A inexistência do grande Outro indica que cada edifício moral e/ou ético tem de ser fundamentado em um ato abissal que é, no sentido mais radical que se possa imaginar, político. A política é o verdadeiro espaço em que, sem nenhuma garantia externa, as decisões éticas são tomadas e negociadas. A ideia de que se pode fundamentar a política na ética, ou de que a política é, em última análise, um esforço estratégico para realizar posições éticas anteriores, é uma versão da ilusão do “grande Outro”. Por conseguinte, devemos passar da pergunta: “Qual ética condiz com a psicanálise?” para a pergunta: “Qual política condiz com a psicanálise?”.
Com respeito à política, a posição definitiva de Freud é a mesma de Lacan: a psicanálise não fornece programas políticos positivos para a ação; sua maior realização, a “linha de fundo” da análise, é ter atingido os contornos de uma “negatividade”, uma força perturbadora, que põe uma ameaça a cada elo coletivo estável. Como um ato político intervém em um estado de coisas, simultaneamente criando a instabilidade e tentando estabelecer uma nova ordem positiva, podemos dizer que a psicanálise nos coloca em confronto com o nível zero da política, uma condição pré-política “transcendental” de possibilidade da política, uma lacuna que abre o espaço para que intervenha o ato político, uma lacuna que é saturada pelo esforço político de impor uma nova ordem. Em termos lacanianos, a psicanálise nos põe em confronto com o nível zero em que “nada tem lugar, exceto o próprio lugar”, enquanto a política propriamente dita intervém nesse lugar com um novo Significante-Mestre, impondo fidelidade, dando-nos legitimidade para “forçar” na realidade o projeto sustentado por esse Significante-Mestre.
Consequentemente, podemos dizer que, com respeito à lacuna ou antagonismo que define a condição humana, a relação entre psicanálise e política é a de uma cisão paraláctica, de um encontro perdido entre um “ainda não” e um “tarde demais”: a psicanálise abre a lacuna antes do ato, enquanto a política já sutura a lacuna, introduzindo uma nova consistência, impondo um novo Significante-Mestre1. Mas será que cada política, cada ato político envolve necessariamente um encobrimento auto-ofuscante dessa lacuna? E se não houver experiência pura da lacuna? E se cada versão da lacuna já for vista da perspectiva de certo envolvimento político? Há uma celebração trágica e conservadora da lacuna (no fundo, estamos fadados ao fracasso, os atos heroicos podem adiar temporariamente a queda final, o máximo que podemos fazer é cair de modo autêntico), uma afirmação liberal pragmática da lacuna (a democracia reconhece a imperfeição de nossas sociedades, não há solução final para nossas aflições, apenas um reparo pragmático mais ou menos bem-sucedido) e a eternização esquerdista radical da luta (Mao: “a luta de classes durará para sempre”). Cada uma dessas posições também pode ser formulada nos termos de sua própria e específica negação do antagonismo: a harmonia orgânica conservadora, o equilíbrio liberal dos conflitos pela tradução do antagonismo em competição antagônica, o paraíso-por-vir esquerdista pós-revolucionário.
Contudo, mais uma vez, essas três versões da lacuna são iguais? A versão esquerdista não deveria ser privilegiada, na medida em que é a única que concebe a lacuna não como luta, mas como antagonismo imanente ou discórdia constitutiva da própria dimensão social? Isso significa que também aqui devemos propor a coincidência dos opostos: a lacuna é visível “como tal” apenas do ponto de vista do engajamento da extrema esquerda. Essa lacuna paraláctica, essa extrema coincidência de opostos (a pura forma e o excesso material contingente que dá corpo a ela, a onda e a partícula na física quântica, a universalidade e o engajamento totalmente partidário etc., até e inclusive a fidelidade a uma Causa universal e a uma relação amorosa), o ponto morto da “dialética suspensa” (como disse Benjamin), não é um caso de pura “contradição” (ou antes de antinomia) que nenhuma mediação ou reconciliação dialética pode superar? A lacuna paraláctica é, ao contrário, a própria forma da “reconciliação” dos opostos: só é preciso reconhecer a lacuna. A universalidade é “reconciliada” com o engajamento político partidário na forma do engajamento que representa a universalidade (portanto engajamento proletário emancipatório); a pura forma é “reconciliada” com seu conteúdo na forma do excesso informe do conteúdo que representa a forma como tal; ou, na visão política de Hegel, o Estado Racional universal é “reconciliado” com o conteúdo particular na forma do Monarca, cuja legitimação é, ao mesmo tempo, puramente simbólica (seu título) e “irracional” (biológica: só seu nascimento explica seu ser monarca).
Devemos rejeitar aqui o senso comum segundo o qual, ao desfazer todas as mistificações e ilusões, a psicanálise nos faz conscientes de tudo o que realmente somos, do que realmente queremos, e assim nos deixa no limiar de uma decisão verdadeiramente livre, que não depende mais do autoengano. O próprio Lacan parece defender essa visão quando diz que “se a análise talvez nos prepara para ela [a ação moral], no fim das contas, nos deixa à sua porta”: “os limites éticos da análise coincidem com os limites de sua práxis. Sua práxis não é senão prelúdio à ação moral como tal”2. No entanto, Lacan não delineia aqui um tipo de suspensão política do ético? Uma vez que estamos cientes da contingência radical de nossos atos, o ato moral em sua oposição ao político torna-se impossível, posto que cada ato envolve uma decisão fundamentada apenas em si mesma, uma decisão que é, como tal e no sentido mais elementar, político. Até Freud é precipitado nesse aspecto: ele faz uma oposição entre multidões artificiais (igreja, exército) e multidões primárias “regressivas”, como uma turba rebelde engajada na violência coletiva passional (linchamentos, pogroms). Além do mais, da perspectiva liberal3, a turba de linchadores e a multidão revolucionária de esquerda são tratadas como libidinalmente idênticas, pois envolvem o mesmo desencadeamento da pulsão de morte destrutiva ou desvinculadora. Parece que, para Freud, a multidão primária “regressiva”, exemplarmente em ação na violência destrutiva de uma turba, é o nível zero da desvinculação de um elo social, a “pulsão de morte” social em seu sentido mais puro.
As implicações teológicas dessa violência são inesperadamente poderosas: e se o principal destinatário do mandamento bíblico “não matarás” for o próprio Deus (Jeová), e nós, frágeis seres humanos, formos seu próximo exposto à fúria divina? Com que frequência encontramos no Antigo Testamento um estrangeiro misterioso que invade brutalmente a vida humana e semeia a destruição? Quando Levinas escreveu que nossa primeira reação ao ver o próximo é matá-lo, ele não quis dizer que isso implicava originalmente a relação de Deus com os seres humanos, de modo que o mandamento “não matarás” é um apelo para que Deus controle sua fúria? Na medida em que a solução judaica é um Deus morto, um Deus que sobrevive apenas na “letra morta” do Livro Sagrado, da Lei a ser interpretada, o que morre com a morte de Deus é justamente o Deus do Real, da fúria destrutiva e da vingança. Aquela frase bastante conhecida sobre o Holocausto – Deus morreu em Auschwitz – tem de ser invertida, portanto: Deus reviveu em Auschwitz. Devemos recordar aqui a história talmúdica dos dois rabinos debatendo uma questão teológica: o que perde o debate pede que o próprio Deus intervenha e decida a questão; contudo, quando Deus aparece, o outro rabino lhe diz que, como o trabalho de criação já foi feito, ele não tem nada para dizer e por isso deve ir embora, e Deus vai. É como se, em Auschwitz, Deus voltasse com consequências catastróficas. O verdadeiro horror não acontece quando somos abandonados por Deus, mas quando Deus chega perto demais.
Deveríamos acrescentar a essa posição freudiana pelo menos três pontos. Primeiro, Freud não consegue distinguir claramente entre o modelo igreja e o modelo exército da multidão artificial: enquanto a “igreja” representa a ordem hierárquica social que tenta manter a paz e o equilíbrio fazendo compromissos necessários, o “exército” representa um coletivo igualitário definido não por sua hierarquia interna, mas por sua oposição a um inimigo que está aí para destruí-lo – os movimentos emancipatórios radicais são sempre inspirados no exército, não na igreja, e igrejas milenares realmente são estruturadas como exércitos. Segundo, as multidões primárias “regressivas” não vêm primeiro, elas não são a fundação “natural” para o surgimento das multidões “artificiais”: elas vêm depois, como uma espécie de suplemento obsceno que sustenta a multidão “artificial”, relacionando-se a esta como o supereu com a Lei simbólica. Enquanto a Lei simbólica demanda obediência, o supereu fornece o gozo obsceno que nos une à Lei. Por último, mas não menos importante, a turba selvagem realmente é o nível zero da desvinculação de um elo social? Ela não é antes uma reação de pânico à lacuna ou inconsistência que corta o edifício social? A violência da turba, por definição, é direcionada ao objeto (mal)percebido como a causa externa da lacuna (os judeus, exemplarmente), como se a destruição desse objeto abolisse a lacuna.
Assim, mais uma vez, quais são as consequências políticas de afirmarmos essa lacuna? Há três opções básicas. Primeiro, há a opção liberal essencialmente defendida pelo próprio Freud: a lacuna significa que não deveríamos nos identificar totalmente com nenhum projeto político positivo, mas manter uma distância mínima de todos eles, pois a política como tal é o domínio do Significante-Mestre e das identificações simbólicas e/ou imaginárias. Depois, há a opção conservadora: contra a eterna ameaça de “negatividade” destrutiva, é extremamente necessário impor na vida social uma ordem estrita, baseada em um Significante-Mestre. Por fim, há a versão de esquerda trotskista-deleuziana: a verdadeira política radical é uma questão de “revolução permanente”, de persistência na permanente autorrevolução, sem permitir que esse fluxo se estabilize em uma nova ordem positiva. Com Lacan e a política, trata-se do mesmo que com Hegel: há três interpretações principais, a conservadora (que enfatiza a autoridade simbólica como um sine qua non da ordem social), a esquerdista (que usa Lacan para a crítica da ideologia e da prática patriarcal) e a versão liberal cinicamente permissiva (para cada um, sua própria jouissance). A interpretação liberal participa do curto-circuito entre ontologia e política, típico do pensamento pós-moderno: a política radical de esquerda é rejeitada por ser “metafísica”, por ser a imposição sobre a vida social de uma visão metafísica universal, por ser a luta por uma sociedade totalmente autotransparente e regulada, e, como a vida resiste às restrições de qualquer camisa de força ideológica, essa política necessariamente termina no terror totalitário. Esse posicionamento político é muito confortável: enquanto legitima uma prática política sem riscos, é capaz de apresentar seu cínico liberalismo como a grande posição crítica radical.
Qual dessas três opções é a correta, então? A primeira deve ser rejeitada por ser a saída mais fácil, já que afirma que a própria questão está errada: não há uma versão “verdadeira” ou “correta”, a escolha é insolúvel, aberta. Mas, repetindo, qual das três é a opção correta? A resposta, obviamente, é a quarta. Em outras palavras, como vimos, devemos rejeitar o pressuposto compartilhado por todas as três. De uma maneira propriamente hegeliana, a distinção entre o nível zero do lugar vazio e seu preenchimento com um projeto positivo deve ser rejeitada por ser falsa: o nível zero nunca está “aí”, só pode ser vivenciado retroativamente, como a pressuposição de uma nova intervenção política, da imposição de uma nova ordem. A questão, portanto, é a questão hegeliana de uma ordem positiva cuja positividade dá corpo à negatividade, realizando-a.
Para o primeiro Lacan, tanto a ética da realização simbólica quanto a ética do confronto com a Coisa Real convocam para a postura heroica de levar as coisas ao limite para que deixemos para trás nosso cotidiano Verfallenheit, nossa existência caída (devemos “subjetivar nossa própria morte”, abandonando a riqueza de identificações imaginárias e atingindo com isso a posição limítrofe de um puro sujeito sem eu; devemos transgredir violentamente o próprio limite da ordem simbólica, entrando em um confronto heroico com o perigoso Além da Coisa Real). Ao renunciar a esse radicalismo, o último Lacan reconcebe o tratamento psicanalítico de uma maneira muito mais modesta: “É que, da verdade, não temos que saber tudo. Basta um bocado”4. Aqui, a própria ideia da psicanálise como uma radical “experiência de limite” é rejeitada: “Não se deve levar a análise longe demais. Quando o paciente acha que está feliz para viver, é o bastante”5. Como estamos longe da tentativa heroica de Antígona de atingir o “puro desejo”, entrando no domínio proibido da Ate! O tratamento psicanalítico não é mais uma transformação radical da subjetividade, mas um remendo que nem sequer deixa rastros de longo prazo. (Nessa linha, Lacan chama a atenção para o fato negligenciado de que, quando Freud se encontra de novo com o Homem dos Ratos, anos depois do tratamento, este último havia se esquecido totalmente de sua análise.) Essa abordagem mais modesta foi totalmente articulada na leitura de Jacques-Alain Miller sobre o último Lacan: em seus últimos seminários, Lacan deixa para trás a noção de “atravessar a fantasia” como momento conclusivo do processo psicanalítico; em seu lugar, introduz o gesto oposto de aceitar o obstáculo definitivo e não analisável chamado sinthoma. Se o sintoma é uma formação do inconsciente que deve ser dissolvida pela interpretação, o sinthoma é o “resto indivisível” que resiste à interpretação e à dissolução interpretativa, uma figura mínima ou nó que condensa o modo singular de gozo do sujeito. O objetivo da análise, portanto, é reformulado como “identificação com o sintoma”: em vez de dissolver seu sinthoma singular, o sujeito deve tomar consciência dele e aprender como usá-lo, como lidar com ele, em vez de permitir que o sinthoma o determine a sua revelia:
A experiência analítica nos permite nos reapropriar de nosso desejo. No melhor dos casos, podemos esperar chegar a “querer o que desejamos” e “desejar o que queremos”. Se a experiência é levada a sua conclusão, permite que nos identifiquemos com nosso “incurável”: não só nos encontrarmos nele, mas fazer uso dele.6
Por meio dessa identificação, a oposição entre significado e gozo também é superada em sua “síntese”, a do jouis-sense (sentido gozado, gozar o sentido): o sujeito não é reduzido a um gozo autista idiota, continua a falar, mas sua fala funciona agora como brincadeira com semblantes, como um blá-blá-blá vazio que gera o gozo. Essa seria a versão lacaniana do eppur si muove: mesmo depois de passarmos pelo imaginário simbólico e pelos semblantes simbólicos, o jogo continua na forma da circulação do jouis-sense, o sujeito não é dissolvido no abismo do Real.
Baseando-se nessa nova noção do momento final do processo analítico, Miller desenvolve uma versão simplificada da “crítica da razão instrumental”, estabelecendo uma ligação entre cultura democrática e racismo: nossa era privilegia a racionalidade científica universalizante, que reconhece apenas as declarações matematicamente quantificadas cujo valor de verdade não depende de uma posição subjetiva idiossincrática; nesse sentido, tanto o universalismo quanto a paixão democrática igualitária são resultados da hegemonia do discurso científico. Mas se estendermos a validade da razão científica para o campo social, os resultados são perigosos: a paixão universalizante nos incita a buscar um modo universal de gozo que será melhor para todos, de modo que quem resistir a ele é desqualificado como “bárbaro”: “Devido ao progresso da ciência, o racismo tem um futuro brilhante. Quanto mais discriminações refinadas a ciência nos dá, mais segregada se torna nossa sociedade”7. É por isso que a psicanálise é atacada hoje em dia: ela se concentra na singularidade de cada modo de gozo do sujeito, uma singularidade que resiste à universalização científica, bem como ao igualitarismo democrático: “o nivelamento democrático pode ser muito bom, mas não substitui o erotismo da exceção”8.
Devemos admitir que Miller esclareceu sem medo as implicações políticas dessa insistência na singularidade do modo de gozo do sujeito: a psicanálise “revela os ideais sociais em sua natureza de semblantes e, podemos acrescentar, de semblantes com respeito a um real que é o real do gozo. Essa é a posição cínica, que consiste em dizer que o gozo é a única coisa verdadeira”9. Isso significa que o psicanalista
ocupa a posição de um ironista, que toma cuidado para não intervir no meio político. Ele age para que os semblantes permaneçam em seus lugares, ao mesmo tempo que garante que os sujeitos sob seu cuidado não os tome como reais [...] de certo modo devemos ser capazes de continuar tomados por eles (enganados por eles). Lacan diria que “aqueles que não são tomados erram”: se o sujeito não age como se os semblantes fossem reais, se o sujeito não deixa intacta a eficácia dos semblantes, as coisas mudam para pior. Aqueles que pensam que todos os signos de poder são meros semblantes e confiam na arbitrariedade do discurso do mestre são maus: são ainda mais alienados.10
Já em relação à política, o psicanalista “não propõe projetos, não pode propô-los, só pode zombar dos projetos dos outros, o que limita o escopo de suas declarações. O ironista não tem um grande esquema, ele espera que o outro fale e depois provoca sua queda o mais rapidamente possível. [...] Digamos que essa é a sabedoria política, nada mais”11. O axioma dessa “sabedoria” é:
devemos proteger os semblantes do poder pela boa razão de que devemos ser capazes de continuar a gozar. A questão não é se vincular aos semblantes do poder existente, mas considerá-los necessários. “Isso define um cinismo à maneira de Voltaire, que deu a entender que Deus é invenção nossa, uma invenção necessária para manter as pessoas no devido decoro”. A sociedade é mantida em união somente pelos semblantes, “o que significa: não há sociedade sem repressão, sem identificação e, sobretudo, sem rotina. A rotina é essencial”.12
O resultado, portanto, é um tipo de conservadorismo cínico liberal: para manter a estabilidade, é preciso respeitar e seguir rotinas estabelecidas por uma escolha que é
sempre arbitrária e autoritária. “Não há progressivismo que se sustente”, mas sim um tipo particular de hedonismo chamado “liberalismo do gozo”. É preciso mantermos intacta a rotina da cité, suas leis e tradições, e aceitar que certo obscurantismo é necessário para manter a ordem social. “Há perguntas que não deveriam ser feitas. Se virarmos a tartaruga social de barriga para cima, nunca conseguiremos colocá-la de novo sobre as próprias patas”.13
Contra a ideia cínica hedonista de Miller de um sujeito que, apesar de admitir a necessidade dos semblantes simbólicos (ideais, Significantes-Mestre, sem os quais qualquer sociedade se desintegraria), relaciona-se com eles a distância, ciente de que são semblantes e que o único Real é o da jouissance corporal, devemos enfatizar que esse posicionamento do “goze e deixe gozar” só seria possível em uma nova ordem comunista que abrisse o campo para idiossincrasias autênticas:
uma Utopia de desajustados e esquisitos, na qual a repressão pela uniformidade e pela conformidade é removida, e os seres humanos crescem selvagens como plantas em estado de natureza [...], não mais agrilhoados pelos cerceios de uma sociabilidade agora opressora, [eles] desabrocham em neuróticos, compulsivos, obsessivos, paranoicos e esquizofrênicos, todos aqueles que nossa sociedade considera doentes, mas que, em um mundo de verdadeira liberdade, podem construir a flora e a fauna da própria “natureza humana”.14
Como vimos, é óbvio que Miller critica a padronização do gozo demandada pelo mercado para vender mercadorias, mas sua objeção permanece no nível da crítica cultural padrão; além do mais, ele ignora as condições sociossimbólicas para o bom desenvolvimento dessas idiossincrasias. Como observamos anteriormente, o capitalismo é marcado por uma contradição entre o individualismo ideológico (a interpelação dos indivíduos enquanto sujeitos livres para seguir seus desejos singulares) e as pressões niveladoras do mercado, impondo modos patronizados de gozo como condição da mercadorização do consumo de massa (ao mesmo tempo que somos encorajados a nos dedicar a nossas idiossincrasias, a mídia nos bombardeia com ideais e paradigmas de como fazer isso). Nesse sentido, o comunismo não é mais uma “socialização” nivelada por baixo, que restringe as idiossincrasias individuais, mas uma reconstrução que cria espaço para o livre desenvolvimento. Encontramos traços disso até mesmo nas utopias literárias e hollywoodianas de um espaço social subtraído da mercadorização, desde as casas dos romances de Dickens nas quais reside um bando de excêntricos até o louco casarão em Do mundo nada se leva, de Frank Capra, entre cujos habitantes estão Essie Carmichael (que faz doces por hobby e sonha ser bailarina), Paul Sycamore (que fabrica fogos de artifício no porão), sr. DePina (que passou por lá oito anos antes para falar com Paul e nunca mais foi embora), Ed Carmichael (estampador amador que imprime tudo que lhe parece bom, desde cardápios para a família até pequenas citações que ele coloca nas caixas de doce de Essie) e Boris Kolenkhov (um russo bastante preocupado com a política mundial; ele é teimoso e costuma declarar aos quatro ventos que a coisa “está fedendo”).
Em um nível mais teórico, devemos problematizar a oposição nominalista um tanto tosca de Miller (e, se aceitarmos sua interpretação, do último Lacan) entre a singularidade do Real da jouissance e o invólucro dos semblantes simbólicos. O que se perde aqui é a grandiosa constatação do Seminário XX: mais, ainda, de Lacan: a condição da própria jouissance é, de certo modo, a de um semblante dobrado, um semblante sem semblante. A jouissance não existe em si mesma, simplesmente persiste como um resto ou produto do processo simbólico, de seus antagonismos e inconsistências imanentes; em outras palavras, os semblantes simbólicos não são semblantes com respeito a um Real-em-si firme e substancial, esse Real é (como o próprio Lacan formulou) discernível apenas através dos impasses da simbolização.
Dessa perspectiva, impõe-se uma interpretação totalmente diferente do les non-dupes errent de Lacan. Se seguimos a leitura de Miller, baseada na oposição entre os semblantes simbólicos e o Real do gozo, les non-dupes errent equivale à velha visão cínica de que, apesar de nossos valores, ideais, regras etc. serem apenas semblantes, não deveríamos destruí-los, mas agir como se fossem reais para evitar que o tecido social se desintegre. No entanto, de uma perspectiva propriamente lacaniana, les non-dupes errent significa quase o oposto: a verdadeira ilusão consiste não em tomar os semblantes simbólicos como reais, mas em substancializar o próprio Real, tomar o Real como substancial em si e reduzir o simbólico a uma mera tessitura de semblantes. Em outras palavras, quem erra são precisamente os cínicos que desconsideram a tessitura simbólica como mero semblante e não enxergam sua eficácia, o modo como o simbólico afeta o Real, o modo como podemos intervir no Real por meio do simbólico. Para começar, a ideologia não consiste em levar a sério a rede de semblantes simbólicos que circunda o núcleo duro da jouissance; em um nível mais fundamental, a ideologia é a rejeição cínica desses semblantes como “meros semblantes” com respeito ao Real da jouissance.
Agora devemos ir até o fim e aplicar essa lógica também à questão do crime primordial que fundamenta o poder – Joseph de Maistre é um dos que formularam com clareza esse axioma altamente anti-iluminista: “Existem leis misteriosas que não é bom divulgar, que deveriam ser cobertas por um silêncio religioso e reverenciadas como um mistério”15. E ele esclarece qual mistério tem em mente: o mistério do sacrifício, da eficácia do sacrifício – como pode um Deus infinitamente bom exigir sacrifícios de sangue, que esses sacrifícios só possam ser realizados por substituição (sacrificar animais, em vez de seres humanos criminosos) e que o sacrifício mais eficiente seja aquele em que o inocente se oferece voluntariamente para derramar o próprio sangue pelos culpados? Não admira que o livreto de Maistre seja estranhamente presciente de René Girard e seu tema das “coisas que se escondem desde o princípio do mundo”. Aqui, no entanto, devemos resistir ao falso fascínio: no fundo, o que a lei esconde é que não há nada a esconder, não há nenhum mistério terrificante que a sustente (mesmo que o mistério seja o de um terrível crime fundador ou outra forma de Mal radical), a lei é fundamentada apenas em sua própria tautologia.
A análise crítica mais radical do “mistério do sacrifício” como categoria ideológica fundamental é fornecida, na verdade, por Jean-Pierre Dupuy. Por mais que o tema “oficial” de A marca do sagrado, de Dupuy16, seja a ligação entre o sacrifício e o sagrado, seu verdadeiro foco é o mistério definitivo das chamadas ciências sociais ou humanas, das origens do que Lacan chama de o “grande Outro”, o que Hegel chamou de “exteriorização” (Entäusserung), o que Marx chamou de “alienação”, e – por que não? – o que Friedrich von Hayek chamou de “autotranscendência”: como pode surgir, da interação dos indivíduos, a aparência de uma “ordem objetiva” que não pode ser reduzida a essa interação, mas é vivenciada pelos indivíduos envolvidos como um agente substancial que determina suas vidas? É muito fácil “desmascarar” essa “substância”, mostrar como, por meio de uma gênese fenomenológica, ela gradualmente se torna “reificada” e sedimentada; o problema é que o pressuposto dessa substância espectral ou virtual, de certa forma, é consubstancial com a existência humana – aqueles que não conseguem se relacionar com ela como tal, que a subjetivam de modo direto, são chamados de psicóticos.
O grande avanço teórico de Dupuy é a ligação desse surgimento do “grande Outro” com a lógica complexa do sacrifício constitutivo da dimensão do sagrado, ou seja, com o advento da distinção entre o sagrado e o profano: o grande Outro, o agente transcendental que estabelece os limites de nossa atividade, é sustentado pelo sacrifício. O terceiro elo dessa cadeia é a hierarquia: a função máxima do sacrifício é legitimar e representar uma ordem hierárquica (que só funciona quando apoiada por uma figura do grande Outro transcendental). É aqui que acontece a primeira virada propriamente dialética na linha de argumentação de Dupuy: tomando como base o Homo Hierarchicus, de Louis Dumont17, ele explica que a hierarquia implica não só uma ordem hierárquica, mas também seu circuito ou reversão imanente: é verdade que o espaço social é dividido em níveis hierárquicos superiores e inferiores, mas no nível inferior, o inferior é superior ao superior. Um exemplo disso é a relação entre Igreja e Estado na cristandade: em princípio, é claro, a Igreja está acima do Estado; no entanto, como deixaram claro os pensadores desde Agostinho até Hegel, dentro da ordem secular do Estado, o Estado está acima da Igreja (em outras palavras, a Igreja enquanto instituição social deveria ser subordinada ao Estado); ao contrário, quando a Igreja também quer dominar diretamente como um poder secular, é inevitável que ela se torne corrupta por dentro, reduzindo-se a apenas mais um poder secular que usa seu ensinamento religioso como ideologia para justificar seu domínio secular18.
O próximo passo de Dupuy, ainda mais crucial, é formular essa virada na lógica da hierarquia em termos de autorrelação negativa entre o universal e o particular, entre o Todo e suas partes, ou seja, de um processo no decorrer do qual o universal se encontra entre suas espécies na forma de “determinação opositiva”. Voltando ao nosso exemplo: a Igreja é a unidade abrangente de toda a vida humana, representa sua mais alta autoridade e confere a suas partes um lugar apropriado na grande ordem hierárquica do universo; no entanto, vê a si mesma como um elemento subordinado do poder terreno do Estado, que em princípio é subordinado a ela: a Igreja, enquanto instituição social, é protegida pelas leis do Estado e tem de obedecê-las. Na medida em que os níveis superior e inferior também se relacionam aqui como Bem e Mal (o domínio do bem divino versus a esfera terrena das lutas de poder, os interesses egoístas, a busca do prazer etc.), podemos dizer que, por meio desse circuito ou virada imanente para a hierarquia, o Bem “superior” domina, controla e usa o Mal “inferior”, mesmo que superficialmente (para um olhar restrito pela perspectiva terrena) pareça que a religião, com sua pretensão a ocupar um lugar “superior”, seja apenas uma legitimação ideológica dos interesses “inferiores” (por exemplo, no fundo a Igreja só legitima as relações socialmente hierárquicas), ou que mexa os pauzinhos por baixo do pano, enquanto poder oculto que permite e usa o Mal pelo Bem maior. Quase somos tentados a usar aqui o termo “sobredeterminação”: embora seja o poder secular que desempenhe imediatamente o papel determinante, o papel em si é sobredeterminado pelo Todo religioso/sagrado19. Como devemos interpretar esse entrelaçamento complexo e autorrelativo de “superior” e “inferior”? Há duas alternativas principais, que correspondem perfeitamente à oposição entre idealismo e materialismo:
(1) a matriz teológica (pseudo-)hegeliana tradicional de contenção do phármakon: o Todo superior oniabrangente permite o Mal inferior, mas contém-no, fazendo com que sirva a um objetivo superior. Existem muitas figuras dessa matriz: a “Astúcia da Razão”(pseudo-)hegeliana (a Razão é a unidade de si e das paixões particulares egoístas e mobiliza estas últimas para atingir seu objetivo secreto de racionalidade universal); o processo histórico de Marx, em que a violência serve ao progresso; a “mão invisível” do mercado, que usa o egoísmo individual para o bem comum etc.;
(2) a noção mais radical (e verdadeiramente hegeliana) do Mal que se distingue de si mesmo ao exteriorizar-se em uma figura transcendente do Bem. Dessa perspectiva, longe de considerar o Mal abarcado como um momento subordinado, a diferença entre Bem e Mal é inerente ao Mal, o Bem nada mais é que o Mal universalizado, o próprio Mal é a unidade de si e do Bem. O Mal controla-se ou contém-se gerando um espectro do Bem transcendente; no entanto, ele só pode fazer isso suplantando seu modo “ordinário” de Mal em um Mal infinitizado ou absolutizado. É por isso que a autocontenção do Mal pela postulação de um poder transcendente que o limita sempre pode explodir; é por isso que Hegel tem de admitir um excesso de negatividade que sempre ameaça perturbar a ordem racional. Todo o debate a respeito da “reversão materialista” de Hegel, da tensão entre o Hegel “materialista” e o Hegel “idealista”, é despropositado se não for fundamentado precisamente nessa questão das duas maneiras opostas e conflitantes de interpretar a autorrelação negativa da universalidade.
Essa inversão autorrefletida da hierarquia é o que distingue a Razão do Entendimento: enquanto o ideal de Entendimento é uma hierarquia simples e claramente articulada, a Razão o suplementa com uma inversão por conta da qual, como afirma Dupuy, no nível inferior de uma hierarquia o inferior é superior ao superior. Como vimos, os sacerdotes (ou filósofos) são superiores ao poder secular brutal, mas, no domínio do poder, são subordinados a ele – a lacuna que permite essa reversão é fundamental para o funcionamento do poder, e é por isso que o sonho platônico de unificar os dois aspectos na figura do filósofo-rei (realizada apenas com Stalin) tem de fracassar de maneira miserável20. A mesma questão pode ser colocada nos termos da metáfora do Mal como uma mancha no quadro: se, na teleologia tradicional, o Mal é uma mancha legitimada pela harmonia geral, que contribui para ela, então, de uma perspectiva materialista, o próprio Bem é uma auto-organização ou autolimitação das manchas, resultado de um limite, uma “diferença mínima”, no campo do Mal. É por isso que os momentos de crise são tão perigosos – neles, o anverso obscuro do Bem transcendente, o “lado negro de Deus”, a violência que sustenta a própria contenção da violência, aparece como tal: “Acreditamos que o bem governa o mal, seu ‘oposto’, mas agora parece que é o mal que governa a si próprio, assumindo uma distância de si mesmo, colocando-se fora de si; portanto, o nível superior, ‘autoexteriorizado’, aparece como bem”21. O argumento de Dupuy é que o sagrado, quanto a seu conteúdo, é o mesmo que o terrível ou o Mal; a diferença entre eles é puramente formal ou estrutural – o que torna “sagrado” o sagrado é seu caráter exorbitante, que o transforma em uma limitação do mal “ordinário”. Para percebermos isso, não deveríamos nos concentrar apenas nas proibições e obrigações religiosas, mas deveríamos ter em mente também os rituais praticados pela religião e a contradição, já observada por Hegel, entre proibições e rituais: “Em geral, o ritual consiste em encenar a violação das [...] proibições e violações”22. O sagrado nada mais é que nossa própria violência, mas “expelida, exteriorizada, hipostasiada”23. O sacrifício sagrado para os deuses é o mesmo que um ato de assassinato – o que o torna sagrado é o fato de limitar ou conter a violência, inclusive os assassinatos, na vida comum. Nos momentos em que o sagrado entra em crise, essa distinção se desfaz: não há exceção sagrada, o sacrifício é percebido como simples assassinato – mas isso significa também que não existe nada, nenhum limite externo, para conter nossa violência ordinária.
Nisto reside o dilema ético que a cristandade tenta resolver: como conter a violência sem a exceção sacrificial, sem um limite externo? Seguindo René Girard, Dupuy mostra que a cristandade realiza o mesmo processo sacrificial, mas com um viés cognitivo crucialmente diferente: a história não é contada pelo coletivo que representa o sacrifício, mas pela vítima, do ponto de vista da vítima, cuja plena inocência é então afirmada. (Podemos identificar o primeiro passo rumo a essa reversão no Livro de Jó, em que a história é contada da perspectiva da vítima inocente da fúria divina.) Uma vez que a inocência da vítima sacrificial é conhecida, a eficácia de todo o mecanismo de transformar alguém em bode expiatório é destruída: os sacrifícios (mesmo os da magnitude de um holocausto) tornam-se hipócritas, inoperantes, falsos, mas nós também perdemos a contenção da violência representada pelo sacrifício: “Quanto à cristandade, ela não é uma moralidade, mas uma epistemologia: diz a verdade a respeito do sagrado e desse modo priva-o de seu poder criativo, para o melhor ou para o pior. Só os seres humanos decidem isso”24. Aí reside a ruptura histórico-mundial representada pela cristandade: agora sabemos, e não podemos mais fingir que não sabemos. Como vimos, o impacto desse conhecimento, do qual não podemos nos livrar depois que o temos, não é apenas libertador, mas é também profundamente ambíguo: ele priva a sociedade do papel estabilizador de transformar alguém em bode expiatório e assim abre espaço para uma violência não contida por nenhum limite mítico. É assim que Dupuy, com uma compreensão bastante sagaz, interpreta os escandalosos versículos de Mateus: “Não penseis que vim trazer a paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada” (Mateus 10,34). E a mesma lógica vale para as relações internacionais: longe de impedir conflitos violentos, a abolição dos Estados soberanos e o estabelecimento de um único poder ou Estado mundial abriria o campo para novas formas de violência dentro do “império mundial”, sem nenhum Estado soberano para impor limites: “Longe de garantir a paz eterna, o ideal cosmopolita seria, ao contrário, a condição favorável para uma violência sem limite”25.
O papel da contingência é fundamental aqui: uma vez que a eficácia do Outro transcendente é suspensa e o processo (de decisão) tem de ser confrontado em sua contingência, o problema do mundo pós-sagrado é que essa contingência não pode ser plenamente assumida e por isso tem de ser sustentada pelo que Lacan chamou de le peu du réel, um pedacinho do Real contingente que age como la réponse du réel, a “resposta do Real”. Hegel tinha plena consciência desse paradoxo quando opôs a antiga democracia à monarquia moderna: foi exatamente porque não tinham uma figura de pura subjetividade (um rei) no topo de seu edifício estatal que os gregos antigos tiveram de recorrer a práticas “supersticiosas” – como procurar sinais no voo dos pássaros ou nas entranhas dos animais – para guiar a pólis na tomada de decisões importantes. Estava claro para Hegel que o mundo moderno não pode dispensar o Real contingente e organizar a vida social apenas por escolhas e decisões baseadas em qualificações “objetivas” (a ilusão do que Lacan chamou de discurso da universidade): sempre há um aspecto do ritual envolvido na investidura de um título, mesmo que a concessão do título seja um resultado automático da satisfação de certos critérios “objetivos”. Por exemplo, uma análise semântica do que significa “passar em uma prova com as notas mais altas” não pode ser reduzida a “provar que o sujeito tem certas propriedades efetivas – conhecimento, habilidades etc.”; devemos acrescentar a tudo isso um ritual por meio do qual os resultados da prova são proclamados e a nota é atribuída e reconhecida. Como vimos anteriormente, sempre há uma distância, uma lacuna mínima, entre esses dois níveis: mesmo que eu tenha certeza absoluta de que respondi corretamente todas as questões, tem de haver algo contingente – um momento de surpresa, a sensação do inesperado – na divulgação dos resultados, e é por isso que, enquanto esperamos, não podemos fugir totalmente da ansiedade da expectativa. Tomemos como exemplo as eleições políticas: mesmo que o resultado seja conhecido por antecipação, a proclamação pública é prevista com entusiasmo – na verdade, para transformar algo em Destino, a contingência é necessária. É isso que, via de regra, os críticos dos procedimentos difundidos de “avaliação” não levam em consideração: o que torna a avaliação problemática não é o fato de reduzir sujeitos singulares com uma riqueza de experiências interiores a um conjunto de propriedades quantificáveis, mas o fato de tentar reduzir o ato simbólico da investidura (atribuir um título a um sujeito) a um procedimento totalmente fundamentado no conhecimento e na medição do que o sujeito em questão “realmente é”.
A violência ameaça explodir não quando há muita contingência no espaço social, mas quando se tenta eliminar essa contingência. É nesse nível que devemos procurar o que pode ser chamado, em termos um tanto insípidos, de função social da hierarquia? Aqui, Dupuy faz mais uma virada inesperada, concebendo a hierarquia como um dos quatro procedimentos (“dispositifs simbólicos”) cuja função é tornar a relação de superioridade não humilhante para os subordinados: a própria hierarquia26, desmistificação27, contingência28 e complexidade29. Ao contrário das aparências, esses mecanismos não contestam ou ameaçam a hierarquia, mas tornam-na palatável, pois “o que desencadeia o turbilhão da inveja é a ideia de que o outro merece sua boa sorte, e não a ideia oposta, que é a única que pode ser expressa às claras”30. A partir dessa premissa, Dupuy chega à conclusão de que seria um grande erro pensar que uma sociedade justa e que percebe a si mesma como justa estaria, por isso, livre de qualquer ressentimento – ao contrário, é precisamente em uma sociedade desse tipo que as pessoas que ocupam posições inferiores só encontram escape para seu orgulho ferido em rompantes violentos de ressentimento.
A objeção usual ao utilitarismo é que ele não pode realmente explicar o compromisso ético pleno e incondicional com o Bem: sua ética é apenas uma espécie de “pacto entre lobos”, em que os indivíduos obedecem regras éticas desde que convenham a seus interesses. A verdade é exatamente o oposto: o egoísmo ou a preocupação com o próprio bem-estar não são opostos ao Bem comum, pois as normas altruístas podem facilmente ser deduzidas das preocupações egoístas31. Universalismo versus comunitarismo, utilitarismo versus asserção das normas universais são falsas oposições, posto que as duas opções opostas têm os mesmos resultados. Os críticos conservadores (católicos e outros), que reclamam que na sociedade hedonista e egoísta de hoje os valores verdadeiros desapareceram, passam ao largo do problema. O verdadeiro oposto do amor-próprio egoísta não é o altruísmo ou a preocupação com o Bem comum, mas a inveja ou ressentimento, que me leva a agir contra meus próprios interesses: o mal surge quando prefiro o infortúnio do outro a minha fortuna, de modo que me disponho a sofrer apenas para ver o próximo sofrer ainda mais. Esse excesso de inveja está na base da famosa – mas não totalmente explorada – distinção que Rousseau faz entre egoísmo, amour-de-soi (o amor de si, que é natural) e o amour-propre, a pervertida preferência por si mesmo em detrimento dos outros, na qual uma pessoa se empenha não para atingir uma meta, mas para destruir o que lhe serve de obstáculo:
As paixões primitivas, que tendem diretamente a nossa felicidade, nos fazem lidar apenas com os objetos que se relacionam com elas e cujo princípio é apenas o amour-de-soi, são todas, em essência, amáveis e ternas; quando, entretanto, desviam-se de seus objetos por causa de obstáculos, ocupam-se mais com os obstáculos dos quais tentam se livrar do que com o objeto que tentam alcançar, elas mudam sua natureza e tornam-se irascíveis e odiosas. É desse modo que o amour-de-soi, um sentimento notável e absoluto, torna-se amour-propre, ou seja, um sentimento relativo, pelo qual nós nos comparamos, um sentimento que requer preferências, cujo deleite é puramente negativo e que não luta para encontrar satisfação no nosso bem-estar, mas somente no infortúnio dos outros.32
Uma pessoa má, portanto, não é egoísta, “pensando apenas nos próprios interesses”. O verdadeiro egoísta está ocupado demais cuidando do próprio bem para ter tempo de causar o infortúnio alheio. O vício primordial de uma pessoa má é exatamente o fato de se preocupar mais com os outros do que consigo mesma. Rousseau descreve um mecanismo libidinal preciso: a inversão que gera a transferência do investimento libidinal do objeto para o próprio obstáculo33. Eis por que o igualitarismo jamais deve ser aceito de maneira acrítica: a noção (e a prática) da justiça igualitária, na medida em que é sustentada pela inveja, baseia-se em uma inversão da típica renúncia realizada pelo benefício dos outros: “Estou pronto a renunciar a isso para que os outros não o tenham (também não sejam capazes de tê-lo)!”. Longe de se opor ao espírito do sacrifício, o Mal surge aqui como o próprio espírito do sacrifício, como uma disposição para ignorar o bem-estar de alguém – se, por meio de meu sacrifício, eu puder privar o Outro do gozo.
O verdadeiro Mal, portanto, age contra nossos próprios interesses – ou, nos termos de Badiou, o que interrompe a vida do “animal humano” egoísta utilitarista não é o encontro com a Ideia platônica eterna do Bem, mas o encontro com a figura do Mal – e, como argumentou Lacan em seu seminário sobre a ética da psicanálise, “o Bem é máscara do Mal”, o modo de o Mal ser renormalizado ou domesticado. Sendo assim, deveríamos inverter a noção de Mal em Badiou como secundária em relação ao Bem, como uma traição da fidelidade a um Evento, como uma falha do Bem: o Mal vem antes, na forma de uma intrusão brutal que perturba o fluxo de nossa vida animal.
Voltando a Dupuy: sua limitação é claramente discernível em sua rejeição da luta de classes como determinada por essa lógica da violência invejosa; para ele, luta de classes é o caso exemplar do que Rousseau chamou de amor-próprio pervertido, em que o sujeito se importa mais com a destruição do inimigo (que é percebido como obstáculo a minha felicidade) do que com a própria felicidade. A única saída de Dupuy é abandonar a lógica do vitimismo e aceitar as negociações entre todas as partes envolvidas, tratadas como iguais em sua dignidade:
A transformação dos conflitos entre as classes sociais, entre capital e trabalho, no decorrer do século XX, demonstra amplamente que esse caminho não é utópico. Passamos progressivamente da luta de classes para a coordenação social, a retórica do vitimismo foi substituída sobretudo pelas negociações salariais. De agora em diante, patrões e sindicatos se veem como parceiros com interesses a um só tempo divergentes e convergentes.34
Mas essa é realmente a única conclusão possível das premissas de Dupuy? Essa substituição da luta pela negociação também não se baseia em um fim mágico da inveja, que faz então um retorno surpreendente na forma de diferentes fundamentalismos?
Além disso, deparamos aqui com outra ambiguidade: não é que essa ausência de limites deva ser lida nos termos da alternativa padrão “ou a humanidade encontra uma maneira de se impor limites ou perece da própria violência incontida”. Se há uma lição a ser aprendida com a chamada experiência “totalitária” é que a tentação é exatamente o oposto: o perigo de impor, na ausência de qualquer limite divino, um novo pseudolimite, uma falsa transcendência em nome da qual eu ajo (do stalinismo ao fundamentalismo religioso). Até a ecologia funciona como ideologia no momento em que é evocada como um novo Limite: ela tem a chance de se converter na forma predominante de ideologia do capitalismo global, um novo ópio para as massas no lugar da religião em declínio35, adotando a função fundamental desta última, a de assumir uma autoridade inquestionável que pode impor limites. A lição que essa ecologia nos impõe constantemente é nossa finitude: não somos sujeitos cartesianos extraídos da realidade, mas seres finitos entranhados em uma biosfera que excede amplamente nossos horizontes. Nós tomamos emprestado do futuro quando exploramos os recursos naturais, portanto deveríamos tratar a Terra com respeito, como algo fundamentalmente Sagrado, algo que não deve ser de todo revelado, que deve permanecer para sempre um Mistério, uma força em que deveríamos aprender a confiar, não dominar.
Contra essas tentações, insistiríamos que o sine qua non de uma ecologia realmente radical é o uso público da razão (no sentido kantiano, em oposição ao “uso privado” restringido de antemão pelo Estado e outras instituições). Segundo uma reportagem da Associated Press, de 19 de maio de 2011, as autoridades chinesas admitiram que a hidrelétrica de Três Gargantas, que criou um reservatório de 660 quilômetros de extensão, o maior projeto hidroelétrico do mundo, provocou uma quantidade gigantesca de problemas ambientais, geológicos e econômicos. Hoje, até admitem que o reservatório cheio fez aumentar a frequência de terremotos. Entre os principais problemas estão a contaminação disseminada de lagos e afluentes do Yangtzé com cobre, zinco, chumbo e amônio. Além disso, como a barragem impediu o fluxo livre da água no Yangtzé, maior bacia hidrográfica da China, ela agravou a seca que atingiu a China no verão de 2011: as colheitas definharam e o baixo nível de água ao longo de muitos rios afetou as usinas hidrelétricas, aumentando mais a escassez de energia. Por fim, grande parte da indústria e da navegação interior depende do Yangtzé, mas a navegação está parada em alguns pontos a jusante da barragem por causa do baixo nível de água. Embora as autoridades tenham anunciado recentemente planos importantes para lidar com a situação, está claro que a maioria dos problemas foi causada por pressões oficiais, que obstruíram o “uso público da razão”: agora, ninguém pode dizer “nós não sabíamos”, pois os problemas foram todos previstos por grupos civis e cientistas independentes.
Mas o par uso público versus uso privado da razão não é acompanhado do que, em termos mais contemporâneos, poderíamos chamar de suspensão da eficácia simbólica (ou poder performativo) do uso público da razão? Kant não rejeita a fórmula-padrão de obediência – “Não pense, obedeça!” – com seu oposto “revolucionário” direto – “Não só obedeça (siga o que os outros lhe dizem), pense (por si mesmo)!”. Sua fórmula é: “Pense e obedeça!”, ou seja, pense publicamente (no livre uso da razão) e obedeça em privado (como parte do maquinário hierárquico do poder). Em suma, pensar livremente não legitima nenhuma ação minha – o máximo que posso fazer quando meu “uso público da razão” me leva a ver as fraquezas e as injustiças da ordem existente é reclamar reformas ao governante. Podemos dar um passo além e afirmar, como Chesterton, que a liberdade abstrata inconsciente de pensar (e duvidar) ativamente impede a liberdade efetiva:
Podemos dizer, de modo geral, que o pensamento livre é a melhor de todas as salvaguardas contra a liberdade. Controlada num estilo moderno, a emancipação da mente do escravo é a melhor maneira de impedir a emancipação desse escravo. Ensine-o a preocupar-se com a questão de querer ou não ser livre, e ele não se libertará.36
Mas subtrair o pensamento da ação, suspender sua eficácia, é uma coisa realmente tão clara e inequívoca? A estratégia secreta de Kant (intencional ou não) não é como o famoso truque usado nas batalhas judiciais, quando um advogado faz uma declaração diante do júri sabendo que o juiz achará inadmissível e pedirá que o júri “a ignore”? – o que, obviamente, é impossível, posto que o dano já foi feito. A suspensão do uso público da razão não é também uma subtração que abre espaço para uma nova prática social? É muito fácil ressaltar a óbvia diferença entre o uso público da razão em Kant e a consciência de classe revolucionária em Marx: o primeiro é neutro ou desengajado, a segunda é “parcial” e totalmente engajada. No entanto, a “posição proletária” pode ser definida precisamente como o ponto em que o uso público da razão torna-se prático-efetivo em si mesmo, sem regressar à “privacidade” do uso privado da razão, posto que a posição a partir da qual ele é exercido é a da “parte de nenhuma parte” do corpo social, seu excesso que representa diretamente a universalidade. O que acontece com o rebaixamento da teoria marxista pelo stalinismo ao status de subordinada do Estado-partido é exatamente a redução do uso público ao uso privado da razão.
Em alguns dos atuais círculos pagãos “pós-seculares” é moda afirmar a dimensão do Sagrado como um espaço em que cada religião habita, mas que é anterior à religião (pode haver o Sagrado sem a religião, mas não o contrário). (Às vezes, essa prioridade do Sagrado é dada ainda como uma virada antirreligiosa, como uma maneira de se permanecer agnóstico, embora engajado na profunda experiência espiritual.) Seguindo Dupuy, devemos inverter as questões: a ruptura radical introduzida pelo cristianismo consiste no fato de ele ser a primeira religião sem o sagrado, uma religião cujo único avanço é precisamente a desmistificação do Sagrado.
Mas qual posicionamento prático segue-se desse paradoxo da religião sem o sagrado? Há uma história judaica sobre um especialista do Talmude que era contra a pena de morte e, desconcertado pelo fato de a pena ter sido ordenada pelo próprio Deus, propôs uma solução prática maravilhosa: não subverter diretamente a injunção divina, o que seria blasfêmia, mas tratá-la como um lapso de Deus, um momento de loucura, e criar uma complexa rede de sub-regras e condições que, apesar de manter intacta a possibilidade da pena de morte, garante que ela jamais será efetivada37. A beleza desse procedimento é que ele inverte o procedimento comum de proibir algo em princípio (como a tortura), mas permitir ressalvas suficientes (“exceto em circunstâncias específicas extremas...”) para garantir que ela seja aplicada sempre que realmente se queira aplicá-la. Desse modo, temos: “Em princípio sim, mas na prática nunca”, ou: “Em princípio não, mas, quando circunstâncias excepcionais exigirem, sim”. Devemos notar a assimetria entre os dois casos: a proibição é muito mais forte quando se permite a tortura em princípio – no primeiro caso, o “sim” em princípio nunca tem a permissão de se realizar, ao passo que, no segundo caso, o “não” em princípio tem excepcionalmente a permissão para se realizar. Na medida em que o “Deus que nos incita a matar” é um dos nomes da Coisa apocalíptica, a estratégia do estudioso do Talmude é uma maneira de praticar o que Dupuy chama de “catastrofismo esclarecido”: aceitamos a catástrofe final – a obscenidade de pessoas matando seus próximos em nome da justiça – como inevitável, inscrita em nosso destino, e nos empenhamos para adiá-la ao máximo, quiçá indefinidamente. Vejamos como, nessa mesma linha, Dupuy resume as reflexões de Günther Anders a propósito de Hiroshima:
Naquele dia a história tornou-se “obsoleta”. A humanidade foi capaz de destruir a si mesma, e nada pode fazê-la perder essa “onipotência negativa”, nem mesmo um desarmamento mundial ou uma desnuclearização total do mundo. O apocalipse está inscrito como um destino em nosso futuro, e o melhor que podemos fazer é postergar o fato indefinidamente. Estamos em excesso. Em agosto de 1945, entramos na era do “congelamento” e da “segunda morte” de tudo o que existia: como o significado do passado depende dos atos futuros, a obsolescência do futuro, seu fim programado, não significa que o passado não tem mais nenhum significado, mas sim que nunca teve significado nenhum.38
É contra esse pano de fundo que devemos interpretar a noção paulina básica da vida em uma “época apocalíptica”, o “tempo do fim dos tempos”: a época apocalíptica é precisamente a época desse adiamento indefinido, a época do congelamento entre duas mortes: de certa forma, nós já estamos mortos, pois a catástrofe já está aqui, lançando sua sombra desde o futuro – depois de Hiroshima, não podemos mais jogar o jogo humanista simples e insistir que temos escolha (“Depende de nós seguirmos o caminho da autodestruição ou da cura gradual”); depois que a catástrofe aconteceu, nós perdemos a inocência desse posicionamento e podemos apenas (indefinidamente, talvez) adiar sua repetição39. É assim que, em mais um golpe hermenêutico, Dupuy interpreta as palavras céticas de Cristo contra os profetas da desgraça:
Ao sair do Templo, disse-lhe um dos seus discípulos: “Mestre, vê que pedras e que construções!”. Disse-lhe Jesus: “Vês estas grandes construções? Não ficará pedra sobre pedra que não seja demolida”.
Sentado no monte das Oliveiras, em frente ao Templo, Pedro, Tiago, João e André lhe perguntavam em particular: “Dize-nos: quando será isso e qual o sinal de que todas essas coisas estarão para acontecer?”.
Então Jesus começou a dizer-lhes: “Atenção para que ninguém vos engane. Muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu’, e enganarão a muitos. Quando ouvirdes falar de guerras e de rumores de guerras, não vos alarmeis: é preciso que aconteçam, mas ainda não é o fim. [...]
Então, se alguém vos disser: ‘Eis o Messias aqui!’ ou: ‘Ei-lo ali!’, não creiais. Hão de surgir falsos Messias e falsos profetas, os quais apresentarão sinais e prodígios para enganar, se possível, os eleitos. Quanto a vós, porém, ficai atentos. Eu vos predisse tudo”. (Marcos 13,1-23)
Esses versículos são formidáveis em sua inesperada sabedoria: eles não correspondem exatamente à posição do estudioso em Talmude que acabamos de mencionar? Sua mensagem é: “Sim, é claro, haverá uma catástrofe, mas observem com paciência, não acreditem, não sucumbam às deduções apressadas, não se entreguem ao prazer propriamente perverso de pensar: ‘É isso!’, em todas as suas formas diversas (o aquecimento global vai acabar conosco dentro de uma década; a biogenética significará o fim da existência humana; estamos caminhando para uma sociedade de controle digital total e assim por diante)”. Longe de nos atrair para um arrebatamento perverso e autodestrutivo como esse, adotar uma posição propriamente apocalíptica é – mais do que nunca – a única maneira de manter a cabeça fria. O que dá senso de urgência a essa necessidade de manter a sobriedade é o predomínio contemporâneo de uma ideologia cínica, que parece condenar toda crítica à irrelevância prática. A irracionalidade do racionalismo capitalista e a contraprodutividade de seu produtivismo acelerado são bem conhecidas e já foram analisadas em detalhe não só pelos autores da Escola de Frankfurt e por pensadores como Ivan Illich, mas também por diversos críticos da grandiosa onda crítico-ideológica que acompanhou os levantes da década de 1960. Quando o mesmo tema é ressuscitado hoje, em nossa época crítica, não é apenas para voltar ao passado, mas é antes para acrescentar um toque reflexivo crucial:
Novo e diferente nos dias atuais é exatamente o fato de que, há trinta anos, nós sabíamos que o conhecimento que já havíamos adquirido não era suficiente para que mudássemos nosso comportamento. Esse fato não é um detalhe menor, ele constitui um elemento fundamental do problema. Nas décadas de 1960 e 1970, era mais simples acreditar que outro mundo fosse possível. É por isso que esses anos continuam inspirando tanta nostalgia. Nessa época, ainda podíamos imaginar que alertas baseados na situação presente poderiam influenciar o futuro de maneira positiva. Hoje sabemos que o futuro não é o que era.40
Consiste nisto a lição básica do fracasso da tradicional Ideologie-Kritik: saber não é o bastante, podemos saber o que fazemos e, mesmo assim, ir em frente e fazer. O motivo é que tal conhecimento opera sob a condição de sua renegação fetichista: sabemos, mas não acreditamos realmente no que sabemos. Essa constatação levou Dupuy a propor uma solução radical: como só acreditamos quando a catástrofe realmente acontece (e nesse momento já é tarde demais para agir), temos de nos projetar no que acontece depois da catástrofe, conferir à catástrofe a realidade de algo que já aconteceu. Todos conhecemos a ação tática de dar um passo atrás para saltar adiante; Dupuy inverte esse procedimento: devemos saltar adiante, no que acontece depois da catástrofe, para sermos capazes de dar um passo para trás da beirada41. Em outras palavras, devemos assumir a catástrofe do nosso destino. Em nossa vida ordinária, corremos atrás de nossos objetivos individuais e ignoramos o “destino” do qual participamos: o catastrófico “ponto fixo” que surge como destino externo, embora sejamos nós que o criamos com nossa atividade. “O destino é essa exterioridade que não é exterior, posto que são os próprios agentes que o projetam fora do sistema: por essa razão, é apropriado falar de autoexteriorização e autotranscendência.”42
O nome (tomado de Foucault) que Giorgio Agamben dá ao que Dupuy chama de “autotranscendência da sociedade” é dispositif, e é impressionante como Agamben também o associou à questão do sagrado, embora, ao contrário de Dupuy, com ênfase no profano. Agamben salientou a ligação entre o dispositif de Foucault e a noção hegeliana de “positividade” como ordem social substancial imposta ao sujeito e experimentada por ele como destino externo, não como parte orgânica de si. Como tal, o dispositif é a matriz da governabilidade: é “aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito”43. A pressuposição ontológica dessa noção de dispositif é “uma geral e maciça divisão do existente em dois grandes grupos ou classes: de um lado, os seres viventes (ou as substâncias) e, de outro, os dispositivos em que estes são incessantemente capturados”44.
Há uma série de ecos complexos entre essa noção de dispositif, a noção de Althusser de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) e interpelação ideológica e a noção lacaniana de “grande Outro”: Foucault, Althusser e Lacan insistem na ambiguidade crucial do termo “sujeito” (como agente livre e sujeitado ao poder) – o sujeito enquanto agente livre surge por sua sujeição ao dispositif/AIE/“grande Outro”. Como afirma Agamben, a “dessubjetivação” (“alienação”) e a subjetivação são dois lados da mesma moeda: é a própria dessubjetivação de um ser vivente, sua subordinação a um dispositif, que o subjetiva. Quando Althusser diz que a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos, “indivíduos” aqui significa os seres viventes sobre os quais age um dispositif de AIE, impondo sobre eles uma rede de micropráticas, ao passo que o “sujeito” não é uma categoria do ser vivente, da substância, mas o resultado da captura desses seres viventes em um dispositif de AIE (ou em uma ordem simbólica)45. Mas Althusser falha em sua insistência desconcertante e deslocada na “materialidade” dos AIE: a forma primordial de dispositif, o “grande Outro” da instituição simbólica, é precisamente imaterial, uma ordem virtual – como tal, é correlativa do sujeito enquanto distinto do indivíduo na qualidade de ser vivente. Nem o sujeito nem o dispositif do grande Outro são categorias do ser substancial. Podemos traduzir com perfeição essas coordenadas na matriz lacaniana do discurso da universidade: o homo sacer, o sujeito reduzido à vida nua, é, nos termos da teoria lacaniana dos discursos, o objeto a, o “outro” do discurso da universidade influenciado pelo dispositif ou conhecimento. Poderíamos então dizer que Agamben inverte Lacan: para ele, o discurso da universidade é a verdade do discurso do mestre? O “produto” do discurso da universidade é $, o sujeito – o dispositif (a rede do S2, do conhecimento) age na vida nua do indivíduo, gerando a partir dela o sujeito. Hoje, no entanto, assistimos a uma mudança radical no funcionamento desse mecanismo – Agamben define nossa era pós-política ou biopolítica contemporânea como uma sociedade em que múltiplos dispositifs dessubjetivam os indivíduos sem produzir uma nova subjetividade, sem subjetivá-los:
Daqui [surge] o eclipse da política, que pressupunha sujeitos e identidades reais (o movimento operário, a burguesia etc.), e o triunfo da oikonomia, isto é, de uma pura atividade de governo que visa somente à sua própria reprodução. Direita e esquerda, que se alternam hoje na gestão do poder, têm por isso bem pouco o que fazer com o contexto político do qual os termos provêm e nomeiam simplesmente os dois polos – aquele que aposta sem escrúpulos na dessubjetivação e aquele que gostaria, ao contrário, de recobri-la com a máscara hipócrita do bom cidadão democrático – de uma mesma máquina governamental.46
A “biopolítica” designa essa constelação em que os dispositifs não geram mais sujeitos (“interpelam os indivíduos em sujeitos”), mas simplesmente administram e regulam a vida nua dos indivíduos – na biopolítica, todos somos potencialmente reduzidos a homini sacri47. O resultado dessa redução, no entanto, envolve uma virada inesperada – Agamben chama a atenção para o fato de que o inofensivo cidadão dessubjetivado das democracias pós-industriais, que de modo algum se opõe aos dispositifs hegemônicos, mas executa com zelo todas as suas injunções e, portanto, é controlado por elas até mesmo nos detalhes mais íntimos de sua vida, “é considerado pelo poder – talvez exatamente por isso – um terrorista virtual”48: “Aos olhos da autoridade – e, talvez, esta tenha razão – nada se assemelha melhor ao terrorista do que o homem comum”49. Quanto mais o homem comum é controlado por câmeras, pelo escaneamento digital, pela coleta de dados, mais aparece como um X inescrutável, ingovernável, que se subtrai dos dispositifs quanto mais obedece a eles com docilidade. Não é que ele represente uma ameaça à máquina do governo, resistindo ativamente a ela: sua própria passividade suspende a eficácia performativa dos dispositifs, fazendo sua máquina “girar em falso”, transformando-a em uma autoparódia que não serve para nada. Como isso pode acontecer? Qual é exatamente o status desse X? Para eliminar a profunda ambiguidade da explicação de Agamben, devemos aplicar aqui a distinção lacaniana entre sujeito ($) e subjetivação: o X que surge quando um dispositif dessubjetiva totalmente um indivíduo é o do próprio sujeito, o vazio imperscrutável que precede ontologicamente a subjetivação (o advento da “vida interior” da experiência de si).
Agamben formula o problema em termos de profanação: a noção de dispositif tem origem na teologia e está ligada à oikonomia grega, que, no início da cristandade, dizia respeito não só a Deus em si, mas à relação de Deus com o mundo (dos seres humanos), ao modo como Deus administra seu reino. (Na teologia hegeliana radical, essa distinção desaparece: Deus não é nada além da “economia” de sua relação com o mundo.) Um dispositif, portanto, é sempre minimamente sagrado: quando um ser vivente é capturado em um dispositif, ele é desapropriado por definição. As práticas por meio das quais ele participa de um dispositif e é regulado por este são separadas de seu “uso comum” pelos seres viventes: ao ser capturado em um dispositif, o ser vivente serve ao sagrado grande Outro. É aí que entra a profanação como contraestratégia: “O problema da profanação dos dispositivos – isto é, da restituição ao uso comum daquilo que foi capturado e separado [dos seres viventes] nesses – é, por isso, tanto mais urgente”50.
Mas e se não houver esse “uso comum” anterior aos dispositifs? E se a função primordial do dispositif for justamente organizar e administrar o “uso comum”? Nesse caso, a profanação não é a restituição de um uso comum, mas, ao contrário, sua destituição – na profanação, uma prática ideológica é descontextualizada, desfuncionalizada, gira em falso. Dito de outra forma, se a atitude fundadora que estabelece um universo simbólico é o gesto vazio, como esse gesto pode ser esvaziado? Como seu conteúdo pode ser neutralizado? Pela repetição, que forma o próprio núcleo do que Agamben chama de profanação: na oposição entre sagrado e secular, a profanação do secular não é equivalente à secularização; a profanação põe o texto ou a prática sagrada em um contexto diferente, retirando-a de seu contexto e funcionamento próprios. Como tal, a profanação continua no domínio da não utilidade, representando apenas uma não utilidade “pervertida”. Profanar uma missa é realizar uma missa negra, e não estudar a missa como objeto da psicologia da religião. Em O processo, de Kafka, o prolongado e estranho debate entre Joseph K. e o padre a respeito da Lei é profundamente profano – é o padre que, em sua leitura da parábola da porta da lei, é o verdadeiro agente da profanação. Podemos ainda dizer que Kafka é o maior profanador da Lei judaica. Ou, a propósito do tema de Heidegger e da sexualidade, a secularização seria interpretar o estilo de escrever de Heidegger como uma fetichização alienada da linguagem, e a profanação seria reproduzir nesse estilo fenômenos como práticas sexuais que Heidegger jamais teria abordado. Como tal, a profanação – não a secularização – é o verdadeiro ato materialista de destruir o Sagrado: a secularização sempre se baseia em sua fundação sagrada renegada, que serve como exceção ou estrutura formal. O protestantismo realiza essa cisão entre o Sagrado e o secular em sua forma mais radical: ele seculariza o mundo material, mas mantém a religião à parte, e introduz o princípio religioso formal na própria economia capitalista51.
Aqui, no entanto, talvez devêssemos complementar Agamben: a precedência paradoxal da transgressão sobre o que ela viola nos permite lançar uma luz crítica sobre seu conceito de profanação. Se concebermos a profanação como gesto de extração do próprio uso e contexto do mundo vivido, essa extração não seria também a própria definição de sacralização? Tomemos a poesia: ela não “nasce” quando um sintagma ou grupo de palavras é “descontextualizado” e capturado em um processo autônomo de insistência repetitiva? Quando digo “venha, venha cá”, em vez de “venha cá”, isso não seria o mínimo de poetização? Por conseguinte, existe um nível zero em que a profanação não pode ser distinguida da sacralização. Desse modo, estamos mais uma vez diante do mesmo paradoxo da classificação deslocada que encontramos na análise que Émile Benveniste faz dos verbos passivos, ativos e médios. Assim como em Benveniste a oposição original não se dá entre passivo e ativo, na qual o médio intervém como terceiro mediador ou momento neutro, mas sim entre ativo e médio, aqui a oposição original se dá entre o secular-cotidiano-útil e o Profano, e o “Sagrado” representa uma mudança secundária ou mistificação do Profano. O surgimento do universo humano ou simbólico está no gesto mínimo de uma “descontextualização profanatória” de um sinal ou gesto, e a “sacralização” vem depois como uma tentativa de gentrificar, de domesticar esse excesso, esse impacto arrebatador do profano. Em japonês, bakku-shan significa “uma moça que vista de trás parece bonita, mas vista de frente não é” – a relação entre profano e sagrado não seria mais ou menos assim? Uma coisa que parece (é vivenciada como) sagrada quando é vista de trás, de uma distância apropriada, é na verdade um excesso profano. Para parafrasear Rilke, o Sagrado é o último véu que cobre o horror do Profano. Então qual seria a profanação da cristandade? E se o próprio Cristo – o aspecto cômico da encarnação de Deus em um mortal ridículo – já é a profanação da divindade? E se, em contraste com outras religiões, que só podem ser profanadas por homens, na cristandade Deus profana a si mesmo?
Para que essa solução funcione, temos de abandonar os fundamentos do que podemos chamar de ideologia de Agamben: seu dualismo elementar entre seres viventes e dispositifs. Os seres viventes não existem, os indivíduos humanos são (podem ser) capturados em dispositifs justamente porque não são apenas seres viventes, porque sua própria substância vital é descarrilada ou distorcida (obviamente, o nome freudiano para essa distorção é pulsão de morte). É por isso que o ser humano não é um “animal racional”, não é definido por uma dimensão ou qualidade que se acrescente à animalidade substancial: para que tal acréscimo aconteça, o espaço para ela, ou seja, sua possibilidade, tem de ser aberta primeiro por uma distorção da própria animalidade. O nome lacaniano para essa distorção ou excesso é objeto a (mais-gozar), e, como Lacan demonstrou de maneira convincente, até mesmo Hegel deixa a desejar nesse aspecto, pois não considera essa dimensão do mais-gozar na luta pelo reconhecimento e seu resultado.
De acordo com a visão comum (propagada por Kojève, entre outros), o que está em jogo na luta hegeliana entre o mestre (futuro) e o escravo é a separação do sujeito de seu corpo: por sua prontidão a sacrificar seu corpo biológico (vida), o sujeito afirma a vida do espírito como superior a sua vida biológica e independente dela. Essa outra dimensão (superior) é encarnada na linguagem, que, de certa forma, é a negatividade da morte transposta para uma nova ordem positiva: a palavra é assassina da coisa que designa, ela extrai o conceito da coisa em sua independência da coisa empírica. Do ponto de vista freudiano-lacaniano, no entanto, essa descrição da passagem do corpo biológico para sua simbolização, para a vida espiritual da linguagem, perde algo crucial, isto é, como a simbolização do corpo gera retroativamente um órgão fantasmático inexistente que representa o que é perdido no processo de simbolização:
Essa lâmina, esse órgão, que tem por característica não existir, mas que não é por isso menos um órgão [...] é a libido. É a libido, enquanto puro instinto de vida, quer dizer, de vida imortal, de vida irrepreensível, de vida que não precisa, ela, de nenhum órgão, de vida simplificada e indestrutível. É o que é justamente subtraído ao ser vivo pelo fato de ele ser submetido ao ciclo da reprodução sexuada. E é disso aí que são os representantes, os equivalentes, todas as formas que se podem enumerar do objeto a.52
Um tema comum da descrição fenomenológica do ser humano é a existência encarnada, a experiência do corpo como próprio, como corpo vivido, não apenas como objeto, uma res extensa, no mundo – o enigma do que significa não só ter um corpo, mas “ser” (em) um corpo vivente. O século XX efetuou uma destruição dupla dessa experiência imediata do corpo orgânico: de um lado, a redução biogenética do corpo a um mecanismo regulado por códigos genéticos e, nesse sentido, a um mecanismo “artificial”; de outro, o corpo fantasmático, um corpo estruturado não de acordo com a biologia, mas de acordo com investimentos libidinais, que é o tema da psicanálise, desde os “objetos parciais” (órgãos autônomos sem corpos, como um olho ou uma mão que sobrevivem por conta própria, como exemplo perfeito da pulsão – não o objeto de uma pulsão, mas a pulsão como um objeto [impossível]) a seu protótipo mítico, a lamela. Em alguns desenhos de Francis Bacon, encontramos um corpo (em geral nu) acompanhado de uma forma informe, estranha, escura, como uma mancha, que parece sair do corpo e quase não se liga a ele, como uma espécie de protuberância estranha que o corpo jamais pode recuperar ou reintegrar de todo e, por isso, desestabiliza de maneira irremediável o Todo orgânico do corpo – é isso que Lacan visava com sua noção de lamela (ou homelete).
Esse excesso para sempre perdido da vida pura ou indestrutível – na forma do objeto a, o objeto-causa do desejo – também é o que “eterniza” o desejo humano, tornando-o infinitamente plástico e insatisfazível (em contraste com as necessidades instintivas). Portanto, é errado dizer que, como não trabalha, o mestre permanece preso no nível natural: os produtos do escravo satisfazem não só as necessidades naturais do mestre, mas suas necessidades transformadas em um desejo infinito por luxos excessivos, em disputa com os luxos de outros mestres – o escravo proporciona ao mestre iguarias raras, mobílias luxuosas, joias caras etc. É por isso que o mestre se torna escravo de seu escravo: ele depende do escravo não para a satisfação de suas necessidades naturais, mas para a satisfação de suas necessidades artificiais altamente cultivadas.
Esse excesso aparece em toda a amplitude da cultura, desde a alta arte até o mais baixo consumismo. A fórmula-padrão do minimalismo artístico é “menos é mais”: se nos abstivermos de acrescentar qualquer ornamento superficial, se formos ainda além e nos recusarmos a preencher as lacunas ou truncar o que poderia ter sido a forma pronta de nosso produto, essa mesma perda gerará um significado adicional e criará uma espécie de profundidade. De maneira surpreendente (ou talvez não), encontramos uma lógica similar do “mais por menos” no universo consumista das mercadorias, em que o “menos” é o proverbial centavo subtraído do preço cheio (4,99 e não 5), e o “mais” é o não menos proverbial excedente que levamos de graça, conhecido de todos que compram creme dental: um quarto da embalagem é em geral de cor diferente, e letras garrafais anunciam: “Grátis um terço a mais”. A armadilha, obviamente, é que o produto “cheio” que determina o padrão para esse mais ou menos é fictício: nunca encontramos um creme dental que não tenha o excedente ao preço cheio de $5 – um claro sinal de que a realidade desse “mais por menos” é “menos por mais”. De uma perspectiva freudiana, é fácil perceber como esse paradoxo do “mais por menos” é fundamentado na reversão reflexiva da renúncia do prazer em uma nova fonte de prazer. A fórmula lacaniana para essa reversão é uma fração do pequeno a (mais-gozar) sobre o menos phi (castração): um gozo gerado pela própria renúncia ao gozo e, nesse sentido, um “menos” que é “mais”.
Isso nos leva ao cerne do debate entre Judith Butler e Catherine Malabou sobre a relação entre Hegel e Foucault (recordemos que Agamben é foucaultiano anti-hegeliano)53. Segundo Foucault, Hegel assume a total suprassunção do corpo em sua simbolização: o sujeito surge por meio da – e equivale a – sua sujeição (submissão) à ordem simbólica, suas leis e regulações; em outras palavras, para Hegel, o sujeito livre e autônomo é o sujeito integrado na ordem simbólica. O que Hegel não vê é que esse processo de simbolização, de regulação submissa, gera o que ele “reprime” e regula. Devemos lembrar aqui a tese de Foucault, desenvolvida em História da sexualidade, sobre como o discurso médico-pedagógico que disciplina a sexualidade produz o excesso que ele tenta domar (“sexo”), um processo já iniciado na Antiguidade tardia, quando as descrições detalhadas que os cristãos faziam de todas as possíveis tentações sexuais geravam retroativamente o que eles tentavam suprimir. A proliferação dos prazeres, portanto, é o anverso do poder que os regula: o próprio poder gera resistência a si mesmo, o excesso que jamais pode controlar – as reações de um corpo sexualizado a sua sujeição às normas disciplinares são imprevisíveis.
Foucault permanece ambíguo quanto a esse aspecto: a ênfase que lhe dá em Vigiar e punir e no primeiro volume de História da sexualidade é diferente (às vezes de maneira quase imperceptível) no segundo e terceiro volumes desta última: embora, em ambos os casos, o poder e a resistência estejam entrelaçados e sustentem um ao outro, as primeiras obras enfatizam como a resistência é apropriada de antemão pelo poder, de modo que os mecanismos de poder dominam todo o campo e somos sujeitos do poder exatamente quando resistimos a ele; depois, no entanto, a ênfase muda para como o poder gera o excesso de resistência que jamais pode controlar – longe de manipular a resistência a si mesmo, o poder torna-se, portanto, incapaz de controlar seus próprios efeitos. Essa oscilação revela que todo o campo da oposição entre poder e resistência é falso e tem de ser abandonado. Mas como? A própria Butler mostra o caminho: como boa hegeliana, ela acrescenta uma virada reflexiva fundamental que resulta em uma espécie de resposta hegeliana a Foucault: os mecanismos de repressão e regulação não geram apenas o excesso que tentam reprimir; esses próprios mecanismos tornam-se libidinalmente investidos, gerando uma fonte perversa de mais-gozar próprio. Em suma, a repressão de um desejo transforma-se necessariamente no desejo pela repressão, a renúncia de um prazer transforma-se no prazer pela renúncia, a regulação dos prazeres transforma-se no prazer pela regulação. É isso que Foucault não leva em conta: como, por exemplo, a própria prática disciplinar da regulação dos prazeres é infectada pelo prazer, como nos rituais obsessivos ou masoquistas. O verdadeiro excesso (de prazer), portanto, não é o excesso gerado pelas práticas disciplinares, mas as próprias práticas, que literalmente surgem como excesso do que regulam54.
Não surpreende que o uso político padrão do reconhecimento como característica fundamental do pensamento social de Hegel seja limitado às interpretações liberais de Hegel – Jameson já havia notado que o foco permanente no reconhecimento mútuo nessas leituras “revela ainda um terceiro Hegel, ao lado do marxista e do fascista, a saber, um Hegel ‘democrático’ ou habermasiano”55: o Hegel ontológica e politicamente “deflacionado”, o Hegel que celebra a ordem e a lei burguesa como ponto mais alto do desenvolvimento humano56. Nisso reside o denominador comum das leituras liberais do pensamento político de Hegel (e não só o pensamento político): o reconhecimento recíproco é o maior objetivo e, ao mesmo tempo, o mínimo pressuposto da subjetividade, a condição imanente do próprio fato da consciência-de-si – “Sou reconhecido, logo sou”. Sou um sujeito livre apenas na medida em que sou reconhecido pelos outros como livre por outros sujeitos livres (sujeitos reconhecidos por mim como livres). No entanto, talvez tenha chegado a hora de problematizar o papel central desempenhado por essa noção: ela é estritamente correlata à leitura “deflacionária” de Hegel como um filósofo que articula as condições normativas da vida livre57.
O reconhecimento mútuo é, obviamente, o resultado de um longo processo que começa com a luta de morte entre mestre (futuro) e escravo. Nessa luta, a tensão entre ligação e separação (de nosso corpo, ou da realidade material em geral) repete-se, mas em um nível superior que provoca sua unidade dialética: a própria ligação torna-se a forma da aparência de seu oposto. Assim, precisamos romper a falsa oscilação entre ligação e separação: a separação é primordial, constitutiva da subjetividade, o sujeito nunca “é” diretamente seu corpo; precisamos apenas acrescentar que essa mesma separação (do corpo) só pode ser realizada por meio de uma ligação excessiva com um “órgão sem corpo”. Portanto, o paradoxo é que o nível zero da negatividade não é um gesto negativo, mas uma afirmação excessiva: ao emperrar em um objeto parcial, ao afirmá-lo repetidas vezes, o sujeito destaca-se do próprio corpo, entra em uma relação negativa para com seu corpo.
De que maneira eu mostro ao outro minha separação com relação a minha vida biológica particular? Ligando-me de modo incondicional a um pedacinho totalmente trivial e indiferente do Real, pelo qual estou disposto a pôr tudo em risco, inclusive minha própria vida – a própria falta de valor do objeto pelo qual estou pronto a arriscar tudo deixa claro que o que está em jogo não é ele, mas eu mesmo, minha liberdade. É contra esse pano de fundo do sujeito enquanto infinidade efetiva que devemos interpretar a famosa passagem em que Hegel descreve como, ao experimentar o medo da morte durante o confronto com o mestre, o escravo tem um vislumbre do poder infinito da negatividade; por essa experiência, ele é forçado a aceitar a falta de valor de seu Si particular:
Essa consciência sentiu a angústia, não por isto ou aquilo, não por este ou aquele instante, mas sim através de sua essência toda, pois sentiu o medo da morte, do senhor absoluto. Aí se dissolveu interiormente; em si mesma tremeu em sua totalidade; e tudo que havia de fixo, nela vacilou.
Entretanto, esse movimento universal puro, o fluidificar-se absoluto de todo o subsistir, é a essência simples da consciência-de-si, a negatividade absoluta, o puro ser-para-si, que assim é nessa consciência.58
A objeção um tanto entediante à luta de morte entre o futuro mestre e o futuro escravo é que Hegel trapaceia, ignorando o impasse da solução radical óbvia: os dois realmente lutam até a morte, mas como o resultado poria um fim no processo dialético, a luta não é realizada sem restrições, pressupõe certo pacto simbólico implícito de que o resultado não será a morte. Nos dias anteriores à Batalha de Ilipa, uma das principais batalhas da Segunda Guerra Púnica, ocorrida em 206 a.C., um estranho ritual surgiu entre os dois exércitos, os cartaginenses comandados por Asdrúbal, irmão de Aníbal, e os romanos comandados por Cipião. Certa manhã, depois de organizar as tropas em formação de batalha,
os dois exércitos pararam e se observaram. Apesar de toda a confiança inicial, nenhum dos comandantes queria apressar seus homens e forçar a batalha. Depois de algumas horas, quando o sol começou a se pôr, Asdrúbal ordenou a seus homens que retornassem ao acampamento. Ao observar a cena, Cipião fez o mesmo.
Nos dias que se seguiram, isso se tornou praticamente uma rotina. Tarde da noite, o que por si só sugeria não haver mais entusiasmo para a batalha, Asdrúbal levava seu exército até a margem da campina. Então os romanos deslocavam suas tropas e ambos os exércitos se posicionavam na mesma formação do primeiro dia. Os exércitos paravam e esperavam até o fim do dia, e os cartaginenses primeiro e os romanos em seguida retornavam a seus respectivos acampamentos.59
Só depois de vários dias, Cipião resolveu provocar a batalha. O único benefício dessa dissimulação foi uma vantagem moral secundária: Asdrúbal podia dizer que impunha o desafio ao inimigo todos os dias, enquanto Cipião podia afirmar que só recuava depois que o inimigo recuava. Esse exemplo é um belo lembrete de que a guerra envolve não apenas o conflito físico, mas também um complexo ritual simbólico de dissimulação.
Butler propõe uma interpretação bizarra e contraintuitiva (mas estranhamente convincente) desse momento conclusivo da dialética entre mestre e escravo: pelo medo da morte que quebranta as fundações de todo o seu ser, o escravo assume sua finitude, torna-se ciente de si mesmo como um ser vulnerável e frágil. Mas Butler não enfatiza o anverso positivo dessa frágil finitude: a força negativa que ameaça o indivíduo e abala as fundações da sua vida não é, em si, “a essência simples da consciência-de-si, a negatividade absoluta, o puro ser-para-si”; portanto, ela não é externa ao sujeito (como a figura do mestre diante dele, ameaçando-o de fora), mas seu próprio núcleo, o cerne de seu ser. É dessa maneira que a consciência de nossa finitude reverte-se imediatamente na experiência de nossa verdadeira infinidade, que é a negatividade autorrelativa.
Essa dimensão da infinidade não está presente em Foucault, e é por isso que Malabou está correta em criticá-lo (e implicitamente Butler), dizendo que o sujeito foucaultiano engajado no “cuidado de si” continua preso em um circuito fechado de afecção-de-si. Precisamente na medida em que tem consciência dessa frágil finitude e está voltado para o futuro – ou seja, na medida em que é ligado não àquilo que é, mas ao vazio ou abertura do que pode se tornar e, portanto, engajado na permanente autocrítica, o questionamento contínuo e “corajoso” de suas formas dadas –, o sujeito foucaultiano continua preso a si mesmo, referindo-se a sua atividade (auto)crítica como ponto final de referência. Esse posicionamento permanece no nível da oposição “abstrata” entre sujeito e substância, afirmando o predomínio do sujeito ligado a si mesmo em contraposição a todo conteúdo objetivo. Mais especificamente, devemos abandonar o paradigma inteiro da “resistência a um dispositif”: a ideia de que, embora determine a rede de atividade do Si, o dispositif abre espaço ao mesmo tempo para a “resistência” do sujeito, para sua destruição (parcial e marginal) e seu deslocamento do dispositif. A tarefa da política emancipatória está em outro lugar: não em elaborar uma proliferação de estratégias de como “resistir” ao dispositif predominante a partir de posições subjetivas marginais, mas em pensar nas modalidades de uma possível ruptura radical no próprio dispositif predominante. Em todo o discurso sobre “sítios de resistência”, tendemos a nos esquecer de que, por mais difícil que seja imaginar hoje, de tempos em tempos os dispositifs a que resistimos mudam de fato.
O debate entre Butler e Malabou, não obstante, é sustentado pela premissa comum segundo a qual, “embora não exista nenhum corpo que seria meu sem o corpo do outro, também não existe nenhuma des-apropriação definitiva possível do meu corpo, não mais que uma apropriação definitiva do corpo do outro”60. Essa premissa não é confirmada por duas produções recentes de Hollywood, cada uma delas representando e testando o extremo de um sujeito que se transfigura completamente em outro corpo, mas com resultados abertos? Em Avatar, a transferência é bem-sucedida e o herói consegue transferir a alma do seu corpo para outro corpo (aborígene); já em Substitutos (2009, baseado no romance gráfico de 2005-2006 e dirigido por Jonathan Mostow), os seres humanos se rebelam contra seus avatares e retornam a seus próprios corpos.
Avatar deveria ser comparado a filmes como Uma cilada para Roger Rabbit ou Matrix, em que o herói fica preso entre nossa realidade ordinária e um universo imaginado – os desenhos animados em Roger Rabbit, a realidade digital em Matrix e a realidade comum, mas digitalmente melhorada do planeta aborígene em Avatar. O que devemos ter em mente, portanto, é que, embora a narrativa de Avatar supostamente aconteça em uma única realidade “real”, nós estamos lidando – no nível da economia simbólica subjacente – com duas realidades: o mundo ordinário do colonialismo imperialista e (não a realidade miserável dos aborígenes explorados, mas) o mundo fantástico dos aborígenes que vivem em ligação incestuosa com a natureza. O fim do filme tem de ser interpretado, portanto, como uma solução desesperada, em que o herói migra da realidade real para o mundo fantástico – como se, em Matrix, Neo decidisse mais uma vez mergulhar totalmente na Matrix. Um contraste mais imediato com Avatar é Substitutos, que se passa em 2017, quando as pessoas vivem em isolamento quase total, raramente saindo do conforto e da segurança de suas casas, graças a corpos robóticos controlados a distância remotamente que servem de “substitutos” e são criados como versões aprimoradas de seus controladores humanos. Como as pessoas estão sempre seguras, e qualquer dano ao substituto não é sentido pelo dono, o mundo é pacífico, livre do medo, da dor e do crime. Previsivelmente, a história trata da alienação e da falta de autenticidade nesse mundo: no fim do filme, todos os substitutos são desconectados e as pessoas são forçadas a usar o próprio corpo novamente. O contraste entre Substitutos e Avatar não poderia ser mais evidente.
Isso não significa, no entanto, que devemos rejeitar Avatar em favor de uma aceitação mais “autêntica” e heroica de nossa realidade comum, como o único mundo real que existe. Mesmo que a realidade seja “mais real” que a fantasia, a fantasia ainda é necessária para manter sua consistência: se subtrairmos da realidade a fantasia, ou o quadro fantasmático, a própria realidade perde sua consistência e se desfaz. A lição, por conseguinte, é que a opção entre “aceitar a realidade ou escolher a fantasia” é falsa: o que Lacan chama de la traversée du fantasme [travessia da fantasia] não tem nada a ver com dispensar as ilusões e aceitar a realidade como ela é. É por isso que, quando nos mostram alguém fazendo isso – renunciando a todas as ilusões e abraçando a realidade miserável –, devemos nos empenhar em identificar os mínimos contornos fantasmáticos dessa realidade. Se realmente quisermos mudar nossa realidade social ou escapar dela, a primeira coisa que devemos fazer é mudar as fantasias feitas sob medida para nos encaixarmos nessa realidade; como o herói de Avatar não faz isso, sua posição subjetiva é o que, a propósito de Sade, Lacan chamou de le dupe de son fantasme [tapeado pela fantasia].
Como evitar ou “negar” as limitações do universo existente não é um problema empírico difícil, mas talvez seja mais difícil imaginá-lo ou conceitualizá-lo. Em meados de abril de 2011, a mídia noticiou que o governo chinês proibira a exibição na TV e nos cinemas de filmes que tratassem de viagens no tempo e histórias alternativas, argumentando que histórias assim introduzem frivolidade em questões históricas sérias – até mesmo a fuga ficcional para uma realidade alternativa é considerada perigosa demais. Nós, no Ocidente, não precisamos de uma proibição tão explícita: como mostra a disposição do que é considerado possível ou impossível, a ideologia exerce poder material suficiente para evitar que narrativas alternativas sejam levadas minimamente a sério.
Esse poder material torna-se mais palpável exatamente onde menos esperaríamos: em situações críticas, quando a narrativa ideológica hegemônica está sendo solapada. Hoje vivemos uma situação desse tipo. Segundo Hegel, a repetição tem um papel preciso na história: quando uma coisa acontece apenas uma vez, ela pode ser considerada mero acidente, algo que poderia ter sido evitado com um melhor manejo da situação; mas quando o mesmo evento se repete, trata-se de um sinal de que estamos lidando com uma necessidade histórica mais profunda. Quando Napoleão perdeu pela primeira vez em 1813, pareceu apenas má sorte; quando perdeu pela segunda vez em Waterloo, ficou claro que sua era havia chegado ao fim. E não podemos dizer o mesmo da crise financeira? Quando atingiu o mercado pela primeira vez em setembro de 2008, parecia um acidente que poderia ser corrigido com uma regulação melhor etc.; agora que os sinais de um colapso financeiro estão se juntando, está claro que estamos lidando com uma necessidade estrutural.
De que maneira a ideologia hegemônica nos prepara para reagir a uma situação como essa? Há uma anedota (apócrifa, é claro) sobre uma troca de telegramas entre os quartéis-generais da Alemanha e da Áustria no meio da Primeira Guerra Mundial: os alemães enviaram a mensagem: “Aqui, do nosso lado do front, a situação é séria, mas não catastrófica”, ao que os austríacos responderam: “Aqui, a situação é catastrófica, mas não séria”. Não é dessa maneira que muitos de nós, pelo menos no Ocidente, lidamos cada vez mais com nossa situação global? Todos temos conhecimento da catástrofe iminente, mas de certo modo não podemos levá-la a sério. Na psicanálise, essa atitude é chamada de cisão fetichista: “Sei muito bem, mas... (não acredito realmente)”, e é uma clara indicação da força material da ideologia que nos faz recusar o que vemos e conhecemos61.
Então de onde vem essa cisão? Vejamos a descrição de Ed Ayres:
Estamos sendo confrontados com algo tão completamente fora de nossa experiência coletiva que nem chegamos a vê-lo de fato, mesmo quando a evidência é muito clara. Para nós, esse “algo” é um ataque relâmpago de enormes alterações biológicas e físicas no mundo que tem nos sustentado.62
Para lidar com essa ameaça, nossa ideologia coletiva está mobilizando mecanismos de dissimulação e autoengano, até e inclusive a vontade direta de ignorância: “um padrão geral de comportamento entre as sociedades humanas ameaçadas é tornar-se mais tacanha, em vez de mais focada na crise, à medida que desmoronam”63. Catastrófico, mas não sério...
Se essa renegação é claramente discernível no modo como a maioria se refere às ameaças ambientais, podemos discernir o mesmo mecanismo na reação predominante à perspectiva de um novo colapso financeiro: é difícil aceitar que o longo período de progresso e estabilidade pós-Segunda Guerra Mundial no mundo ocidental desenvolvido está chegando ao fim. O que torna a situação especialmente volátil é o fato de a renegação ser complementada por seu oposto, as reações excessivas de pânico: no frágil domínio das especulações financeiras, os rumores podem inflar ou destruir o valor das empresas – às vezes até de toda a economia – em questão de dias. Como a economia capitalista tem de tomar emprestado do futuro, acumulando débitos que jamais serão pagos, a confiança é um ingrediente fundamental do sistema – mas essa confiança é inerentemente paradoxal e “irracional”: confio que posso ter acesso a minha conta bancária a qualquer hora, mas se isso pode ser válido para mim como indivíduo, não pode ser válido para a maioria (se a maioria testar de fato o sistema e tentar retirar seu dinheiro, o sistema entrará em colapso). Portanto, as crises são renegadas e ao mesmo tempo desencadeadas do nada, sem causas “reais”. Nessa linha de raciocínio, será que podemos imaginar as consequências econômicas e sociais do colapso do dólar ou do euro?
Os motins nos subúrbios ingleses em 2011 foram uma reação de nível zero à crise – mas por que os manifestantes foram levados a esse tipo de violência? Zygmunt Bauman estava no caminho certo quando caracterizou os motins como atos de “consumidores anômalos e desqualificados”: mais do que tudo, os motins foram um carnaval consumista de destruição, um desejo consumista violentamente encenado, quando é incapaz de se realizar da maneira “apropriada” (pela compra). Sendo assim, é claro, eles também continham um caráter de protesto genuíno, uma espécie de resposta irônica à ideologia consumista com a qual somos bombardeados diariamente: “Você nos estimula a consumir, mas ao mesmo tempo nos priva da possibilidade de consumir de maneira adequada; então aqui estamos nós, consumindo da única maneira que nos é permitida!”. De certo modo, os motins representam a verdade da “sociedade pós-ideológica”, exibem de maneira dolorosamente palpável a força material da ideologia. O problema dos motins não é a violência em si, mas o fato de essa violência não ser verdadeiramente assertiva: em termos nietzschianos, ela é reativa, não ativa; é fúria impotente e desespero disfarçado de força; e inveja mascarada de carnaval triunfante.
O perigo é que a religião preencha o vazio e restabeleça o significado. Ou seja, os tumultos precisam ser situados na série que formam com outro tipo de violência, aquela que a maioria liberal percebe como ameaça a nosso estilo de vida: ataques terroristas e atentados suicidas. Nos dois casos, a violência e a contraviolência estão presas em um círculo vicioso mortal, cada qual gerando as mesmas forças que tentam combater. Em ambos, trata-se do cego passage à l’acte, em que a violência é uma admissão implícita da impotência. A diferença é que, em contraste com os ataques nas banlieues em Paris ou no Reino Unido, que foram um protesto “de nível zero”, uma explosão violenta que não queria nada, os ataques terroristas ocorrem em nome daquele Significado absoluto dado pela religião. Então como devemos passar dessas reações violentas a uma nova organização da totalidade da vida social? Para fazer isso, precisamos de um órgão forte, capaz de tomar decisões rápidas e realizá-las com a aridez necessária. Quem pode dar o próximo passo? Surge aqui uma nova tétrade: povo, movimento, partido e líder.
O povo ainda está aqui, mas não mais como o Sujeito mítico soberano, cuja vontade deve ser realizada. Hegel estava certo em sua crítica ao poder democrático do povo: “o povo” deve ser reconcebido como o pano de fundo passivo do processo político – a maioria é sempre e por definição passiva, não há garantia de que esteja correta, e o máximo que pode fazer é reconhecer-se e aceitar-se em um projeto imposto pelos agentes políticos. Como tal, o papel do povo é, no fundo, negativo: as “eleições livres” (ou referendos) servem para controlar os movimentos partidários e impedir o que Badiou chama de forçage (imposição) brutal e destrutiva da Verdade na ordem positiva do Ser regulada por opiniões. É isso que a democracia eleitoral pode fazer – o passo positivo para uma nova ordem está além de seu alcance.
Em contraste com qualquer elevação do povo ordinário autêntico, devemos insistir em que seu processo de transformação em agentes políticos é irredutivelmente violento. O filme Eles vivem (1988), de John Carpenter, obra-prima negligenciada da esquerda hollywoodiana, conta a história de John Nada, trabalhador sem-teto que encontra trabalho em uma construção em Los Angeles, mas não tem lugar para ficar. Um dos trabalhadores, Frank Armitage, leva-o para passar a noite em um bairro pobre da cidade. Naquela noite, enquanto conhecia a região, ele notou um comportamento estranho em uma pequena igreja do outro lado da rua. Ao investigar no dia seguinte, encontra por acaso diversas caixas cheias de óculos escuros escondidas em um compartimento secreto em uma parede. Quando coloca um dos óculos, percebe que um outdoor agora exibe simplesmente a palavra OBEDEÇA, enquanto outro incita o espectador a CASAR-SE E REPRODUZIR-SE. Ele também percebe que as notas de dinheiro trazem a frase ESTE É SEU DEUS. O que temos aqui é uma bela e ingênua mise-en-scène da crítica da ideologia: através dos óculos crítico-ideológicos, vemos diretamente o Significante-Mestre por trás da cadeia de conhecimento – aprendemos a ver a ditadura na democracia, e vê-la dói. Aprendemos com o filme que usar os óculos crítico-ideológicos por muito tempo dá ao espectador uma grande dor de cabeça: é doloroso demais ser privado do mais-gozar ideológico. Quando Nada tenta convencer o amigo Armitage a colocar os óculos, este resiste, dando início a uma briga digna de Clube da luta (outra obra-prima da esquerda hollywoodiana). A cena começa com Nada dizendo a Armitage: “Estou lhe dando uma escolha. Ou você coloca os óculos ou pode começar a comer aquela lata de lixo”. (A briga acontece entre latas de lixo reviradas.) A briga, que se prolonga por insuportáveis oito minutos, com pausas ocasionais para uma troca de sorrisos amigáveis, é em si totalmente “irracional” – por que Armitage simplesmente não concorda em colocar os óculos para satisfazer a vontade do amigo? A única explicação é que ele sabe que seu amigo quer que ele veja algo perigoso, que acesse um conhecimento proibido que estragará totalmente a paz relativa de sua vida cotidiana. A violência encenada aqui é positiva, uma condição de libertação – a lição é que a libertação da ideologia não é um ato espontâneo, um ato de descoberta de nosso verdadeiro Si. O dado principal aqui é que, para enxergar a verdadeira natureza das coisas, nós precisamos dos óculos: não que tenhamos de tirar os óculos ideológicos para ver “a realidade como ela é”, mas sim que estamos “naturalmente” na ideologia, nossa visão natural é ideológica. Como uma mulher se torna um sujeito feminino? Somente ao renunciar às migalhas do gozo oferecido pelo discurso patriarcal, desde a confiança nos homens para ter “proteção” até os prazeres proporcionados pela “galantaria” masculina (pagar a conta do restaurante, abrir portas etc.).
Quando as pessoas tentam “se organizar” em movimentos, o máximo que conseguem criar é um espaço igualitário para o debate em que fala quem é escolhido ao acaso, todos têm o mesmo tempo (curto) para falar etc. Mas esses movimentos de protesto se mostram inadequados no momento em que é preciso agir ou impor uma nova ordem – nesse ponto, é preciso algo como um Partido. Mesmo em um movimento de protesto radical, as pessoas não sabem o que querem, demandam que um novo Mestre lhes diga o que querem. Mas se as pessoas não sabem, como o Partido pode saber? Voltamos ao tema-padrão do Partido que possui insight histórico e lidera o povo?
Quem nos dá uma pista a respeito disso é Brecht. No que para muitos é a canção mais problemática de A decisão, a celebração do Partido, ele propõe algo muito mais único e preciso do que pareceria à primeira vista. Brecht parece simplesmente elevar o Partido à encarnação do Conhecimento Absoluto, um agente histórico com um discernimento completo e perfeito sobre a situação histórica, um “sujeito suposto saber”, se é que existe um: “Você tem dois olhos, mas o Partido tem mil!”. No entanto, uma leitura atenta da canção deixa claro que alguma coisa diferente está acontecendo: em sua reprimenda aos jovens comunistas, o refrão diz que o Partido não sabe tudo, os jovens comunistas podem estar corretos em discordar da linha partidária predominante: “Mostre-nos o caminho que devemos tomar/ que nós o tomaremos assim como você,/ mas não tome o caminho correto sem nós./ Sem nós, esse caminho/ é o mais falso dos caminhos./ Não se separe de nós”. Isso significa que a autoridade do Partido não é a do conhecimento positivo determinado, mas a da forma do conhecimento, de um novo tipo de conhecimento ligado a um sujeito político coletivo. O ponto crucial no qual insiste o refrão é simplesmente que, se o jovem camarada pensa que está certo, deveria lutar por sua posição dentro da forma coletiva do Partido, não fora dela – dito de maneira um tanto patética, se ele está certo, então o Partido precisa dele mais do que de seus outros membros. O Partido exige que o sujeito fundamente seu “Eu” no “Nós” da identidade coletiva do Partido: lute conosco, lute por nós, lute por sua verdade contra a linha partidária, só não faça isso sozinho, fora do Partido.
Os movimentos como agentes de politização são um fenômeno da “democracia qualitativa”: até mesmo nos protestos em massa na praça Tahrir, no Cairo, as pessoas que se reuniam lá sempre foram uma minoria – a razão por que “representavam o povo” era determinada por seu papel mobilizador na dinâmica política. De maneira homóloga, o papel organizador do Partido não tem nada a ver com seu acesso a um conhecimento privilegiado: um Partido não é uma figura do sujeito suposto saber lacaniano, mas um campo aberto de conhecimento em que ocorrem “todos os erros possíveis” (Lenin). Contudo, mesmo esse papel mobilizador dos movimentos e partidos não é suficiente: a lacuna que separa o próprio povo das formas organizadas de ação política tem de ser superadas de alguma maneira – mas como? Não pela proximidade entre as pessoas e essas formas organizadas; é preciso algo mais, e o paradoxo é que esse “mais” é um Líder, a unidade entre Partido e povo. Não devemos temer tirar todas as consequências desse insight, endossando a lição da justificação hegeliana da monarquia e, de passagem, matando cruelmente muitas vacas sagradas liberais. O problema do líder stalinista não foi um excessivo “culto da personalidade”, mas o oposto: ele não foi um Mestre satisfatório, mas continuou fazendo parte do Conhecimento do partido burocrático, o exemplar sujeito suposto saber.
Para levar esse passo “além do possível”, na constelação de hoje, devemos mudar a ênfase de nossa leitura de O capital, de Marx, para “a centralidade estrutural fundamental do desemprego no texto do próprio O capital”: “o desemprego é estruturalmente inseparável da dinâmica do acúmulo e da expansão que constituiu a natureza em si do capitalismo como tal”64. No que podemos considerar o ponto extremo da “unidade dos opostos” na esfera da economia, é o próprio sucesso do capitalismo (alta produtividade etc.) que causa o desemprego (torna inútil uma quantidade cada vez maior de trabalhadores), e o que deveria ser uma bênção (necessidade de menos trabalho árduo) torna-se uma maldição. Assim, o mercado mundial é, com respeito a sua dinâmica imanente, “um espaço em que todos já foram trabalhadores produtivos e o trabalho começou a se valorizar fora do sistema”65. Ou seja, no processo contínuo da globalização capitalista, a categoria dos desempregados adquiriu uma nova qualidade, além da noção clássica de “exército industrial de reserva”: deveríamos considerar, nos termos da categoria do desemprego, “as populações maciças ao redor do mundo que foram, por assim dizer, ‘desligadas da história’, excluídas deliberadamente dos projetos modernizadores do capitalismo do Primeiro Mundo e rejeitadas como casos perdidos ou terminais”66: os chamados “Estados falidos” (Congo, Somália), vítimas da fome ou de desastres ambientais, presos aos pseudoarcaicos “ódios étnicos”, alvos da filantropia e ONGs ou (em geral o mesmo povo) da “guerra ao terror”. A categoria dos desempregados, portanto, deveria ser expandida para abranger a amplitude da população global, desde os desempregados temporários, passando pelos não mais empregáveis e permanentemente desempregados, até as pessoas que vivem nos cortiços e outros tipos de guetos (isto é, aqueles que foram rejeitados pelo próprio Marx como “lumpemproletariado”), e, por fim, áreas, populações ou Estados inteiros excluídos do processo capitalista global, como aqueles espaços vazios dos mapas antigos. Essa expansão do círculo dos “desempregados” não nos levaria de volta de Marx a Hegel: a “populaça” está de volta, surgindo no próprio cerne das lutas emancipatórias? Em outras palavras, tal recategorização muda todo o “mapeamento cognitivo” da situação: o pano de fundo inerte da História torna-se um agente potencial da luta emancipatória. Recordamos aqui a caracterização depreciativa que Marx faz dos camponeses franceses em O 18 de brumário:
a grande massa da nação francesa se compõe por simples adição de grandezas homônimas, como batatas dentro de um saco constituem um saco de batatas. [...] Mas na medida em que existe um vínculo apenas local entre os parceleiros, na medida em que a identidade dos seus interesses não gera entre eles nenhum fator comum, nenhuma união nacional e nenhuma organização política, eles não constituem classe nenhuma. Por conseguinte, são incapazes de fazer valer os interesses da sua classe no seu próprio nome, seja por meio de um Parlamento, seja por meio de uma convenção. Eles não são capazes de representar a si mesmos, necessitando, portanto, ser representados.67
Nas grandes mobilizações revolucionárias de camponeses no século XX (da China à Bolívia), esses “sacos de batatas” excluídos do processo histórico começaram ativamente a representar a si mesmos. No entanto, devemos acrescentar três ressalvas ao desenvolvimento que Jameson faz dessa ideia. Em primeiro lugar, devemos corrigir o quadrado semiótico proposto por ele, cujos termos são: (1) os trabalhadores, (2) o exército de reserva dos (temporariamente) desempregados, (3) os (permanentemente) inempregáveis e (4) os “anteriormente desempregados”68, mas agora inempregáveis. Como quarto termo não seria mais apropriado o ilegalmente empregado, desde os que trabalham no mercado negro e nas favelas até as diferentes formas de escravidão? Em segundo lugar, Jameson não enfatiza como esses “excluídos”, não obstante, são muitas vezes incluídos no mercado mundial. Tomemos o caso do Congo hoje: é fácil discernir os contornos do capitalismo global por trás da fachada das “paixões étnicas primitivas”, que mais uma vez explodem no “coração das trevas” da África. Depois da queda de Mobutu, o Congo deixou de existir como Estado unificado; sua parte oriental, em particular, é uma multiplicidade de territórios governados por chefes guerreiros que controlam seu pedaço de terra com um exército que, via de regra, inclui crianças drogadas, e cada um desses chefes possui ligações comerciais com uma corporação ou companhia estrangeira que explora a riqueza (principalmente) mineral da região. Essa organização atende aos dois lados: a companhia ganha o direito de minerar sem pagar impostos etc., e o chefe guerreiro ganha dinheiro... A ironia é que muitos desses minérios são usados em produtos de alta tecnologia, como laptops e telefones celulares. Em suma, devemos esquecer tudo o que sabemos sobre os costumes selvagens da população local; basta subtrairmos da equação as companhias estrangeiras de alta tecnologia para que todo o edifício da guerra étnica, alimentado por antigas paixões, venha abaixo.
A terceira categoria de Jameson, a dos “permanentemente inempregáveis”, deveria ser complementada por seu oposto, aqueles que foram educados sem nenhuma chance de encontrar emprego: toda uma geração de estudantes tem pouca chance de conseguir um emprego correspondente a suas qualificações, o que leva a protestos em massa; e a pior maneira de resolver essa lacuna é subordinar a educação diretamente às demandas do mercado – se não por outra razão, isso ocorre porque a própria dinâmica do mercado torna “obsoleta” a educação dada nas universidades.
Jameson dá aqui mais um passo fundamental (paradoxal, mas absolutamente justificado): caracteriza esse novo desemprego estrutural como uma forma de exploração – explorados não são apenas os trabalhadores que produzem a mais-valia apropriada pelo capital, mas também aqueles que são estruturalmente impedidos de cair no vórtice capitalista do trabalho assalariado explorado, inclusive regiões e nações inteiras. Então como devemos repensar o conceito de exploração? É necessária uma mudança radical: em uma reviravolta propriamente dialética, a exploração inclui sua própria negação – os explorados não são apenas aqueles que produzem ou “criam”, mas também (e principalmente) os condenados a não “criar”. Não voltamos aqui à estrutura da piada de Rabinovitch? “Por que você acha que é explorado?” “Por dois motivos. Primeiro, quando trabalho, o capitalista se apropria da minha mais-valia.” “Mas você esta desempregado! Ninguém está explorando sua mais-valia porque você não está produzindo nenhuma!” “Esse é o segundo motivo...” Nesse caso, tudo depende do fato de que o circuito capitalista não só precisa de trabalhadores, como também gera o “exército de reserva” daqueles que não conseguem trabalho: estes não estão simplesmente fora da circulação do capital, eles são produzidos ativamente por essa circulação como não trabalho. Ou, referindo-nos mais vez à piada de Ninotchka, eles não são apenas não trabalhadores, porque seu não trabalho é uma característica positiva, da mesma maneira que “sem leite” é a característica positiva de “café sem leite”.
A importância dessa ênfase na exploração torna-se clara quando a contrapomos à dominação, tema predileto das diferentes versões da “micropolítica do poder” pós-moderna. Em suma, as teorias de Foucault e Agamben não são suficientes: todas as elaborações detalhadas dos mecanismos de regulação do poder da dominação, toda a riqueza de conceitos, como excluídos, vida nua, homo sacer etc., devem ser fundamentadas na (ou mediadas pela) centralidade da exploração; sem essa referência à economia, a luta contra a dominação permanece uma luta “essencialmente moral ou ética, que leva a revoltas pontuais e atos de resistência, e não à transformação do modo de produção enquanto tal”69 – o programa positivo das ideologias do “poder” é, em geral, o programa de determinado tipo de democracia “direta”. O resultado da ênfase na dominação é um programa democrático, ao passo que o resultado da ênfase na exploração é um programa comunista. Nisso reside o limite de descrever os horrores do Terceiro Mundo em termos de efeitos da dominação: o objetivo torna-se a democracia e a liberdade. Mesmo a referência ao “imperialismo” (em vez do capitalismo) funciona como um exemplo de como “uma categoria econômica pode se ajustar tão facilmente a um conceito de poder ou dominação”70 – e a implicação dessa mudança de ênfase para a dominação é, obviamente, a crença em outra modernidade (“alternativa”) na qual o capitalismo funcionará de maneira mais “justa”, sem dominação.
Mas o que essa noção de dominação não leva em conta é que somente no capitalismo a exploração é “naturalizada”, está inscrita no funcionamento da economia – ela não é resultado de pressão e violência extraeconômicas, e é por isso que, no capitalismo, temos liberdade pessoal e igualdade: não há necessidade de uma dominação social direta, a dominação já está inscrita na estrutura do processo de produção. É também por isso que a categoria de mais-valia é crucial nesse ponto: Marx sempre enfatizou que a troca entre trabalhador e capitalista é “justa” no sentido de que os trabalhadores (via de regra) recebem o valor total de sua força de trabalho como uma mercadoria – não há uma “exploração” direta, ou seja, não é que os trabalhadores “não recebam o valor total da mercadoria que vendem para os capitalistas”. Desse modo, embora na economia de mercado eu permaneça dependente de facto, essa dependência é “civilizada”, realizada na forma de uma “livre” troca de mercado entre mim e outras pessoas, e não na forma de servidão direta ou mesmo de coerção física. É fácil ridicularizar Ayn Rand, mas há certa verdade no famoso “hino ao dinheiro” de seu A revolta de Atlas:
Enquanto não descobrirem que o dinheiro é a origem de todo bem, vocês continuarão pedindo a própria destruição. Quando o dinheiro deixa de ser o meio pelo qual os homens tratam uns com os outros, os homens tornam-se instrumento dos outros homens. Sangue, açoite, armas ou dólares. Façam sua escolha – não há outras.71
Marx não disse algo parecido em sua conhecida frase de que, no universo das mercadorias, “as relações entre as pessoas assumem a aparência de relações entre coisas”? Na economia de mercado, as relações entre as pessoas podem aparecer como relações de liberdade e igualdade mutuamente reconhecidas: a dominação não é mais diretamente representada e visível enquanto tal.
A resposta liberal à dominação é o reconhecimento (como vimos, um assunto estimado entre os “hegelianos liberais”): o reconhecimento “torna-se um risco em uma povoação multicultural pela qual diversos grupos, de maneira pacífica e por eleição, dividem o espólio”72. Os sujeitos do reconhecimento não são classes (não faz sentido exigir o reconhecimento do proletariado como sujeito coletivo – na verdade, o fascismo faz isso, exigindo o reconhecimento mútuo das classes). Os sujeitos do reconhecimento são aqueles definidos por raça, gênero etc. – a política do reconhecimento permanece no quadro da sociedade civil burguesa, ainda não é política de classes73.
A história recorrente da esquerda contemporânea é a do líder ou partido eleito com entusiasmo universal, prometendo um “novo mundo” (Mandela, Lula etc.) – mas daí, cedo ou tarde, em geral depois de alguns anos, eles se confrontam com o dilema-chave: atrever-se a mexer com o mecanismo capitalista ou simplesmente “entrar no jogo”? Se perturbamos o mecanismo, seremos rapidamente “punidos” por perturbações de mercado, caos econômico e todo o resto74. Desse modo, embora seja verdade que o anticapitalismo não pode ser o objetivo direto da ação política – na política, nós nos opomos aos agentes políticos concretos e suas ações, não ao “sistema” anônimo –, devemos usar aqui a distinção lacaniana entre meta e alvo: o anticapitalismo, se não a meta imediata da política emancipatória, deve ser seu alvo definitivo, o horizonte de toda a sua atividade. Não seria essa a lição da ideia marxista da “crítica da economia política”? Embora a esfera da economia pareça “apolítica”, ela é o ponto secreto de referência e princípio estruturador das lutas políticas.
Voltando a Rand, o que é problemático é sua premissa subjacente: a única escolha que temos é entre as relações diretas e indiretas de dominação e exploração, sendo qualquer alternativa descartada como utópica. No entanto, como vimos anteriormente, devemos reconhecer o momento de verdade na afirmação ridiculamente ideológica de Rand: a grande lição do socialismo de Estado, na verdade, foi que uma abolição imediata da propriedade privada e da troca regulada pelo mercado, na falta de formas concretas de regulação social do processo de produção, ressuscita necessariamente as relações de escravidão e dominação. O próprio Jameson deixa a desejar com respeito a esse ponto: concentrado em como a exploração capitalista é compatível com a democracia, como a liberdade pode ser a própria forma de exploração, ele ignora a triste lição da experiência da esquerda no século XX: se simplesmente abolimos o mercado (inclusive a especulação de mercado), sem substituí-lo por uma forma adequada de organização comunista da produção e da troca, a dominação retorna de maneira violenta e com sua exploração direta.
Ao lidar com a questão dos direitos humanos, a crítica da ideologia tende a cometer dois erros comuns (e opostos). O primeiro é o óbvio: o ponto sintomático (excesso, autonegação, antagonismo) de um campo é reduzido a um mero acidente, uma imperfeição empírica, e não uma coisa que surge necessariamente. A noção de direitos humanos universais de facto privilegia determinado conjunto de valores culturais particulares (individualismo europeu etc.), o que significa que sua universalidade é falsa. Entretanto, existe também o erro oposto: o campo inteiro entra em colapso em seu sintoma – “liberdade” burguesa e igualdade são apenas e diretamente máscaras ideológicas para a dominação e a exploração, os “direitos humanos universais” são apenas e diretamente o meio para justificar as intervenções coloniais imperialistas etc. Enquanto o primeiro erro faz parte do senso comum crítico-ideológico, o segundo é usualmente negligenciado e como tal é o mais perigoso. A noção crítica propriamente marxista da “liberdade formal” é muito mais refinada: sim, a “liberdade burguesa” é meramente formal, mas, como tal, é a única forma de aparência (ou sítio potencial) da liberdade efetiva. Em suma, se abolimos prematuramente a liberdade “formal”, perdemos também (o potencial d)a liberdade efetiva – ou, em termos mais práticos, em sua própria abstração, a liberdade formal não só ofusca a não liberdade efetiva, mas abre espaço ao mesmo tempo para a análise crítica da não liberdade efetiva75.
O que complica ainda mais a situação é que, em si, o advento de espaços vazios no capitalismo global é também uma prova de que o capitalismo não pode mais arcar com uma ordem civil universal da liberdade e da democracia, ou seja, ele requer cada vez mais a exclusão e a dominação. O caso do massacre da Praça da Paz Celestial, na China, é exemplar aqui: o que foi suprimido pela intervenção militar brutal não foi a perspectiva de uma entrada rápida na ordem capitalista liberal-democrática, mas a possibilidade genuinamente utópica de uma sociedade mais democrática e mais justa; a explosão do capitalismo brutal depois de 1990 ocorreu em paralelo à reafirmação do domínio do Partido não democrático. Recordamos aqui a clássica tese marxista sobre a primeira Inglaterra moderna: era do interesse da própria burguesia deixar o poder político para a aristocracia e manter para si mesma o poder econômico. Talvez algo homólogo esteja acontecendo hoje na China: era do interesse dos novos capitalistas deixar o poder político para o Partido Comunista.
De que maneira, então, nós rompemos com o impasse da de-historização pós-política? O que fazer depois do movimento Occupy Wall Street, agora que os protestos iniciados lá longe (Oriente Médio, Grécia, Espanha, Reino Unido) atingiram o centro e são intensificados e estendidos para o resto do mundo? O que deveria ser evitado é exatamente uma rápida transformação da energia dos protestos em uma série de demandas pragmáticas “concretas”. Os protestos criaram um vazio – um vazio no campo da ideologia hegemônica, e é preciso tempo para preencher esse vazio de maneira apropriada, pois ele é fecundo, é uma abertura para o verdadeiramente novo. Devemos ter em mente que qualquer debate, aqui e agora, é necessariamente um debate em território inimigo: é preciso tempo para desenvolver o novo conteúdo. Tudo o que dissermos agora pode ser tomado (recuperado) de nós – tudo, exceto nosso silêncio. Esse silêncio, essa rejeição ao diálogo e a todas as formas de clinch é nosso “terror”, agourento e ameaçador como tem de ser.
Esse gesto negativo dos manifestantes não nos leva de volta ao “eu preferiria não” de Bartleby, em Melville? Bartleby diz: “Eu preferiria não”, e não: “Eu prefiro (ou desejo) não fazer isso”; com isso, voltamos à distinção de Kant entre juízo negativo e juízo infinito. Ao recusar a ordem do Mestre, Bartleby não nega o predicado, ele afirma um não predicado: não diz que não quer fazer isso; diz que prefere (quer) não fazê-lo. É desse modo que passamos da política da “resistência”, que parasita o que nega, para uma política que abre um novo espaço fora da posição hegemônica e de sua negação76. Nos termos do Occupy Wall Street, os manifestantes não estão dizendo apenas que prefeririam não participar da dança do capital e de sua circulação; eles também “preferem não” depositar um voto crítico (a “nossos” candidatos) ou se envolver em uma forma qualquer de “diálogo construtivo”. Esse é o gesto da subtração em sua forma mais pura, a redução de todas as diferenças qualitativas a uma mínima diferença puramente formal que abre espaço para o Novo. Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo teremos de enfrentar as questões verdadeiramente difíceis – questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo que queremos. Que forma de organização social pode substituir o capitalismo vigente? De que tipo de novos líderes nós precisamos? Que órgãos, incluindo os de controle e repressão? As alternativas do século XX obviamente não serviram. Por mais que seja emocionante gozar dos prazeres da “organização horizontal”, das multidões em protesto com sua solidariedade igualitária e debates livres e abertos, esses debates terão de coalescer não só em novos Significantes-Mestres, mas também em respostas concretas à antiga questão leninista: “Que fazer?”. Reagindo aos protestos de 1968 em Paris, Lacan disse: “Aquilo a que vocês aspiram como revolucionários é um novo Mestre. Vocês o terão”77. Embora devesse ser rejeitado enquanto declaração universal sobre todos os motins revolucionários, esse diagnóstico/prognóstico contém certa verdade: na medida em que o protesto permanece no nível de uma provocação histérica ao Mestre, sem um programa positivo para que a nova ordem substitua a antiga, ele funciona de fato como um pedido (negado, é claro) por um novo Mestre.
Confrontados com as demandas dos manifestantes, os intelectuais definitivamente não estão na posição do sujeito suposto saber: eles não podem operacionalizar essas demandas ou traduzi-las em propostas para medidas realistas e precisas. Com a queda do comunismo do século XX, eles perderam para sempre o papel da vanguarda que conhece as leis da história e pode guiar os inocentes em seu caminho. O povo, no entanto, também não tem acesso ao conhecimento requerido – o “povo” como nova figura do sujeito suposto saber é um mito do Partido que afirma agir em seu benefício, desde a diretriz de Mao para “aprender com os fazendeiros” até o famoso e supracitado apelo de Heidegger a seu velho amigo fazendeiro no curto texto “Por que ficamos na província?”, de 1934, um mês depois de ele ter renunciado ao cargo de reitor da Universidade de Freiburg:
Recentemente, fui convidado pela segunda vez a lecionar na Universidade de Berlim. Na ocasião, deixei Freiburg e me recolhi a minha cabana. Escutei o que as montanhas, as florestas e as terras de cultivo me diziam e fui visitar um velho amigo, um fazendeiro de 75 anos. Ele leu nos jornais sobre o convite de Berlim. O que diria? Sem pressa, fixou os olhos claros e certeiros nos meus e, sem abrir a boca, colocou refletidamente a mão leal em meu ombro. Jamais ele havia balançado a cabeça de modo tão suave. Isso significava: absolutamente não!78
Só podemos imaginar o que estava pensando o velho fazendeiro – é bem provável que soubesse a resposta que Heidegger queria e educadamente a tenha fornecido. Sendo assim, nenhuma sabedoria de nenhum homem comum dirá aos manifestantes “warum bleiben wir in Wall Street” [por que ficar em Wall Street]. Não há um Sujeito que saiba, nem os intelectuais nem o povo comum. Não seria este o impasse: um homem cego conduzindo um homem cego ou, mais precisamente, cada um pressupondo que o outro não é cego? Não, pois as respectivas ignorâncias não são simétricas: quem tem a resposta são as pessoas, elas só não sabem as perguntas para as quais têm (ou melhor, são) a resposta. John Berger escreveu sobre as “multidões” daqueles que se encontram do lado errado do muro [Wall] (que separa os que estão dentro dos que estão fora):
As multidões têm respostas para perguntas que ainda não foram feitas e têm a capacidade de sobreviver aos muros. As perguntas ainda não foram feitas porque fazê-las requer palavras e conceitos que soam verdadeiros, e os que estão sendo usados para nomear eventos tornaram-se insignificantes: Democracia, Liberdade, Produtividade etc. Com novos conceitos, as perguntas logo serão feitas, porque a história envolve exatamente esse processo de questionamento. Logo? Em uma geração.79
Claude Lévi-Strauss escreveu que a proibição do incesto não é uma questão, um enigma, mas uma resposta para uma questão que não conhecemos. Deveríamos tratar as demandas dos protestos de Wall Street de maneira semelhante: os intelectuais não devem sobretudo tomá-las como demandas, como questões para as quais devem produzir respostas claras ou programas sobre o que fazer. Elas são respostas, e os intelectuais deveriam propor questões para essas respostas. Trata-se de uma situação como a da psicanálise, em que o paciente sabe a resposta (seus sintomas são as respostas), mas não sabe a que ela responde, e o analista tem de formular a questão. É somente por meio desse trabalho paciente que um programa surgirá.
Badiou argumentou, em relação ao princípio aristotélico da não contradição e ao princípio do terceiro excluído, que existem três modos de negação80. Das quatro possibilidades lógicas, Badiou começa descartando a última (negação que não obedece a nenhum princípio) como “inconsistente”, equivalente à completa dissolução de toda potência de negatividade, de modo que restam três formas consistentes, cada uma delas correspondendo a determinado quadro referencial lógico: (1) a negação obedece a ambos os princípios – lógica clássica (Aristóteles); (2) a negação obedece ao princípio da contradição, mas não ao terceiro excluído – lógica intuicionista (Brouwer, Heyting); (3) a negação obedece ao terceiro excluído, mas não ao princípio da contradição – lógica paraconsistente (escola brasileira, Da Costa). Na lógica clássica, a negação de P exclui não só P, mas qualquer outra possibilidade concernente aos conteúdos da proposição P. Na lógica intuicionista, a negação de P exclui P, mas não algumas outras possibilidades que estão em algum lugar entre P e não-P. Na lógica paraconsistente, a negação de P exclui aquele tipo de espaço entre P e não-P, mas não exclui P – P não é de fato suprimida por sua negação (não surpreende que Badiou associe essa negação na qual “P está na negação de P” à dialética de Hegel). Por exemplo, no domínio ético-legal clássico, uma pessoa é culpada ou inocente, não há intermédio; no espaço intuicionista, nós sempre temos valores intermediários, como “culpado com circunstâncias atenuantes”, “inocente porque, apesar de certamente culpado, não há provas suficientes” etc. No espaço paraconsistente (não desconhecido de certas teologias), é possível ser as duas coisas ao mesmo tempo, embora não haja uma terceira opção: a profunda consciência da minha culpa é a única prova que tenho da minha inocência etc.
Como poderíamos esperar, Badiou privilegia o exemplo da revolução. A revolução comunista é clássica, um confronto radical sem terceira opção, ou nós ou eles: o trabalhador pobre que, antes da revolução, surge como nada no campo político, torna-se o novo herói desse campo. No espaço intuicionista do reformismo social-democrático, o trabalhador pobre surge no campo político, mas não é de modo nenhum seu novo herói: a ideia é chegar a um compromisso, encontrar uma terceira via, manter o capitalismo, porém com mais responsabilidade social etc. No terceiro caso do espaço paraconsistente, o que temos é um tipo de indecidibilidade entre evento e não evento: alguma coisa acontece, mas, do ponto de vista do mundo, tudo é idêntico, então temos evento e não evento simultaneamente – um falso evento, um simulacro, como na “revolução” fascista que condena a “exploração plutocrática” e mantém o capitalismo. Como conclui Badiou: “A lição é que, quando o mundo é intuicionista, uma verdadeira mudança pode ser clássica, e uma falsa mudança, paraconsistente”.
Mas e se o mundo atual, do capitalismo tardio, não for mais intuicionista? Não seria o capitalismo “pós-moderno” um sistema cada vez mais paraconsistente, em que, de diversas maneiras, P é não-P: a ordem é sua própria transgressão, o capitalismo pode prosperar sob o domínio comunista etc.? Aqui, a mudança clássica não serve mais, pois a negação fica presa no jogo. A única solução que resta, portanto, é a quarta opção (descartada por Badiou, mas que deveria ter uma interpretação diferente). A primeira coisa de que devemos nos lembrar é a assimetria radical da luta de classes: o objetivo do proletariado não é simplesmente negar (de qualquer maneira) seu inimigo, os capitalistas, mas negar (abolir) a si mesmo enquanto classe. É por isso que estamos lidando aqui com uma “terceira via” (nem proletária nem capitalista) que não está excluída, mas também com uma suspensão do princípio da contradição (é o próprio proletariado que luta para abolir a si mesmo, sua condição).
O que isso significa em termos de economia libidinal? Em uma carta escrita para Einstein, bem como em seu Novas lições introdutórias à psicanálise, Freud propôs uma solução utópica para os impasses da humanidade: a “ditadura da razão” – os homens devem se unir e, juntos, subordinar e controlar suas forças irracionais inconscientes. O problema aqui, obviamente, está na própria distinção entre razão e inconsciente: por um lado, o inconsciente freudiano é “racional”, discursivo, não tem nada a ver com um reservatório de instintos primitivos obscuros; por outro, a razão é, para Freud, sempre fechada à “racionalização”, a encontrar razões (falsas) para uma causa cuja verdadeira natureza é renegada. A interseção entre razão e pulsão é mais bem sinalizada pelo fato de que Freud usa a mesma formulação para as duas: a voz da razão ou da pulsão é geralmente silente, lenta, mas persiste para sempre. Essa interseção é nossa única esperança.
O horizonte comunista é habitado por dois milênios de rebeliões igualitárias radicais fracassadas, de Espártaco em diante – sim, todas foram causas perdidas, mas, como diz G. K. Chesterton em seu What’s Wrong with the World [O que há de errado com o mundo], “as causas perdidas são exatamente aquelas que poderiam ter salvado o mundo”81.
1 Ver Mladen Dolar, Oficirji, služkinje in dimnikarji (Liubliana, Analecta, 2010). Na literatura, o par correspondente talvez seja Sófocles versus Ésquilo: o impasse trágico versus uma nova ordem, o terror versus uma nova harmonia.
2 Jacques Lacan, O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, cit., p. 32.
3 As preferências de voto de Freud (em uma carta, ele conta que, de modo geral, não votava – a exceção foi somente quando surgiu um candidato liberal em seu distrito), portanto, além de ser assunto privado, são fundamentadas em sua teoria. Os limites da neutralidade liberal freudiana ficaram claros em 1934, quando Dolfuss assumiu o poder na Áustria, impondo um Estado corporativo, e conflitos armados eclodiram nos subúrbios de Viena (sobretudo nos arredores de Karl Marx Hof, um grande conjunto habitacional que era o orgulho da Democracia Social). O cenário não deixou de ter seus aspectos surreais: no centro de Viena, a vida nas famosas cafeterias transcorria normalmente (e Dolfuss apresentava-se como defensor dessa normalidade), enquanto a um ou dois quilômetros dali os soldados bombardeavam os prédios habitados pelos trabalhadores. Nessa situação, a associação de psicanálise publicou uma diretiva proibindo seus membros de tomar partido de um dos lados do conflito – efetivamente ficando do lado de Dolfuss e dando sua pequena contribuição para a ascensão ao poder pelos nazistas, quatro anos depois.
4 Jacques Lacan, “Radiofonia”, em Outros escritos (trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Zahar, 2003), p. 442.
5 Idem, “Conférences aux USA”, Scilicet, n. 6-7, 1976, p. 15.
5 Nicolas Fleury, Le réel insensé: introduction à la pensée de Jacques-Alain Miller (Paris, Germina, 2010), p. 136.
7 Ibidem, p. 98.
8 Jacques-Alain Miller, “La psychanalyse, la cité, les communautés”, La cause freudienne, n. 68, fev. 2008, p. 118.
9 Ibidem, p. 109.
10 Nicolas Fleury, Le réel insensé, cit., p. 109.
11 Jacques-Alain Miller, “La psychanalyse, la cité, les communautés”, cit., p. 109-10.
12 Nicolas Fleury, Le réel insensé, cit., p. 95. As citações são de Miller.
13 Ibidem, p. 96. As citações são de Miller.
14 Fredric Jameson, The Seeds of Time (Nova York, Columbia University Press, 1994), p. 99. [Ed. bras.: As sementes do tempo, trad. José Rubens Siqueira, São Paulo, Ática, 1997.]
15 Joseph de Maistre, Éclaircissement sur les sacrifices (Paris, L’Herne, 2009), p. 7: “Il existe des mystérieuses lois qu’il n’est pas bon de divulguer, qu’il faut couvrir d’un silence religieux et revérer comme un mystère”.
16 Jean-Pierre Dupuy, La marque du sacré (Paris, Carnets Nord, 2008).
17 Louis Dumont, Homo Hierarchicus (trad. Carlos Alberto da Fonseca, 2. ed., São Paulo, Edusp, 1997).
18 Como demonstrou Dumont, essa reversão paradoxal é discernível, muito antes da cristandade, nos antigos Vedas indianos, primeira ideologia da hierarquia inteiramente elaborada: em princípio, a casta dos sacerdotes é superior à casta dos guerreiros, mas, dentro da estrutura efetiva de poder do Estado, eles são de facto subordinados aos guerreiros.
19 É claro que, para os defensores da “crítica da ideologia”, a própria noção de religião que domina e controla em segredo a vida social é uma ilusão ideológica por excelência.
20 É claro que podemos afirmar que o status superior do sacerdote é apenas uma ilusão ideológica, tolerada pelos guerreiros para legitimar seu poder real; contudo, essa ilusão é necessária, é uma característica fundamental do carisma do poder.
21 Jean-Pierre Dupuy, La marque du sacré, cit., p. 13.
22 Ibidem, p. 143.
23 Ibidem, p. 151.
24 Ibidem, p. 161.
25 Monique Canto-Sperber, “Devons-nous désirer la paix perpétuelle?”, em Mark Anspach (org.), Dans l’œil du cyclone. Colloque de Cerisy (Paris, Carnets Nord, 2008), p. 157.
26 Ordem dos papéis sociais imposta de fora, em claro contraste com o valor imanente superior ou inferior dos indivíduos – desse modo, eu experimento meu status social inferior como totalmente independente de meu valor inerente.
27 Procedimento crítico-ideológico que mostra que as relações de superioridade ou inferioridade não são fundadas na meritocracia, mas são resultado de lutas objetivas ideológicas e sociais: meu status social depende de procedimentos sociais objetivos, e não de meus méritos – como coloca Dupuy de maneira ácida, a desmistificação social “desempenha nas sociedades igualitárias, competitivas e meritocráticas o mesmo papel que a hierarquia nas sociedades tradicionais” (Jean-Pierre Dupuy, La marque du sacré, cit., p. 208) – ela permite que evitemos a dolorosa conclusão de que a superioridade do outro é o resultado de seus méritos e feitos.
28 O mesmo mecanismo, mas sem a veemência crítico-social: nossa posição na escala social depende de uma loteria natural e social – sortudos são os que nascem com melhores condições e em famílias ricas.
29 A superioridade ou a inferioridade dependem de um processo social complexo, que é independente das intenções ou méritos dos indivíduos – por exemplo, a mão invisível do mercado pode provocar meu fracasso e o sucesso do meu próximo, mesmo que eu trabalhe muito mais e seja muito mais inteligente.
30 Jean-Pierre Dupuy, La marque du sacré, cit., p. 211.
31 Ver o exemplo mais famoso: Robert Axelrod, A evolução da cooperação (trad. Jusella Santos, São Paulo, Leopardo, 2010).
32 Jean-Jacques Rousseau, Rousseau, Judge of Jean-Jacques: Dialogues (Hanover, Dartmouth College Press, 1990), p. 63.
33 Ver Jean-Pierre Dupuy, Petite métaphysique des tsunamis (Paris, Seuil, 2005), p. 68.
34 Idem, La marque du sacré, cit., p. 224.
35 Tomo essa expressão de Alain Badiou.
36 G. K. Chesterton, Ortodoxia, cit., p. 177.
37 Devo esses dados a Eric Santner.
38 Jean-Pierre Dupuy, La marque du sacré, cit., p. 240.
39 De maneira homóloga, o perigo da nanotecnologia não é só que os cientistas criem um monstro que começará se desenvolver sem (nosso) controle: quando tentamos criar uma nova vida, nosso objetivo é justamente dar origem a um ente incontrolável, que constitua e desenvolva a si mesmo (Ibidem, p. 43).
40 Mark Anspach, “Un philosophe entre Tantale et Jonas”, em Dans l’oeil du cyclone, cit., p. 10-1.
41 Ibidem, p. 19.
42 Jean-Pierre Dupuy, “De l’œil du cyclone au point fixe endogène”, em Mark Anspach (org.), Dans l’œil du cyclone, cit., p. 313.
43 Giorgio Agamben, “O que é um dispositivo?”, em O que é o contemporâneo? E outros ensaios (trad. Vinícius Nicastro Honesko, Chapecó, Argos, 2009), p. 38.
44 Ibidem, p. 40.
45 Em termos deleuzianos, o ser vivente é a substância, enquanto o sujeito é um evento.
46 Giorgio Agamben, “O que é um dispositivo?”, cit., p. 48-9.
47 Toda biopolítica é necessariamente bioteopolítica, como sugeriu Lorenzo Chiesa? Sim, mas em um sentido muito preciso: a noção de “vida nua” só pode surgir no horizonte teológico, como o gesto fundador de reduzir toda a realidade à “mera vida”, ao que opomos a dimensão transcendental divina. Nesse sentido, o “materialismo” é efetivamente uma noção teológica: é o que resta da teologia depois que subtraímos dela o divino. Em contraste, o primeiro gesto do materialismo genuíno não é negar o divino, mas, ao contrário, negar que exista uma coisa chamada “mera vida (animal)”.
48 Giorgio Agamben, “O que é um dispositivo?”, cit., p. 49.
49 Ibidem, p. 50.
50 Ibidem, p. 50-1.
51 Mutatis mutandis, o mesmo vale para o comunismo stalinista – ele é uma religião secularizada, não profanada.
52 Jacques Lacan, O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (trad. M. D. Magno, 2. ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1996), p. 186. Quando Lacan fala do corpo sujeitado “à reprodução, ao ciclo sexual”, ele não se refere ao acasalamento biológico, mas sim à diferença sexual como Real-impossível da ordem simbólica. Em termos diretos e brutais: animais que reproduzem pelo acasalamento não têm lamela.
53 Ver Judith Butler e Catherine Malabou, Sois mon corps, cit.
54 Foucault chega perto dessa constatação algumas vezes: por exemplo, no primeiro volume de História da sexualidade, em que escreve que “pelo menos inventamos um outro prazer: o prazer da verdade do prazer, prazer de sabê-la, exibi-la, descobri-la” (Michel Foucault, História da sexualidade I: a vontade de saber, trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, 13. ed., Rio de Janeiro, Graal, 1999, p. 69). Essas constatações, no entanto, não são desenvolvidas em uma reflexividade sistemática do desejo.
55 Fredric Jameson, The Hegel Variations (Londres, Verso Books, 2010), p. 54.
56 O mesmo vale para Lacan: há um Lacan conservador que nos alerta contra a dissolução do Nome--do-Pai, exemplificado pelo trabalho de Pierre Legendre e falsamente visado por Judith Butler; há um Lacan liberal, exemplificado nos últimos anos por Jacques-Alain Miller, que interpreta a análise de Lacan a respeito dos eventos de 1968 como uma crítica liberal aos revolucionários; e há o Lacan revolucionário radical, desde Copjec e Badiou até a Escola de Liubliana.
57 Esse Hegel liberal “deflacionado” do reconhecimento é paradigmaticamente norte-americano (embora possamos argumentar que foi esboçado primeiro por Habermas, e já era influenciado pela tradição pragmática norte-americana, como a noção de G. H. Mead de intersubjetividade baseada na identificação mútua de sujeitos, de modo que eu posso me ver nos olhos do outro). Sendo assim, talvez seja mais que curiosidade histórica que a primeira escola hegeliana norte-americana tenha sido, nas origens do pragmatismo, o movimento filosófico norte-americano. Ele começou em 1856, quando Henry Conrad Brokmeyer, imigrante prussiano, retirou-se para as profundezas da floresta do Missouri com uma arma, um cachorro e um exemplar de Ciência da lógica, de Hegel. Sozinho com esse livro durante dois anos, Brokmeyer se convenceu de que o pensamento de Hegel deveria ser ampliado e abranger os Estados Unidos: Hegel estava certo em dizer que a história tinha uma direção que ia de leste para oeste, mas morreu cedo demais para acompanhar o movimento da Europa para os Estados Unidos. A história se desdobra na direção de uma cidade histórico-mundial, culminando em um florescimento da liberdade sob um Estado racional. Até mesmo nos Estados Unidos, o espírito se movimenta de leste para oeste, rumo à maior cidade norte-americana a oeste do Mississippi: St. Louis. Brokmeyer aplicou aos Estados Unidos a ideia hegeliana da história progredindo por meio dos conflitos: religião versus ciência, abolicionismo versus escravidão, até St. Louis versus Chicago. Depois que St. Louis foi ofuscada por Chicago, o decepcionado Brokmeyer se mudou mais para oeste – dizem que, em seus últimos anos de vida, ele deu aulas sobre Hegel para crianças creek em Oklahoma. Mas sua influência persistiu, alcançando C. S. Peirce, o pai do pragmatismo. Ver Kerry Howley, “Hegel Hits the Frontier”, The Daily, 19 maio 2011.
58 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte I, § 194, p. 132.
59 Adrian Goldsworthy, In the Name of Rome (Londres, Orion Books, 2004), p. 69-70.
60 Ver Judith Butler e Catherine Malabou, Sois mon corps, cit., p. 8. O mecanismo descrito por Butler como a injunção renegada: “Seja meu corpo!” (um Mestre me ordena a ser – a agir como – o corpo dele, mas de forma renegada: devo fingir que não sou realmente aquilo, mas continuar a ser um indivíduo livre e independente) parece dizer respeito, muito mais do que aos corpos, à moderna relação de dominação em que o escravo tem de agir como livre e aceitar voluntariamente o papel subordinado: a ordem do mestre moderno é que seu escravo finja ser livre, ao invés de escravo. Tomemos como exemplo o papel da esposa em um casamento em que os valores patriarcais têm uma existência subterrânea: a mulher tem de servir ao marido, mas no contexto de uma relação livre e igualitária; é por isso que o primeiro ato de rebelião é declarar abertamente nossa servidão, recusar agir como indivíduos livres, quando de fato não somos. Os efeitos dessa recusa são esmagadores, pois nas condições modernas a escravidão só pode se reproduzir como renegada.
61 Um caso exemplar do poder material da ideologia é o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria. Seu objetivo é fornecer “uma linguagem comum e um critério-padrão para a classificação dos transtornos mentais. Ele é usado nos Estados Unidos e em vários níveis no mundo todo, por clínicos, pesquisadores, agências reguladoras de medicamentos psiquiátricos, empresas de plano de saúde, indústria farmacêutica e autoridades políticas. Houve quatro edições revisadas desde que foi publicado em 1952, incluindo gradualmente mais transtornos, embora alguns tenham sido removidos e não sejam mais considerados transtornos mentais, mais notavelmente a homossexualidade”; a próxima edição (a quinta), a DSM-5, deve ser publicada em maio de 2013. (Ver a entrada da Wikipédia para “Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais”. Baseio-me aqui na análise crítica de Sarah Kamens.) O papel do DSM é crucial, porque hospitais, clínicas e companhias de seguro costumam exigir um diagnóstico de DSM de todos os pacientes tratados – e como o complexo médico industrial nos Estados Unidos movimenta duas vezes mais dinheiro que o famigerado complexo militar industrial, podemos imaginar as amplas consequências financeiras de mudanças aparentemente marginais nas classificações do DSM.
62 Ed Ayres, God’s Last Offer: Negotiating for a Sustainable Future (Nova York, Four Walls Eight Windows, 1999), p. 6.
63 Ibidem, p. 141.
64 Fredric Jameson, Representing Capital (Londres, Verso Books, 2011), p. 149.
65 Idem, Valences of the Dialectic (Londres, Verso Books, 2009), p. 580-1.
66 Idem, Representing Capital, cit., p. 149.
67 Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, cit., p. 142-3.
68 Fredric Jameson, Valences of the Dialectic, cit., p. 580.
69 Idem, Representing Capital, cit., p. 150.
70 Ibidem, p. 151.
71 Ayn Rand, Atlas Shrugged (Londres, Penguin Books, 2007), p. 871. [Ed. bras.: A revolta de Atlas, trad. Paulo Henriques Britto, Rio de Janeiro, Sextante, 2010].
72 Fredric Jameson, Valences of the Dialectic, cit., p. 568.
73 Idem.
74 Por isso é tão simples criticar Mandela por ter abandonado a perspectiva socialista depois do fim do apartheid: ele realmente tinha escolha? O passo rumo ao socialismo era uma opção real naquele contexto específico?
75 A carreira legal de Jacques Verges representa um caso claro desse segundo erro na prática. Depois de reconhecer a hipocrisia do sistema legal ocidental (em 1945, tendo derrotado o fascismo em nome dos direitos e das liberdades humanas, as potências ocidentais praticaram uma opressão colonialista brutal na Argélia, no Vietnã etc.), Verges acabou defendendo os acusados de terrorismo pelo Ocidente, de Klaus Barbie a Pol Pot. Embora seu objetivo seja desmascarar a hipocrisia do sistema legal liberal do Ocidente, tal procedimento é incapaz de propor uma alternativa ao sistema de justiça.
76 Para uma elaboração mais detalhada dessa “política de Bartleby”, ver as últimas páginas do meu A visão em paralaxe (trad. Maria Beatriz de Medina, São Paulo, Boitempo, 2008).
77 Jacques Lacan em Vincennes, 3 de dezembro de 1969: “Ce à quoi vous aspirez comme révolutionnaires, c’est à un Maître. Vous l’aurez”. [Ed. bras.: Jacques Lacan, O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise, Rio de Janeiro, Zahar, 1992, p. 196.]
78 Martin Heidegger, “Why Do I Stay in the Provinces?”, em Thomas Sheehan (org.), Heidegger: The Man and the Thinker (Chicago, Precedent Publishing, 1981), p. 29. [Ed. bras.: “Por que ficamos na província?”, Revista de Cultura Vozes, ano 71, n. 4, 1977, p. 44-6.]
79 John Berger, “Afterword”, em Andrey Platonov, Soul and Other Stories (Nova York, New York Review Books, 2007), p. 317.
80 Ver Alain Badiou, “The Three Negations”, Cardozo Law Review, v. 29, n. 5, abr. 2008, p. 1877-83.
81 G. K. Chesterton, What’s Wrong with the World (Londres, Cassell, 1910), p. 36.