico secularizado, com a diferença de que nosso criador não é um ser sobrenatural, mas apenas uma espécie natural muito mais desenvolvida. Assim, se sabemos (ou presumimos) que nosso universo é “simulado”, intencionalmente criado por seres superiores, como podemos discernir seus traços e/ou interpretar seus motivos? Eles querem que continuemos totalmente imersos no ambiente simulado? Se sim, isso acontece por que eles estão nos testando, epistemológica ou eticamente28? Fomos criados por diversão, como obra de arte, como parte de um experimento científico ou por outras razões? (Lembremos de muitos romances e filmes, desde The Unpleasant Profession of Jonathan Hoag, de Robert Heinlein, até O show de Truman, 13o andar e Matrix.) Conseguimos nos imaginar vivendo em um mundo simulado, sem uma intenção de um criador?

Essa solução transpõe a lacuna entre nosso universo fenomenal e seu Mais-além numenal para o próprio universo, duplicando-o em dois universos: nosso universo fenomenal é virtualizado, reduzido a um estímulo de agentes que operam em um universo “verdadeiro”, muito mais desenvolvido. O próximo passo lógico é multiplicar os universos fenomenais em si, sem evocar um universo privilegiado quase divino. Nessa mesma linha, Neil Turok e Paul Steinhardt propuseram uma nova versão da teoria dos mundos múltiplos, segundo a qual nossa realidade quadrimensional (as três dimensões do espaço mais o tempo) está para a verdadeira realidade, assim como uma superfície bidimensional está para nossa realidade tridimensional: existem mais dimensões e universos paralelos, nós é que não podemos percebê-los. De acordo com esse modelo, o Big Bang resultou de um choque (colapso) entre dois desses universos paralelos: tal choque não criou o tempo, simplesmente reiniciou o relógio de certo universo.

O próximo passo lógico é transpor essa multiplicidade em uma sucessão temporal dentro do mesmo universo. Nessa linha, Martin Bojowald substituiu o Big Bang pelo Big Bounce [Grande Salto]: o continuum espaço-temporal é dissociado de tempos em tempos; o colapso que resulta disso dá origem a um novo Big Bang, no qual a densidade das forças quânticas causa uma espécie de “amnésia” do universo – todas as informações sobre o que aconteceu antes do Big Bang são apagadas, portanto a cada novo Big Bang o universo elimina completamente seu passado e começa de novo ex nihilo.

Por fim, temos a hipótese de Stephen Hawking a respeito do “tempo irracional” (no sentido dos números irracionais), que dispensa a própria noção de Big Bang: a curvatura do tempo significa que, assim como o espaço, o tempo não tem limite, embora seja finito (curvado sobre si mesmo). A ideia do Big Bang resulta da aplicação da lógica de um tempo linear único ao universo e, portanto, da extrapolação do ponto zero, quando na verdade só existe um movimento circular infinito.

Essas cinco versões não formam uma série completa de possíveis variações? Não estamos lidando aqui com uma série sistemática de hipóteses como o conjunto das relações entre o Um e o Ser desdobradas e analisadas por Platão na segunda parte de Parmênides? Talvez a cosmologia contemporânea precise dessa sistematização conceitual “hegeliana” da matriz subjacente que gera a multiplicidade de teorias efetivamente existentes. Isso não nos leva de volta à antiga sabedoria oriental, segundo a qual todas as coisas são apenas fragmentos efêmeros que surgem do Vazio primordial e, inevitavelmente, retornarão para ele? De modo nenhum: a principal diferença é que, no caso da sabedoria oriental, o Vazio primordial representa a paz eterna que serve como abismo neutro ou fundamento da luta entre os polos opostos, enquanto do ponto de vista hegeliano, o Vazio nomeia a tensão extrema, o antagonismo ou a impossibilidade que gera a multiplicidade de entes determinados. A multiplicidade existe porque o próprio Um é barrado, desconjuntado com respeito a si mesmo. Isso nos leva a outra consequência dessa estranha ontologia do Um tolhido (ou barrado): os dois aspectos de uma lacuna paraláctica (onda e partícula, digamos) nunca são simétricos, pois a lacuna primordial é entre algo (reduzido) e nada, e a complementaridade entre os dois aspectos da lacuna funciona de modo que temos primeiro a lacuna entre nada (vazio) e algo e, só depois, de uma segunda vez (em termos lógicos), um segundo “algo” que preenche o Vazio, e assim temos uma lacuna paraláctica entre dois algos. Por exemplo, nas fórmulas lacanianas de sexuação, as fórmulas femininas (ou antinomias matemáticas) têm prioridade (lógica); é apenas no segundo momento que as antinomias dinâmicas surgem como tentativas de resolver o impasse das antinomias matemáticas.

Podemos arriscar que o mesmo vale para a antinomia (complementaridade) entre ondas e partículas. Em nossa ontologia científica espontânea, tomamos as ondas e a fluidez como objetos mais elementares do que firmemente delineados e delimitados: a razão (ou outra força qualquer de determinação) impõe à fluidez caótica formas claras que, em uma investigação mais minuciosa, revelam-se obscuras, afetadas pelo caos da matéria (nenhum triângulo traçado fisicamente é de fato um triângulo). É em relação a essa imagem espontânea que a natureza radical da física quântica deve ser mensurada: sua ontologia é o exato oposto, pois nela a fluidez contínua é característica do nível superior, ao passo que, quando abordamos a realidade em sua dimensão microscópica, descobrimos que, na verdade, ela é constituída por partes discretas (quanta). Não devemos subestimar o efeito desnaturalizador dessa reversão: o universo torna-se de repente algo artificialmente composto de blocos de construção – é como se, ao chegar muito perto de uma pessoa, descobríssemos que ela não é uma pessoa orgânica “real”, mas sim composta de minúsculas peças de Lego.

Para o senso comum (e na realidade ordinária), ao contrário, a partícula tem prioridade sobre a onda. Por exemplo, em um deserto, as dunas de areia movidas pelo vento funcionam como ondas, mas a ideia é que, se tivéssemos um conhecimento maior do que temos na verdade, seríamos capazes de reduzir esse comportamento de onda a partículas: até mesmo a mais ampla duna de areia é, em última instância, apenas um composto de pequenos grãos. Tratar o movimento da areia como onda, portanto, é uma simplificação funcional grosseira29. A ontologia subjacente a essa visão é que cada movimento de onda deve ser o movimento de alguma coisa, das coisas que existem materialmente e são movidas: as ondas não existem propriamente, elas são uma propriedade ou evento que acontece a algo que existe. Aqui, a revolução quântica não só postula a dualidade original irredutível das ondas e partículas; dentro dessa dualidade, ela privilegia (de modo mais ou menos patente) a onda: por exemplo, ela propõe uma mudança da compreensão das ondas como interações entre partículas para a compreensão das partículas como pontos nodais na interação das ondas. Para a física quântica, as ondas, portanto, não podem ser reduzidas a uma propriedade das partículas (ou de algo que acontece a elas). É também por isso que Bohr afirma que a física quântica lida com fenômenos (medidas), e não com as coisas que agem como apoio substancial “por trás” dos fenômenos: todo o tradicional problema de distinguir entre as propriedades que pertencem às “Coisas-em-si” e as propriedades que simplesmente “parecem” pertencer às coisas por causa de seu aparato perceptivo cai por terra, portanto: essa distinção entre propriedades primárias e secundárias não faz mais sentido, porque o modo como uma coisa “aparece”, o modo como ela é “para os outros”, está inscrito nela “em-si”. Para piorar ainda mais as coisas, a própria aparência das “coisas” como coisas, como entes substanciais, resulta do colapso da função de onda pela percepção, tanto que a relação esperada pelo senso comum é mais uma vez virada ao contrário: a noção de coisas “objetivas” é subjetiva, depende de nossa percepção, enquanto as oscilações de ondas precedem a percepção e são, portanto, mais “objetivas”.

A principal tarefa, portanto, é interpretar essa incompletude sem abandonar a noção do Real, ou seja, evitar a leitura subjetivista do fato de que o próprio ato de medição coconstitui o que ele mede. A versão de Heisenberg da indeterminação (o “princípio da incerteza”) ainda deixa espaço suficiente não só para salvar o conceito de realidade objetiva independente do observador (se fora do alcance do observador), mas também para determiná-lo, para conhecê-lo como é em si: se a inacessibilidade ao Em-si deve-se apenas a sua distorção pelo aparato de medição, não seria possível determinar o efeito sobre o objeto observado no procedimento de medida e depois, ao subtrair esse efeito do resultado, ter o objeto medido do modo como ele é em si (ou do modo como era antes da medição)? Por exemplo, se eu sei que minha contagem de uma soma de dinheiro acrescentará 20 unidades a ela, e o resultado da contagem é 120, eu sei que, antes da contagem, a soma correspondia a 100 unidades. Bohr argumenta contra essa possibilidade: por razões a priori, não podemos determinar o efeito da interação da medida sobre o objeto medido. Por exemplo, se medimos a posição ou o momento de um elétron disparando um fóton contra ele,

não é possível determinar o efeito do fóton sobre a partícula (elétron), pois precisaríamos determinar simultaneamente a posição e o momento do fóton, o que é fisicamente impossível, dado que as medidas de posição e momento exigem aparatos mutuamente exclusivos para sua respectiva determinação. Desse modo, chegamos à conclusão de Bohr: a observação só é possível sob a condição de que o efeito da medição seja indeterminável. Ora, o fato de a interação da medida ser indeterminável é fundamental, porque significa que não podemos subtrair o efeito da medição e com isso deduzir as propriedades que a partícula (supostamente) teria antes da medição.30

Não há como não notar a semelhança do raciocínio de Bohr com os primeiros parágrafos da introdução da Fenomenologia do espírito, de Hegel, em que ele descreve as consequências absurdas da abordagem representacionalista, segundo a qual o conhecimento é “um instrumento com que se domina o absoluto, ou um meio pelo qual o absoluto é contemplado”:

se o conhecer é o instrumento para apoderar-se da essência absoluta, logo se suspeita que a aplicação de um instrumento não deixe a Coisa tal como é para si, mas com ele traga conformação e alteração. Ou então o conhecimento não é instrumento de nossa atividade, mas de certa maneira um meio passivo, através do qual a luz da verdade chega até nós; nesse caso também não recebemos a verdade como é em si, mas como é nesse meio e através dele.

Nos dois casos, usamos um meio que produz imediatamente o contrário de seu fim; melhor dito, o contrassenso está antes em recorrermos em geral a um meio. Sem dúvida, parece possível remediar esse inconveniente pelo conhecimento do modo-de-atuação do instrumento, o que permitiria descontar no resultado a contribuição do instrumento para a representação do absoluto que por meio dele fazemos; obtendo assim o verdadeiro em sua pureza. Só que essa correção nos levaria, de fato, aonde antes estávamos. Ao retirar novamente, de uma coisa elaborada, o que o instrumento operou nela, então essa coisa – no caso o absoluto – fica para nós exatamente como era antes desse esforço; que, portanto, foi inútil. Se através do instrumento o absoluto tivesse apenas de achegar-se a nós, como o passarinho na visgueira, sem que nada nele mudasse, ele zombaria desse artifício, se não estivesse e não quisesse estar perto de nós em si e para si. Pois nesse caso o conhecimento seria um artifício, porque, com seu atarefar-se complexo, daria a impressão de produzir algo totalmente diverso do que só a relação imediata – relação que por isso não exige esforço. Ou, mais uma vez, se o exame do conhecer – aqui representado como um meio – faz-nos conhecer a lei da refração de seus raios, de nada ainda nos serviria descontar a refração no resultado.31

Embora o contexto de Hegel seja totalmente diferente do de Bohr (no mínimo, Hegel escrevia sobre o conhecimento filosófico do Absoluto, enquanto Bohr lutava com as implicações epistemológicas da medição de partículas atômicas), a linha subjacente de argumentação é estritamente homóloga: ambos rejeitam uma posição que primeiro põe uma lacuna entre o sujeito conhecedor e o objeto-a-ser-conhecido, e depois lida com o problema (autocriado) de como transpor essa lacuna. Em outras palavras, os dois combinam a falsa modéstia (somos apenas sujeitos finitos nos confrontando com uma realidade transcendente opaca) com a arrogância de invocar uma metalinguagem (de certo modo o sujeito pode sair de suas próprias limitações e comparar sua perspectiva limitada à realidade em si). E a solução dos dois é basicamente a mesma: incluir o sujeito no “movimento-de-si” do objeto-a-ser-conhecido. O termo hegeliano para essa inclusão é reflexividade32. De que modo isso funciona na física quântica?

 

Realismo agencial

Aqui entra o “realismo agencial” desenvolvido por Karen Barad: “De acordo com o realismo agencial, conhecer, pensar, mensurar, teorizar e observar são práticas materiais subjetivas de intra-agir no mundo e como parte dele”33. O realismo agencial deixa para trás o tema moderno padrão do sujeito confrontado com a “realidade objetiva”, tema que suscita os dilemas epistemológicos usuais (“o sujeito pode atingir a realidade independente ou está preso no círculo de suas representações subjetivas?”): sua unidade ontológica básica é o fenômeno no qual os dois lados estão irredutível e inextricavelmente entrelaçados: os fenômenos exibem “a inseparabilidade ontológica dos objetos e aparatos”34. Mas o fato de não produzirmos nosso conhecimento à distância, observando a realidade a partir de uma posição longínqua, objetiva e não entrelaçada, não significa que devemos renunciar à objetividade como tal, que todo nosso conhecimento seja subjetivo: tal interpretação ainda pressupõe uma distância representacional entre nossa subjetiva visão-de-fora e as próprias coisas. Sendo assim, como devemos pensar a objetividade (também no sentido da universalidade) do nosso conhecimento?

Bohr, cujas reflexões Barad tenta resumir aqui, enfatiza que tal explicação não implica o relativismo subjetivista: a objetividade é mantida, mas não significa mais que o resultado da observação nos diga algo sobre a realidade do objeto observado antes do ato de medição; significa, ao contrário, que toda vez que repetirmos o mesmo ato de medição sob as mesmas condições (o mesmo entrelaçamento de objeto e aparato), obteremos o mesmo resultado, de modo que não existe nenhuma referência a um observador particular. A leitura subjetivista ou idealista da física quântica (“a mente cria a realidade, não há realidade independente de nossa mente”), portanto, é patentemente falsa: a verdadeira implicação da física quântica é o oposto, obrigando-nos a conceber como nosso conhecimento da realidade é incluído na própria realidade.

A lição de Bohr não é que a realidade é subjetiva, mas sim que nós – sujeitos observadores – fazemos parte da realidade que observamos. Essa não é uma questão do espiritualismo, mas do próprio conhecimento ser fundamentado em práticas materiais. Em suma, a lição implícita das reflexões de Bohr leva a uma crítica materialista da epistemologia ingênua e realista e da ontologia do Materialismo e empiriocriticismo, de Lenin, com sua noção de conhecimento enquanto “reflexão” (sempre imperfeita) da realidade objetiva, que existe independentemente de nós. Esse materialismo ingênuo trata a realidade-em-si de duas maneiras contraditórias: (1) como infinitamente mais rica que o conhecimento e a percepção que temos dela (só podemos abordar de maneira assintótica a infinita riqueza da realidade); (2) como muito mais pobre do que a experiência e a percepção que temos dela: a realidade é despida de todas as “propriedades secundárias” (cores, sabores etc.), de modo que tudo o que resta são as formas matemáticas abstratas de seus elementos básicos. Essa oscilação paradoxal entre os opostos é o preço que o materialismo ingênuo paga por seu procedimento abstrato.

Bohr revela os pressupostos idealistas de tal posição: se a realidade está “lá fora” e nós a abordamos sem cessar, então – pelo menos implicitamente – nós, observadores, não fazemos parte dessa realidade, e sim estamos em algum lugar fora dela35. Na unidade entrelaçada de um fenômeno, não há nenhuma maneira a priori de distinguir entre o agente da observação e o objeto observado: cada divisão desse tipo é determinada por um corte agencial contingente dentro da unidade de um fenômeno, um corte que não é apenas uma decisão mental “subjetiva”, mas “é construído, agencialmente executado, materialmente condicionado”36:

O limite entre o “objeto de observação” e os “agentes de observação” é indeterminado no sentido da ausência de um arranjo físico específico do aparato. O que constitui o objeto de observação e o que constitui os agentes de observação é determinável apenas sob a condição de que o aparato de medição seja especificado. O aparato executa um corte que delineia o objeto dos agentes de observação. Claramente, então, como temos notado, as observações não se referem às propriedades dos objetos independentes da observação (posto que não preexistem como tais).37

São possíveis diferentes cortes dentro do mesmo fenômeno, e cada um deles isola um aspecto diferente do fenômeno enquanto objeto observado. Tomemos como exemplo o uso um bastão para encontrar a saída de um quarto escuro: podemos usar o bastão como um aparato de medição, como um prolongamento da mão, como ferramenta que nos permita “medir” (reconhecer) os contornos do quarto; ou ainda, se conhecemos bem os contornos do quarto, podemos usar o próprio bastão como objeto a ser medido (quando ele toca a parede que sabemos estar a certa distância de onde estamos, podemos determinar o tamanho do bastão; se o batermos contra a mesa diante de nós, podemos estimar sua plasticidade etc.). De maneira homóloga, na experiência da fenda dupla, podemos usar as fendas como instrumento para medir o fluxo de partículas, ou podemos usar o fluxo de partículas como instrumento para medir a propriedade das fendas – o que não podemos fazer é medir diretamente o próprio aparato de medição; para isso, precisaríamos executar um corte agencial diferente por meio do qual tanto o agente de medição quanto o objeto medido tornam-se parte de um novo objeto: “a interação de medição pode ser explicada apenas se o dispositivo de medição for tratado como objeto”38. Em outras palavras, “um ‘instrumento de medição’ não pode caracterizar (isto é, ser usado para medir) a si mesmo”39, não pode medir seu próprio entrelaçamento com o objeto medido, posto que cada medição baseia-se em um corte contingente no fenômeno, um corte pelo qual uma parte do fenômeno é medida por outra de suas partes. Isso significa que as medições (e, consequentemente, nosso conhecimento) são sempre locais, traçam uma linha de separação que torna descritível uma parte do fenômeno em termos “clássicos” (não quânticos); como tais, as medições fazem parte da realidade quântica global que abrange, como seu momento subordinado, o mundo de processos e objetos descritos em termos clássicos. Esse insight tem consequências importantes para a cosmologia:

o universo simplesmente não tem exterior ao qual os agentes de medida se dirigirem com o intuito de medir o universo como um todo [...] como o universo não tem exterior, não há como descrever todo o sistema, portanto a descrição sempre ocorre de dentro: apenas uma parte do mundo por vez pode se tornar inteligível para si mesma, porque a outra parte do mundo tem de ser a parte em relação à qual é tirada a diferença.40

Talvez pareça fácil opor idealismo e materialismo nesse aspecto: a posição idealista propõe Deus como o observador externo que pode compreender e “medir” o universo inteiro, ao passo que, para a posição materialista, não há exterior, todo observador perdura dentro do mundo. Em lacanês, a posição idealista é “masculina”, ela totaliza o universo por meio do observador como ponto de exceção, enquanto o materialismo é “feminino”, ou seja, afirma o “não-Todo” de cada medição41. No entanto, seria fácil demais simplesmente privilegiar o não-Todo “feminino” e reduzir a “masculina” totalização-pela-exceção a uma ilusão secundária – aqui, mais do que nunca, devemos insistir na própria diferença (sexual) como fato primário, como o Real impossível com respeito a que ambas as posições, “masculina” e “feminina”, aparecem como secundárias, como duas tentativas de resolver seu impasse.

Isso significa que, com respeito às consequências filosóficas da física quântica e da cosmologia, não podemos simplesmente situar o “corte agencial” que gera o universo clássico dentro do não-Todo quântico, reduzindo dessa maneira a realidade clássica a um fenômeno dentro do universo quântico, pois a realidade quântica não é simplesmente a unidade abrangente que inclui sua realidade clássica “oposta”. Aqui também devemos estar atentos ao quadro dentro do qual a realidade quântica nos aparece: o próprio quadro abrangente já faz parte de certo modo do conteúdo enquadrado. Em outras palavras, estamos lidando aqui com a realidade clássica, não importa quão indistinta ela seja: as funções de onda e outros quanta, em última análise, são algo que reconstruímos como causa das medições que realizamos e registramos em termos estritamente clássicos. Temos aqui o paradoxo elaborado por Louis Dumont como constitutivo da hierarquia: a ordem ontológica “superior” tem de aparecer na perspectiva da ordem “inferior” como subordinada a esta, como efeito desta – nesse caso, a realidade quântica, que é ontologicamente “superior” (gerando e abrangendo a realidade clássica), tem de parecer, dentro dessa realidade, como algo subordinado a ela e nela fundamentado. E não basta descartar essa reversão como meramente epistemológica (“enquanto a realidade quântica é a verdadeira realidade que causa a realidade clássica, as relações são revertidas em nosso processo de conhecimento”) – aqui, mais uma vez, devemos transpor a reversão epistemológica em ontologia e fazer a pergunta-chave: por que essa reversão é necessária para a própria esfera ontológica42?

A resposta é que temos de pressupor um corte mais radical que já atravesse o não-Todo. A estrutura da diferença sexual já é a estrutura da difração: a própria diferença precede os dois entes por ela diferenciados; em outras palavras, ela funciona como um obstáculo difrativo, de modo que as duas proposições sexuais, masculina e feminina, devem ser concebidas como relações ao obstáculo ou impasse, como dois modos de lidar com ele. O motivo de Barad não levar em conta esse corte ontológico mais radical está em seu naturalismo implícito. Totalmente versada nas teorias do discurso de Butler e Foucault, Barad enfatiza que os aparatos que fornecem o quadro para os cortes agenciais não são apenas materiais no sentido de fazerem parte da natureza, mas também socialmente condicionados, sempre dependentes de uma rede complexa de práticas sociais e ideológicas. Seu argumento crítico contra Butler, Foucault e outros teóricos historicistas do discurso é que, por mais que rejeitem criticamente a posição humanista cartesiana, eles continuam privilegiando o ponto de vista humano: seu historicismo limita a história à história humana, à rede complexa de formações e práticas discursivas que determinam o horizonte da inteligibilidade. A lacuna entre a história (humana) e a natureza persiste em sua obra, oferecendo apenas mais uma versão do tema padrão e antinaturalista da natureza como uma categoria discursiva historicamente condicionada: no fundo, o que conta como “natural” depende de processos discursivos históricos. Aqui Barad arrisca um passo fatídico para uma plena “naturalização” da própria ideia de discurso: ao rejeitar os “restos humanistas” na epistemologia de Bohr (sua identificação do “observador” com o sujeito humano), sua explicação realista agencial afirma:

a inteligibilidade é um exercício ontológico do mundo em sua constante articulação. Não se trata de uma característica dependente do ser humano, mas sim de um aspecto do mundo em seu devir diferencial. [...] O saber implica práticas específicas pelas quais o mundo é explicado e articulado de modo diferente. Em algumas instâncias, os “não humanos” (mesmo seres sem cérebro) surgem como participantes no envolvimento ativo do mundo nas práticas do saber.43

Por conseguinte, a conclusão ontológica radical de Barad é que “matéria e significado são mutuamente articulados”44: “As práticas discursivas são as condições materiais para criar significado. Em minha explicação pós-humanista, o significado não é uma noção baseada no humano; o significado é antes uma atividade constante do mundo em sua inteligibilidade diferencial”45. Ela menciona um organismo primitivo sem cérebro, que vive no mar profundo, cuja superfície inteira reflete as mudanças da luz e desencadeia um movimento de fuga quando essas mudanças são consideradas perigosas – um exemplo da articulação mútua de significado e matéria. Mas a conclusão de Barad, não obstante, se dá de maneira muito tranquila: é verdade que ela elimina os últimos “restos humanistas” – ou seja, remove os vestígios finais do que Meillassoux chama de “correlacionismo transcendental” (o axioma de que cada objeto ou parte da realidade surge como correlato objetivo de um sujeito “ponente”) –, mas o preço que paga é ontologizar a própria correlação, situando o significado diretamente na natureza, na forma da unidade dos aparatos e objetos.

O problema aqui é a continuidade implícita da linha que vai da correlação natural entre organismo e ambiente até a estrutura do significado própria à ordem simbólica. Na natureza, diferenças fazem diferenças: há cortes agenciais que estabelecem uma diferença entre a série de “causas” e a série de “efeitos”, um organismo avalia seu ambiente e reage de acordo com sua avaliação; não obstante, falta aqui um curto-circuito entre as duas séries de diferenças, uma marca pertencente à série de “efeitos” que, retroativamente, inscreve-se na série de “causas”. O nome que Deleuze dá a essa marca paradoxal é “precursor sombrio”, termo introduzido por ele em Diferença e repetição: “O raio fulgura entre intensidades diferentes, mas é precedido por um precursor sombrio [précurseur sombre], invisível, insensível, que lhe determina, de antemão, o caminho invertido, como no vazio”46. Como tal, o precursor sombrio é o significante de uma metadiferença:

Dadas duas séries heterogêneas, duas séries de diferenças, o precursor age como o diferenciador destas diferenças. É assim que ele as coloca em relação imediatamente por sua própria potência: ele é o em si da diferença ou o “diferentemente diferente”, isto é, a diferença em segundo grau, a diferença consigo, que relacionou o diferente ao diferente por si mesmo. Por ser invisível o caminho que ele traça e porque só se tomará visível invertido, enquanto recoberto e percorrido pelos fenômenos que ele induz no sistema, o precursor só tem como lugar aquele ao qual ele “falta” e só tem como identidade aquela à qual ele falta: ele é precisamente o objeto = x, aquele que “falta ao seu lugar” como à sua própria identidade.47

Ou, como resume Ian Buchanan: “Os precursores sombrios são aqueles momentos em um texto que devem ser lidos ao revés para não tomarmos efeitos por causas”48. Em Lógica do sentido, Deleuze desenvolve esse conceito fazendo referência direta à noção lacaniana de “significante puro”: tem de haver um curto-circuito entre as duas séries, a do significante e a do significado, para que o efeito-de-sentido aconteça. Esse curto-circuito é o que Lacan chama de “ponto de estofo”, a inscrição direta do significante na ordem do significado na forma de um significante “vazio” sem significado. Esse significante representa a causa (significante) na ordem de seus efeitos, subvertendo, portanto, a ordem “natural” (mal) percebida, na qual o significante aparece como efeito ou expressão do significado. É por isso que a correspondência entre as duas séries de diferenças que encontramos na natureza ainda não é significado – ou, se for, é apenas puro sinal denotativo, o registro de uma correspondência entre os dois conjuntos de diferenças, mas ainda não é sentido. Devemos distinguir significado de sentido: Deleuze mostrou que o sentido só pode surgir contra o pano de fundo do não sentido, pois o sentido é, por definição, o dar sentido a um não sentido.

Tomemos, mais uma vez, o exemplo do antissemitismo: ele decreta uma correspondência entre uma série de características da vida social (corrupção, depravação sexual, manipulação da mídia etc.) e uma série de características homólogas hipotéticas do “caráter judeu” (os judeus são corruptos, sexualmente depravados, controlam e manipulam a mídia...), para chegar à conclusão de que os judeus são a causa definitiva dessas características perturbadoras em nossa sociedade. Essa conclusão, no entanto, é apoiada por um processo intelectual muito mais complexo. Primeiro, há uma reversão no nível da causalidade: se alguém afirma que “os judeus são degenerados, exploradores e manipuladores”, isso ainda não faz dele um antissemita; o verdadeiro antissemita acrescentará: “Esse sujeito é degenerado, explorador e manipulador, porque é judeu”. Não estamos lidando aqui com uma simples circularidade, pois a lógica subjacente não é que “ele é degenerado por ser judeu, e os judeus são degenerados”. Há algo mais em jogo: nessa reversão, é gerado um excesso, um misterioso je ne sais quoi cuja lógica subjacente é: há um elemento misterioso nos judeus, uma essência do “ser judeu” que faz com que eles sejam degenerados etc. Desse modo, é introduzida uma pseudocausa como elemento misterioso que faz do judeu um judeu; um “sentido mais profundo” surge, as coisas ficam claras de repente, tudo faz sentido, porque o judeu é identificado como fonte de todos os nossos problemas. Esse sentido, obviamente, é sustentado pelo não sentido, pelo curto-circuito sem sentido da inclusão do nome de um objeto entre suas propriedades. E essa reversão adicional que “faz sentido” é o que falta na afirmação de Barad de que já encontramos significado na natureza pré-humana, no modo como os organismos interagem (ou antes intra-agem) com seu ambiente. Em outras palavras, por mais que em sua crítica “essencialista” Barad enfatize repetidas vezes a importância das diferenças e da diferenciação, o que ela deixa de fora, em última análise, é a própria diferença, a diferença “pura” e autorrelativa que precede os termos que diferencia.

Chegamos aqui ao cerne do problema: o objetivo da crítica que fazemos às conclusões de Barad não é propor uma nova versão da clássica lacuna que separa os humanos dos animais, afirmando que o curto-circuito que “dá sentido” ao não sentido seja especificamente humano. Devemos manter o insight de que, na mecânica quântica, encontramos na natureza (por assim dizer, em uma potência/força inferior) uma protoversão esquisita do que costumamos considerar a dimensão simbólica especificamente humana; nossa tese é que uma protoversão do curto-circuito diferencial ignorado por Barad pode ser vista em ação no campo quântico. Para confirmar isso, devemos primeiro repetir a reversão hegeliana fundamental: o problema não é “como passar do universo clássico para o universo das ondas quânticas”, mas sim o oposto, isto é, “por que e como o próprio universo quântico requer, de forma imanente, o colapso da função de onda, sua ‘de-coerência’ no universo clássico”. Por que e como o colapso é inerente ao universo quântico? Em outras palavras, não é só que não existe uma realidade clássica que não é sustentada pelas flutuações quânticas nebulosas; é também que não existe um universo quântico que não seja sempre-já atrelado a alguma parte da realidade clássica. O problema do colapso da função de onda no ato de medição é que ele precisa ser formulado em termos clássicos, não quânticos – e é por isso que “o colapso da função de onda ocupa uma posição anômala na mecânica quântica. Ele é requerido pelo fato de a observação ocorrer, mas não é previsto pela teoria quântica. É um postulado adicional, que deve ser feito para que a mecânica quântica seja consistente49.

Devemos notar a formulação precisa: uma medição formulada nos termos da realidade clássica é necessária para que a própria mecânica quântica seja consistente, é um adendo da realidade clássica que “sutura” o campo quântico. Houve diversas tentativas de resolver essa anomalia. Em primeiro lugar, a posição dualista: estamos lidando com dois níveis diferentes da realidade, a “macrorrealidade” clássica, que obedece a leis ordinárias, e a “microrrealidade”, que obedece a leis quânticas; em segundo lugar, a posição mais extrema segundo a qual tudo o que existe é a realidade clássica, e a esfera quântica é apenas um pressuposto ou construto racional cujo propósito é explicar as medições formuladas em termos clássicos. Para Barad, a realidade também é uma só, mas é a realidade dos fenômenos entrelaçados que obedecem a leis quânticas: é apenas dentro de um fenômeno, como parte da intra-ação de seus componentes (falar sobre “interação” já é conceder demais à ontologia clássica, pois de certa maneira ela implica a interação de partes separadas), que um corte é executado e o objeto é fixado enquanto observado. O corte isola o objeto como “causa” e a marca no aparato de medição como “efeito”, de modo que uma mudança ou diferença no objeto seja entrelaçada a uma mudança ou diferença no aparato – mas esse corte é inerente ao fenômeno.

Aqui, a principal noção é a da unidade do fenômeno que engloba o objeto e o aparato; é por isso que, na experiência da fenda dupla, quando o trajeto de cada partícula é medido e o padrão de interferência desaparece, devemos evitar qualquer mistério sobre o fato de que as partículas “sabem” se estão sendo observadas ou não e comportam-se de acordo. Mas também não devemos interpretar esse fato como o resultado de um distúrbio empírico das partículas pelos processos de medição (não é que uma onda se transforma em um conjunto de partículas quando é perturbada por fótons que medem seu trajeto). O que muda é todo o dispositif fenomenal que executa um corte agencial diferente, um corte que permite a medição:

tudo o que basta para degradar o padrão de interferência é a possibilidade de distinguir os trajetos [...] o que importa é a “contextualidade” – a condição de possibilidade de definição – e não a verdadeira medida em si. Depois que foi confirmado experimentalmente que o padrão de interferência desaparece sem que nenhum tipo de medição de qual caminho tenha sido feita – mas apenas a mera possibilidade de distinguir os trajetos –, essas descobertas oferecem um claro desafio a qualquer explicação da destruição do padrão de interferência que se baseie em um distúrbio mecânico como seu mecanismo causal.50

Notemos a ocorrência da expressão transcendental “condição de possibilidade”: os aparatos desempenham uma espécie de papel transcendental, estruturando um campo de inteligibilidade do fenômeno. É por isso que a mera possibilidade de medir é suficiente: o padrão de interferência desaparece com a mera possibilidade de distinguir os trajetos, mesmo na ausência de qualquer medição empírica, não porque as partículas individuais de algum modo “conhecem” o trajeto observado, mas porque a possibilidade de medição é transcendentalmente constitutiva de seu campo de inteligibilidade. É por isso também que é possível explicar o caso ainda mais perturbador da medição atrasada que parece ser capaz de “mudar o passado”:

além de ser possível restabelecer o padrão de interferência apagando a informação de qual caminho [...], podemos decidir apagar ou não a informação de qual caminho depois que o átomo passou pelas fendas e registrou sua marca em uma tela [...] se o experimentador pode decidir se um padrão de interferência terá ou não resultado ao decidir apagar ou não a informação de qual caminho um tempo depois que cada átomo já tiver atingido a tela, então parece que o experimentador tem controle do passado. Mas como é possível?51

Mais uma vez, a chave é dada pela unidade do fenômeno, pela “prioridade ontológica dos fenômenos sobre os objetos”: o paradoxo só surge se isolarmos as partículas como “objetos” autônomos que magicamente mudam seu comportamento uma vez que “sabem” que são (ou mesmo serão) observados:

Se nos concentrarmos nos entes abstratos individuais, o resultado é um mistério completo, não podemos explicar o comportamento aparentemente impossível dos átomos. Não é que o experimentador mude um passado que já esteve presente ou que os átomos se alinhem com um novo futuro simplesmente apagando a informação. A questão é que, para começar, o passado simplesmente nunca existiu, e o futuro não é simplesmente o que será descoberto; o “passado” e o “futuro” são iterativamente retrabalhados e envolvidos [...]. Não existe nenhuma coordenação, como na fantasmagórica ação à distância, entre partículas individuais separadas no espaço ou eventos individuais separados no tempo. Espaço e tempo são fenomenais, ou seja, são intra-ativamente produzidos no fazer do fenômeno; tempo e espaço não existem como dados determinados fora dos fenômenos.52

Em suma, cada fenômeno contém seu próprio “passado” e “futuro”, que são criados uma vez que as coordenadas desse fenômeno sejam estabelecidas por um corte agencial. Isso significa que cada fenômeno já envolve um corte agencial, já envolve um colapso da função de onda (local). Cada fenômeno, portanto, dá corpo a uma diferença específica, a um corte que contrapõe um agente e um objeto. O pano de fundo dessa pluralidade de fenômenos – em termos kantianos, o Em-si – é o vazio ou vácuo, a pura potencialidade quântica: cada fenômeno quebra o equilíbrio do vácuo. Se já é difícil imaginar o surgimento de um pedacinho de realidade a partir do nada, como o universo inteiro pode surgir ex nihilo? Quanto a isso, a física quântica oferece uma solução linda e propriamente dialética: é claro que nem um objeto sequer, em dado universo, pode surgir do nada, mas o universo inteiro pode, e por uma razão muito simples: “Um requisito que toda lei da natureza deve satisfazer é o ditame de que a energia de um corpo isolado rodeado por espaço vazio é positiva, o que significa que é preciso trabalho para montar o corpo”; do contrário,

não haveria razão nenhuma para que os corpos pudessem aparecer em qualquer lugar e por toda a parte. O espaço vazio, por essa razão, seria instável. [...] Se a energia total do universo deve sempre continuar sendo zero, e custa energia criar um corpo, como pode um universo inteiro ser criado a partir do nada? É por isso que tem de haver uma lei como a da gravidade. [...] Porque a gravidade modela o espaço e o tempo, ela permite que o espaço-tempo seja localmente estável, mas globalmente instável. Na escala do universo inteiro, a energia positiva da matéria pode ser equilibrada pela energia gravitacional negativa, portanto não há restrição na criação de todo o universo. Posto que existe uma lei como a gravidade, o universo pode se criar, e se criará, do nada.53

A beleza dialética desse argumento é que ele inverte a ideia-padrão de um universo localmente instável, porém globalmente estável, como na antiga visão conservadora de que algo deve mudar para que tudo permaneça o mesmo: a estabilidade e a harmonia do Todo é a própria harmonia da luta contínua entre as partes. O que a física quântica propõe, ao contrário, é a instabilidade global como base da estabilidade local: os entes de um universo têm de obedecer a regras estáveis, fazem parte de uma cadeia causal, mas a própria totalidade dessa cadeia é contingente. Isso significa, no entanto, que nesse nível da pura potencialidade do Vazio, não há diferenças? Não, existe a pura diferença na forma da lacuna entre dois vácuos, a questão principal do campo de Higgs. Consideremos mais uma vez o paradoxo do campo de Higgs por meio do paralelo com o status da “Nação” em nosso imaginário sociopolítico.

O que é a “Nação” a que “pertencemos” senão um dos nomes para a “Coisa” freudiano-lacaniana? O inominável X, o buraco negro do universo simbólico que jamais pode ser definido por um conjunto de propriedades positivas, mas só pode ser sinalizado por pseudoexplicações tautológicas como: “É o que é, você precisa ser alemão (ou...) para saber o que isso significa”. Ela não está diante de nós, seus membros, mas por trás de nós, como o fundo impenetrável de nossa existência coletiva. Pensemos na arte de escolher em que fila entrar: qualquer estratégia precisa e definível acaba se mostrando contraproducente se for seguida por muitos participantes (como o conhecido exemplo de muitos motoristas que fazem um desvio por uma rua lateral porque pensam que a rua principal está obstruída e a rua lateral acaba congestionada e a principal fica livre). Se, no entanto, a estratégia oposta de escolher aleatoriamente qualquer fila for seguida por quase todos os participantes, surgirá um padrão previsível que, mais uma vez, permitirá às pessoas que seguem uma estratégia que leve em consideração esse padrão escolher a fila mais rápida. Não obstante, algumas pessoas escolhem frequentemente a fila mais rápida – como fazem isso? A verdadeira arte consiste em encontrar um equilíbrio entre esses dois extremos: adotar uma estratégia limitada que leve em conta as flutuações e os desequilíbrios de curto prazo, antes que cada estratégia se torne totalmente autodestrutiva. Algo semelhante acontece ao nomear o X de uma Nação-Coisa: ambas as estratégias totalmente consistentes (seja agindo como se pudéssemos definir uma Nação-Coisa com um conjunto de propriedades – o equivalente a uma estratégia definível de escolher uma fila; seja insistindo simplesmente que a Nação-Coisa é uma tautologia imperscrutável – o equivalente a escolher a fila aleatoriamente) são autodestrutivas, então tudo o que podemos fazer é aplicar a abordagem “poética” de escolher características particulares efêmeras que, de alguma maneira, deem ênfase particular à Nação-Coisa vazia, ao mesmo tempo que continuam extremamente particulares, ou seja, sem se imporem como propriedades universais de todos os membros (ou mesmo da maioria deles) de uma Nação – suponhamos, no caso dos ingleses, beber cerveja quente, jogar críquete, caçar raposas etc.

Certa vez Hanif Kureishi me falou de seu novo romance, cuja narrativa era diferente da de seus livros anteriores. Perguntei a ele, ironicamente: “Mas mesmo assim o herói é um imigrante cujo pai paquistanês é um escritor fracassado...”. Ele me respondeu: “E qual é o problema? Todos nós não temos pais paquistaneses que são escritores fracassados?”. Ele estava certo – e é isso que Hegel quis dizer por singularidade elevada a universalidade: o aspecto patológico que Kureishi identificou em seu pai faz parte de todo pai; não existe pai normal, o pai de todo mundo é uma figura que não viveu à altura de suas expectativas e por isso deixou para o filho a tarefa de quitar seus débitos simbólicos. Nesse sentido, o “escritor paquistanês fracassado” de Kureishi é um singular universal, um singular que representa a universalidade. É nisso que consiste a hegemonia, esse curto-circuito entre o universal e seu caso paradigmático (no sentido kuhniano preciso do termo): não basta dizer que o caso de Kureishi é um de uma série de casos que exemplificam o fato universal de que ser pai é mais uma “profissão impossível” – devemos dar um passo adiante e dizer que, precisamente, todos nós temos pais paquistaneses que são escritores fracassados. Em outras palavras, imaginemos o ser-pai como um ideal universal para o qual todos os pais se voltam, mas nunca conseguem alcançar: isso significa que a verdadeira universalidade não é a do ideal ser-pai, mas a do próprio fracasso. O “escritor paquistanês fracassado” é o nome que Kureishi dá ao Pai-Coisa, atribuindo-lhe um spin específico – os poetas são os spins originais. Aí também reside a arte de “nomear” uma Nação-Coisa: inventar ou nomear esses “spins” específicos que dão uma ideia da Nação-Coisa mantendo ao mesmo tempo uma distância apropriada dela, respeitando assim sua inominabilidade. Essa é a arte, ou uma das artes, dos poetas.

O paralelo com a cosmologia moderna revela aqui mais do que poderíamos esperar. Na medida em que a Nação-Coisa funciona como uma espécie de “buraco negro” semiótico, devemos introduzir no jogo a noção de “horizonte de eventos”. Na relatividade geral, o horizonte de eventos designa um limite no espaço-tempo: a área que cerca o buraco negro, além da qual os eventos não podem afetar um observador externo. A luz emitida de dentro do horizonte jamais pode alcançar o observador, de modo que tudo o que atravessa o horizonte vindo do lado do observador jamais será visto de novo. Onde está o equivalente da nominação poética da Nação-Coisa? Talvez na chamada “radiação de Hawking”, uma radiação térmica prevista por Stephen Hawking em 1975 que seria emitida por buracos negros: os efeitos quânticos permitem que buracos negros emitam radiação do corpo negro mais além do horizonte de eventos; essa radiação não surge diretamente do buraco negro, mas é o resultado de partículas virtuais que são impulsionadas pela gravitação do buraco negro, tornando-se partículas reais: flutuações de vácuo fazem com que um par formado por partícula e antipartícula apareça perto do horizonte de eventos de um buraco negro; um dos pares cai no buraco negro, enquanto os outros escapam e, para o observador externo, parece que o buraco negro acabou de emitir uma partícula. As nominações poéticas de uma Coisa não são parecidas com isso? Para o observador externo (leitor), parece que a própria Nação-Coisa emitiu essa nominação. Somos tentados a levar esse paralelo adiante e incluí-lo no “bóson de Higgs”, uma partícula elementar hipotética que é o quantum do campo de Higgs, um campo paradoxal que adquire valor não zero no espaço vazio. É por isso que o bóson de Higgs é chamado de “partícula de Deus”: trata-se de um “algo” a partir do qual é feito o próprio “nada”, literalmente a “matéria do nada”. O mesmo vale para a Coisa freudiana: a matéria do nada.

 

Os dois vácuos

O campo de Higgs destrói as apropriações comuns que a Nova Era faz do Vazio quântico como Nada-Todo, uma pura potencialidade na origem abissal de todas as coisas, o Super-Uno informe de Plotino no qual todos os Unos determinados desaparecem. O “campo de Higgs” controla se forças e partículas se comportam de modo diferente ou não: quando ele está “ativado” (operativo), as simetrias se rompem entre as partículas elementares, dando origem a seu padrão complexo de diferenças; por outro lado, quando está “desativado” (inoperativo), as forças e partículas são indistinguíveis umas das outras, o sistema fica em um estado de vácuo – é por isso que os cientistas de partículas procuram tão desesperadamente a “partícula de Higgs” (hipotética, por enquanto), às vezes referindo-se a ela como “partícula divina”. Essa partícula é o equivalente ao que Lacan chama de objet petit a, o objeto-causa do desejo, ou seja, a causa que perturba a simetria de um vácuo, o X que rompe a simetria e introduz diferenças – em suma, nada menos que a causa da passagem de nada (o vácuo, o vazio das puras potencialidades) a algo (forças e partículas efetivas diferentes). Como essa partícula milagrosa é pensável de modo materialista? Como podemos evitar a ideia obscurantista de uma causa mística de todos os objetos54?

A solução materialista é muito precisa e diz respeito ao principal paradoxo do campo de Higgs: assim como acontece com qualquer campo, o de Higgs é caracterizado pela densidade de sua energia e por sua forma – no entanto, “é energeticamente favorável para o campo de Higgs que ele seja ativado e, para as simetrias entre partículas e forças, que sejam rompidas”55. Em suma, quando temos o puro vácuo (com o campo de Higgs desativado), o campo de Higgs ainda tem de gastar energia – nada acontece de graça, não se trata do ponto zero no qual o universo está simplesmente “repousando em si mesmo” em plena liberdade –, o nada tem de ser mantido por um investimento de energia; em outras palavras, energeticamente, custa alguma coisa manter o nada (o vazio do puro vácuo). Talvez algumas tradições teosóficas estejam seguindo a pista certa, como a ideia talmúdica de que, antes de criar algo, Deus teve de criar o nada, teve de recuar, abrir espaço para a criação. Esse paradoxo nos compele a fazer uma distinção entre dois vácuos: primeiro, há o vácuo “falso”, em que o campo de Higgs está desativado, isto é, há uma simetria pura sem forças ou partículas diferenciadas; esse vácuo é “falso” porque só pode ser mantido por determinada quantidade de gasto de energia. Depois, há o vácuo “verdadeiro”, em que, apesar de o campo de Higgs estar ativado e a simetria estar rompida, isto é, haver diferenciação de partículas e forças, a quantidade de energia gasta é zero; ou seja, energeticamente, o campo de Higgs está em um estado de inatividade, de absoluto repouso56. No princípio, há um vácuo falso; esse vácuo é perturbado e a simetria é rompida, porque, como acontece com qualquer sistema energético, o campo de Higgs tende à minimização de seu gasto de energia. É por isso que “existe algo em vez de nada”: porque, energeticamente, algo é mais barato que nada. Retornamos aqui à noção de den em Demócrito: um “algo mais barato que nada”, um estranho “algo” pré-ontológico que é menos que nada.

Sendo assim, é crucial distinguir entre os dois Nadas: o Nada do den pré-ontológico, do “menos-que-nadas”, e o Nada posto como tal, como negação direta – para que Algo surja, o Nada pré-ontológico tem de ser negado, tem de ser posto como vacuidade direta/explícita, e é somente dentro dessa vacuidade que Algo pode surgir, pode haver “Algo em vez de Nada”. O primeiro ato da criação, desse modo, é o esvaziamento do espaço, a criação do Nada (em termos freudianos, pulsão de morte e sublimação criativa estão intrincadamente ligadas).

A noção epicuriana de clinamen não seria o primeiro modelo filosófico dessa estrutura do duplo vácuo, da ideia de que um ente só é na medida em que “chega atrasado demais” com relação a si mesmo, a sua própria identidade? Em contraposição a Demócrito, que afirmava que os átomos caíam diretamente no espaço vazio, Epicuro atribuiu a eles a tendência espontânea de desviar de seus trajetos retos. É por isso que, em lacanês, poderíamos dizer que a passagem de Demócrito para Epicuro é a passagem do Um para o mais-objeto: os átomos de Demócrito são “uns”, enquanto os átomos de Epicuro são mais-objetos – não surpreende que o trajeto teórico de Marx comece com sua tese de doutorado sobre a diferença entre a filosofia de Demócrito e Epicuro.

Talvez isso nos dê uma definição mínima de materialismo: a distância irredutível entre os dois vácuos. E é por isso que mesmo o budismo permanece “idealista”: nele, os dois vácuos se confundem na noção de nirvana. Nem mesmo Freud apreendeu isso com clareza, às vezes confundindo a pulsão de morte com o “princípio do nirvana”, portanto não vendo o cerne de sua noção de pulsão de morte como a imortalidade obscena “não morta” de uma repetição que insiste para além da vida e da morte. O nirvana como retorno à paz pré-orgânica é um vácuo “falso”, pois “custa mais” (em termos de gasto de energia) do que o movimento circular da pulsão57.

Encontramos uma estrutura homóloga no mercado: quando Tim Harford fala dos “homens que conheciam o valor do nada”58, podemos complicar a fórmula e fazer um paralelo com o famoso ensaio de Stephen Jay Gould sobre a relação entre o preço e o tamanho das barras de chocolate da Hershey. Ao comparar as mudanças de preço e tamanho de 1949 a 1979, Gould descobriu que a Hershey reduziu pouco a pouco o tamanho das barras, tornando-as mais largas (mas não tão largas quanto eram originalmente), e aumentou o preço... e depois começou a reduzi-las de novo. Se levarmos esse processo a sua conclusão lógica, em dado momento que pode ser precisamente calculado a empresa venderá embalagens com nada dentro e esse nada terá um preço que pode ser determinado com precisão59. O objeto a lacaniano é justamente esse algo que sustenta o nada, o “preço do nada”, exatamente da mesma maneira que certa energia é necessária para sustentar o vácuo. Uma reação inspirada no senso comum certamente seria que só podemos falar em “menos que nada” em um espaço simbólico, no qual, por exemplo, meu saldo bancário fosse menor que 15 mil. Na verdade, não existe nada que, por definição, seja “menos que nada”. Mas será que é isso mesmo? A física quântica destrói justamente esse pressuposto ontológico elementar.

No entanto, de certa maneira o budismo autêntico está ciente desse paradoxo. Para tomar um exemplo da cultura popular: na refilmagem de Karatê Kid (2010), o jovem norte-americano reclama para o mestre chinês de kung fu: “Como posso vencer a luta se só fico parado?”, ao que o mestre responde: “Ficar parado não é o mesmo que não fazer nada”. Podemos entender essa proposição contra o pano de fundo do clichê bem conhecido (mas não menos adequado) sobre o sábio governante que sabe como jogar um subordinado contra o outro, de modo que suas intrigas se neutralizem – um simples exemplo de como o Todo do reino está em paz enquanto suas partes brigam. Em contraste com esse “não fazer nada” do Todo sustentado pela atividade frenética das partes, “ficar parado”, como súbita interrupção do movimento, perturba a paz do funcionamento harmonioso (o movimento circular) do Todo60. Não teríamos aqui, mais uma vez, uma dualidade homóloga de vácuos: o vácuo do “ficar parado” e o vácuo do “não fazer nada”? Em uma espécie de repetição do paradoxo do campo de Higgs, para efetivamente “fazermos nada”, não devemos “ficar parados”, mas de certa maneira sermos ativos, posto que, se formos realmente inativos, se simplesmente estivermos parados, essa imobilidade gera caos e destruição61.

Se quisermos descrever as coordenadas ontológicas mínimas do universo, não basta simplesmente pôr a infinita multiplicidade dos fenômenos contra o pano de fundo do vácuo ou vazio como sua universalidade: o próprio vácuo é sempre-já cindido entre vácuo “falso” e “verdadeiro”, uma cisão que original ou constitutivamente o perturba. Ou, arriscando uma anacrônica formulação hegeliana, é graças a essa cisão no vácuo que a “substância é sempre-já sujeito”. É importantíssimo fazer uma distinção entre sujeito e agente: o agente é um ente particular encarnado no contexto de um fenômeno, o ente cujos contornos são constituídos por meio de um corte agencial particular e em contraste com o objeto que surge do mesmo corte; o sujeito, ao contrário, é um vazio que não é determinado por seu contexto, mas sim desentrelaçado dele, ou melhor, é o próprio gesto desse desentrelace. Em outras palavras, a oposição entre agente e objeto é resultado do corte agencial; mas quando o “objeto” é o próprio vácuo, ele é suplementado pela pura diferença que “é” sujeito. Essa passagem da diferença específica para a diferença pura, portanto, é idêntica à passagem do agente para o sujeito. E, na medida em que o sujeito, para Hegel, não é apenas o nome de um corte, mas também o nome para o surgimento da aparência, não seria a de-coerência, o colapso da função de onda que faz aparecer a realidade ordinária, também o nome de um corte, uma ruptura, no entrelaçamento das flutuações quânticas? Por que Barad não toca nesse ponto?

Barad oferece muitas variações do tema dos “detalhes importam”: em cada arranjo experimental, devemos prestar muita atenção aos detalhes materiais que podem levar a enormes diferenças no resultado (o “efeito borboleta”); em outras palavras, o experimento jamais pode ser reduzido a suas coordenadas abstratas ideais. No entanto, o fato oposto não é muito mais interessante, isto é, a mesma forma global persiste em todas as variações dos detalhes? O que deveria nos surpreender é o fato de que essa forma ideal exerce sua própria eficácia, gera os mesmos efeitos materiais, de modo que quase sempre podemos ignorar os detalhes materiais – como a forma de uma onda que continua a mesma em uma tempestade de areia, embora os grãos de areia que a constituem nunca sejam os mesmos. Talvez essa eficácia da abstração (a forma abstrata) seja a base do idealismo: seu status não é meramente epistemológico, mas também ontológico, pois a tensão entre a noção abstrata de um objeto e os detalhes de sua existência material faz parte do próprio objeto. Barad acerta quando elogia Bohr por ter transposto a “incerteza” meramente epistemológica da medição para a incompletude ontológica do próprio objeto (medido), mas erra quando faz a mesma coisa a propósito da idealidade: e se todas as características “más” que ela enumera (noções “essencialistas” da identidade etc.) forem não só o resultado do erro epistemológico do observador, mas também, por assim dizer, o resultado de um “erro” inscrito na própria realidade? Dito de outra forma, Barad propõe uma lista de características que opõem a difração (“boa”) e a reflexão (“má”): padrão de difração versus imagem refletida, diferenças versus mesmidade, relacionalidades versus mimetismo, performatividade versus representacionismo, ontologia entrelaçada versus entes separados, intra-ação versus interação de entes separados, fenômenos versus coisas, atenção a padrões detalhados e características minuciosas versus simplificação reificante, entrelaçamento de sujeito e objeto dentro de um fenômeno versus oposição fixa entre os dois, rede complexa versus oposições binárias etc. Mas não seria essa mesma oposição entre difração e reflexão (ou entre performatividade e representação) uma oposição binária grosseira entre verdade e ilusão62?

Há outro ponto crítico intimamente relacionado a esse: Barad também afirma repetidas vezes que o significado não é um ente ideal, mas uma prática material incorporada em aparatos etc. Mas então como explicamos seu status ideal, por mais ilusório que seja? Os conceitos podem ser sempre e constitutivamente incorporados nas práticas materiais, mas não são isso. O problema não é situar os conceitos na prática material, mas explicar como as práticas materiais podem gerar o ente ideal que percebemos como conceito. De modo semelhante, Barad destaca repetidas vezes o tema do sujeito cartesiano como agente externo da observação desentrelaçada, que deve ser substituída pelo entrelaçamento agencial: nós fazemos parte da realidade observada, o corte entre sujeito e objeto é representado de modo contingente e assim por diante. Mas o verdadeiro problema é explicar como essa “falsa” aparência de um sujeito desentrelaçado pode surgir, antes de mais nada: ela pode realmente ser explicada nos termos do corte agencial dentro do entrelaçamento de um fenômeno? Será que não pressupusemos um corte transfenomenal mais radical como um tipo de a priori transcendental que torna possível cortes agenciais intra-ativos?

Talvez aqui seja necessária uma interpretação mais radical do que é difração: a própria noção de difração pode ser difratada. Como observa Barad, “a difração tem a ver com o modo como as ondas se combinam quando se sobrepõem e com a aparente deflexão e propagação de ondas que ocorrem quando as ondas encontram uma obstrução”63. A própria difração, portanto, é difratada na combinação e na separação, na sobreposição e na propagação. Essa dualidade não se refere a duas fases consecutivas de um processo, como uma onda que, ao encontrar uma obstrução, divide-se em duas ondas que depois interferem uma na outra ao se encontrar de novo do outro lado do obstáculo. A dualidade refere-se antes a dois aspectos de um mesmo e único processo: a difração é uma divisão que gera o que ela divide em dois, pois não há nenhuma unidade que preceda a divisão. Em outras palavras, devemos conceber a difração não como a deiscência libertadora do Um, mas como o próprio movimento de constituição do Um, como a desunião, a lacuna, que dá origem ao Um. Assim radicalizada, a difração é revelada como outro nome para paralaxe, a mudança de perspectiva necessária para produzir o efeito da profundeza do Real, como se um objeto adquirisse a densidade impenetrável do Real apenas quando sua realidade se revela inconsistente: o X observado é real apenas na medida em que é o ponto impossível no qual duas realidades incompatíveis se sobrepõem – agora ela é uma onda, mas, se a medirmos de modo diferente, será uma partícula.

Isso significa que os dois vácuos também não são simétricos: não estamos lidando com uma polaridade, mas com o Um deslocado, o Um que é, por assim dizer, atrasado com relação a si mesmo, sempre-já “caído”, sua simetria sempre-já rompida64. O “puro” vácuo sempre se revela como “falso”, tende ao equilíbrio de um vácuo “verdadeiro”, que sempre envolve um mínimo de atividade e perturbação. É fundamental que essa distinção entre os dois vácuos seja mantida: não podemos simplesmente descartar o “vácuo falso” como mera ilusão, deixando apenas o vácuo “verdadeiro”, de modo que a única paz verdadeira seja a da atividade incessante, do movimento circular equilibrado – o “verdadeiro” vácuo permanece para sempre uma perturbação traumática.

A complementaridade na física quântica (onda ou partícula) exclui qualquer relação dialética, não há mediação entre a lacuna paraláctica que separa os dois aspectos – seria essa lacuna o fundamento não dialético da negatividade? O velho problema metafísico de como nomear o abismo sem nome aparece aqui no contexto de como nomear a lacuna primordial: contradição, antagonismo, castração simbólica, paralaxe, difração, complementariedade... e até diferença. Como sugeriu Jameson, talvez devêssemos deixar essa lacuna sem nome, mas não devemos nos abster de pelo menos um esboço intermediário da ontologia implicada por tal universo.

Recordamos aqui o exemplo dos amantes revolucionários que vivem em permanente estado de emergência, inteiramente devotados à Causa, prontos a lhe sacrificar toda a satisfação sexual, mas ao mesmo tempo totalmente dedicados um ao outro: a disjunção radical entre paixão sexual e atividade social-revolucionária é plenamente reconhecida aqui, pois as duas dimensões são aceitas como totalmente heterogêneas, sendo uma irredutível à outra, e é essa mesma aceitação da lacuna que torna a relação não antagônica. Esse exemplo pode servir de modelo para a reconciliação propriamente dialética: as duas dimensões não são mediadas ou unidas em uma “síntese” superior, são simplesmente aceitas em sua incomensurabilidade. É por isso que a lacuna paraláctica intransponível, o confronto de duas perspectivas intimamente ligadas, entre as quais não é possível um fundamento neutro comum, não é a vingança kantiana contra Hegel, isto é, mais outro nome para uma antinomia fundamental que jamais pode ser mediada ou suprassumida dialeticamente. A reconciliação hegeliana é uma reconciliação com a irredutibilidade da antinomia, e é desse modo que a antinomia perde seu caráter antagônico.

 

Y’a de den

Aonde tudo isso nos leva no que diz respeito a Hegel? Todos conhecemos os famosos versos iniciais de “Burnt Norton”, o primeiro dos Quatro quartetos, de T. S. Eliot:

O tempo presente e o tempo passado

Estão ambos talvez presentes no tempo futuro

E o tempo futuro contido no tempo passado.

Se todo tempo é eternamente presente

Todo tempo é irredimível.c

Há um paradoxo nesses versos (admirado pelo próprio Eliot): se simplesmente mudarmos ou acrescentarmos uma palavra aqui e ali, nós os transformamos em uma banalidade pura e simples, ao estilo de: “Ontem eu era um dia mais jovem que hoje, e amanhã serei um dia mais velho...”. Não acontece algo semelhante na recepção predominante do pensamento de Hegel? O que temos é uma série infinitamente repetida de banalidades: o pensamento de Hegel enquanto expressão definitiva, ao ponto da loucura até, da ontoteologia metafísica. O processo dialético como círculo fechado no qual as coisas “tornam-se o que são”, no qual nada de novo pode realmente surgir; a elevação do Conceito a um monstro cujo automovimento engendra toda a realidade; a confiança a priori de que toda a negatividade, as cisões, os antagonismos são “reconciliados” na suprassunção final e assim sucessivamente. Aqui, basta introduzirmos um pequeno deslocamento para que toda a imagem do grande processo metafísico torne-se uma monstruosidade extravagante. Sim, as coisas “tornam-se o que são”, mas literalmente: em um processo contingente e aberto, elas se tornam o que, retroativamente, parece que sempre-já foram. Sim, o antagonismo é “reconciliado”, mas não no sentido de desaparecer em um passe de mágica – o que Hegel chama de “reconciliação” é, em seu sentido mais elementar, uma reconciliação com o antagonismo. Sim, no decorrer de um processo dialético, seu fundamento (ponto de partida) é retroativamente posto por seu resultado, mas esse pôr retroativo nunca se fecha em um círculo completo, uma descontinuidade sempre persiste entre um fundamento e o que o fundamento fundamenta etc.

A maior banalidade “hegeliana” diz respeito ao fato, enfatizado por Lebrun, de que, independentemente da contingência radical do processo, Hegel sustenta a premissa de que, no fim, nós sempre podemos contar uma história sobre o processo. Em geral, os críticos de Hegel questionam o final feliz: a garantia de que cada negatividade será suprassumida em uma unidade superior. Esse questionamento, no entanto, baseia-se em um falso pressuposto: a ideia de que a história que Hegel conta é a história arqui-ideológica da Queda primordial, a história de como Um se divide em Dois, de como a inocência original é perturbada pela divisão ou alienação etc. Depois, é claro, a crítica é que, uma vez perdida, a unidade original jamais pode ser recuperada. Mas é mesmo essa história que Hegel conta? Façamos uma digressão para tratar dessa questão-chave.

Quando falamos de mitos na psicanálise, estamos falando de fato de um mito, o mito de Édipo – todos os outros mitos freudianos (o mito do pai primordial, versão freudiana do mito de Moisés) são variações, embora necessárias. No entanto, com a narrativa de Hamlet, as coisas se complicam. A leitura psicanalítica “ingênua”, pré-lacaniana, concentra-se obviamente no desejo incestuoso de Hamlet pela mãe. Por conseguinte, o choque que Hamlet sofre com a morte do pai é explicado nos termos do impacto traumático que a satisfação de um desejo violento e inconsciente (nesse caso, a morte do pai) exerce no sujeito; o espectro do pai morto que aparece para Hamlet é a projeção de sua própria culpa por seu desejo de morte; seu ódio por Cláudio é um efeito da rivalidade narcisista – Cláudio, e não o próprio Hamlet, teve sua mãe; seu desgosto por Ofélia e pela humanidade em geral expressa sua repulsa pelo sexo na sufocante modalidade incestuosa, que surge com a falta da proibição ou da sanção paternal. Assim, de acordo com essa leitura padrão, Hamlet, enquanto versão moderna de Édipo, atesta o fortalecimento da proibição edípica do incesto na passagem da Antiguidade para a Modernidade; no caso de Édipo, ainda estamos lidando com o incesto, ao passo que, em Hamlet, o desejo incestuoso é reprimido e deslocado. E parece que o próprio diagnóstico de Hamlet como um neurótico obsessivo aponta nessa direção: em contraste com a histeria, que é encontrada em toda a história (pelo menos ocidental), a neurose obsessiva é um fenômeno distintamente moderno.

Ainda que não se deva subestimar a força dessa leitura freudiana robusta, e até heroica, de Hamlet como uma versão moderna do mito de Édipo, o problema é como harmonizá-la com o fato de que, apesar de Hamlet – na linhagem goethiana – parecer um modelo de intelectual moderno (introvertido, taciturno, inconclusivo), o mito de Hamlet é mais velho que o de Édipo. O cerne da narrativa de Hamlet (o filho vinga o pai do tio, que o matou e tomou seu trono; o filho sobrevive ao governo ilegítimo do tio bancando o tolo e fazendo observações “loucas”, porém verídicas) é um mito universal, encontrado em todos os lugares, desde as antigas culturas nórdicas até o Irã e a Polinésia, passando pelo Egito antigo. Portanto, a ordem cronológica esperada é invertida: o que parece ser a história mística original vem depois, é precedida por uma cópia mediada, mais “corrupta” e irônica. Esse paradoxo da(quilo que é vivido como) repetição (uma cópia distorcida) que precede o original “puro” é o que define a historicidade propriamente dita, em contraposição à história ideológica da Queda: a história propriamente dita começa quando nossa visão do passado não é mais colorida por nossa experiência (negativa) do presente, quando somos capazes de perceber o passado como uma época regulada por formas de organização social que diferem radicalmente das formas de organização social atuais. Fredric Jameson salientou que o tópico original de uma narrativa, a narrativa “como tal”, é a narrativa de uma Queda, de como as coisas fracassaram, de como a antiga harmonia foi destruída (no caso de Hamlet, como o tio mau derrubou o pai/rei bom). Essa narrativa é a forma elementar de ideologia e, como tal, o passo crucial da crítica da ideologia é invertê-la – o que nos leva de volta a Hegel: a história que ele conta em sua narrativa sobre um processo dialético não é a história de como uma unidade orgânica original aliena-se de si mesma, mas a história de como essa unidade orgânica nem mesmo existiu, de como sua condição é, por definição, a de uma fantasia retroativa – a própria Queda gera a miragem de onde vem a Queda.

O mesmo paradoxo vale para a crença: vendo o presente como uma era de não crença cínica, nossa tendência é imaginar o passado como uma época em que as pessoas “realmente acreditavam” – mas será que existiu mesmo uma era em que as pessoas “realmente acreditavam”? Como demonstrou Robert Pfaller em Illusionen der Anderen [Ilusões do Outro]65, a crença direta em uma verdade que é total e subjetivamente assumida (“Aqui estou eu!”) é um fenômeno moderno, em contraposição às tradicionais crenças a distância, como as que sustentam as convenções da polidez ou outros rituais. As sociedades pré-modernas não acreditam diretamente, mas a distância, o que explica a má interpretação inerente, por exemplo, na crítica iluminista dos mitos “primitivos” – diante de uma noção como a de uma tribo que surgiu de um peixe ou de um pássaro, os críticos primeiro a interpretam como uma crença literal, depois a tacham de ingênua e “fetichista”. Desse modo, impõem sua própria noção de crença no Outro “primitivizado”66. Pfaller está correto em enfatizar que hoje acreditamos mais que nunca: a mais cética das atitudes, a da desconstrução, baseia-se na figura de um Outro que “realmente acredita”. A necessidade pós-moderna do uso permanente de dispositivos de distanciação irônica (aspas etc.) trai o fato subjacente de que, sem esses dispositivos, a crença seria direta e imediata – é como se dizer: “Eu te amo”, em vez da irônica: “Como diriam os poetas, ‘eu te amo’”, indicasse uma crença diretamente assumida de que eu te amo, como se certa distância já não estivesse em ação na declaração “eu te amo”. Podemos ver como a ideia de uma era antiga de crença ingênua também obedece à lógica da Queda: o que ela esconde é o fato de que tal crença é uma fantasia retroativa gerada pelo presente cínico. Na realidade, as pessoas nunca “acreditaram realmente”: em tempos pré-modernos, a crença não era “literal”, ela incluía uma distância que se perdeu com a passagem para a modernidade.

Para concluir, recapitularemos não só este capítulo, mas o ponto central do livro, tomando como ponto de partida a pergunta de Ray Brassier: “Como o pensamento pensa a morte do pensar?67. Para realmente pensarmos o fim do universo (não só a extinção da raça humana, mas o fim do próprio universo previsto pela cosmologia quântica), temos de apreender esse fim como “algo que já aconteceu68 e pensar nosso presente a partir desse ponto de vista impossível. As últimas palavras do livro de Brassier definem a filosofia em seu sentido mais radical como “o órganon da extinção”69 – a tentativa de pensar o ser do ponto de vista da extinção significa pensar a exterioridade sem pensar, sem (a presença implícita da) mente. Mas há algo de errado, uma dimensão fundamental torna-se indistinta, quando formulamos o problema dessa maneira: é fácil pensar o universo antes do surgimento da humanidade, há centenas de livros cada vez mais populares sobre o Big Bang, a evolução da vida na Terra etc. O verdadeiro problema está em outro lugar, e só é indicado pela réplica transcendental: “Como podemos ter certeza de que a visão científica da realidade objetiva pré-humana já não é constituída por um horizonte transcendental?”; o verdadeiro problema é como posso pensar a mim mesmo como se já estivesse morto ou, mais precisamente, extinto? Decerto não por um tipo qualquer de imersão mística em um abismo primordial, mas, paradoxalmente, por meio de uma des-encarnação radical, ao destituir-me de todas as características “patológicas” da minha finitude – e isso é o cogito, o ponto zero do olhar desencarnado que sustenta a ciência “objetiva”. Esse X des-encarnado que pode pensar a si mesmo como parte de um objeto, como já morto, esse X “não morto” é o sujeito, portanto o problema não é como pensar o Em-si sem a mente, mas como pensar o status “objetal” desse ponto zero do próprio pensar. Esse correlativo objetal e para sempre esquivo do sujeito, o “fóssil” que “é” o sujeito, é o que Lacan chama de objeto a, e esse objeto paradoxal é o único Em-si verdadeiro.

Por fim, a alternativa com que lidamos aqui é entre duas versões da pulsão de morte: a leitura que Brassier faz de Freud (pulsão de morte como um passo heroico que vai além da vontade de poder nietzschiana, com o intuito de assumir totalmente a vontade de saber enquanto vontade de nada, a vontade de alcançar o Em-si pensando o fim do pensar), ou a leitura lacaniana de Freud (pulsão de morte como compulsão não morta à repetição). A opção freudiana de Brassier repete a confusão freudiana entre a pulsão de morte e o princípio do nirvana, interpretando a primeira como uma luta pelo retorno do orgânico ao inorgânico, ou da própria matéria ao vazio primordial, ao passo que Lacan concebe a pulsão de morte como uma perturbação de qualquer vazio, como a insistência de um X pré-ontológico por conta do qual “ela se move”. A escolha ontológica definitiva, portanto, não é a escolha entre nada e algo mas entre nada (extinção) e menos que nada (eppur si muove).

De certa forma, a diferença entre a posição de Brassier e a posição lacaniano-hegeliana pode ser resumida por uma simples substituição: Brassier refere-se à tripla descentralização ou humilhação do narcisismo do homem – Copérnico, Darwin, psicanálise –, mas substitui a psicanálise pelo cognitivismo70. Este naturaliza por completo nossa mente, reduzindo-a a um fenômeno que surge naturalmente com a evolução – mas talvez Brassier tenha ido rápido demais aqui: enquanto o cognitivismo descentraliza a mente humana de fora, tratando-a como um efeito de mecanismos objetivos naturais, somente a psicanálise a descentraliza de dentro, mostrando que ela envolve não só os processos neuronais objetivos, mas também os processos “subjetivos” do pensamento que lhe são inacessíveis.

Referindo-se a François Laruelle, Brassier define o materialismo nos termos da noção vagamente marxista da “determinação em última instância”, que deveria ser oposta à noção semelhante de sobredeterminação: “determinação-em-última-instância é a causalidade que torna universalmente possível que qualquer objeto X determine sua própria cognição ‘real’, mas só em última instância”71. A sobredeterminação é transcendental, ou seja, o ponto defendido pelo transcendentalismo é que um sujeito nunca pode “objetificar-se” plenamente, reduzir-se a uma parte da “realidade objetiva” diante dele, pois tal realidade é sempre-já transcendentalmente constituída pela subjetividade: não importa até que ponto eu tenha sucesso em explicar a mim mesmo como fenômeno dentro da “grande cadeia do ser”, como um efeito determinado por uma rede de causas naturais (ou supernaturais), essa imagem causal é sempre-já sobredeterminada pelo horizonte transcendental que estrutura minha abordagem da realidade. A essa sobredeterminação transcendental, Brassier opõe a determinação naturalista em última instância: um materialista sério só pode assumir que cada horizonte objetivo dentro do qual a realidade aparece, cada constituição subjetiva ou mediação da realidade, tem de ser determinada por seu lugar dentro da realidade objetiva, tem de ser concebida como parte de um processo oniabrangente natural. Aqui o contraste é claro: a sobredeterminação não representa o modo pelo qual um Todo oniabrangente determina a interação de suas partes, mas sim, ao contrário, o modo pelo qual uma parte do todo surge enquanto Um autorrelativo que sobredetermina a rede de suas relações com os outros. Nesse sentido prático, a forma elementar da sobredeterminação é a vida: um ser vivo faz parte do mundo, mas relaciona-se com seu ambiente enquanto uma função de sua autorrelação (tomando o exemplo mais simples: um organismo se relaciona com o alimento porque precisa dele). Sobredeterminação é um nome para essa reversão paradoxal pela qual um momento subsume sob si mesmo o todo do qual ele se originou (ou, em hegelês, põe seus pressupostos).

Essa relação entre a sobredeterminação e a determinação em última instância é antagônica, pois a primeira impossibilita qualquer conceptualização da segunda. No nível da temporalidade, a estrutura da sobredeterminação é de retroatividade, de um efeito que põe retroativamente (sobredetermina) as próprias causas pelas quais ela é determinada em última instância, e a redução da sobredeterminação à determinação em última instância significa que conseguimos transpor retroativamente a causalidade de volta na rede causal linear. Então por que, afinal, surge a sobredeterminação (simbólico-retroativa)? Será que no fundo seu status é de uma ilusão, ainda que espontânea e necessária? A única maneira de evitar essa conclusão é romper a cadeia determinista linear e afirmar a abertura ontológica da realidade: a sobredeterminação não é ilusória, na medida em que preenche retroativamente as lacunas na cadeia da causalidade72.

O próprio Brassier não reconhece essa complicação quando – mais uma vez, seguindo Laruelle – admite que o pensamento pode tocar o real somente pela sobreposição de duas forclusões?

[O] idealismo não é enredado pela subtração da intuição intelectual da realidade para a qual ele dá acesso, mas pelo curto-circuito da diferença transcendental entre pensamento e ser, de modo que o que é forcluído para o pensamento no objeto coincide (embora não sinteticamente) com o que é forcluído para o objeto no pensamento.73

Essa fórmula é bastante precisa: “o que é forcluído para o pensamento no objeto” (o Em-si transcendente do objeto inacessível ao pensamento) se sobrepõe ao “que é forcluído para o objeto no pensamento” (a imanência do sujeito excluído do campo da objetividade). Essa sobreposição de duas forclusões (que não deve ser confundida com a forclusion de Lacan) repete a ação hegeliano-lacaniana básica: a mesma distância que nos separa do Em-si é imanente ao Em-si, faz de nós (o sujeito) um corte ou lacuna inexplicável/“impossível” dentro do Em-si. Na medida em que, para Lacan, “o que é forcluído para o pensamento no objeto” é o objeto a “impossível”, e “o que é forcluído para o objeto no pensamento” é o $, o vazio do próprio sujeito barrado, essa sobreposição nos leva de volta à fórmula $–a de Lacan.

Não surpreende, portanto, que somente possamos tratar o Real através de um desvio (proto-hegeliano) pelo erro: “O pensar precisa ser ocasionado pela transcendência objetificadora para que seja capaz de assumir o real como sua causa-de-última-instância não inobjetificável [...]. Por conseguinte, a determinação-na-última-instância requer a transcendência objetificadora mesmo enquanto a modifica”74. Em outras palavras, la vérité surgit de la méprise: o processo de conhecimento tem de ser desencadeado por um objeto transcendente, para que essa transcendência errônea seja anulada no passo seguinte. Então como podemos tocar o Real no pensar?

Pensar a nós mesmos de acordo com um real sem essência não significa pensar a nós mesmos como sendo isso e não aquilo, seres humanos e não coisas. Pensar a nós mesmos de acordo com um real inconsistente que punciona o próprio nada significa pensar a nós mesmos como idênticos a uma última instância destituída até mesmo da mínima consistência do vazio. O real é menos que nada – o que certamente não equivale a igualá-lo ao impossível (Lacan).75

A única coisa que devemos rejeitar desse resumo (agradável) da posição de Laruelle é a ressalva final: o Real-impossível lacaniano é precisamente esse “dado sem dadidade”, sem um horizonte fenomenológico abrindo espaço para que ele surja, o ponto impossível do ôntico sem o ontológico. A questão-chave aqui é se essa impossibilidade se aplica somente a nós (e, como tal, é epistemológica, concernente ao fato de que é impossível para nós, como seres humanos finitos, nos relacionarmos com a realidade externa de um horizonte ontológico) ou se é inerente ao Real em si.

De certo modo, Brassier está correto em rejeitar a identidade do real inconsistente com o Real-impossível lacaniano: para Lacan, há uma impossibilidade inscrita no próprio núcleo do Real. Voltando a Demócrito: den é o nome da multiplicidade inconsistente pré-ontológica de menos-que-Uns (e assim menos-que-Nadas), que é o único candidato materialista-dialético para o Em-si. A questão é: essa multiplicidade inconsistente é suficiente enquanto ponto de partida (pré-)ontológico? Quando Badiou diz que não existe Um, tudo depende de como essa negação deve ser entendida: ela é apenas a asserção da pura multiplicidade ou a asserção de que a negação do Um é a característica negativa imanente da própria multiplicidade pura? Nos termos da piada citada no capítulo 5, a multiplicidade inconsistente não passa de café puro ou de café sem... (x)? O axioma lacaniano-hegeliano é que a impossibilidade do Um é a característica negativa imanente da multiplicidade inconsistente: há uma multiplicidade inconsistente porque não existe Um, porque o Um é, em si, bloqueado, impossível76.

O que é então a “Coisa-em-si” de um ponto de vista materialista dialético? A melhor maneira de responder a essa pergunta é, mais uma vez, opondo o materialismo dialético ao budismo: no budismo, o Em-si é o vazio, o nada, e a realidade ordinária é um jogo de aparências. Aqui, a questão não respondida é, em última análise, como passamos do nada para algo. Como as aparências ilusórias surgem do vazio? A resposta materialista dialética é: somente se esse algo for menos que nada, a protorrealidade pré-ontológica do den. De dentro dessa protorrealidade, aparece nossa realidade ordinária por meio do surgimento de um sujeito que constitui a “realidade objetiva”: cada realidade positiva de Uns já é fenomenal, transcendentalmente constituída, “correlacionada” a um sujeito – nos termos de Badiou, toda realidade é a realidade de um mundo definido por suas coordenadas transcendentais.

Então como passamos do Em-si da protorrealidade para a realidade constituída transcendentalmente? Laurelle está correto em apontar que o Em-si não está “lá fora”, como um Real externo independente do campo transcendental: no par sujeito e objeto, o Em-si está do lado do sujeito, posto que objetos (da “realidade externa”, transcendentalmente constituídos) existem porque há um sujeito cindido. A cisão constitutiva do sujeito (que precede a cisão entre sujeito e objeto) é a cisão entre o vazio que “é” o sujeito ($) e o equivalente objetal Real-impossível do sujeito, o objeto a puramente virtual. O que chamamos de “realidade externa” (como campo consistente de objetos que existem positivamente) surge pela subtração, ou seja, quando algo é subtraído dela – e esse algo é o objeto a. A correlação entre sujeito e objeto (realidade objetiva), portanto, é sustentada pela correlação entre esse mesmo sujeito e seu correlato objetal, o objeto a Real-impossível, e essa segunda correlação é de um tipo totalmente diferente: é um tipo de correlação negativa, um elo impossível, uma não-relação, entre dois momentos que nunca podem se encontrar no mesmo espaço (como sujeito e objeto), não porque estão distantes demais, mas por que são um e o mesmo ente nos dois lados de uma fita de Möbius. O objeto virtual Real-impossível não é externo ao simbólico, mas seu impedimento imanente, o que torna curvo o espaço simbólico; mais precisamente, ele “é” nada, senão essa curvatura do espaço simbólico.

Com efeito, isso significa que não existe ontologia do Real: o próprio campo da ontologia, da ordem positiva do Ser, surge pela subtração do Real. A ordem do Ser e o Real são mutuamente excludentes: o Real é o bloqueio ou impedimento imanente da ordem do Ser, o que torna inconsistente a ordem do Ser. É por isso que, no nível ontológico, o correlacionismo transcendental está correto: cada “realidade”, cada ordem positiva do Ser, é onto-lógica, correlativa ao logos, transcendentalmente constituída pela ordem simbólica – “a linguagem é a morada do ser”, como diz Heidegger.

Mas aqui não ficamos presos em uma duplicação contraditória: o Real é uma lacuna na ordem do Ser (realidade) e uma lacuna na ordem simbólica? A razão de não haver contradição é que a “realidade” é transcendentalmente constituída pela ordem simbólica, de modo que “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo” (Wittgenstein). Na visão transcendental comum, há um tipo de Real-em-si (como a Ding an sich kantiana) que é então formado ou “constituído” na realidade pelo sujeito; em virtude da finitude do sujeito, nós não podemos totalizar a realidade, ela é irredutivelmente inconsistente, “antinômica” etc. – não podemos ter acesso ao Real que permanece transcendente. A lacuna ou inconsistência, portanto, concerne apenas a nossa realidade constituída simbolicamente, não ao Real em si. Nesse aspecto, Lacan dá um passo estritamente homólogo à passagem de Kant a Hegel com respeito às antinomias e à Coisa-em-si: o Real não é o Em-si externo que escapa à apreensão simbólica, que o simbólico só pode circundar de maneira inconsistente e antinômica; o Real não é senão a lacuna ou o antagonismo que tolhe o simbólico por dentro – o simbólico toca o Real de uma maneira totalmente imanente. Por conseguinte, somos levados de volta ao principal paradoxo do Real: ele não é apenas o inacessível Em-si, ele é simultaneamente a Coisa-em-si e o obstáculo que impede nosso acesso à Coisa-em-si. Nisso já reside o avanço reflexivo básico da cristandade, assim como da dialética hegeliana: na cristandade, a própria lacuna que separa o crente de Deus é o que garante sua identidade com Deus, pois, na figura de Cristo abandonado na cruz, Deus é separado de si; em Hegel, um obstáculo epistemológico torna-se característica ontológica da própria Coisa (a contradição não é apenas um indicativo da imperfeição de nosso conhecimento, a limitação do conhecimento nos coloca em contato com a [limitação da] própria Coisa).

Desse modo, o Real é um efeito do simbólico, não no sentido da performatividade, da “construção simbólica da realidade”, mas no sentido totalmente diferente de um tipo de “dano colateral” ontológico das operações simbólicas: o processo de simbolização é inerentemente tolhido, fadado ao fracasso, e o Real é essa falha imanente do simbólico. A temporalidade circular do processo de simbolização é crucial aqui: o Real é o efeito do fracasso do simbólico em atingir (não o Em-si, mas) a si mesmo, em realizar-se plenamente, mas esse fracasso só acontece porque o simbólico é tolhido em si mesmo. É nesse sentido que, para Lacan, o próprio sujeito é uma “resposta do Real”: o sujeito quer dizer algo, fracassa, e essa falha é o sujeito – “um sujeito do significante” é literalmente o resultado do fracasso de se tornar si mesmo. Também nesse sentido, dentro do espaço simbólico, o efeito é uma reação contra sua causa, enquanto a causa é um efeito retroativo de sua causa: o sujeito produz significantes que falham, e o sujeito enquanto Real é efeito dessa falha.

Mas isso significa que acabamos em uma espécie de idealismo do simbólico – o que experimentamos como “realidade” é construído simbolicamente, e mesmo o Real que escapa à apreensão do simbólico é resultado da falha imanente do simbólico? Não, porque é por meio dessa mesma falha em ser si mesmo que o simbólico toca o Real. Em contraste com o transcendentalismo, Lacan concorda que temos acesso ao Em-si. Lacan não é um idealista do discurso que afirma que estamos presos para sempre na rede das práticas simbólicas, incapazes de atingir o Em-si. No entanto, nós não tocamos o Real rompendo com a “prisão da linguagem” e ganhando acesso ao referente transcendental externo – todo referente externo (“realidade positiva plenamente existente”) já é transcendentalismo constituído. Nós tocamos o Real-em-si em nosso próprio fracasso em tocá-lo, posto que o Real é, em seu sentido mais radical, a “diferença mínima” que separa o Um de si mesmo.

Sendo assim, não basta dizer que, apesar de as coisas existirem lá fora em sua realidade sem significado, a linguagem atribui performativamente significado a elas: o simbólico constitui transcendentalmente a realidade em um sentido ontológico muito mais forte, em seu ser em si. A verdadeira questão é: como é possível essa performatividade (a “mágica” de “fazer coisas com palavras”)? Não é apenas que o maior fracasso da performatividade simbólica produz o excesso do Real enquanto obstáculo imanente ao processo de simbolização; esse obstáculo, a lacuna ou antagonismo que estorva o processo simbólico por dentro, é a condição da performatividade:

é porque o ser é sempre também uma forma de antagonismo/distorção que essas operações [performativas] são efetivas. Para começar, é isso que torna possível a “performatividade”, o que a torna ontologicamente (e não só logicamente) efetiva. Se o simbólico é o produtor do ser e não só das maneiras (e normas) do ser, é por causa do que impede o ser de ser enquanto ser, por causa de sua contradição interna, que precisamente não é simbólica, mas real.77

Em suma, o simbólico pode ser produtor do ser apenas na medida em que a ordem do ser é, ela mesma, tolhida, incompleta, marcada por uma lacuna ou antagonismo imanente.

Isso nos leva de volta à noção propriamente lacaniana de sexualidade enquanto limite imanente da ontologia. Precisamos fazer aqui uma oposição entre sexualidade e sexo animal (cópula): o sexo animal não é “sexual” no sentido preciso da sexualidade humana78. A sexualidade humana não é definida por seu conteúdo corporal, é uma característica formal, uma distorção ou protração do espaço-e-tempo que pode afetar qualquer atividade, mesmo aquelas que não têm nada a ver com a sexualidade. De que maneira uma atividade que em si é definitivamente assexual pode adquirir conotações sexuais? Ela é “sexualizada” quando não consegue atingir sua meta assexual e fica presa no círculo vicioso da repetição fútil. Entramos na sexualidade quando um gesto ou uma atividade que “oficialmente” serve a uma meta instrumental torna-se um fim-em-si-mesmo, quando começamos a gozar da própria repetição “disfuncional” desse gesto e, com isso, suspendemos seu propósito. Por exemplo: encontro um amigo e apertamos a mão um do outro, porém, em vez de soltar sua mão depois de a balançar uma vez, continuo a segurá-la e a aperto de maneira ritmada – com essa simples protração não funcional, gero uma insinuação sexual obscena. É nesse sentido que “a sexualidade (como o real) não é um ser que existe para além do simbólico; ela só ‘existe’ como curvatura do espaço simbólico que acontece por causa do algo adicional produzido com o gesto significante79. Em outras palavras, a sexualidade enquanto Real não é externa ao campo simbólico; ela é sua distorção ou curvatura imanente, ela ocorre porque o campo simbólico é bloqueado por uma impossibilidade inerente.

Por fim, isso nos leva de volta à tríade formada pela visão sexualizada e pré-moderna do cosmos, a ontologia dessexualizada moderna e a reafirmação lacaniana da sexualidade em sua dimensão ontológica dentro do universo dessexualizado, como sua limitação inerente: “A dessexualização da ontologia (o fato de não ser mais concebida como combinação de dois princípios, ‘masculino’ e ‘feminino’) coincide com o aparecer sexual enquanto ponto real/perturbador do ser”80. A ontologia moderna dessexualizada tenta descrever uma ordem achatada e neutra (neutralizada) do ser (a multiplicidade anônima de partículas ou forças subatômicas), mas, para fazer isso, ela tem de ignorar a inconsistência ou incompletude da ordem do ser, a possibilidade imanente que tolhe cada ontologia. Cada campo da ontologia, mesmo em sua forma mais radical (como a ontologia matemática de Badiou), tem de subtrair o Real/impossível (o espaço curvo da sexuação) da ordem do ser.

 

 

 

1   É verdade que, se aceitarmos a hipótese de um Big Bang, podemos não obstante formular um limite ou medida imanente de grandeza do universo, ou seja, existe nesse caso um ponto zero de medida (a singularidade do começo), bem como o Todo (do universo finito), de modo que o observador imaginado possa saltar ao longo de uma escala de grandeza infinita. Mas e se tivermos muitos Big Bangs, sucedendo-se uns aos outros?

2   Peter van Inwagen, Material Beings (Itaca, Cornell University Press, 1990).

3   Karen Barad, Meeting the Universe Halfway: Quantum Physics and the Entanglement of Matter and Meaning (Durham, Duke University Press, 2007), p. 35.

4   Stephen Hawking e Leonard Mlodinow, The Grand Design (Nova York, Bantam, 2010), p. 5. [Ed. bras.: O grande projeto, trad. Mônica Gagliotti Fortunato Friaça, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2011.]

5   Ibidem, p. 7.

5   Além disso, não podemos deixar de notar que, quanto ao conteúdo positivo da Teoria de Tudo de Hawking, ele carrega uma semelhança inconfundível com o materialismo dialético, ou pelo menos totalmente compatível com uma versão razoável do materialismo dialético.

7   Ver Nicholas Fearn, Novas respostas para antigas questões (trad. Maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro, Zahar, 2007).

8   Ibidem, p. 48.

9   Idem.

a   Lisboa, Estampa, 1971. (N. E.)

10   Não admira que o maior poeta da inércia material no cinema, Andrei Tarkovsky, seja também um dos grandes “espiritualistas” cinematográficos. Em termos mais amplos, os três aspectos do Real lacaniano não correspondem aos três aspectos do materialismo? Primeiro, o Real “imaginário”: o proverbial grão de areia, o “resto indivisível” material que não pode ser suprassumido no processo simbólico. Depois, o Real “simbólico”: fórmulas e letras científicas que reproduzem a estrutura da realidade material. Por fim, o Real “real”: o corte da diferença pura, da inconsistência da estrutura.

b   G. W. F. Hegel, Hegel’s Science of Logic, cit., p. 238-313. (N. T.)

11   Ibidem, p. 249.

12   Ibidem, p. 269.

13   Nessa mesma linha, talvez possamos conceber a função de onda na física quântica como a teleiosis de um objeto desprovido da efetividade do objeto, como a direção de um ponto sem sua realidade.

14   Roger Penrose, The Road to Reality: A Complete Guide to the Laws of the Universe (Londres, Vintage Books, 2004), p. 782.

15   Citado de Karen Barad, Meeting the Universe Halfway, cit., p. 287.

16   Idem.

17   Bruce Rosenblum e Fred Kuttner, Quantum Enigma: Physics Encounters Consciousness (Londres, Gerald Duckworth, 2007), p. 66.

18   Conforme resumido em ibidem, p. 108-9.

19   Ibidem, p. 164.

20   Citado em ibidem, p. 165.

21   Brian Greene, O universo elegante (trad. José Viegas Filho, São Paulo, Companhia das Letras, 2001), p. 136-40.

22   Baseio-me aqui no terceiro capítulo (“Quantum Physics with Lacan”) de meu Indivisible Remainder (Londres, Verso Books, 1996).

23   Para citar Borges, com o surgimento de Kafka, Poe e Dostoiévski não são mais o que eram, pois, do ponto de vista de Kafka, podemos ver neles dimensões que não estavam lá anteriormente.

24   Ver F. W. J. Schelling, “Philosophical Investigations into the Essence of Human Freedom and Related Matters”, em Ernst Behler (org.), Philosophy of German Idealism (Nova York, Continuum, 1987).

25   Bruce Rosenblum e Fred Kuttner, Quantum Enigma, cit., p. 171.

26   Ibidem, p. 170.

27   Nick Bostrom, “Playthings of a Higher Mind”, Times Higher Education Supplement, 16 maio 2003. Também conhecido como “The Simulation Argument: Why the Probability That You Are Living in a Matrix is Quite High”.

28   Recordemos que Kant pensava que nossa ignorância da realidade numenal era uma condição de nossa capacidade de agir eticamente: se conhecêssemos as Coisas em si mesmas, agiríamos como autômatos.

29   No entanto, permanece aqui um mistério: o proverbial mistério do grão de areia a mais que faz de grãos individuais um monte propriamente dito (funcionando como uma onda).

30   Karen Barad, Meeting the Universe Halfway, cit., p. 113.

31   G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte I, § 73, p. 63-4.

32   Barad rejeita a noção de reflexividade como ferramenta para conceber a inclusão do observador no conteúdo observado, argumentando que a “reflexividade é fundamentada no representacionismo”: “A reflexividade toma como certa a ideia de que as representações refletem a realidade (social ou natural). Ou seja, a reflexividade baseia-se na crença de que as práticas de representação não têm nenhum efeito sobre os objetos de investigação e que nós temos um tipo de acesso às representações que não temos aos objetos em si. A reflexividade, assim como a reflexão, ainda mantém o mundo à distância” (Karen Barad, Meeting the Universe Halfway, cit., p. 87). Mas essa noção simplesmente não leva em conta o núcleo da reflexividade hegeliana, que é a inclusão do ato de reflexão no próprio objeto: para Hegel, a distância entre o objeto e sua reflexão não é externa (isto é, o objeto é em si, a reflexão é como ele aparece para o sujeito que observa), mas sim inscrita no próprio objeto como seu constituinte mais íntimo – o objeto torna-se o que é por sua reflexão. A exterioridade implícita pela noção de reflexividade é precisamente o que Barad chama de “exterioridade interior”.

33   Karen Barad, Meeting the Universe Halfway, cit., p. 90.

34   Ibidem, p. 128.

35   E a leitura espiritualista equivocada da física quântica (“o observador cria a realidade”) simplesmente opõe a esse materialismo abstrato vulgar um idealismo não menos vulgar: aqui não é o objeto, mas sim o sujeito que é isento da realidade concreta de um fenômeno e pressuposto como fonte abstrata da realidade.

36   Karen Barad, Meeting the Universe Halfway, cit., p. 115.

37   Ibidem, p. 114.

38   Idem.

39   Ibidem, p. 347.

40   Ibidem, p. 350-1.

41   Outra inscrição da oposição entre idealismo e materialismo na cosmologia ocorre no contínuo debate sobre o Big Bang: não surpreende que a Igreja Católica tenha começado a apoiar a teoria do Big Bang há algumas décadas, interpretando-a como o momento da intervenção direta de Deus, o ponto singular em que as leis universais da natureza são suspensas. A resposta materialista à teoria do Big Bang é a teoria cíclica do universo que vê o Big Bang não como o ponto zero do inexplicável e absoluto começo, mas como o momento da passagem de um universo para outro, uma passagem que também pode ser explicada pelas leis da natureza. A ideia (baseada na teoria das cordas – e os problemas com a teoria das cordas sinalizam os potenciais pontos fracos dessa abordagem) é que existem mais do que as quatro dimensões usuais no universo (três dimensões espaciais mais o tempo): há (pelo menos) mais uma dimensão parcial que mantém uma distância infinitesimal, mas ainda assim operativa, entre o nosso mundo (uma “brana”: membrana multidimensional) e seu duplo; no fim de um ciclo cósmico, as duas branas colidem uma com a outra, a distância que as separa é anulada e o colapso engendra a explosão de um novo mundo. Ver Bruce Rosenblum e Fred Kuttner, Quantum Enigma, cit.

42   Essa questão é homóloga à da hierarquia: por que a ordem superior mantêm sua prioridade somente se aparece dentro da ordem inferior como a ela subordinada?

43   Karen Barad, Meeting the Universe Halfway, cit., p. 149.

44   Ibidem, p. 152.

45   Ibidem, p. 335.

46   Gilles Deleuze, Diferença e repetição, cit., p. 174-5.

47   Ibidem, p. 175.

48   Ian Buchanan, Deleuzism: A Metacommentary (Durham, Duke University Press, 2000), p. 5.

49   George Greenstein e Arthur G. Zajonc, The Quantum Challenge: Modern Research on the Foundations of Quantum Mechanics (Sudbury, MA, Jones and Bartlett, 1997), p. 187; como citado em Karen Barad, Meeting the Universe Halfway, cit., p. 285 (grifos meus).

50   Karen Barad, Meeting the Universe Halfway, cit., p. 305-6.

51   Ibidem, p. 311-2.

52   Ibidem, p. 315.

53   Stephen Hawking e Leonard Mlodinow, The Grand Design, cit., p. 179-80.

54   Todas as especulações teosóficas concentram-se neste ponto: no próprio princípio (ou, mais precisamente, antes do princípio) não há nada, o vazio da pura potencialidade, a vontade que nada quer, o abismo divino anterior a Deus, e esse vazio é então inexplicavelmente perturbado ou perdido.

55   Paul J. Steinhardt e Neil Turok, Endless Universe: Beyond the Big Bang (Londres, Phoenix, 2008), p. 82.

56   Ibidem, p. 92.

57   No domínio da pulsão, a mesma lacuna aparece na forma da diferença entre meta e alvo da pulsão, conforme elaborada por Lacan: a meta da pulsão – alcançar seu objeto – é “falsa”, ela mascara seu “verdadeiro” alvo, que é reproduzir seu próprio movimento circular ao perder repetidamente seu objeto. Se a fantasiada unidade com o objeto produziu a incestuosa jouissance plena/impossível, o fato de a pulsão perder repetidamente seu objeto não nos obriga simplesmente a nos satisfazer com um gozo inferior, mas gera um mais-gozar próprio, o plus-de-jouir. O paradoxo da pulsão de morte, portanto, é estritamente homólogo ao do campo de Higgs: do ponto de vista da economia libidinal, é “mais barato” para o sistema atravessar repetidamente o círculo da pulsão do que ficar em absoluto repouso.

58   Ver Tim Harford, The Undercover Economist (Londres, Abacus, 2007), p. 77-8.

59   Ver Stephen Jay Gould, “Phyletic Size Decrease in Hershey Bars”, em Hen’s Teeth and Horses’ Toes: Further Reflections in Natural History (Nova York, Norton, 1994). Este é o lucro: o preço do nada que pagamos quando compramos algo de um capitalista. A economia capitalista conta com o preço do nada, envolve a referência a um Zero virtual que tem um preço preciso.

60   Em Guerra e paz, de Tolstói, a oposição entre Napoleão e Kutuzov é a oposição entre passividade ativa e atividade passiva: Napoleão é freneticamente ativo, movendo-se e atacando o tempo todo, mas sua verdadeira atividade é fundamentalmente passiva – ele segue passivamente o destino que o impele a agir, é vítima de forças históricas que ele não compreende. Marshall Kutuzov, seu equivalente militar russo, é passivo em seus atos – recuando, apenas resistindo –, embora sua passividade seja sustentada por uma vontade ativa de resistir e vencer.

61   Há um tipo de personalidade que ilustra as consequências catastróficas do “não fazer nada”: o sujeito que simplesmente fica parado, sem fazer nem ver nada de errado, enquanto causa catástrofes a seu redor. Segundo Ray Monk, Bertrand Russell era um desses sujeitos: ele permaneceu parado no centro de sua rede familiar e gozou a vida, enquanto suicidas se multiplicavam ao seu redor. Podemos evocar uma experiência comum: em geral, quando estamos muito entusiasmados, tentar nos acalmar interrompendo todas as nossas atividades é um fracasso, porque é contraproducente – temos de fazer muito esforço para interromper todas as nossas atividades quando estamos nesse estado. É muito mais eficaz nos concentrarmos em uma atividade mínima e sem significado, como esticar ou comprimir os dedos – atividades automáticas como essa acalmam muito mais do que a inatividade completa.

62   Devemos ter a mesma atitude a respeito da oposição entre performativo e constatativo: há décadas tem sido dito que a linguagem é uma atividade, não um meio de representação que denota um estado independente de coisas, mas sim uma prática de vida que “faz coisas”, constitui novas relações no mundo – será que não está na hora de fazermos a pergunta inversa? Como pode uma prática que é plenamente incorporada em um mundo vivido começar a funcionar de maneira representativa, subtraindo-se do entrelaçamento de seu mundo vivido, adotando uma posição distanciada de observação e denotação? Hegel exaltou esse “milagre” como o poder infinito do Entendimento, que pode separar – ou, no mínimo, tratar como separado – o que na vida real está unido.

63   Karen Barad, Meeting the Universe Halfway, cit., p. 74.

64   Talvez Derrida visasse algo parecido com sua noção de différance.

c   T. S. Eliot, Poesia (2. ed., tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira, São Paulo, Arx, 2004, Obra completa, v. 1.) (N. T.)

65   Ver Robert Pfaller, Die Illusionen der anderen: Über das Lustprinzip in der Kultur (Frankfurt, Suhrkamp, 2002).

66   Um lugar-comum a respeito dos filósofos de hoje é que sua análise da hipocrisia do sistema dominante trai sua ingenuidade: por que eles ainda se chocam ao ver pessoas violando inconsistentemente os valores que professam quando convém a seus interesses? Será que esperam realmente que as pessoas sejam consistentes e tenham princípios? Devemos defender aqui os filósofos autênticos: o que os surpreende é a característica exatamente oposta – não que as pessoas não “acreditem realmente” e ajam de acordo com os princípios que professam, mas que pessoas que professam seu cinismo e seu oportunismo pragmático radical tenham muito mais crenças secretas do que estão dispostas a admitir, mesmo que transponham essas crenças para os “outros” (não existentes).

67   Ray Brassier, Nihil Unbound: Enlightenment and Extinction (Londres, Palgrave Macmillan, 2007), p. 223.

68   Idem.

69   Ibidem, p. 239.

70   Ibidem, p. 40.

71   François Laurelle, Introduction au non-marxisme (Paris, Presses Universitaires de France), p. 48; como citado em Ray Brassier, Nihil Unbound, cit., p. 138.

72   A referência terminológica a Marx não é tão arbitrária quanto parece: em termos marxistas, a relação entre determinação em última instância e sobredeterminação é a relação entre economia e política: a economia determina em última instância, enquanto a política (luta política de classes) sobredetermina o processo inteiro. Não podemos reduzir a sobredeterminação à determinação em última instância – isso seria o mesmo que reduzir a luta política de classes a um efeito secundário dos processos econômicos. Mais uma vez, a dualidade entre determinação em última instância e sobredeterminação deveria ser concebida como a de uma cisão paraláctica.

73   Ray Brassier, Nihil Unbound, cit., p. 139.

74   Ibidem, p. 140.

75   Ibidem, p. 137.

76   Note-se que “o Um não é” nos leva de volta à hipótese de Parmênides, de Platão.

77   Alenka Zupančič, “Sexual Difference and Ontology” (manuscrito não publicado).

78   É nesse sentido que devemos interpretar os teólogos que afirmam que Adão e Eva copularam no Jardim do Éden, mas como mera atividade instrumental, como plantar sementes em um campo, sem nenhuma tensão sexual subjacente.

79   Alenka Zupančič, “Sexual Difference and Ontology”, cit.

80   Idem.