A crítica inicial de Levinas a Hegel e Heidegger em seu Totalidade e infinitoa é um modelo do procedimento antifilosófico: para Levinas, o infinito da relação com o Outro divino é o excesso que rompe o círculo da totalidade filosófica. Nesse ponto, é crucial notar que Derrida não é antifilósofo – ao contrário, em seu melhor momento (digamos, em suas leituras “desconstrutivas” de Levinas, Foucault, Bataille etc.), ele demonstra de maneira convincente que, no esforço para romper o círculo fechado da filosofia, para afirmar um ponto de referência fora do horizonte da filosofia (infinito versus totalidade em Levinas, loucura versus cogito no primeiro Foucault, soberania versus dominação hegeliana em Bataille), eles permanecem dentro do campo que tentam deixar para trás1. Não admira que, por outro lado, Foucault tenha reagido com tanta violência à análise crítica que Derrida fez de sua História da loucurab e o tenha acusado de permanecer nos confins da filosofia: sim, Derrida permanece, mas aí reside sua força diante daqueles que alegam, com uma facilidade extrema, ter alcançado um domínio para além da filosofia. O que Derrida faz não é apenas “desconstruir” a filosofia, demonstrando sua dependência de um Outro exterior; muito mais que isso, ele “desconstrói” a tentativa de situar uma esfera fora da filosofia, demonstrando que todos os esforços antifilosóficos para determinar esse Outro ainda têm uma dívida para com um arcabouço de categorias filosóficas.
Cogito, loucura e religião estão interligados em Descartes (vide seu experimento mental com o malin génie) e também em Kant (sua noção de sujeito transcendental, oriunda da crítica de Swedenborg, cujos sonhos religiosos representam a loucura). Simultaneamente, o cogito surge por meio de uma diferenciação da (ou uma referência à) loucura, e o próprio cogito (a ideia do cogito como ponto de certeza absoluta, “idealismo subjetivo”) é percebido (não só) pelo senso comum como o próprio epítome da loucura da filosofia, de sua paranoica construção de sistemas (ver o tema do “filósofo como louco” (não só) no último Wittgenstein). Simultaneamente, a religião (fé direta) é evocada como uma forma de loucura (Swedenborg para Kant, ou a religião de modo geral para os racionalistas do Iluminismo, até Dawkins), e a religião (Deus) surge como a solução para a loucura (solipsista) (Descartes).
O triângulo formado por cogito, religião e loucura é o ponto de convergência da polêmica entre Foucault e Derrida, em que ambos compartilham a mesma premissa subjacente: o cogito está inerentemente relacionado com a loucura. A diferença é que, para Foucault, o cogito é fundamentado na exclusão da loucura, ao passo que, para Derrida, o cogito em si só pode surgir por meio de uma hipérbole “louca” (dúvida universalizada) e continua marcado por esse excesso: antes que se estabilize como res cogitans, a substância pensante transparente para si mesma, o cogito eclode como um excesso louco e pontual2.
O ponto de partida de Foucault é uma mudança fundamental na condição da loucura, o que acontece na passagem da Renascença para a Era da Razão clássica (início do século XVII). Durante a Renascença (Cervantes, Shakespeare, Erasmo etc.), a loucura era um fenômeno específico do espírito humano e pertencia ao grupo dos profetas, visionários possuídos, santos, palhaços, obcecados pelo demônio etc. Tratava-se de um fenômeno significativo, com uma verdade própria: mesmo que fossem denegridos, os loucos eram tratados com respeito, como se fossem mensageiros do horror sagrado. Com Descartes, no entanto, a loucura é excluída; em todas as suas variantes, passa a ocupar uma posição que antes era reservada à lepra. Deixou de ser um fenômeno a ser interpretado, seu significado não era mais buscado, e transformou-se em simples doença, que deveria ser tratada segundo as leis determinadas por uma medicina ou ciência já segura de si, segura de que não poderia ser louca. Essa mudança não diz respeito apenas à teoria, mas também à própria prática social: a partir da Era Clássica, os loucos foram internados, presos em hospitais psiquiátricos, desprovidos da plena dignidade de seres humanos, estudados e controlados como um fenômeno natural.
Na História da loucura, Foucault dedicou três ou quatro páginas à passagem das Meditaçõesc em que Descartes chega ao cogito ergo sum. Buscando o fundamento absolutamente infalível do conhecimento, Descartes analisa as principais formas de engano: os enganos dos sentidos e da percepção sensorial, as ilusões da loucura, os sonhos. Termina com o engano mais radical já imaginado: a hipótese de que nada do que experimentamos é verdadeiro, mas um sonho universal, uma ilusão encenada por um gênio maligno (malin génie). Partindo disso, chega à certeza do cogito (penso): mesmo que eu duvide de tudo, mesmo que tudo o que vejo seja uma ilusão, não posso duvidar de que penso tudo isso, portanto o cogito é o ponto de partida absolutamente certo para a filosofia. A objeção de Foucault é que Descartes não confronta realmente a loucura, mas sim evita pensar nela: ele exclui a loucura do domínio da razão. Na Era Clássica, portanto, a Razão é baseada na exclusão da loucura: a própria existência da categoria “loucura” é historicamente determinada, junto de seu oposto “razão”, ou seja, ela é determinada por relações de poder. A loucura, no sentido moderno, não é exatamente um fenômeno que podemos observar, mas sim um construto discursivo que surge em determinado momento histórico junto com seu duplo, a Razão no sentido moderno.
Em sua leitura da História da loucura, Derrida dedica-se a essas quatro páginas sobre Descartes, que, para ele, fornecem a chave para o livro inteiro. Por meio de uma análise minuciosa, tenta demonstrar que, longe de excluir a loucura, Descartes a leva ao extremo: a dúvida universal, quando suspeito que o mundo todo é uma ilusão, é a maior loucura imaginável. Dessa dúvida universal surge o cogito: mesmo que tudo seja uma ilusão, ainda posso ter certeza de que penso. A loucura, portanto, não é excluída pelo cogito: não que o cogito não seja louco, o cogito é verdadeiro mesmo que eu seja totalmente louco. A dúvida extrema – hipótese da loucura universal – não é exterior à filosofia, mas estritamente interior a ela – um momento hiperbólico, o momento da loucura, que fundamenta a filosofia. É claro, depois Descartes “domestica” esse excesso radical com sua imagem do homem como substância pensante dominada pela razão; ele constrói uma filosofia que é, sem dúvida, historicamente condicionada. Mas o próprio excesso, a hipérbole da loucura universal, não é histórico; é o momento excessivo que fundamenta a filosofia em todas as suas formas históricas. A loucura, portanto, não é excluída pela filosofia: é interna a esta. Obviamente, toda filosofia tenta controlar esse excesso, tenta reprimi-lo – mas, ao reprimi-lo, reprime seu próprio fundamento mais interno: “a filosofia talvez seja essa segurança tomada o mais próximo da loucura contra a angústia de ser louco”3.
Em sua resposta, Foucault primeiro tenta provar, por uma leitura minuciosa de Descartes, que a loucura que ele evoca não apresenta o mesmo estado de ilusões sensoriais e sonhos. Quando sofro ilusões sensoriais da percepção ou sonho, continuo normal e racional, só me engano com respeito ao que vejo. Na loucura, ao contrário, já não sou mais normal, perco minha razão. Portanto, a loucura tem de ser excluída para que eu seja um sujeito racional. A recusa de Derrida de excluir a loucura da filosofia atesta que ele continua sendo um filósofo incapaz de pensar o Exterior da filosofia, incapaz de pensar que a própria filosofia é determinada por algo que lhe escapa. A propósito da hipótese da dúvida universal e do gênio maligno, não estamos lidando com a verdadeira loucura, mas com um sujeito racional que finge ser louco, que realiza um experimento mental e nunca perde o controle sobre ele.
Por fim, na última página de sua resposta, Foucault tenta identificar a verdadeira diferença entre ele e Derrida. Ataca (sem nomear) a prática da desconstrução e da análise textual, para a qual “não há nada fora do texto”, de modo que ficamos presos a um processo interminável de interpretação. Foucault, ao contrário, não pratica a análise textual, mas analisa discursos, “dispositifs”, formações em que textos e declarações são interligados com mecanismos extratextuais de poder e controle. Não precisamos de uma análise textual mais profunda, mas sim da análise do modo como as práticas discursivas são combinadas com as práticas de poder e dominação. Mas essa rejeição de Derrida se sustenta? Voltemos ao debate, desta vez tomando Derrida como ponto de partida. Como Derrida deixou claro em seu ensaio sobre a História da loucura, de Foucault, a loucura está inscrita na história do cogito em dois níveis. Primeiro, ao longo de toda a filosofia da subjetividade, de Descartes a Nietzsche e Husserl, passando por Kant, Schelling e Hegel, o cogito está relacionado com seu duplo sombrio, o phármakon, que é a loucura. Segundo, a loucura está inscrita na própria (pré-)história do cogito, como parte de sua gênese transcendental:
o Cogito escapa da loucura [...] porque em seu instante, em sua instância própria, o ato do Cogito vale mesmo se sou louco, mesmo se meu pensamento é louco do começo ao fim. [...] Descartes jamais aprisiona a loucura, nem na etapa da dúvida natural, nem na etapa da dúvida metafísica. [...] Que eu seja ou não louco, Cogito, sum. [...] mesmo se a totalidade do mundo não existe, mesmo se o não-sentido invadiu a totalidade do mundo, inclusive o conteúdo de meu pensamento, eu penso, eu sou enquanto eu penso.4
Derrida não deixa dúvida de que, “a partir do momento em que ele atinge essa ponta, Descartes procura se tranquilizar, [...] garantir o próprio Cogito em Deus, [...] identificar o ato do Cogito com o ato de uma razão razoável”5. Esse recolhimento acontece desde “o momento em que ele se desprende da loucura determinando a luz natural por uma série de princípios e axiomas”6. O termo “luz” é crucial para avaliar a distância entre Descartes e o idealismo alemão, no qual, precisamente, o núcleo do sujeito não é mais a luz, mas o abismo da escuridão, a “Noite do Mundo”. Este então é o gesto interpretativo fundamental de Derrida:
[um ato que separa] no Cogito, por um lado, a hipérbole (da qual digo que não pode deixar-se aprisionar em uma estrutura histórica de fato e determinada porque ela é projeto de exceder toda totalidade finita e determinada) e, por outro lado, o que na filosofia de Descartes (ou também naquela que sustenta o Cogito agostiniano ou o Cogito husserliano) pertence a uma estrutura histórica de fato.7
Nesse ponto, quando Derrida afirma que “a historicidade própria à filosofia tem seu lugar e se constitui nessa passagem, nesse diálogo entre a hipérbole e a estrutura finita, [...] na diferença entre história e historicidade”8, ele talvez tenha sido insuficiente demais. Essa tensão pode parecer muito “lacaniana”: não seria ela uma tensão entre o Real – o excesso hiperbólico – e sua simbolização (sempre fracassada, em última análise)? A matriz a que chegamos é a de uma eterna oscilação entre os dois extremos: excesso, despesa, hipérbole radical e sua posterior domesticação (como a oscilação em Kristeva entre o semiótico e o simbólico). Os dois extremos são ilusórios: tanto o puro excesso quanto a ordem do puro finito se desintegrariam, anular-se-iam. Tal abordagem passa longe da “loucura”, que não é o puro excesso da Noite do Mundo, mas a loucura da passagem ao simbólico em si, da imposição de uma ordem simbólica ao caos do Real9. Se a loucura é constitutiva, então todo sistema de significado é minimamente paranoico, “louco”. Recordemos mais uma vez o slogan de Brecht, “O que é o assalto a um banco se comparado à fundação de um novo banco?” – aí reside a lição do filme Uma história real, de David Lynch: o que é a perversidade patética e nada razoável de figuras como Bobby Peru em Coração selvagem ou Frank em Veludo azul, quando comparada à decisão de cruzar a planície central dos Estados Unidos em um cortador de grama para visitar um parente moribundo? Comparados a esse ato, os acessos de fúria de Frank e Bobby não passam de um teatro impotente de velhos e serenos conservadores. Da mesma forma, diríamos: o que é a simples loucura causada pela perda da razão, quando comparada à loucura da própria razão?
Esse passo é propriamente “hegeliano” – e é por isso que Hegel, filósofo que tentou da maneira mais radical pensar o abismo da loucura no núcleo da subjetividade, também é o filósofo que trouxe para seu clímax “louco” o sistema filosófico como totalidade de significado. Por esse motivo, e por razões muito boas, Hegel representa, do ponto de vista do senso comum, o momento em que a filosofia “enlouquece”, explode em uma pretensão ao “Saber Absoluto”.
Portanto, não basta simplesmente contrapor “loucura” e simbolização: na história da própria filosofia (dos “sistemas” filosóficos), há um ponto privilegiado em que a hipérbole, núcleo ex-timo da filosofia, inscreve-se diretamente dentro dela, e esse é o momento do cogito, da filosofia transcendental. Aqui, a “loucura” é “domada” de uma maneira diferente, por meio de um horizonte “transcendental” que não a anula em uma visão de mundo oniabrangente, mas a mantém.
“No meio do mundo sereno da doença mental, o homem moderno não se comunica mais com o louco: [...] o homem de razão [...] delega para a loucura o médico, não autorizando, assim, relacionamento senão através da universalidade abstrata da doença.”10 No entanto, o que dizer da psicanálise? Não seria a psicanálise exatamente o ponto em que o “homem da razão” restabelece seu diálogo com a loucura, redescobrindo nela a dimensão da verdade – não a mesma verdade de antes, do universo pré-moderno, mas uma verdade diferente, propriamente científica? O próprio Foucault tratou disso em seu posterior História da sexualidade, em que a psicanálise é concebida como a culminação da lógica “sexo como verdade maior” da confissão.
Apesar da finesse da resposta de Foucault, ele acaba caindo na armadilha de um historicismo que não pode explicar sua própria posição de enunciação; essa impossibilidade é redobrada na caracterização que Foucault faz de seu “objeto”, a loucura, que oscila entre dois extremos. Por um lado, seu objetivo estratégico é fazer que a loucura fale, como ela é em si, fora do discurso (científico etc.) sobre ela: “não se trata de uma história do conhecimento, mas dos movimentos rudimentares de uma experiência. História não da psiquiatria, mas da própria loucura, em sua vivacidade antes de toda captura pelo saber”11. Por outro lado, o modelo (posterior) empregado em Vigiar e punir e História da sexualidade obriga-o a postular a absoluta imanência do objeto (excessivo, transgressivo, resistente...) a sua manipulação pelo dispositif de conhecimento-poder: do mesmo modo que “a rede carcerária não lança o elemento inassimilável num inferno confuso, ela não tem lado de fora”12; do mesmo modo que o homem “libertado” é gerado pelo dispositif que o controla e regula, do mesmo modo que o “sexo”, enquanto excesso inassimilável, é gerado pelos discursos e práticas que tentam controlá-lo e regulá-lo, a loucura também é gerada pelo mesmo discurso que a exclui, objetifica e estuda, não há loucura “pura” fora dela. Como diz Boyne, nesse ponto Foucault “efetivamente reconhece a justeza da formulação de Derrida”13, ou seja, do il n’y a pas de hors-texte14, fornecendo sua própria versão dela. Quando Foucault escreve “Talvez um dia ela [a transgressão] pareça tão decisiva para nossa cultura, tão oculta em seu solo quanto o fora outrora, para o pensamento dialético, a experiência da contradição”15, não estaria ele perdendo de vista a questão, qual seja, esse dia já chegou, a transgressão permanente já é uma característica fundamental do capitalismo tardio? É por isso que sua objeção final ao il n’y a pas de hors-texte de Derrida parece errar o alvo quando o caracteriza como:
[uma] redução das práticas discursivas a traços textuais; elisão dos eventos que são produzidos nessas práticas, de modo que tudo que resta deles são marcas para uma leitura; invenções de vozes por trás dos textos, de modo que não tenhamos de analisar os modos da implicação do sujeito nos discursos; a designação do originário como [o que é] dito e não dito no texto, de modo que não tenhamos de localizar práticas discursivas no campo das transformações no qual elas efetuam a si mesmas.16
Não surpreende que alguns marxistas tenham tomado o partido de Foucault nesse aspecto, concebendo sua polêmica com Derrida como o último capítulo da eterna luta entre materialismo e idealismo: a análise materialista de Foucault a respeito das práticas discursivas versus os infindáveis jogos textuais autorreflexivos de Derrida. Outro aspecto a favor de Foucault parece ser que ele continua sendo um historicista radical, reprovando Derrida por sua incapacidade de pensar a exterioridade da filosofia. É assim que ele resume o que está em jogo no debate entre eles:
poderia haver algo anterior ou externo ao discurso filosófico? As condições desse discurso podem ser uma exclusão, um risco evitado e, por que não, um medo? Uma suspeita rejeitada apaixonadamente por Derrida. Pudenda origo, disse Nietzsche com respeito aos religiosos e a sua religião.17
No entanto, Derrida está muito mais próximo de pensar essa externalidade do que Foucault, para quem a exterioridade envolve uma simples redução historicista que não pode explicar a si mesma (quando perguntaram a Foucault de qual posição ele estava falando, ele recorreu a um truque retórico barato e afirmou que essa era uma questão “de polícia”, “quem é você para dizer isso”, mas combinou essa resposta com a afirmação oposta de que a história genealógica é uma “ontologia do presente”). É fácil submeter a filosofia a tal redução historicista (os filósofos podem facilmente rejeitar essa redução exterior por se basear em uma confusão entre gênese e valor); é muito mais difícil pensar seu excesso inerente, seu núcleo ex-timo. Seria isso, então, o que realmente está em jogo no debate: ex-timidade ou exterioridade direta?
O núcleo obscuro da loucura no coração do cogito também pode ser determinado de maneira mais genética. Daniel Dennett faz um paralelo convincente e revelador entre o ambiente físico dos animais e o ambiente humano, incluindo não só os artefatos humanos (roupas, casas, ferramentas), mas também o ambiente “virtual” da rede discursiva: “Arrancado [da ‘rede dos discursos’], um ser humano individual é tão incompleto quanto um pássaro sem penas ou uma tartaruga sem casco”18. Um homem nu é um disparate tão grande quanto um macaco depilado: sem linguagem (sem ferramentas, sem...), o homem é um animal mutilado – essa é a falta suplementada por ferramentas e instituições simbólicas, tanto que a ideia – hoje óbvia – transmitida por figuras da cultura popular como Robocop (um homem que é ao mesmo tempo um superanimal e um mutilado) é válida desde o início. Como passamos do ambiente “natural” para o “simbólico”? Não é uma passagem direta, não podemos explicá-la dentro de uma narrativa evolutiva contínua: alguma coisa precisa intervir entre eles, uma espécie de “mediador em desaparição” que não é nem a natureza nem a cultura – esse intermediário não é a centelha do lógos atribuída magicamente ao homo sapiens, que lhe permite formar seu ambiente simbólico e virtual suplementar, mas precisamente algo que, embora não seja mais a natureza, também não é lógos e tem de ser “reprimido” pelo lógos – a expressão freudiana para esse intermediário, obviamente, é pulsão de morte.
Talvez o filósofo que, mais do que Descartes, represente o extremo da “loucura” seja Nicholas Malebranche e seu “ocasionalismo”. Malebranche, discípulo de Descartes, desconsidera a referência absurda deste último à glândula pineal como ponto de contato entre a substância material e a espiritual, corpo e alma; mas então como explicamos essa coordenação se não há contato entre as duas, se não há um ponto em que uma alma possa agir como causa sobre um corpo ou vice-versa? Como as duas redes causais (a das ideias na minha mente e a das interconexões corporais) são totalmente independentes, a única solução é que uma terceira e verdadeira Substância (Deus) coordene-as continuamente e seja a mediadora, sustentando com isso a aparência de continuidade: quando penso em erguer a mão e minha mão se ergue, meu pensamento provoca o erguer de minha mão não diretamente, mas “ocasionalmente” – ao notar meu pensamento direcionado para o erguer de minha mão, Deus põe em movimento a outra corrente causal e material que leva minha mão a ser realmente erguida.
Se substituirmos “Deus” pelo grande Outro, a ordem simbólica, veremos a proximidade do ocasionalismo com a posição de Lacan: como afirma em sua polêmica contra Aristóteles em “Televisão”19, a relação entre corpo e alma nunca é direta, pois o grande Outro sempre se interpõe entre os dois. Ocasionalismo, portanto, é essencialmente um nome para a “arbitrariedade do significante”, para a lacuna que separa a rede de ideias da rede da causalidade corporal (real), para o fato de que é o grande Outro que explica a coordenação das duas redes, de modo que quando meu corpo morde uma maçã, minha alma experimenta uma sensação de prazer. Essa mesma lacuna foi alvo dos antigos sacerdotes astecas, que faziam sacrifícios humanos para garantir que o Sol nascesse de novo: o sacrifício humano era um apelo para que Deus mantivesse a coordenação entre as duas séries, a necessidade corporal e a concatenação dos eventos simbólicos. Por mais “irracionais” que pareçam os sacrifícios dos sacerdotes astecas, sua premissa subjacente é muito mais reveladora do que nossa intuição corriqueira, segundo a qual a coordenação entre corpo e alma é direta, ou seja, é “natural” para mim ter uma sensação prazerosa quando mordo uma maçã, pois essa sensação é causada diretamente pela maçã: o que se perde é esse papel intermediário do grande Outro garantindo a coordenação entre a realidade e a experiência mental que temos dela. E não acontece o mesmo com nossa imersão na Realidade Virtual? Quando levanto a mão para empurrar um objeto no espaço virtual, o objeto efetivamente se move – minha ilusão, é claro, é que o movimento de minha mão causou diretamente o deslocamento do objeto, pois, em minha imersão, ignoro os mecanismos intrincados da coordenação computadorizada, algo homólogo ao papel de Deus garantindo a coordenação entre as duas séries no ocasionalismo20.
É fato notório que o botão de “fechar a porta” da maioria dos elevadores é um placebo sem nenhuma função, colocado ali apenas para nos dar a impressão de que podemos de certo modo acelerar as coisas; no entanto, quando apertamos o botão, a porta se fecha exatamente no mesmo momento que fecharia se tivéssemos apertado apenas o botão do andar que desejamos. Esse caso claro e extremo de falsa participação é uma metáfora apropriada para a participação dos indivíduos no processo político “pós-moderno”. Além disso, representa o ocasionalismo em sua forma mais pura: da perspectiva de Malebranche, estamos de fato apertando esses botões o tempo todo, e a atividade incessante de Deus é que faz a coordenação entre nossa ação e o evento que se segue, ainda que pensemos que o evento resulta de nossa ação.
Por esse motivo, é crucial manter aberta a ambiguidade radical envolvida no modo como o ciberespaço afetará nossas vidas: ela não depende da tecnologia como tal, mas do modo de sua inscrição social. A imersão no ciberespaço pode intensificar nossa experiência corporal (uma nova sensualidade, um novo corpo com mais órgãos, novos sexos...), mas também oferece, para quem manipula a máquina, a possibilidade de literalmente roubar nosso próprio corpo (virtual), privando-nos do controle sobre ele, de modo que não nos relacionemos mais com nosso corpo enquanto “corpo próprio”. Eis a ambiguidade constitutiva da ideia de mediatização21. Originalmente, o termo se referia ao ato de arrancar do sujeito seu direito imediato e direto de tomar decisões; o grande mestre da mediatização política foi Napoleão, que deixava a fachada do poder para os monarcas dos territórios que ele conquistava, embora não estivessem mais na posição de usar esse poder. Em um nível mais geral, poderíamos dizer que apenas essa “mediatização” do monarca define a monarquia constitucional: nela, o monarca é reduzido a um gesto simbólico puramente formal de “pôr os pingos nos is”, de firmar e assim conferir força performativa aos éditos cujo conteúdo tenha sido determinado pelo órgão governamental eleito. E, mutatis mutandis, o mesmo não seria válido para a digitalização progressiva de nossa vida cotidiana, no decorrer da qual o sujeito também é cada vez mais “mediatizado”, imperceptivelmente arrancado de seu poder, mas o tempo todo com a falsa impressão de que esse poder está aumentando? Quando nosso corpo é mediatizado (preso na rede da mídia eletrônica), ele é simultaneamente exposto à ameaça de uma “proletarização”: o sujeito é potencialmente reduzido ao puro $, posto que até a minha experiência pessoal pode ser roubada, manipulada, regulada pelo Outro mecânico.
Mais uma vez, podemos ver como a perspectiva de uma virtualização radical confere ao computador uma posição estritamente homóloga à de Deus no ocasionalismo malebranchiano: uma vez que o computador coordena a relação entre minha mente e (o que experimento como) o movimento de meus membros (na realidade virtual), posso facilmente imaginar um computador que endoidece e começa a agir como um Deus Maligno, perturbando essa coordenação – quando o sinal mental para erguer a mão é suspenso ou neutralizado na realidade (virtual), a experiência mais fundamental do corpo como “meu” é demolida. Desse modo, parece que o ciberespaço realiza de fato a fantasia paranoica de Schreber, o juiz alemão cujas memórias foram analisadas por Freud: o “universo em rede” é psicótico na medida em que parece materializar a alucinação de Schreber com os raios divinos pelos quais Deus controla diretamente a mente humana. Em outras palavras, a exteriorização do grande Outro no computador não explica a dimensão paranoica inerente do universo em rede? Ou, em outras palavras, o lugar-comum é que a habilidade de transferir a consciência para um computador finalmente liberta as pessoas de seus corpos – mas também liberta as máquinas de “suas” pessoas... Isso nos leva à trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski: muito mais que o Deus de Berkeley, que sustenta o mundo em sua mente, a Matrix máxima é o Deus ocasionalista de Malebranche.
Então o que é a Matrix? Nada mais que o “grande Outro” lacaniano, a ordem simbólica virtual, a rede que estrutura a realidade para nós. A dimensão do “grande Outro” é a da alienação constitutiva do sujeito na ordem simbólica: o grande Outro puxa as cordas, o sujeito não fala, ele “é falado” pela estrutura simbólica. Em suma, esse “grande Outro” é o nome da Substância social, da instância graças à qual o sujeito nunca domina plenamente os efeitos de seus atos, graças à qual o resultado de sua atividade é sempre outra coisa que não o almejado ou previsto. No entanto, é fundamental notar que, nos principais capítulos de seu Os quatro conceitos fundamentais da psicanálised, Lacan se esforça para delinear a operação resultante da alienação e que, de certa forma, é seu contraponto, a separação: a alienação no grande Outro é seguida da separação do grande Outro. A separação acontece quando o sujeito percebe como o grande Outro é em si inconsistente, puramente virtual, “barrado”, desprovido da Coisa – e a fantasia é uma tentativa de preencher essa falta do Outro, não do sujeito, ou seja, de (re)constituir a consistência do grande Outro.
Seguindo o mesmo viés paranoico, a tese de Matrix é que esse grande Outro é exteriorizado em um megacomputador que realmente existe. Existe – tem de existir – uma Matrix porque “as coisas não estão certas, oportunidades foram perdidas, alguma coisa dá errado o tempo todo”; em outras palavras, a ideia do filme é que as coisas são assim porque a Matrix ofusca a “verdadeira” realidade por trás de tudo. O problema com o filme é que ele não é “maluco” o suficiente, porque supõe outra realidade “real” por trás da realidade cotidiana sustentada pela Matrix. Ao modo kantiano, somos induzidos a dizer que o erro da teoria da conspiração é homólogo ao “paralogismo da razão pura”, à confusão entre os dois níveis: a suspeita (da opinião geral científica, social etc.) enquanto posicionamento metodológico formal e a positivação dessa suspeita em outra parateoria global oniexplicativa.
O excesso de loucura no coração do cogito está, portanto, intimamente ligado ao tema da liberdade. O “antagonismo” da ideia kantiana de liberdade (como a mais concisa expressão do antagonismo da liberdade na própria vida burguesa) não está onde Adorno o localiza (a lei autoimposta significa que a liberdade coincide com a autoescravidão e com a autodominação, que a “espontaneidade” kantiana é, na realidade, seu oposto, completo autocontrole, anulação de todos os ímpetos espontâneos), mas sim, como diz Robert Pippin, “muito mais na superfície”22. Tanto para Kant quanto para Rousseau, o maior bem moral é levar uma vida autônoma como agente racional livre, e o pior mal é se sujeitar à vontade do outro; no entanto, Kant teve de admitir que o homem não se descobre espontaneamente como agente racional maduro por seu desenvolvimento natural, mas apenas por meio de um processo árduo de maturação, apoiado na disciplina árdua e na educação, que não podem ser vivenciadas pelo sujeito como coerção externa:
As instituições sociais, que tanto nutrem quanto desenvolvem essa independência, são necessárias e consistentes com – não impedem – sua realização, mas, com a liberdade entendida como ação causal de um indivíduo, isso sempre parecerá uma necessidade externa, a qual temos boas razões para tentar evitar. Isso cria o problema de uma forma de dependência que pode ser considerada constitutiva da independência e não pode ser entendida como um mero compromisso com a vontade particular de outrem ou como tema marginal e separado da senilidade de Kant. Essa é, com efeito, a antinomia contida nas ideias burguesas de individualidade, responsabilidade individual...23
Nesse aspecto, podemos imaginar Kant como um precursor fortuito da tese de Foucault, em Vigiar e punir, sobre a formação do indivíduo livre por meio de um conjunto complexo de micropráticas disciplinares – e, como Pippin não hesita em destacar, essa antinomia eclode de maneira ainda mais intensa nas reflexões sócio-históricas, centradas na ideia de “sociabilidade associal”: qual é a ideia de Kant sobre a relação histórica entre democracia e monarquia, senão essa mesma tese (do elo entre liberdade e submissão a uma autoridade superior) aplicada ao próprio processo histórico? Em longo prazo (ou na ideia dele), a democracia é a única forma apropriada de governo; contudo, por causa da imaturidade das pessoas, as condições para uma democracia que funcione só podem ser estabelecidas por meio de uma monarquia não democrática que, no exercício de seu poder benevolente, leva as pessoas à maturidade política. Como seria de esperar, Kant não deixa de mencionar a racionalidade mandevilliana do mercado em que a busca de cada indivíduo por seus interesses egoístas é o que funciona melhor (muito melhor que o altruísmo direto) para o bem comum. Da maneira mais extrema, isso leva Kant à ideia de que a própria história humana é governada por um plano divino inescrutável, dentro do qual nós, mortais, estamos destinados a desempenhar um papel que não conhecemos – aqui, o paradoxo é ainda maior: nossa liberdade está ligada a seu oposto não só “de baixo”, mas também “de cima”, ou seja, ela não pode surgir somente por meio de nossa submissão e dependência, mas nossa liberdade como tal é um momento de um plano divino mais amplo; nossa liberdade não é verdadeiramente um propósito-em-si, ela serve a um propósito maior.
Podemos esclarecer – se não resolver – esse dilema introduzindo algumas distinções na ideia da própria liberdade “numenal”. Em uma análise mais atenta, fica claro que, para Kant, disciplina e educação não atuam diretamente em nossa natureza animal, moldando-a em uma individualidade humana; como afirma Kant, os animais não podem ser propriamente educados, porque seu comportamento já é predestinado por seus instintos. Isso significa que, paradoxalmente, para ser educado na liberdade (enquanto autonomia moral e responsabilidade por si mesmo) eu já tenho de ser livre em um sentido muito mais radical, “numenal”, e até monstruoso. A expressão freudiana para essa liberdade monstruosa é, mais uma vez, pulsão de morte. É interessante notar que as narrativas filosóficas do “nascimento do homem” são sempre obrigadas a pressupor um momento na (pré-)história humana em que o homem (ou aquilo que se tornará um homem) não é mais um mero animal, mas também não é ainda um “ser de linguagem”, prisioneiro da Lei simbólica; um momento da natureza totalmente “pervertida”, “desnaturalizada”, “descarrilhada”, que ainda não é cultura. Em seus escritos antropológicos, Kant destacou que o animal humano precisa de pressão disciplinar para domar essa “insubordinação” inquietante que parece ser inerente à natureza humana – uma propensão selvagem e irrestrita para insistir obstinadamente na própria vontade, custe o que custar. É por isso que o animal humano precisa de um Senhor para discipliná-lo: a disciplina tem essa “insubordinação” como alvo, não a natureza animal do homem. Em Lectures on Philosophy of History, de Hegel, papel semelhante é desempenhado pela referência aos negros africanos: significativamente, Hegel trata dos negros antes da história propriamente dita (que começa com a China Antiga) na seção intitulada “The Natural Context or the Geographical Basis of World History” [O contexto natural ou o fundamento geográfico da história universal]: os “negros”, aqui, representam o espírito humano em seu “estado de natureza”, são descritos como crianças monstruosas, pervertidas, ao mesmo tempo ingênuas e corruptas, que vivem em um estado pré-lapsário de inocência e, precisamente como tais, são os mais cruéis dos bárbaros; fazem parte da natureza e, contudo, são totalmente desnaturalizados; manipulam a natureza de maneira implacável, por meio da magia primitiva, mas ao mesmo tempo são atemorizados pela fúria das forças naturais; são covardes negligentemente corajosos24.
Esse intermediário é o “reprimido” da forma narrativa (neste caso, da “grande narrativa” hegeliana da sucessão histórico-mundial das formas espirituais): não a natureza como tal, mas a própria ruptura com a natureza que (depois) é suplementada pelo universo virtual das narrativas. Segundo Schelling, antes de se afirmar como agente do mundo racional, o sujeito é a “infinita falta de ser” (unendliche Mangel an Sein), o gesto violento da contradição que nega cada ser fora de si. Essa descoberta também forma o núcleo da ideia hegeliana de loucura: quando determina que a loucura é um recolhimento do mundo efetivo, o fechamento da alma sobre si mesma, sua “contradição”, Hegel também concebe prontamente esse recolhimento como uma “regressão” ao nível da “alma animal” ainda enraizada em seu ambiente natural e determinada pelo ritmo da natureza (noite e dia etc.). Mas esse recolhimento, ao contrário, não resultaria no rompimento dos elos com o Umwelt, o fim da imersão do sujeito em seu ambiente natural imediato, e isso não seria, como tal, o gesto fundador da “humanização”? Esse recolhimento-para-dentro-de-si não foi realizado por Descartes com sua dúvida universal e a redução ao cogito, o que, como afirmou Derrida, também envolve uma passagem pelo momento da loucura radical?
Isso nos leva à necessidade da Queda: dado o elo kantiano entre dependência e autonomia, a Queda é inevitável, um passo necessário no progresso moral do homem. Ou seja, em termos kantianos precisos: a “Queda” é a própria renúncia da minha autonomia ética radical; ocorre quando me refugio em uma Lei heteronômica, em uma Lei entendida como algo que me é imposto de fora. A finitude em que busco apoio para evitar a vertigem da liberdade é a finitude da própria Lei heteronômica externa. Nisso reside a dificuldade de ser kantiano. Todos os pais e todas as mães sabem que as provocações do filho, por mais selvagens e “transgressivas” que pareçam, no fim das contas escondem e expressam a necessidade de que uma figura de autoridade estabeleça limites firmes, trace uma linha que signifique “Até aqui, não mais do que isso!”, permitindo assim que a criança mapeie claramente o que é e o que não é possível. (E o mesmo não acontece com as provocações do histérico?) É exatamente isso que o analista se recusa a fazer, e é isso que o torna tão traumático para o analisando – paradoxalmente, é o estabelecimento de um limite firme que é libertador, e é a própria ausência de um limite firme que é vivida como sufocante.
É por isso que a autonomia kantiana do sujeito é tão difícil – sua implicação é exatamente não haver mais ninguém, não haver um agente externo de “autoridade natural” que possa fazer o trabalho por mim, que eu mesmo tenha de estabelecer o limite da minha “insubordinação” natural. Embora Kant tenha escrito de modo memorável que o homem é um animal que precisa de um senhor, não devemos nos iludir: Kant não visava um lugar-comum filosófico segundo o qual, em contraste com os animais, cujos padrões de comportamento são baseados em instintos herdados, o homem carece dessas coordenadas firmes, que, portanto, têm de ser impostas a ele de fora, por meio de uma autoridade cultural; o verdadeiro objetivo de Kant é antes apontar como a própria necessidade de um senhor externo é uma isca enganadora: o homem precisa de um senhor para esconder de si mesmo o impasse de sua difícil liberdade e responsabilidade por si mesmo. Nesse sentido preciso, um ser humano “maduro” e verdadeiramente esclarecido é um sujeito que não precisa mais de um senhor, um sujeito que pode assumir plenamente o pesado fardo de definir seus próprios limites. Essa lição kantiana (e também hegeliana) básica foi muito bem colocada por Chesterton: “Cada ato de vontade é um ato de autolimitação. Desejar uma ação é desejar uma limitação. Nesse sentido, todas as ações são ações de sacrifício de si mesmo”25.
Desse modo, a lição que temos aqui é, em sentido preciso, uma lição hegeliana: a oposição externa entre liberdade (espontaneidade transcendental, autonomia moral e responsabilidade de si) e escravidão (submissão a minha natureza, a seus instintos “patológicos” ou a um poder exterior) tem de ser transportada para a liberdade em si como o “maior” antagonismo entre a liberdade monstruosa enquanto “insubordinação” e a verdadeira liberdade moral. Contudo, um possível contra-argumento seria que esse excesso numenal da liberdade (a “insubordinação” kantiana, a “Noite do Mundo” hegeliana) é o resultado retroativo dos próprios mecanismos disciplinares (dentro do espírito do tema paulino da “Lei cria a transgressão”, ou o tópico foucaultiano de como as próprias medidas disciplinares que tentam regular a sexualidade geram o “sexo” como excesso esquivo) – o obstáculo cria aquilo que ele se esforça para controlar.
Quer dizer então que estamos lidando com o círculo fechado de um processo que põe seus próprios pressupostos? Nossa aposta é que o círculo dialético hegeliano de pôr pressupostos, longe de ser fechado, gera sua própria abertura e, com ela, o espaço para a liberdade. Para entendermos isso, precisamos partir do que parece ser o exato oposto da liberdade: o hábito mecânico cego. Na mudança de Aristóteles para Kant, para a modernidade que coloca o sujeito como pura autonomia, a condição do hábito passa de regra orgânica interior para algo mecânico, o oposto da liberdade humana: a liberdade jamais pode se tornar um hábito (ou habitual) – se se torna um hábito, deixa de ser verdadeira liberdade (por esse motivo, Thomas Jefferson escreveu que, se as pessoas devem continuar livres, elas precisam se rebelar contra o governo a cada duas décadas). Isso acabou chegando a seu apogeu em Cristo, que é “a figura de um evento puro, o oposto exato do habitual”26.
Hegel fornece aqui a correção imanente à modernidade kantiana. Como observa Catherine Malabou, a Filosofia do espírito, de Hegel, começa com um estudo do mesmo tópico com que termina a Filosofia da natureza: a alma e suas funções. Essa repetição dá uma pista de como Hegel contextualiza a transição da natureza para o espírito: “não como suprassunção, mas como reduplicação, um processo pelo qual o espírito constitui a si mesmo na e como uma segunda natureza”27. O nome dessa segunda natureza é hábito. Portanto, não é que o animal humano rompe com a natureza pela explosão criativa do espírito, que depois fica “habituada”, alienada, transformada em uma rotina insensata; a reduplicação da natureza em “segunda natureza” é primordial – é somente essa reduplicação que abre espaço para a criatividade espiritual.
Talvez essa noção hegeliana de hábito nos permita explicar a figura do zumbi, que se arrasta por aí de modo catatônico, mas persiste para sempre: não seriam os zumbis a figura do puro hábito, do hábito em sua forma mais elementar, antes do advento da inteligência (linguagem, consciência e pensamento)28? Por isso o zumbi, por excelência, é sempre alguém que conhecíamos, quando ainda vivia normalmente – o choque para a personagem em um filme sobre zumbis acontece quando ela reconhece o antigo vizinho simpático na figura assustadora que agora o persegue implacavelmente29. Desse modo, o que Hegel diz sobre os hábitos tem de ser aplicado aos zumbis: no nível mais elementar da identidade humana, todos nós somos zumbis; nossas atividades humanas “superiores” e “livres” dependem do funcionamento confiável de nossos hábitos zumbis – nesse sentido, ser zumbi é o nível zero da humanidade, do núcleo mecânico ou inumano da humanidade. O choque de encontrar um zumbi, portanto, não é o choque de encontrar um ente desconhecido, mas de ser confrontado pelo alicerce renegado de nossa própria humanidade30.
O conceito hegeliano de hábito é inesperadamente próximo da lógica do que Derrida chamou de phármakon, o suplemento ambíguo que é simultaneamente uma força de morte e uma força de vida. Por um lado, o hábito é o entorpecimento da vida, sua mecanização (Hegel o caracteriza como um “mecanismo do sentimento-de-si”31): quando algo se transforma em hábito, significa que sua vitalidade é perdida, que apenas o repetimos mecanicamente sem estarmos cientes dele. Desse modo, o hábito parece ser o exato oposto da liberdade: esta significa fazer escolhas criativas, inventar algo novo, em suma, romper com (velhos) hábitos. Pensemos na linguagem, cujo aspecto “habitual” é mais bem exemplificado por cumprimentos padronizados e ritualizados: “Olá, como você está? Prazer em vê-lo!”; nós não queremos realmente dizer isso, não há intenção viva nisso, é apenas um “hábito”. Por outro lado, Hegel enfatiza repetidas vezes que não há liberdade sem hábito: o hábito fornece o pano de fundo e o fundamento para todo exercício de liberdade. Pensemos na linguagem de novo: para que possamos exercitar a liberdade no uso da linguagem, precisamos nos acostumar totalmente com ela, habituarmo-nos a (com) ela, aprender a praticá-la, a usar suas regras “cegamente”, mecanicamente, como um hábito: somente quando o sujeito exterioriza o que aprende nos hábitos mecânicos é que ele está aberto “a ulterior atividade e ocupação”32. Não só a linguagem, mas um conjunto muito mais complexo de atividades espirituais e corporais precisa ser transformado em hábito para que o sujeito seja capaz de exercer suas funções “superiores” de trabalho e pensamento criativo – todas as operações que executamos o tempo inteiro, de maneira irrefletida, como andar, comer, segurar as coisas e assim por diante, precisam ser aprendidas e transformadas em hábitos irrefletidos. Pelos hábitos, o ser humano transforma seu corpo em um meio fluido e móvel, o instrumento da alma, que o serve sem que ele precise se concentrar conscientemente nele. Em suma, é pelos hábitos que o sujeito se apropria de seu corpo. Como Alain coloca em seu comentário sobre Hegel:
Quando a liberdade acontece, é na esfera do hábito [...] Aqui o corpo não é mais um ser estranho que reage agressivamente contra mim; é antes imbuído de alma e tornou-se o meio e o instrumento da alma; contudo, ao mesmo tempo, no hábito, o si corpóreo é entendido como verdadeiramente é; o corpo é transformado em algo móvel e fluido, capaz de expressar diretamente os movimentos internos do pensamento sem a necessidade de envolver nisso o papel da consciência ou da reflexão.33
Ainda mais radical que isso, para Hegel, viver a si mesmo (conduzir uma vida) é, para nós, algo que devemos aprender como hábito, começando no próprio nascimento. Recordemos que, segundos após o nascimento, o bebê tem de ser sacudido para que se lembre de respirar – do contrário, esquecendo-se de respirar, ele morre. Na verdade, Hegel nos lembra de que o ser humano também pode morrer de hábito: “Os seres humanos até morrem como resultado do hábito – isto é, caso tenham se tornado totalmente habituados à vida e tanto espiritualmente quanto fisicamente embotados”34. Sendo assim, nada surge “naturalmente” para o ser humano, inclusive andar e ver:
A forma do hábito abarca todos os tipos e graus da atividade do espírito; a determinação mais exterior – a determinação especial do indivíduo, de manter-se ereto – é feita um hábito por sua vontade: é uma posição imediata inconsciente, que permanece sempre Coisa de sua vontade permanente: o homem fica em pé só porque quer e enquanto quer, e só tanto tempo quanto o quer inconscientemente. Igualmente, ver etc. é o hábito concreto que de modo imediato reúne em um único ato simples as múltiplas determinações da sensação, da consciência, da intuição, do entendimento etc.35
O hábito é, portanto, um querer “despersonalizado”, uma emoção mecanizada: uma vez que me habituo a ficar de pé, quero ficar de pé sem querê-lo conscientemente, posto que meu querer está incorporado no hábito. No hábito, presença e ausência, apropriação e recuo, envolvimento e retirada, subjetivação e objetificação, consciência e inconsciência, estão estranhamente interligados. O hábito é a inconsciência necessária para o próprio funcionamento da consciência:
no hábito nossa consciência está ao mesmo tempo presente na coisa, interessada nela, e contudo, inversamente, ausente dela, indiferente por ela; [...] nosso Si tanto se apropria da Coisa quanto, ao contrário, dela se retira; [...] a alma, de um lado, penetra inteiramente em suas exteriorizações e, de outro lado, as abandona, lhes dá a figura de algo mecânico, de um simples efeito natural.36
O mesmo vale para nossas emoções: sua demonstração não é puramente natural ou espontânea, nós aprendemos a rir e a chorar em momentos apropriados (lembremos que, para os japoneses, a risada funciona de uma maneira diferente do que para nós ocidentais: um sorriso também pode ser sinal de constrangimento e vergonha). Portanto, o mecanismo externo das emoções – desde a antiga roda tibetana de orações, que ora por mim, à “risada enlatada” em que o televisor ri para mim, transformando minha demonstração emocional em algo literalmente quase mecânico – baseia-se no fato de que as demonstrações emocionais, inclusive a mais “sincera”, já são em si mesmas “mecanizadas”.
No entanto, o nível mais alto (e, já, a autossuprassunção) do hábito é a linguagem como meio de pensamento; nela, o par apropriação e retirada é levado ao limite. Isso não quer dizer que, para falar uma língua com “fluência”, tenhamos de dominar suas regras mecanicamente, sem pensar nela; de maneira muito mais radical, a codependência de insight e cegueira determina o próprio ato de compreensão: quando escuto uma palavra, além de abstrair imediatamente seu som e “ver por meio dele” seu significado (lembremos aqui a experiência esquisita de se tornar ciente da materialidade vocal não transparente de uma palavra – ela parece tão intrusiva e obscena...), eu também tenho de fazê-lo para entender de fato o significado.
Se, para Hegel, o homem é fundamentalmente um ser do hábito, se os hábitos se efetivam quando são adotados como reações automáticas que ocorrem sem a participação consciente do sujeito, e, por fim, se situamos o núcleo da subjetividade em sua capacidade de executar atos intencionais, de realizar objetivos conscientes, então, paradoxalmente, o sujeito humano é, em sua forma mais fundamental, um “sujeito que desaparece”37. A “espontaneidade irrefletida”38 do hábito explica o famoso paradoxo de escolher subjetivamente uma necessidade objetiva, de querer o que inevitavelmente vai acontecer: por sua elevação à condição de hábito, uma reação que primeiro me foi imposta de fora é internalizada, transformada em algo que executo de maneira automática e espontânea, “de dentro”:
Se uma mudança externa se repete, ela se torna uma tendência interna ao sujeito. A mudança em si é transformada em disposição, e a receptividade, antes passiva, torna-se atividade. Portanto, o hábito revela-se como um processo pelo qual o homem acaba querendo ou escolhendo o que lhe vem de fora. Doravante, a vontade do indivíduo não precisa se opor à pressão do mundo exterior; a vontade aprende gradualmente a querer o que é.39
O que torna o hábito tão central é a temporalidade que ele envolve: ter um hábito envolve uma relação com o futuro, a prescrição de como reagirei a um evento futuro qualquer. O hábito é uma característica da economia que o organismo faz de suas forças, da construção de uma reserva para o futuro. Ou seja, nos hábitos, a subjetividade “envolve em si mesma seus futuros modos de ser, os modos de se tornar efetiva”40. Isso significa que o hábito também complica a relação entre possibilidade e efetividade: ele é, stricto sensu, a efetividade de uma possibilidade. Isso significa que o hábito pertence ao nível da virtualidade (definida por Deleuze exatamente como a atualidade do possível): o hábito é atual, é uma capacidade que tenho aqui e agora de reagir de determinada maneira, e simultaneamente uma possibilidade que aponta para minha reação de determinada maneira no futuro.
Dessa noção de hábito seguem-se consequências conceituais interessantes. Ontologicamente, com respeito à oposição entre acidentes particulares e essência universal, o hábito pode ser descrito como “vir a ser essencial do acidente”41: uma vez que um acidente causado externamente tenha se repetido o bastante, ele é elevado à universalidade da disposição interna do sujeito, à característica que pertence a sua essência interna e a define. É por isso que nunca podemos determinar o início preciso de um hábito, o ponto em que as ocorrências exteriores se transformam em um hábito – uma vez que ele se formou, suas origens são obliteradas e parece como se ele sempre-já estivesse lá. A conclusão, portanto, é clara e quase sartriana: o homem não tem uma substância permanente ou uma essência universal; ele é, no próprio âmago, uma criatura do hábito, um ser cuja identidade é formada pela elevação de encontros ou acidentes contingentes externos a um hábito universal interno (internalizado). Isso significa que só os seres humanos têm hábitos? Aqui, Hegel é muito mais radical – ele dá um passo decisivo e deixa para trás a velha oposição entre natureza plenamente determinada em seu movimento circular fechado versus homem como ser da abertura e da liberdade existencial: “para Hegel, a natureza é sempre segunda natureza”42. Todo organismo natural tem de regular sua interação com o ambiente, tem de integrar o ambiente a seu interior, por meio de procedimentos habituais que “refletem” no organismo as interações externas enquanto disposições internas.
Por conta da condição virtual dos hábitos, a adoção de um (novo) hábito não é apenas uma questão de mudar uma propriedade efetiva do sujeito; antes, ela envolve uma espécie de reflexividade, uma mudança na disposição do sujeito que determina sua reação à mudança, uma mudança no tipo de mudanças às quais o sujeito é submetido: “O hábito não introduz simplesmente a mutabilidade em algo que, de outro modo, continuaria sem mudar; ele sugere a mudança numa disposição, em sua potencialidade, no caráter interno daquilo em que ocorre a mudança, o que não muda”43. É isso que Hegel quer dizer quando fala da diferenciação de si enquanto “suprassunção” das mudanças impostas externamente às mudanças de si, da diferença do exterior para o interior – somente os corpos orgânicos se diferenciam: um corpo orgânico mantém sua unidade internalizando como hábito uma mudança imposta externamente para lidar com essas mudanças futuras.
Se esse é o caso, no entanto, se a totalidade da natureza (orgânica, pelo menos) já é segunda natureza, em que consiste a diferença entre hábitos humanos e hábitos animais? A contribuição mais provocativa e inesperada de Hegel diz respeito justamente à questão da gênese dos hábitos humanos: em sua Antropologia (que abre a Filosofia do espírito), encontramos uma “genealogia dos hábitos” singular, reminiscente de Nietzsche. Essa parte da Filosofia do espírito é um dos tesouros escondidos e ainda não inteiramente explorados do sistema hegeliano, em que encontramos os traços mais claros do que só poderíamos chamar de aspecto materialista-dialético de Hegel: a passagem da natureza para o espírito (humano) é desenvolvida aqui não como uma intervenção externa direta do Espírito, como a intervenção de outra dimensão que perturba o equilíbrio do circuito natural, mas como o resultado de um longo e tortuoso “trabalho contínuo”, pelo qual a inteligência (incorporada como linguagem) surge dos antagonismos e das tensões naturais. Essa passagem não é direta, pois o Espírito (na forma de inteligência humana mediada pela fala) não confronta nem domina diretamente os processos biológicos – a “base material” do Espírito ainda é o hábito pré-simbólico (pré-linguístico).
Então, de que modo surge o hábito em si? Em sua genealogia, Hegel concebe o hábito como o terceiro e conclusivo momento do processo dialético da Alma, cuja estrutura segue a tríade formada por conceito-juízo-silogismo. No princípio, existe a Alma em sua unidade imediata, em seu mero conceito, a “alma que-sente”: “Nas sensações que surgem do encontro do indivíduo com os objetos externos, a alma começa a despertar”44. Aqui, o Si é um mero “Si senciente”, não é ainda um sujeito oposto aos objetos, mas apenas um Si que experimenta a sensação em que os dois lados, sujeito e objeto, estão imediatamente unidos: quando tenho a sensação do toque, ela é simultaneamente o indício do objeto externo que estou tocando e minha reação interna a ele; a sensação é uma coisa hipócrita, em que o subjetivo e o objetivo coincidem imediatamente. Até mesmo nos estágios posteriores do desenvolvimento do indivíduo, esse “Si senciente” sobrevive na forma do que Hegel chama de “relação mágica”, referindo-se aos fenômenos que, na época de Hegel, eram designados com termos como “sonambulismo magnético” (hipnose), todos os fenômenos em que minha Alma é diretamente – de uma maneira pré-reflexiva e não pensante – ligada aos processos externos e afetada por eles. Em vez de corpos que influenciam uns aos outros à distância (gravidade newtoniana), temos espíritos que influenciam uns aos outros à distância. Aqui, a Alma continua em seu nível mais baixo de funcionamento, diretamente imersa em seu ambiente. (O que Freud chamou de “sentimento oceânico”, fonte da experiência religiosa, é para Hegel, portanto, uma característica do nível mais baixo da Alma.) Aqui, o que falta à alma é um claro autossentimento, um sentimento de si enquanto distinto da realidade exterior, que é o que acontece no momento seguinte, o do juízo (Urteil – Hegel faz um jogo de palavras com Urteil e Ur-Teil, “divisor/divisão primordial”):
A totalidade que-sente é como individualidade essencialmente isto: diferenciar-se em si mesma, e dentro de si despertar para o julgamento, segundo o qual ela tem sentimentos particulares, e, como sujeito, está em relação com essas suas determinações. O sujeito enquanto tal põe-nas em si mesmo como seus sentimentos.45
Todos os problemas surgem desse curto-circuito paradoxal do sentimento de Si tornando-se um sentimento específico entre outros e, simultaneamente, o receptáculo geral de todos os sentimentos, o lugar onde todos os sentimentos dispersos podem ser reunidos. Malabou dá uma descrição maravilhosamente precisa desse paradoxo do sentimento de Si:
Ainda que haja uma possibilidade de reunir o material multiforme do sentimento, essa possibilidade em si torna-se parte do conteúdo objetivo. A forma precisa ser o conteúdo de tudo o que forma: a subjetividade não reside em seu próprio ser, ela “persegue” a si própria. A alma é apropriada pela apropriação de si mesma.46
Eis a característica crucial: a própria possibilidade tem de se efetivar, tem de se tornar um fato, ou a forma precisa se tornar parte do próprio conteúdo (ou, acrescentando mais uma variação do mesmo tema, o quadro em si tem de se tornar parte do conteúdo enquadrado). O sujeito é o quadro/forma/horizonte desse mundo e parte do conteúdo enquadrado (da realidade que ele observa), e o problema é que ele não pode se ver ou se localizar dentro do próprio quadro: como tudo o que existe já está dentro da moldura, a moldura como tal é invisível. A possibilidade de se situar dentro da própria realidade tem de continuar sendo uma possibilidade – no entanto, e nisso reside o ponto crucial, essa própria possibilidade tem de se efetivar enquanto possibilidade, tem de ser ativa e exercer influência enquanto possibilidade.
Temos aqui uma ligação com Kant, com o velho enigma do que ele tinha em mente justamente com a ideia de “apercepção transcendental”, da consciência-de-si acompanhando cada ato da minha consciência (quando estou consciente de algo, também estou sempre consciente do fato de que estou consciente). Não é óbvio que empiricamente isso não é verdade, que nem sempre estou reflexivamente ciente da minha própria ciência? Os intérpretes de Kant tentaram resolver esse problema afirmando que todo ato consciente meu pode potencialmente se tornar consciente de si: se eu quiser, sempre posso voltar minha atenção para o que estou fazendo. Mas isso não tem força o bastante: a apercepção transcendental não pode ser um ato que jamais precise realmente acontecer, que simplesmente poderia ter acontecido em qualquer momento. A solução desse dilema está precisamente no conceito de virtualidade no sentido deleuziano estrito, como a atualidade do possível, como um ente paradoxal cuja própria possibilidade já produz ou tem efeitos atuais. No fundo, esse Virtual não seria o simbólico como tal? Pensemos na autoridade simbólica: para que funcione como autoridade efetiva, ela tem de continuar não sendo plenamente efetivada, uma eterna ameaça.
Esta, portanto, é a condição do Si: sua percepção de si é, por assim dizer, a efetividade de sua própria possibilidade. Consequentemente, o que “persegue” o sujeito é seu inacessível Si numenal, a “Coisa que pensa”, um objeto em que o sujeito “se encontraria” plenamente47. É óbvio que, para Kant, o mesmo vale para cada objeto de minha experiência, que é sempre fenomenal, inacessível em sua dimensão numenal; no entanto, com o Si, o impasse se acentua: todos os outros objetos da experiência me são dados de maneira fenomenal, mas, no caso do sujeito, eu nem sequer posso ter uma experiência fenomenal de mim – uma vez que, nesse único caso, estou lidando “comigo mesmo”, a experiência-de-si fenomenal se igualaria ao acesso numenal; ou seja, se eu fosse capaz de experienciar “eu mesmo” como um objeto fenomenal, eu me experienciaria eo ipso em minha identidade numenal, como uma Coisa.
Aqui, o problema subjacente é a impossibilidade de o sujeito objetivar-se: o sujeito é singular e quadro universal de “seu mundo”, pois cada conteúdo que percebe é “seu próprio”; assim, de que modo o sujeito pode incluir-se (contar consigo mesmo) na série de seus objetos? O sujeito observa a realidade de uma posição externa e simultaneamente é parte dessa realidade, sem jamais ser capaz de atingir uma visão “objetiva” da realidade com ele mesmo incluso nela. A Coisa que persegue o sujeito é ele mesmo em seu contraponto objetal, enquanto objeto. Hegel escreve: “O sujeito, desse modo, encontra-se na contradição entre sua totalidade sistematizada na sua consciência e a determinidade particular que nela não é fluida nem coordenada e subordinada: [é a] demência [Verrücktheit]”48. Essa passagem deve ser lida de maneira muito precisa. O argumento de Hegel não é simplesmente que a loucura sinaliza um curto-circuito entre a totalidade e um de seus momentos particulares, uma “fixação” da totalidade nesse momento por conta do qual a totalidade é desprovida de sua fluidez dialética – embora algumas de suas formulações pareçam apontar nessa direção49. A “determinidade particular que nela não é fluida” e resiste a ser “coordenada e subordinada” é o próprio sujeito; mais precisamente, a característica (significante) que o representa (guarda seu lugar) dentro da totalidade estruturada (“sistematizada”), e posto que o sujeito nem sequer consegue se objetificar, a “contradição” aqui é absoluta50. Com essa lacuna surge a possibilidade da loucura – e, como afirma Hegel em termos protofoucaultianos, a loucura não é um lapso acidental, uma distorção ou uma “doença” do espírito humano, mas está inscrita na constituição ontológica básica do espírito de um indivíduo, pois ser humano significa ser potencialmente louco:
Essa nossa apreensão da demência, como forma ou grau que surge necessariamente no desenvolvimento da alma, não deve ser entendida, naturalmente, como se por ela se afirmasse que cada espírito, cada alma, devesse passar por esse estado de demência extrema. Tal afirmação seria tão insensata quanto talvez a suposição de que, pelo fato de ser o crime considerado como um fenômeno necessário na Filosofia do direito, se deveria, por isso, fazer a perpetração de crime uma necessidade inevitável para cada [indivíduo] singular. O crime e a demência são extremos que o espírito humano em geral deve superar no curso de seu desenvolvimento.51
Embora não seja uma necessidade factual, a loucura é uma possibilidade formal constitutiva da mente humana: ela é algo cuja ameaça tem de ser superada se quisermos nos descobrir como sujeitos “normais”, o que significa que a “normalidade” só pode surgir como a superação dessa ameaça. É por isso que, como diz Hegel algumas páginas depois, deve-se “tratar da demência antes [de tratar] da sã consciência de-entendimento, embora a demência tenha por pressuposto o entendimento”52. Nesse ponto, Hegel evoca a relação entre o abstrato e o concreto: por mais que, no estado empírico de coisas, as determinações abstratas sejam sempre-já incorporadas em um Todo concreto como seu pressuposto, a reprodução ou dedução conceitual desse Todo tem de progredir do abstrato para o concreto: os crimes pressupõem o Estado de direito, só podem acontecer como sua violação, mas, não obstante, devem ser entendidos como um ato abstrato que é “suprassumido” por meio da lei; as relações legais abstratas e a moralidade são de facto sempre encarnadas em uma totalidade concreta de costumes; no entanto, a filosofia do direito tem de progredir dos momentos abstratos de legalidade e moralidade para a totalidade concreta dos costumes (família, sociedade civil, Estado). Interessante aqui não é o paralelo entre loucura e crime, mas sim o fato de que a loucura é situada no espaço aberto pela discórdia entre desenvolvimento histórico efetivo e representação conceitual; ou seja, no espaço que solapa a noção evolucionista vulgar de desenvolvimento dialético enquanto reprodução conceitual do desenvolvimento histórico factual que purifica essa reprodução de suas contingências empíricas insignificantes. Na medida em que a loucura de facto pressupõe a normalidade enquanto a precede conceitualmente, podemos dizer que o “louco” é precisamente o sujeito que quer “viver” – reproduzir na própria efetividade – a ordem conceitual, agir como se a loucura também precedesse efetivamente a normalidade.
Agora podemos ver exatamente em que sentido os hábitos formam o terceiro e conclusivo momento da tríade, seu “silogismo”: no hábito, o sujeito encontra um modo de “possuir a si mesmo”, de estabilizar seu próprio conteúdo interno “tendo” como propriedade um hábito, não uma característica positiva efetiva, mas um ente virtual, uma disposição universal para (re)agir de certa maneira. O hábito e a loucura, portanto, devem ser pensados juntos: o hábito é uma maneira de estabilizar o desequilíbrio da loucura. Outra forma de tratar do assunto é pela relação entre alma e corpo enquanto Interior e Exterior, como uma relação circular em que o corpo expressa a alma e a alma recebe as impressões do corpo – a alma é sempre-já encarnada, e o corpo é sempre-já impregnado de sua alma:
O que a alma que-sente encontra em si mesma é, por um lado, a imediatez natural, enquanto nela feita “ideal” e apropriada a ela. Por outro lado, inversamente, o que pertence originariamente ao ser-para-si [individualidade central] [...] é determinado a [ser] corporeidade natural e sentido assim.53
Então, por um lado, por meio de sentimentos e percepções, eu internalizo objetos que me afetam de fora: em um sentimento, eles estão presentes em mim não em sua realidade crua, mas “idealmente”, como parte de minha mente. Por outro lado, por meio de caretas etc., meu corpo imediatamente “dá corpo” a minha alma interior, que o impregna por completo. No entanto, se essa fosse toda a verdade, o homem seria apenas um “prisioneiro desse estado de natureza”54, movendo-se no circuito fechado da absoluta transparência produzido pelo mútuo espelhar-se de corpo e alma55. O que acontece com o momento do “juízo” é que o circuito desse círculo fechado é rompido – não pela intrusão de um elemento externo, mas por uma autorreferencialidade que retorce esse círculo para dentro de si. Em outras palavras, o problema é que, como “o indivíduo, ao mesmo tempo é somente ‘o que tem feito’, então o seu corpo é também a expressão de si mesmo, por ele produzida”56. Isso significa que o processo da autoexpressão corporal não tem um Referente preexistente como ponto de ancoragem: todo o movimento é completamente autorreferencial, é somente pelo processo de “expressão” (exteriorização em sinais corporais) que o Interior (conteúdo desses sinais) é retroativamente criado – ou, como resume Malabou: “A unidade psicossomática resulta de uma autointerpretação independente de qualquer referente”57. O transparente refletir-se da alma e do corpo na expressividade natural, portanto, torna-se total opacidade:
Se uma obra significa a si mesma, isso indica que não há um “fora” da obra, a obra age como seu próprio referente: ela apresenta o que interpreta, ao mesmo tempo que interpreta, formando uma e mesma manifestação [...] O espiritual concede a forma, mas apenas porque ela mesma é formada em troca.58
Essa “falta de garantia ontológica fora do jogo de significação”59 quer dizer que o significado de nossos gestos e atos de fala é sempre perseguido pelo espírito da ironia: quando eu digo A, é sempre possível que o diga para esconder o fato de que sou não-A – Hegel refere-se ao conhecido aforismo de Lichtenberg: “ages na verdade como um homem honesto, mas vejo por teu aspecto que te forças, e que és um canalha no teu coração”60. Aqui, a ambiguidade é total e insolúvel, pois o engano é o que Lacan designa como especificamente humano, isto é, a possibilidade de existir disfarçado de verdade. É por isso que ela vai ainda muito além da citação de Lichtenberg – antes, a reprimenda deveria ser: “ages na verdade como um homem honesto para nos convencer de que o fazes por ironia, consequentemente nos escondendo o fato de que és realmente um homem honesto!”. É isso que Hegel quer dizer em sua afirmação de que, “para a individualidade, [é] tanto seu rosto quanto sua máscara que pode retirar”61: na lacuna entre aparência (máscara) e minha verdadeira atitude interior, a verdade pode ser ou minha atitude interior ou minha máscara. Isso quer dizer que as emoções que represento por meio da máscara (a falsa persona) que adoto podem estranhamente ser mais autênticas e verdadeiras do que aquilo que realmente sinto em mim mesmo. Quando construo uma falsa imagem de mim mesmo, que me substitui em uma comunidade virtual da qual participo (na interação sexual virtual, por exemplo, os homens tímidos muitas vezes assumem na tela a persona de uma mulher atraente e promíscua), as emoções que sinto e finjo como parte da minha persona na tela não são simplesmente falsas: embora (o que penso que seja) meu verdadeiro si não as sinta, elas são, de certa forma, “verdadeiras”. Por exemplo, e se eu for, bem no fundo, um sádico pervertido, que sonha em espancar outros homens e violentar mulheres; na interação que tenho com as outras pessoas na vida real, não tenho permissão para representar esse verdadeiro si, por isso adoto uma persona mais modesta e educada – nesse caso, meu verdadeiro si não seria muito mais próximo daquele que adoto como persona fictícia na tela do computador, enquanto o si das interações que tenho na vida real é uma máscara que esconde a violência do meu verdadeiro si?
O hábito fornece a saída dessa difícil situação. Como? Não como a “verdadeira expressão” do sujeito, mas situando a verdade na expressão “irrefletida” – lembremos aqui o tema recorrente em Hegel, de que a verdade está no que dizemos, não no que queremos dizer. Pensemos mais uma vez na condição enigmática do que chamamos de “polidez”: quando encontro um conhecido e digo “Que bom encontrar você! Como você está?”, fica claro para nós dois que, de certa forma, eu “não estava falando sério”62. No entanto, seria errado rotular meu ato como simplesmente “hipócrita”, pois eu estava falando sério: a desculpa polida estabelece um tipo de pacto entre nós dois, no mesmo sentido em que rio “sinceramente” por meio da risada enlatada (prova disso é o fato de eu efetivamente “sentir-me aliviado” depois). Isso mostra uma possível definição de louco como um sujeito incapaz de participar dessa lógica de “mentiras sinceras”, de modo que, quando um amigo o cumprimenta, dizendo “Que bom ver você! Como você está?”, ele retruca: “Você está realmente feliz em me ver ou está fingindo? E quem lhe deu o direito de perguntar sobre o meu estado?”.
A mesma sobreposição de aparência e verdade costuma estar em jogo na autopercepção ideológica. Lembremo-nos aqui a brilhante análise de Marx sobre o fato de o republicano e conservador Partido da Ordem ter funcionado, durante a Revolução Francesa de 1848, como coalizão entre dois ramos do monarquismo (orleanistas e legitimistas) no “reino anônimo da República”63. Os deputados do Partido da Ordem viam seu republicanismo com escárnio: nos debates parlamentares, frequentemente cometiam deslizes verbais monarquistas e ridicularizavam a República, para que todos soubessem que seu verdadeiro objetivo era restaurar a monarquia. O que não sabiam é que eles mesmos estavam enganados quanto ao verdadeiro impacto social de seu regime. Na verdade, o que faziam era estabelecer as condições da ordem republicana burguesa que tanto desprezavam (por exemplo, ao garantir a segurança da propriedade privada). Portanto, não é que fossem simplesmente monarquistas que usavam a máscara republicana: embora se sentissem desse modo, sua própria convicção monarquista “interior” é que era a fachada enganosa que mascarava seu verdadeiro papel social. Em suma, longe de ser a verdade oculta de seu republicanismo público, seu monarquismo sincero era o suporte fantasmático de seu real republicanismo – era o que dava paixão à atividade. Será que os deputados do Partido da Ordem não estavam fingindo que fingiam ser republicanos para ser o que realmente eram?
A conclusão radical de Hegel é que o signo com que lidamos em expressões corpóreas “na verdade nada significa” [in Wahrheit nicht bezeichnet]64. O hábito, portanto, é um signo estranho que “significa o fato de não significar nada”65. O que Hölderlin propôs como fórmula para nossa situação de destituído – para uma era em que, porque os deuses nos abandonaram, nós somos “sinais sem significado” – adquire aqui uma interpretação positiva inesperada. E deveríamos interpretar as palavras de Hegel literalmente: o “nada” tem peso positivo, ou seja, o signo que “na verdade nada significa” é o que Lacan chama de significante, aquilo que representa o sujeito para outro significante. O “nada” é o vazio do próprio sujeito, de modo que a ausência de uma referência máxima significa que a ausência em si é a máxima referência, e essa ausência é o próprio sujeito. Por essa razão escreve Malabou: “O espírito não é expresso por suas expressões; ele é aquilo que originalmente aterroriza o espírito”66. Aqui, a dimensão da perseguição, o elo entre espírito enquanto luz da Razão e espírito enquanto fantasma obsceno, é crucial: o espírito ou a Razão, por uma necessidade estrutural, é para sempre perseguido pelas aparições obscenas de seu próprio espírito.
O ser humano é esta noite, este nada vazio, que contem tudo na sua simplicidade – uma riqueza infindável de muitas representações, imagens, das quais nenhuma lhe pertence ou não estão presentes. Esta noite, o interior da natureza, que existe aqui – o puro si – em representações fantasmagóricas, é noite em toda parte, na qual nasce aqui uma cabeça ensanguentada – e ali outra aparição branca e terrível, de repente aqui diante dela, e depois desaparece simplesmente. Avistamos esta noite quando olhamos os seres humanos nos olhos – uma noite que se torna terrível.67
Mais uma vez, não devemos nos deixar confundir pelo poder poético dessa passagem, mas lê-la de maneira precisa. A primeira coisa que devemos notar é que os objetos que flutuam livremente ao nosso redor, nessa “noite do mundo”, são membra disjecta, objetos parciais, objetos separados de seu Todo orgânico – não haveria aqui um estranho eco entre essa passagem e a descrição de Hegel do poder negativo do Entendimento que é capaz de abstrair um ente (um processo, uma propriedade) de seu contexto substancial e tratá-lo como se tivesse existência própria? “Mas o fato de que, separado de seu contorno, o acidental como tal – o que está vinculado, o que só é efetivo em sua conexão com outra coisa – ganhe um ser-aí próprio e uma liberdade à parte, eis aí a força portentosa do negativo”68. Portanto, é como se, no cenário terrível da “noite do mundo”, encontrássemos algo como o poder do Entendimento em seu estado natural, o espírito na forma de um protoespírito – esta é talvez a definição mais precisa de horror: quando um estado superior de desenvolvimento inscreve-se violentamente no estado inferior, em seu fundamento/pressuposto, onde só pode parecer uma bagunça monstruosa, uma desintegração da ordem, uma combinação terrificante e não natural de elementos naturais.
No contexto da ciência contemporânea, encontramos esse horror em sua manifestação mais pura quando as manipulações genéticas dão errado e geram objetos jamais vistos na natureza, aberrações como bodes com uma orelha gigante no lugar da cabeça ou uma cabeça com um olho só – acidentes sem sentido que, no entanto, atingem fantasias profundamente reprimidas e, com isso, desencadeiam interpretações extraordinárias. O puro Si como “interior da natureza”69 representa esse paradoxal curto-circuito do supernatural (espiritual) em seu estado natural. Por que isso acontece? A única resposta consistente é materialista: porque o espírito é parte da natureza e só pode ocorrer ou surgir por meio de uma monstruosa afecção de si (distorção, demência) da natureza. Nisso consiste o paradoxal limite materialista do espiritualismo vulgar: exatamente porque o espírito é parte da natureza, porque não intervém nela – ela já está constituída, já foi feita de antemão –, mas tem de surgir dela por meio de sua demência, é que não há espírito (Razão) sem espíritos (fantasmas obscenos), que o espírito é para sempre perseguido por espíritos.
É desse ponto de vista que deveríamos (re)interpretar a descrição merecidamente famosa de Sartre, em O ser e o nada, do garçom da cafeteria que, com uma teatralidade exagerada, executa os gestos clichês dos garçons e, com isso, “brinca de ser garçom”:
Tem gestos vivos e marcados, um tanto precisos demais, um pouco rápidos demais, e se inclina com presteza algo excessiva. Sua voz e seus olhos exprimem interesse talvez demasiado solícito pelo pedido do freguês. Afinal volta-se, tentando imitar o rigor inflexível de sabe-se lá que autômato [...].70
A tese ontológica subjacente de Sartre – “o garçom não pode ser garçom, de imediato e por dentro, à maneira que esse tinteiro é tinteiro”e – não aponta para a tese clássica de Lacan de que o louco não é apenas o mendigo que pensa que é rei, mas também o rei que pensa ser rei? Devemos ser bastante precisos nessa leitura: como Robert Bernasconi observa em seu comentário, há muito mais na tese de Sartre do que uma simples ideia sobre a mauvaise foi [má-fé] e objetificação de si (para poder encobrir ou escapar do vazio de sua liberdade, o sujeito agarra-se a uma firme identidade simbólica); o que Sartre faz é mostrar que, pelo próprio exagero dos gestos, pela própria identificação excessiva com o papel, o garçom em questão sinaliza sua distância em relação ao papel e assim afirma sua subjetividade. De fato, esse garçom francês
brinca de ser garçom agindo como um autômato, assim como o papel de um garçom nos Estados Unidos, por uma estranha inversão, é brincar de agir como um amigo. No entanto, o argumento de Sartre é que, independentemente do papel que o garçom seja incitado a representar, a principal regra a que ele obedece é que deve romper as regras e fazer isso obedecendo a elas de maneira exagerada. Ou seja, o garçom não apenas obedece às regras verbais, que seria a obediência a determinado tipo de tirania, mas vai longe demais na obediência dessas regras. O garçom é bem-sucedido em rejeitar a tentativa de reduzir-se a nada mais que ser um garçom, não por recusar o papel, mas por salientar o fato de que ele está brincando com o papel a ponto de escapar dele. O garçom faz isso exagerando as coisas, fazendo demais. O garçom francês, em vez de desaparecer dentro do papel, exagera os movimentos que o tornam algo como um autômato, de maneira que atrai a atenção para si, assim como, podemos acrescentar, o garçom norte-americano quintessencial é muito mais simpático que apenas simpático. Para explicar essa superfluidade humana, Sartre usa a mesma palavra que usou em A náusea – trop.71
É fundamental completar essa descrição com seu oposto simétrico: nós não nos identificamos verdadeiramente com nosso papel quando nos “superidentificamos” com ele, mas sim quando o desempenhamos, obedecendo às regras, com pequenas violações ou idiossincrasias feitas para sinalizar que, por trás da regra, há uma pessoa real que não pode ser diretamente identificada com o papel ou reduzida a ele. Em outras palavras, é completamente errado interpretar o comportamento do garçom como um caso de mauvaise foi: seu ato exagerado abre espaço, de maneira negativa, para seu autêntico si, posto que sua mensagem é “não sou o que estou brincando de ser”. A verdadeira mauvaise foi consiste exatamente em embelezar o desempenho do meu papel com detalhes idiossincráticos – é esse “toque pessoal” que dá espaço para a falsa liberdade, permitindo que eu me adapte a minha auto-objetificação no papel que estou desempenhando. (O que dizer então daqueles raros e estranhos momentos vividos em uma cafeteria norte-americana em que subitamente suspeitamos que a simpatia do garçom é genuína72?)
Isso nos leva de volta à nossa pergunta original: em que consiste a diferença entre hábitos humanos e animais? Somente os humanos, seres espirituais, são perseguidos por espíritos – por quê? Não apenas porque, em contraposição aos animais, eles têm acesso à universalidade, mas porque essa universalidade é, para eles, tanto necessária quanto impossível; enfim, é um problema. Em outras palavras: embora seja prescrito para os seres humanos, o lugar da universalidade jamais pode ser preenchido com seu conteúdo “próprio”. A especificidade do homem, portanto, diz respeito à relação entre a essência universal e seus acidentes: para os animais, acidentes permanecem meros acidentes; somente o ser humano postula a universalidade como tal, relaciona-se com ela e, por isso, pode refletidamente elevar os acidentes à essência universal. É por isso que o homem é um “ser genérico” (Marx): parafraseando a definição de Heidegger para Dasein, podemos dizer que o homem é um ser pelo qual seu gênero é por si mesmo um problema: “O homem pode ‘apresentar o gênero’ na medida em que é o elemento imprevisto do gênero”73.
Dessa formulação surge uma ligação imprevista com a ideia de hegemonia como foi desenvolvida por Ernesto Laclau: sempre há uma lacuna entre a universalidade do gênero do homem e os hábitos particulares que preenchem seu vazio; os hábitos são sempre “inesperados”, contingentes, acidentes elevados à necessidade universal. O predomínio de um ou outro hábito é o resultado de uma luta por hegemonia, uma luta sobre a qual o acidente ocupará o lugar vazio da universalidade. Quer dizer, com respeito à relação entre universalidade e particularidade, a “contradição” na condição humana – um sujeito humano percebe a realidade de um ponto de vista subjetivo singular e, ao mesmo tempo, percebe a si mesmo como incluído nessa mesma realidade como parte dela, como um objeto nela – significa que o sujeito tem de pressupor a universalidade (há uma ordem universal, um tipo de “Grande Cadeia do Ser”, da qual ele faz parte), ao mesmo tempo que sempre será impossível para ele preencher totalmente essa universalidade com seu conteúdo particular, harmonizar o Universal e o Particular (posto que sua abordagem da realidade é sempre marcada – colorida, retorcida, distorcida – por sua perspectiva singular). A universalidade é sempre necessária e ao mesmo tempo impossível.
O conceito de hegemonia de Laclau oferece uma matriz exemplar da relação entre universalidade, contingência histórica e o limite de um Real impossível – e devemos sempre ter em mente que estamos lidando aqui com um conceito distinto, cuja especificidade costuma ser ignorada (ou reduzida a uma vaga generalidade quase gramsciana) por aqueles que se referem a ele. A principal característica do conceito de hegemonia está na contingente conexão entre diferenças intrassociais (elementos dentro do espaço social) e o limite que separa a sociedade em si da não sociedade (caos, decadência completa, dissolução de todos os elos sociais) – o limite entre o social e sua exterioridade, o não social, só pode se articular na forma de uma diferença (mapeando-se por sobre uma diferença) entre os elementos dentro do espaço social. Em outras palavras, o antagonismo radical só pode ser representado de maneira distorcida, por meio de diferenças particulares internas ao sistema. As diferenças externas, portanto, também são sempre-já internas e, além do mais, a ligação entre a diferença interna e a externa é, em última análise, contingente, o resultado da luta política por hegemonia.
Aqui, é claro, o contra-argumento anti-hegeliano é que essa lacuna irredutível entre o (quadro) universal e seu conteúdo particular é o que caracteriza a finita subjetividade kantiana. A “universalidade concreta” hegeliana não seria a expressão mais radical da fantasia da plena reconciliação entre o universal e o particular? Sua característica básica não seria a autogeração de todo o conteúdo particular a partir do automovimento da própria universalidade? Contra essa crítica comum, devemos insistir na proximidade entre a ideia de hegemonia de Laclau e a ideia hegeliana de “universalidade concreta”. Nesta, a diferença específica sobrepõe-se à diferença constitutiva do gênero em si, assim como, na ideia de hegemonia de Laclau, a lacuna antagônica entre sociedade e seu limite externo, a não sociedade, é mapeada em uma diferença estrutural intrassocial. O próprio Laclau rejeita a “reconciliação” entre universal e particular em nome da lacuna que para sempre separa o universal vazio ou impossível do conteúdo particular contingente que o hegemoniza. No entanto, se examinarmos Hegel mais de perto, veremos que – na medida em que cada espécie particular não se “enquadra” em seu gênero universal –, quando finalmente chegamos a uma espécie particular que se enquadra plenamente nesse conceito, o próprio conceito universal é transformado em outro conceito. Nenhum Estado histórico existente corresponde plenamente ao conceito de Estado – a necessidade de uma passagem dialética do Estado (“espírito objetivo”, história) para a Religião (“espírito absoluto”) envolve o fato de que o único Estado existente que corresponde de fato a seu conceito é a comunidade religiosa – que justamente não é mais Estado. Aqui encontramos o paradoxo propriamente dialético da “universalidade histórica” enquanto historicidade: na relação entre um gênero e suas subespécies, uma dessas subespécies sempre será o elemento que nega a mesma característica universal do gênero. Diferentes países têm diferentes versões de futebol; os norte-americanos não têm (ou não tinham) futebol porque “o futebol deles é o beisebol”. Daí também a famosa afirmação de Hegel de que o povo moderno não reza pela manhã porque ler o jornal é sua reza matinal. Da mesma maneira, nos Estados “socialistas” que estão se desintegrando, clubes de escritores e outros clubes culturais funcionam como partidos. Da mesma maneira, as “mulheres” se tornam uma das subespécies do homem, a Daseinsanalyse heideggeriana se torna uma das subespécies da fenomenologia, “suprassumindo” a universalidade precedente.
O ponto impossível da “auto-objetificação” seria precisamente o ponto em que a universalidade e seu conteúdo particular são plenamente harmonizados – em suma, o ponto em que não haveria luta por hegemonia. E isso nos leva de volta à loucura: sua definição mais sucinta é a de uma harmonia direta entre universalidade e seus acidentes, de uma supressão da lacuna que separa as duas – para o louco, o objeto que é seu substituto impossível dentro da realidade objetal perde seu caráter virtual e torna-se parte totalmente integrante dessa realidade. Em contraposição à loucura, o hábito evita a armadilha da identificação direta graças a seu caráter virtual: a identificação do sujeito com um hábito não é uma identificação direta com uma característica positiva, mas uma identificação com uma disposição, uma virtualidade. O hábito é o resultado de uma luta por hegemonia: é um acidente elevado a uma “essência”, à necessidade universal, feito para preencher seu lugar vazio.
a Emmanuel Levinas, Totalidade e infinito (trad. José Pinto Ribeiro, 3. ed., Lisboa, Edições 70, 2008). (N. E.)
1 Por exemplo, o discurso de Levinas – e, mais tarde, de Marion – sobre Deus “além do Ser” simplesmente reduz o ser ao domínio da realidade positiva, incluindo seu horizonte ontológico transcendental, e deixa de lado a questão de como, apesar de tudo, a dimensão divina “além do ser” aparece em um horizonte determinado da abertura do ser.
b Trad. José Teixeira Coelho Netto, 9. ed., São Paulo, Perspectiva, 2010. (N. E.)
2 Uma descrição sólida e equilibrada dessa polêmica é dada em Roy Boyne, Foucault and Derrida: The Other Side of Reason (Londres, Unwin Hyman, 1990).
c Trad. Jacó Guinsburg e Bento Prado Júnior, 4. ed., São Paulo, Nova Cultural, 1988. (N. E.)
3 Jacques Derrida, “Cogito e História da loucura”, em A escritura e a diferença (trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho, 4. ed., São Paulo, Perspectiva, 2009), p. 85.
4 Ibidem, p. 78-80.
5 Ibidem, p. 82.
5 Ibidem, p. 85.
7 Ibidem, p. 86.
8 Idem.
9 Recordemos Freud que, em sua análise do paranoico juiz Schreber, aponta como o “sistema” paranoico não é loucura, mas uma tentativa desesperada de escapar da loucura – a desintegração do universo simbólico – por meio de um universo ersatz de significado.
10 Michel Foucault, “Prefácio (Folie et déraison)”, em Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise (trad. Vera Lucia Avellar Ribeiro, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2006), p. 153.
11 Ibidem, p. 157.
12 Michel Foucault, Vigiar e punir (trad. Raquel Ramalhete, 37. ed., Petrópolis, Vozes, 2009), p. 285.
13 Roy Boyne, Foucault and Derrida, cit, p. 118.
14 “A leitura [...] não pode legitimamente transgredir o texto em direção a algo que não ele [...]. Não há fora-de-texto” (Jacques Derrida, Gramatologia, trad. Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro, São Paulo, Perspectiva, 1973, p. 194).
15 Michel Foucault, “Prefácio à Transgressão”, em Estética: literatura e pintura, música e cinema (trad. Inês Autran Dourado Barbosa, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2009), p. 32.
16 Michel Foucault, “Mon corps, ce papier, ce feu”, em Histoire de la folie à l’âge classique (Paris, Gallimard, 1972), p. 602. [Este texto é um apêndice ao História da loucura, e também foi publicado na série Ditos e escritos; no entanto, não consta na edição brasileira de ambos. (N. T.)]
17 Ibidem, p. 584.
18 Daniel C. Dennett, Consciousness Explained (Nova York, Little, Brown, 1991), p. 416.
19 Ver Jacques Lacan, Televisão (trad. Antonio Quinet, Rio de Janeiro, Zahar, 1993).
20 A principal obra de Nicolas Malebranche é De la recherches de la vérité (Paris, Vrin, 1975), publicada originalmente em 1674-75.
21 Sobre essa ambiguidade, ver Paul Virilio, A arte do motor (trad. Paulo Roberto Pires, São Paulo, Estação Liberdade, 1996).
d Trad. M. D. Magno, 2. ed. rev., Rio de Janeiro, Zahar, 1985. (N. E.)
22 Robert Pippin, The Persistence of Subjectivity, cit., p. 118.
23 Ibidem, p. 118-9.
24 Ver G. W. F. Hegel, Lectures on the Philosophy of World History. Introduction: Reason in History (trad. H. B. Nisbet, Cambridge, Cambridge University Press, 1975), p. 176-90.
25 G. K. Chesterton, Ortodoxia (trad. Almiro Pisetta, São Paulo, Mundo Cristão, 2008), p. 67.
26 Catherine Malabou, The Future of Hegel (Abingdon, Routledge, 2005), p. 117. (Essa é uma obra em que me baseei muito para escrever este texto.)
27 Ibidem, p. 26.
28 Devo essa observação a Caroline Schuster, de Chicago.
29 Sendo assim, os zumbis, essas figuras estranhas [un-canny, un-heimlich], devem ser opostas aos alienígenas que invadem o corpo de um terrestre: enquanto os aliens se parecem e agem como seres humanos, mas são de fato alheios à raça humana, os zumbis são seres humanos que não se parecem ou agem mais como seres humanos; no caso do alienígena, nós nos tornamos subitamente cientes de que uma pessoa próxima – esposa, filho, pai – foi tomada por um alienígena; no caso do zumbi, o choque está no fato de a estranha figura rastejante ser alguém próximo de nós.
30 Há, é claro, uma grande diferença entre os movimentos letárgicos e automatizados dos zumbis e a plasticidade sutil dos hábitos propriamente ditos, de sua experiência refinada; no entanto, os hábitos propriamente ditos surgem quando o nível do hábito é suplementado pelo nível da fala e da consciência propriamente dita. O comportamento à maneira de um zumbi “cego” nos proporciona, por assim dizer, a “base material” para a plasticidade refinada dos hábitos propriamente ditos: a matéria de que são feitos esses hábitos propriamente ditos.
31 G. W. F. Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, v. 3: A filosofia do espírito, cit., § 410, p. 169.
32 Ibidem, § 410, p. 168.
33 Alain, Idées: introduction à la philosophie (Paris, Flammarion, 1983), p. 200; tomei como base a tradução em Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 36. [Ed. bras.: Ideias: introdução a filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 1993.]
34 G. W. F. Hegel, Elements of the Philosophy of Right (trad. H. B. Nisbet, Cambridge, Cambridge University Press, 1991), § 151, p. 195. [Essa citação aparece no adendo escrito por H. G. Hotho, um dos pupilos de Hegel. Nenhuma das traduções brasileiras consultadas (das editoras Martins Fontes e Loyola) foi feita a partir das edições originais comentadas. (N. T.)]
35 Idem, A filosofia do espírito, cit., § 410, p. 170-1.
36 Ibidem, § 410, p. 175.
37 Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 75.
38 Ibidem, p. 70.
39 Ibidem, p. 70-1.
40 Ibidem, p. 76.
41 Ibidem, p. 75.
42 Ibidem, p. 57.
43 Félix Ravaisson, De l’habitude (Paris, Fayard, 1984), p. 10, como traduzido em Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 5-8.
44 Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 32.
45 G. W. F. Hegel, A filosofia do espírito, cit., § 407, p. 147.
46 Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 35.
47 Hume explorou muito – até demais – essa observação de que, na introspecção, tudo o que percebo em mim mesmo são minhas ideias, sensações e emoções particulares, nunca meu próprio “Si”.
48 G. W. F. Hegel, A filosofia do espírito, cit., § 408, p. 148.
49 Não seria a fixação paranoica esse curto-circuito em que a totalidade da minha experiência torna-se não dialeticamente “fixada” em um momento particular, a ideia do meu perseguidor?
50 Em uma análise mais minuciosa, torna-se claro que a ideia hegeliana de loucura oscila entre dois extremos que ficamos tentados a denominar, com referência à noção de violência de Benjamin, loucura constitutiva e loucura constituída. Há primeiro a loucura constitutiva: a “contradição” radical da própria condição humana, entre o sujeito enquanto “nada”, pontualidade evanescente, e o sujeito enquanto “todo”, horizonte de seu mundo. Há em seguida a loucura “constituída”: a fixação direta em – identificação com – uma característica particular como tentativa de resolver (ou, melhor, eliminar) a contradição. De maneira homóloga à ambiguidade da ideia lacaniana do objet petit a, a loucura nomeia ao mesmo tempo a contradição ou vazio e a tentativa de resolvê-la.
51 G. W. F. Hegel, A filosofia do espírito, cit., adendo, § 408, p. 150.
52 Ibidem, § 408, p. 156,
53 Ibidem, §401, p. 94. [Esse trecho é citado em Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 32-3, e contém uma ligeira diferença de sentido em relação ao texto de Hegel. Os colchetes referem-se a essa diferença. (N. T.)]
54 Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 67.
55 A fisiognomonia e a frenologia permanecem nesse nível, bem como as ideologias contemporâneas da Nova Era, impondo que expressemos ou realizemos nossos verdadeiros Sis.
56 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito (trad. Paulo Meneses, 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1992), parte I, § 310, p. 197.
57 Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 71.
58 Ibidem, p. 72.
59 Ibidem, p. 68.
60 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte I, § 322, p. 204.
61 Ibidem, § 318, p. 202.
62 Se meu interlocutor suspeitar que estou realmente interessado, pode até ficar desagradavelmente surpreso, como se eu desejasse algo íntimo demais, que não me dissesse respeito – ou, como diz a velha piada freudiana, “por que você diz que está feliz em me ver quando realmente está feliz em me ver!?”.
63 Ver Karl Marx, “Class Struggles in France”, em Karl Marx e Friedrich Engels, Collected Works (Londres, Lawrence & Wishart, 1978), v. 10, p. 104.
64 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte I, § 318, p. 202.
65 Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 67.
66 Ibidem, p. 68.
67 G. W. F. Hegel, “Jenaer Realphilosophie”, em Frühe politische Systeme (Frankfurt, Ullstein, 1974), p. 204; uso aqui a tradução citada em Donald Phillip Verene, Hegel’s Recollection (Albany, Suny Press, 1985), p. 7-8. Hegel também menciona o “poço noturno em que se conserva um mundo de imagens infinitamente numerosas, sem que estejam na consciência” (G. W. F. Hegel, A filosofia do espírito, cit., v. 3, § 453, p. 237. Aqui, a fonte histórica de Hegel é Jacob Böhme.
68 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., parte I, § 32, p. 38.
69 Uma expressão estranha, posto que, para Hegel, a natureza, precisamente, não tem interior: sua condição ontológica é a da externalidade, não só externalidade com respeito a um Interior pressuposto, mas externalidade com respeito a si mesma.
70 Jean-Paul Sartre, O ser e o nada (trad. Paulo Perdigão, 6. ed., Rio de Janeiro, Petrópolis, Vozes, 1998), p. 105.
e Ibidem, p. 106.
71 Robert Bernasconi, How to Read Sartre (Londres, Granta, 2006), p. 38.
72 Sartre também chama a atenção para uma distinção crucial entre esse tipo de “representação de um papel” e a “representação de um papel” no teatro, na qual o sujeito simplesmente imita os gestos de um garçom para o deleite dos espectadores ou como parte de um espetáculo cênico: em clara oposição à imitação teatral, o garçom que “brinda de ser garçom” realmente é um garçom. Como diz Sartre, o garçom “realiza” a condição de ser um garçom, ao passo que um ator que representa um garçom no palco é “irrealizado” em seu papel. Em termos linguísticos, o que explica essa diferença é a condição performativa dos atos: no caso de um ator, a “eficácia” performativa é suspensa. Um psicótico é exatamente aquele que não vê (ou, antes, não “sente”) essa diferença: para ele, tanto o garçom real quanto o ator estão apenas “representando um papel”.
73 Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 74.