O parágrafo final de Martin Eden, de Jack Londona, que descreve o suicídio do herói por afogamento, é a passagem mais famosa do livro:
Ele parecia flutuar languidamente naquele mar de visão onírica. Luzes e cores resplandecentes o cercavam, banhavam, permeavam. O que era aquilo? Parecia um farol, mas a luz clara e forte brilhava dentro da cabeça dele, e parecia piscar cada vez mais rápido. Houve um longo e forte estrondo, e ele sentiu como se caísse de uma escada interminável. E em algum lugar, bem lá no fundo, entrou na escuridão. Isso ele sabia muito bem. Tinha caído para a escuridão. E, no momento em que soube, deixou de saber.
Como Martin chegou a esse ponto? O que o levou ao suicídio foi o próprio sucesso – o romance fala da crise da investidura de maneira simples, mas extremamente radical: depois de longos anos de luta e trabalho duro, Martin finalmente consegue ter sucesso e se tornar um escritor famoso; no entanto, apesar de usufruir de riqueza e fama, uma coisa o incomoda:
uma coisinha que, se fosse conhecida, deixaria o mundo perplexo. Mas o mundo ficaria perplexo diante da perplexidade dele e não diante da coisa que para ele se agigantava. O juiz Blount o convidara para jantar. Essa era a coisinha, ou o início do que logo se tornou uma coisa gigantesca. Ele havia insultado o juiz, tratando-o de um jeito abominável, e o juiz, ao encontrá-lo na rua, convidara-o para jantar. Martin se lembrou das diversas ocasiões em que encontrou o juiz Blount na casa de Morse e não fora convidado para jantar. Por que o juiz não o convidara antes? – perguntou-se. Ele não mudou; era o mesmo Martin Eden. O que fez diferença? O fato de as coisas que escreveu terem aparecido nos livros? Mas isso era um trabalho feito, e não algo que ele vinha fazendo desde aquela época. Era uma tarefa já cumprida no momento exato em que o juiz Blount compartilhava esse ponto de vista geral e desprezava tanto seu Spencer quanto seu intelecto. Portanto, não fora por um valor real, mas sim por um valor puramente fictício que o juiz Blount o convidara para jantar.
A coisinha intrigante vai ficando cada vez maior e transforma-se em uma obsessão na vida dele:
Suas ideias sempre rodavam em um círculo. O centro do círculo era “trabalho feito”, e corroía seu cérebro como um verme mortal. Tomou consciência disso pela manhã. Isso atormentava seus sonhos durante a noite. Cada afazer da vida que lhe penetrava pelos sentidos imediatamente se relacionava ao “trabalho feito”. Ele atravessou o caminho da implacável lógica e concluiu que não era ninguém, nada. Mart Eden, o valentão, e Mart Eden, o marinheiro, tinham sido reais, tinham sido ele; mas Martin Eden!, o famoso escritor, não existia. Martin Eden, o famoso escritor, era uma névoa que surgira na mente da plebe e pela mente da plebe fora incutida no ser corpóreo de Mart Eden, valentão e marinheiro.
Até mesmo sua amada Lizzy, que não queria se casar com ele, agora se insinuava, desesperada, dizendo que o amava absolutamente. Quando afirma que está disposta a morrer por ele, Martin responde com um insulto:
Por que não teve essa ousadia antes? Quando eu não tinha emprego? Quando morria de fome? Quando era exatamente como sou agora, como homem, como artista, o mesmo Martin Eden? Essa é a pergunta que venho me fazendo várias vezes ao dia – não só com respeito a você, mas com respeito a todos. Você viu que não mudei, embora minha súbita e aparente valorização tranquilize-me o tempo todo quanto a isso. Tenho a mesma carne nos ossos, os mesmos dez dedos nas mãos e nos pés. Sou o mesmo. Não desenvolvi uma nova força nem uma nova virtude. Meu cérebro é o mesmo de antes. Nem sequer fiz uma nova generalização sobre literatura ou filosofia. Minha pessoa tem o mesmo valor que tinha quando ninguém me queria. E fico intrigado que me queiram agora. Certamente não me querem por mim mesmo, porque sou o mesmo que não quiseram antes. Devem me querer por outra coisa, por algo que me é exterior, por algo que não sou eu! Devo lhe dizer que algo é esse? É o reconhecimento que tive. Esse reconhecimento não sou eu. Ele mora na mente dos outros.
Martin não consegue aceitar a lacuna radical que separa para sempre suas qualidades “reais” de sua condição simbólica (aos olhos dos outros): de repente, ele não é mais um ninguém evitado pelo respeitável público, mas um autor famoso que é convidado para jantar pelos pilares da sociedade e ainda tem sua amada atirando-se a seus pés. Mas ele tem plena consciência de que nada mudou nele na realidade, ele é a mesma pessoa que era antes, e mesmo seus livros já tinham sido escritos na época em que era ignorado e desprezado. Martin não consegue aceitar essa descentralização radical do próprio núcleo de sua personalidade, que “mora na mente dos outros”: ele não é nada em si mesmo, apenas uma projeção concentrada dos sonhos dos outros. Essa percepção de que seu agalma, o que agora o torna desejado pelos outros, é algo exterior a ele não só arruína seu narcisismo, como também mata seu desejo: “Alguma coisa saiu de mim. Sempre fui destemido em relação à vida, mas nunca imaginei que ficaria saturado dela. A vida me preencheu tanto que estou vazio de desejo por qualquer coisa”. O que o levou ao suicídio foi a conclusão de “que ele não era ninguém, nada”.
From Noon Till Three (1976), de Frank D. Gilroyb, uma comédia de faroeste bastante singular, trata do mesmo tema: as consequências da alienação simbólica. Eis o resumo do roteiro, cortesia da Wikipédia: no oeste norte-americano do fim do século XIX, Graham Dorsey (Charles Bronson), membro de uma quadrilha, envolve-se em um fracassado assalto a banco; no caminho, acaba no rancho da viúva Amanda Starbuck (Jill Ireland) e fica lá por três horas (“do meio-dia às três”). Ele tenta seduzi-la, mas ela resiste a todas as investidas. Frustrado, Graham decide usar de artimanha: ele finge ser impotente na esperança de fisgar Amanda pela compaixão; o plano dá certo e eles transam três vezes. Depois eles têm uma longa conversa e até dançam ao som da caixa de música de Amanda, com Graham vestindo o velho smoking do sr. Starbuck. Um garoto da vizinhança passa para avisar Amanda de uma tentativa de assalto ao banco na cidade. Instigado por Amanda, Graham sai para ajudar os amigos, mas levanta suspeitas e é seguido. Ele consegue escapar quando cruza com o dr. Finger, um dentista que viajava a cavalo; rouba o animal e a carroça do dentista e, ameaçando-o com uma arma, troca de roupa com ele. O dr. Finger é confundido com Graham, baleado e morto; o bando, ao reconhecer o cavalo e o smoking do sr. Starbuck, leva o corpo de volta para o rancho. Amanda, vendo o que pensa ser o corpo de Graham (ela não consegue ver seu rosto), desmaia. Em seguida, é revelado que o dr. Finger era um charlatão, e a primeira pessoa que Graham encontra depois da fuga é um de seus clientes insatisfeitos. Graham acaba passando um ano na cadeia pelos crimes do dr. Finger. Durante esse tempo, Amanda é a princípio marginalizada pelo povo da cidade, mas um discurso apaixonado, declarando seu amor por Graham, provoca uma reviravolta: o povo não só a perdoa, como considera sua história com Graham notável. A história torna-se lenda e gera um livro (chamado From Noon Till Three), romances baratos, uma peça de teatro e até uma música. A lenda de Graham e Amanda torna-se maior que a realidade e, quando o livro vira um best-seller mundial, Amanda enriquece. Graham, que lê o livro na prisão, diverte-se com as distorções. Depois de cumprir sua pena, Graham se disfarça, vai a uma das visitas guiadas ao rancho de Amanda e continua lá com o intuito de se revelar depois. Amanda não o reconhece e fica assustada: a cada detalhe do encontro amoroso dos dois, ela grita: “Está no livro!”. Só quando Graham mostra a Amanda “algo que não está no livro” (seu pênis), ela acredita nele; contudo, ao invés de se alegrar, ela fica preocupada: se a notícia de que Graham está vivo se espalhar, a lenda de Graham e Amanda estará perdida. Ela não aceita nem a sugestão de Graham de se relacionarem às escondidas – afinal, se Amanda viver com outro homem, a lenda também estará arruinada. O encontro acaba com Amanda apontando uma arma para Graham... mas, no último instante, ela decide se matar. Graham fica inconsolável: além de perder Amanda, perde sua identidade: as pessoas ririam se dissesse que é Graham, pois ele não se parecia nada com a descrição do livro. O fato de ele encontrar sua figura pública em todos os lugares (ele escuta “a música deles” em uma taverna local e interrompe uma montagem teatral de From Noon Till Three) literalmente o enlouquece. No fim ele é levado para um hospício, onde encontra as únicas pessoas que acreditam nele e o aceitam como Graham: seus antigos colegas. Finalmente ele se sente feliz. Na verdade, como aponta Lacan, cada um de nós sempre tenta se transformar em um personagem no romance de sua própria vida1.
Vejamos a simetria com Martin Eden: tanto Graham quanto Amanda se referem a sua “lenda” (sua identidade simbólica pública), mas reagem de maneira diferente quando a realidade se confronta com ela: Amanda prefere a lenda à realidade, pois em uma estranha variação da famosa fala de um faroeste de John Ford (“Quando a realidade não corresponde à lenda, publique a lenda”), ela atira em si mesma para salvar a própria lenda. Graham, ao contrário, escolhe a realidade (eles deviam viver juntos, mesmo que isso arruinasse a lenda), mas não sabe que a lenda tem uma força própria, que também determina a realidade (social). O preço que ele paga é sua identidade simbólica lhe ser literalmente tirada: a prova material de sua identidade – (a forma de) seu pênis – não vale em público, pois o pênis não deve ser confundido com o falo. O único lugar onde é reconhecido como ele mesmo é o hospício. Parafraseando Lacan: o louco não é apenas aquele que não é Graham Dorsey pensando que é Graham Dorsey; o louco também é Graham Dorsey pensando que é Graham Dorsey – mais uma confirmação de que a negação da castração simbólica leva à psicose.
Na medida em que a castração simbólica também é um nome para a lacuna entre meu ser estúpido e imediato e meu título simbólico (recordemos da decepção proverbial do adolescente: aquele covarde miserável é realmente meu pai?), e como uma autoridade simbólica só pode funcionar na medida em que, em uma espécie de curto-circuito ilegítimo, essa lacuna é ofuscada e minha autoridade simbólica aparece como qualidade ou propriedade imediata de mim como pessoa, cada autoridade tem de se proteger de situações em que essa lacuna se torna palpável. Por exemplo, líderes políticos sabem muito bem evitar situações em que sua impotência pode ser exposta; um pai sabe como esconder suas humilhações (quando o chefe grita com ele ou coisas desse tipo) do olhar do filho. Nessas estratégias de “preservação das faces”, a aparência fica protegida: por mais que eu saiba que no fundo meu pai é impotente, eu me recuso a acreditar, e é por isso que o efeito de testemunhar a manifestação clara de sua impotência pode ser tão perturbador. Esses momentos de humilhação merecem ser chamados de “experiências de castração” não porque meu pai se revela castrado ou impotente, mas porque a lacuna entre sua realidade miserável e sua autoridade simbólica torna-se palpável e não pode mais ser ignorada à guisa de uma renegação fetichista.
Não é esse o problema de O discurso do rei, grande vencedor do Oscar 2011? O problema do sujeito que seria rei em breve, a causa de sua gagueira, é exatamente a incapacidade de assumir sua função simbólica, de se identificar com o título. O rei demonstra um mínimo do senso comum, experimentando a estupidez de aceitar seriamente que se é rei por vontade divina – e a missão do preparador vocal australiano é torná-lo estúpido o suficiente para aceitar seu ser-rei como propriedade natural. Como costuma acontecer, Chesterton compreendeu muito bem isso: “se um homem disser que ele é, de direito, o rei da Inglaterra, não é uma resposta completa dizer que as autoridades existentes o chamam de louco; pois, se ele fosse o rei da Inglaterra, essa poderia ser a maneira mais sábia de agir para as autoridades existentes”c. Na cena principal do filme, o preparador vocal se senta na cadeira do rei; o rei, furioso, pergunta como ele ousa fazer isso, e o preparador responde: “Por que não? Por que você teria o direito de sentar nesta cadeira e eu não?”. O rei grita: “Porque sou rei por direito divino!”. O preparador simplesmente assente com a cabeça, satisfeito: agora o rei acredita que é rei. A solução do filme é reacionária: o rei é “normalizado”, a força de seu questionamento histérico é obliterada.
Outro vencedor do Oscar 2011, Cisne negro, a contrapartida feminina de O discurso do rei, é ainda mais reacionário: sua premissa é que, se o homem pode se dedicar a sua missão (como o rei em O discurso do rei) e ainda assim ter uma vida privada normal, a mulher que se dedica totalmente a sua missão (nesse caso, ser uma bailarina) envereda pelo caminho da autodestruição – o sucesso é pago com a morte. É fácil reconhecer nesse roteiro o velho tópos da mulher que se sente dividida entre uma vocação artística e uma vida privada tranquila e feliz, faz a escolha errada e morre – em Os sapatinhos vermelhos, de Michael Powell, ela também é uma bailarina e em Os contos de Hoffman, de Offenbach, e em A dupla vida de Véronique, de Kieslowski, uma cantora. Os contos de Hoffman mostram a dedicação da heroína à vocação artística como resultado da manipulação de um personagem diabólico, ao passo que A dupla vida de Véronique traz as duas versões da escolha: a Veronika polonesa escolhe cantar e morre durante uma apresentação; a Véronique francesa recolhe-se em sua privacidade e sobrevive. Os dois filmes mais recentes, O discurso do rei e Cisne negro, funcionam de maneira complementar, como uma reafirmação da dupla tradicional sob a autoridade masculina: para o homem, a suposição ingênua da autoridade simbólica; para a mulher, o recolhimento na privacidade – uma nítida estratégia conservadora feita para anular o advento do modo pós-moderno e pós-edipiano da subjetividade.
Para Hegel, o rei é definido como um sujeito que aceita essa descentralização radical; citando Marx mais uma vez, podemos dizer que é o sujeito que aceita o fato de ser rei porque os outros o tratam como rei, e não o contrário – pois, se ele pensa que é rei “em si mesmo”, é porque é louco. Segundo a lenda, durante a batalha decisiva entre os exércitos da Prússia e da Áustria na guerra de 1866, o rei prussiano, formalmente o comandante supremo do Exército prussiano, ao observar a luta de uma colina próxima, mostrou-se preocupado com (o que lhe parecia ser) a confusão do campo de batalha, onde alguns soldados prussianos pareciam bater em retirada. O general von Moltke, grande estrategista prussiano que planejara a distribuição das tropas, virou-se para o rei no meio da confusão e disse: “Serei o primeiro a parabenizar Vossa Majestade em uma brilhante vitória?”. Isso exemplifica a lacuna entre S1 e S2 em seu aspecto mais puro: o rei era o Mestre, o comandante formal e sem nenhum conhecimento do que estava acontecendo, ao passo que von Moltke encarnava o conhecimento estratégico – por mais que, em termos de decisões efetivas, a vitória fosse de Moltke, ele estava correto em cumprimentar o rei, em nome de quem ele agia. A estupidez do Mestre é palpável nessa lacuna entre a confusão da figura-mestre e o fato simbólico-objetivo de que ele já obtivera uma vitória brilhante. Todos conhecemos a velha piada sobre o enigma de quem realmente escreveu as peças de Shakespeare: “Não foi William Shakespeare, mas outra pessoa com o mesmo nome”. Isso é o que Lacan quer dizer com “sujeito descentralizado”, é assim que o sujeito se relaciona com o nome que fixa sua identidade simbólica: John Smith não é (sempre, por definição, em seu próprio conceito) John Smith, mas outra pessoa com o mesmo nome. Como a Julieta de Shakespeare já sabia, eu nunca sou “esse nome” – o John Smith que realmente pensa ser John Smith é psicótico. A questão central não foi levada em conta pelo jovem Marx em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel. Depois de citar o início do parágrafo 281:
Ambos os momentos em sua unidade indivisa, o Si-mesmo último sem fundamento da vontade e a existência também por isso sem fundamento, como determinação reservada à natureza – essa ideia de não ser movido pelo arbítrio constitui a majestade do monarca. Nesta unidade reside a unidade real do Estado, que somente por meio dessa sua imediatez interna e externa escapa à possibilidade de ser reduzida à esfera da particularidade, com seu arbítrio, fins e opiniões, à luta das facções entre si pelo trono e ao enfraquecimento e desintegração do poder do Estado.2
Marx acrescenta um comentário irônico (e inspirado por demais no senso comum):
Os dois momentos são: [a] o acaso da vontade, o arbítrio e [b] o acaso da natureza, o nascimento; enfim: Sua Majestade, o acaso. O acaso é, portanto, a unidade real do Estado.
Que uma “imediatez interna e externa” deva ser retirada da colisão [devido ao capricho, facções] etc. é uma afirmação incompreensível de Hegel, pois justamente ela é abandonada à colisão.
[...]
A hereditariedade do príncipe resulta de seu conceito. Ele deve ser a pessoa especificamente distinta de todo o gênero, de todas as outras pessoas. Qual é, então, a diferença última, precisa, de uma pessoa em relação a todas as outras? O corpo. A mais alta função do corpo é a atividade sexual. O ato constitucional mais elevado do rei é, portanto, sua atividade sexual, pois por meio dela ele faz um rei e dá continuidade a seu corpo. O corpo de seu filho é a reprodução de seu próprio corpo, a criação de um corpo real.3
Marx conclui com essa nota sarcástica de que o monarca hegeliano não é nada mais que um apêndice do próprio pênis – ao que diríamos: sim, mas essa é exatamente a questão de Hegel, isto é, essa total alienação, essa reversão pela qual uma pessoa se torna o apêndice de seu órgão biológico de procriação, é o preço que se paga por agir como a soberania encarnada do Estado4. A partir do parágrafo 281, já citado, vemos claramente que a instituição da monarquia hereditária é, para Hegel, a solução para o problema do capricho e das facções, o problema, em suma, da contingência do poder. Essa contingência é superada não por uma necessidade mais profunda (digamos, no sentido dos reis filósofos de Platão, governantes cujo conhecimento legitima seu poder), mas por uma contingência ainda mais radical: pomos no topo um sujeito efetivamente reduzido a um apêndice do próprio pênis, um sujeito que não faz de si o que ele é (pelo trabalho de mediação), mas nasce imediatamente dentro dele. Hegel, é claro, tem plena ciência de que não existe uma necessidade mais profunda atuando nos bastidores para garantir que o monarca seja uma pessoa sábia, justa e corajosa – ao contrário, na figura do monarca, a contingência (contingência de suas propriedades e qualificações) é levada ao extremo, o que importa é seu nascimento5. Na vida sociopolítica, a estabilidade só pode ser obtida quando todos os sujeitos aceitam o resultado desse processo contingente, pois a contingência do nascimento é isenta de lutas sociais.
Surge aqui um contra-argumento óbvio: Hegel não continua preso a uma ilusão de pureza, a pureza do conhecimento especializado da burocracia estatal que só funciona racionalmente para o bem comum? Sim, é verdade que ele reconhece uma impureza irredutível (o jogo contingente de interesses parciais e lutas entre facções) na vida política, mas sua aposta ilusória não é que, se isolarmos esse momento de impureza (capricho subjetivo) na figura do monarca, essa exceção isenta o restante (o corpo da burocracia estatal) racional do jogo de interesses parciais conflituosos? Com essa noção de burocracia estatal como a “classe universal”, o Estado não seria, portanto, despolitizado, isento do diferendo propriamente político? No entanto, embora Hegel tenha plena ciência de que a vida política consiste em uma contingente “luta das facções contra facções pelo trono”, sua ideia não é que os monarcas assumam para si essa contingência e, com isso, transformem magicamente a burocracia do Estado em uma máquina neutra, mas que, por ser determinado pela contingência de suas origens biológicas, o próprio rei é, em sentido formal, elevado acima das lutas políticas.
Em lacanês, a passagem do autodesenvolvimento conceitual inerente que medeia todo conteúdo para o ato ou decisão que livremente liberta esse conteúdo é, obviamente, a passagem de S2 (conhecimento, a cadeia de significantes) para S1 (Significante-Mestre performativo). Em sentido estritamente homólogo, o Saber Absoluto hegeliano é um conhecimento “absolvido” de seu conteúdo positivo. Como? Jean-Claude Milner desenvolveu um conceito de Saber Absoluto (savoir absolu) que, sem sequer mencionar Hegel, é ao mesmo tempo próximo e distante dele. O ponto de partida de Milner é a oposição gramatical entre relativo e absoluto no uso dos verbos: quando digo “eu sei latim”, meu conhecimento está relacionado a um objeto determinado, é suplementado por esse objeto, em contraposição a simplesmente dizer “eu sei”, em que o conhecimento é “absolvido” (liberto) de tais ligações. Esse saber “absoluto” é “o agente de seu próprio desenvolvimento, cujo objeto é simplesmente sua ocasião, e cujo sujeito é seu instrumento; segue sua lei interna, que chamo de mais-saber”6. O modelo desse Saber Absoluto de Milner não é Hegel, mas o Wissenschaft pós-hegeliano, a ciência universitária em progresso contínuo: seu excesso é algo que ainda não está aqui como dito/sabido, mas sempre a ser produzido. A diferença que separa o mais-saber do conhecimento estabelecido é, portanto, uma diferença pura e imanente ao saber, sem nenhuma referência a seu objeto exterior: a diferença entre o sabido e o ainda-não-sabido, a diferença que torna o campo do conhecimento eternamente incompleto. A objeção de Milner a essa noção de Saber Absoluto é que ele envolve somente um “mais” e não um “menos”, somente um excesso e não uma falta de saber – por isso Lacan o rejeita como pura figura do discurso da universidade. Até aqui, nenhuma dúvida – mas onde entram Hegel e seu Saber Absoluto? O Saber Absoluto de Hegel envolve, sim, um “menos”: ele se refere a uma falta constitutiva, a falta no Outro em si, não em nosso conhecimento. O Saber Absoluto de Hegel não é um campo aberto de progresso infindável, e é a sobreposição das duas faltas (a falta do sujeito do conhecimento e a falta no Outro em si) que explica seu “fechamento”.
Para explicar o modo de funcionamento do saber sem objeto, Milner evoca o seriado de TV Dexter, em que um pai que, sabendo que o filho é geneticamente predisposto a se tornar um serial killer, aconselha-o a ser policial e, com isso, satisfazer sua ânsia inata de matar acabando apenas com outros assassinos7. De maneira homóloga, o objetivo de Milner é agir como um pássaro que voa bem alto, sem nenhuma ligação com qualquer objeto particular na terra; de tempos em tempos, o pássaro mergulha e escolhe sua vítima – como Milner, que, em sua obra, escolhe vários conhecimentos particulares e dissocia-os, mostrando sua inconsistência. Mas não seria esse justamente o modo de funcionamento do Saber Absoluto de Hegel, que se move de uma forma de saber para outra, tocando-a em seu Real, isto é, revelando seu antagonismo imanente/constitutivo?
Assim, Schelling estava errado em sua crítica a Hegel: a intervenção do ato de decisão é puramente imanente, é o momento do “ponto de estofo”, da reversão do constatativo em performativo. O mesmo não seria válido para o rei no caso do Estado, segundo a defesa hegeliana da monarquia? A cadeia burocrática de conhecimento é seguida da decisão do rei que, enquanto “objetividade perfeitamente concreta da vontade”, “suprassume todas as particularidades nesse simples si mesmo, interrompe o ponderar das razões e contrarrazões, entre as quais se deixa oscilar para cá e para lá e que por um: eu quero, decide, e inicia toda ação e efetividade”8. Hegel já enfatiza esse distanciamento do monarca quando declara que essa “autodeterminação última” pode “recair na esfera da liberdade humana, na medida em que tem a posição de ápice, separado para si, elevado acima de toda particularização e condição; pois, segundo seu conceito, é apenas assim que ela é efetiva”9. É por isso que “o conceito de monarca” é
o conceito mais difícil para o raciocínio, isto é, para a consideração reflexionante do entendimento, porque permanece nas determinações isoladas e, por isso, conhece apenas, então também, razões, pontos de vista finitos e o deduzir a partir de razões. Assim apresenta, então, a dignidade do monarca como algo de deduzido, não apenas quanto à forma, porém segundo sua determinação; seu conceito é antes não ser algo de deduzido, porém começando pura e simplesmente a partir de si.d
No parágrafo seguinte, Hegel desenvolve com mais detalhes essa necessidade especulativa do monarca:
Nessa sua abstração, esse si mesmo último da vontade do Estado é simples e, por isso, é singularidade imediata; com isso, em seu conceito mesmo reside a determinação da naturalidade; por isso o monarca é essencialmente [caracterizado] enquanto esse indivíduo, abstraído de todo outro conteúdo, e esse indivíduo, de modo imediato, natural, pelo nascimento natural, é determinado à dignidade de monarca.
[Nota] Essa passagem do conceito da pura autodeterminação à imediatidade do ser e, com isso, à naturalidade é de natureza puramente especulativa, seu conhecimento pertence, por isso, à filosofia lógica. De resto, é de todo a mesma passagem, que é conhecida como natureza da vontade em geral, e é o processo de transpor ao ser-aí um conteúdo da subjetividade (enquanto fim representado). Mas a forma própria da ideia e da passagem, que aqui é examinada, é o transformar imediato da pura autodeterminação da vontade (do conceito simples mesmo) em um esse e em um ser-aí natural, sem a mediação por um conteúdo particular – (de um fim no agir). – Na assim chamada prova ontológica da existência de Deus, é o mesmo transformar do conceito absoluto no ser [...]
[Adendo] É comumente alegado contra a monarquia que ela torna a guerra do Estado dependente do acaso, pois, insiste-se, o monarca deve ser bem instruído, talvez possa não ser merecedor de sua posição máxima no Estado e não faz sentido que tal estado de coisas devesse existir porque se presume que seja racional. Mas tudo isso reside em um pressuposto nugativo, a saber, que tudo depende do caráter particular do monarca. Em um Estado completamente organizado, trata-se apenas do ponto de culminação da decisão formal (e um baluarte natural contra a paixão. É errado portanto exigir qualidades objetivas em um monarca); ele só precisa dizer “sim” e colocar o pingo no “i”, porque o trono deveria ser tal que o significativo no seu detentor não seja sua configuração particular [...]. Em uma monarquia bem organizada, o aspecto objetivo pertence apenas à lei, e o papel do monarca é simplesmente acrescentar a ela seu subjetivo “Eu farei”.e
O momento especulativo que o entendimento não pode apreender é “essa passagem do conceito da pura autodeterminação à imediatidade do ser e, com isso, à naturalidade”. Em outras palavras, embora o entendimento possa apreender bem a mediação universal de uma totalidade vivente, ele não pode apreender que essa totalidade, para efetivar a si mesma, tem de adquirir existência efetiva na forma de uma singularidade “natural” imediata10. Também podemos dizer que o entendimento deixa escapar o momento cristológico: a necessidade de uma singularidade que incorpore o Espírito universal. O termo “natureza”, aqui, deve ser tomado em todo o seu significado: do mesmo modo que, no fim da Lógica, a automediação completada da Ideia liberta-se na Natureza, desintegra-se na imediatez externa da Natureza, a automediação racional do Estado tem de adquirir existência efetiva em uma vontade determinada como diretamente natural, não mediata, “irracional” stricto sensu. Recordemos aqui a avaliação de Chesterton a respeito da guilhotina (usada precisamente para decapitar um rei):
A guilhotina tem muitos pecados, mas, fazendo-lhe justiça, nela não há nada de evolucionário. O argumento evolucionário preferido encontra a sua melhor resposta no machado. O evolucionista diz: “Onde você traça a linha do limite?”. O revolucionista responde: “Eu a traço aqui: exatamente entre a sua cabeça e o seu corpo”. Deve existir, num determinado momento, um certo e um errado abstratos para que o golpe possa ser desferido; deve existir algo eterno para que possa haver alguma coisa repentina.11
É a partir disso que podemos entender por que Badiou, o teórico do Ato, tem de se referir à Eternidade: o Ato só é concebível como intervenção da Eternidade no tempo. O evolucionismo historicista leva à procrastinação interminável, a situação é sempre complexa demais, sempre há outros aspectos para explicar, a consideração dos prós e contras jamais é superada. Contra essa posição, a passagem ao ato envolve um gesto de simplificação violenta e radical, um corte como aquele do proverbial nó górdio: o momento mágico em que o infinito ponderar cristaliza-se em um simples “sim” ou “não”.
Isso nos leva ao tema da suprassunção versus sublimação. No Seminário VII, Lacan opõe a suprassunção como mediação dialética à sublimação: a suprassunção inclui todos os particulares em uma totalidade dialética, enquanto a sublimação toma um restante não suprassumido do Real e o eleva diretamente à encarnação da Coisa impossível, que escapa a toda mediação. Mas essa atividade da sublimação é realmente estranha a Hegel? Com respeito ao rei, não é defendido por Hegel que, enquanto todos os indivíduos tem de “se tornar o que são” por meio de seu trabalho e assim mediar ou suprassumir sua imediatez natural, o rei é o único que diretamente (por sua natureza) é aquilo que designa seu título simbólico (ele é rei por nascimento)? O círculo da mediação, portanto, só pode ser concluído quando é suplementado por um elemento “cru”, “irracional” e não mediado, que “sutura” a totalidade racional.
Quando Hegel faz a articulação entre as três ações paralelas – da Lógica à Natureza, da totalidade racional do Estado ao Monarca e a prova ontológica de Deus –, não estaria sugerindo que (um) Deus (pessoal) surge da mesma necessidade que o Monarca? Que Deus é o Monarca do Universo? Esse exemplo deixa claro que o desenvolvimento conceitual jamais pode atingir sua completude (no sentido ingênuo da cadeia completa das razões pelas quais “tudo é deduzido”) – a intervenção arbitrária do Significante-Mestre designa o ponto em que a contingência intervém no núcleo mesmo da necessidade: o próprio estabelecimento de uma necessidade é um ato contingente12. Em um campo totalmente diferente, Dennett detecta a necessidade de “interruptores de conversa” na busca interminável de argumentação que, por conta da finitude e da limitação de nossa situação, nunca chega a um fim: sempre há outros aspectos a serem levados em conta etc.13. Essa necessidade não seria a necessidade do que Lacan chamou de Significante-Mestre (o próprio Dennett refere-se ao “mundo mágico”, ou a um falso dogma): a necessidade de algo que corte o nó górdio dos intermináveis prós e contras com um ato (no fundo arbitrário e imperfeito) de decisão?
A propósito dos exames escolares, Lacan destaca um fato estranho: tem de haver uma lacuna mínima, um atraso, entre a avaliação das provas e o anúncio das notas. Em outras palavras, mesmo que eu saiba que respondi corretamente às questões, haverá um elemento mínimo de insegurança até que o resultado seja anunciado – essa lacuna é a lacuna entre o constatativo e o performativo, entre a avaliação e a constatação dos resultados (o registro) no pleno sentido do ato simbólico. Toda a magia da burocracia em sua manifestação mais sublime depende dessa lacuna: conhecemos os fatos, mas nunca temos certeza de como esses fatos serão registrados pela burocracia. E, como aponta Jean-Pierre Dupuy14, o mesmo se aplica às eleições: também no processo eleitoral, o momento da contingência, do risco, de um “empate”, é crucial. Eleições plenamente “racionais” não seriam nem ao menos eleições, e sim um processo transparente objetivado. As sociedades tradicionais (pré-modernas) resolveram esse problema evocando uma fonte transcendental que “verificava” o resultado, conferindo autoridade a ele (Deus, o rei...). Nisso reside o problema da modernidade: as sociedades modernas percebem a si mesmas como autônomas, autorreguladas, ou seja, não podem mais confiar em uma fonte de autoridade externa (transcendente). Não obstante, o momento do risco tem de continuar em ação no processo eleitoral, e é por esse motivo que os comentadores gostam de se concentrar na “irracionalidade” dos votos (nunca se sabe onde estarão os votos decisivos nos últimos dias de uma campanha eleitoral...). Em outras palavras, a democracia não funcionaria se fosse reduzida a uma pesquisa de opinião permanente – totalmente mecanizada e quantificada, desprovida de seu caráter “performativo”; como mostrou Lefort, o voto tem de continuar sendo um ritual (de sacrifício), uma autodestruição ritualística e um renascimento da sociedade15. Por isso, esse risco não deveria ser transparente, apenas minimamente exteriorizado/reificado: “a vontade do povo” é o nosso equivalente para o que os antigos consideravam a imponderável vontade de Deus, ou a mão do Destino. O que as pessoas não podem aceitar como escolha arbitrária direta, resultado do puro risco, elas aceitam quando se refere a um mínimo de “Real” – Hegel sabia disso há muito tempo, e esse é seu argumento na defesa da monarquia. E, por último, mas não menos importante, o mesmo vale para o amor: nele haveria um elemento da “resposta do Real” (“fomos feitos um para o outro”), não posso de fato aceitar que minha paixão dependa da pura contingência16.
Até mesmo um majestoso leitor de Hegel como Gérard Lebrun deixa a desejar nesse aspecto ao inserir Hegel na tradição platônica dos “reis filósofos”: cada exercício de poder tem de ser justificado por boas razões, o portador do poder tem de ser apropriadamente qualificado por seu conhecimento e capacidades, e o poder deve ser exercido para o bem de toda a comunidade – essa noção de poder sustenta o conceito hegeliano da burocracia estatal como “classe universal” instruída para proteger os interesses do Estado contra os interesses particulares de membros e grupos da sociedade civil. Nietzsche contra-ataca essa noção geral questionando sua premissa basilar: que tipo de poder (ou autoridade) é esse que precisa se justificar com referência aos interesses daqueles a quem governa, que aceita a necessidade de fornecer razões para seu exercício? Essa noção de poder não destrói a si mesma? Como posso ser seu mestre, se aceito a necessidade de justificar minha autoridade perante seus olhos? Isso não indica que minha autoridade depende de sua aprovação, de modo que, agindo como seu mestre, sirvo efetivamente a você (recordemos aqui a famosa ideia de Frederico, o Grande, do rei como o principal servo de seu povo)? Não seria o caso de a autoridade propriamente dita não precisar de razões, pois é simplesmente aceita em seus próprios termos? Como afirmou Kierkegaard, uma criança dizer que obedece ao pai porque ele é sábio, honesto e bom, é blasfêmia, uma renegação completa da verdadeira autoridade paternal. Em termos lacanianos, essa passagem da autoridade “natural” para a autoridade justificada com razões é obviamente a passagem do discurso do mestre para o discurso da universidade. O universo do exercício justificado do poder é também altamente antipolítico e, nesse sentido, “tecnocrático”: meu exercício do poder deveria ser fundamentado em razões ao alcance de todos os seres humanos racionais e aprovadas por eles, pois a premissa subjacente é que, como agente do poder, sou totalmente substituível, ajo exatamente da mesma maneira que qualquer pessoa agiria em meu lugar – a política como domínio de luta competitiva, como articulação de antagonismos sociais irredutíveis, deveria ser substituída por uma administração racional que represente diretamente o interesse universal.
Mas Lebrun está certo em imputar a Hegel essa noção de autoridade justificada? Hegel já não tinha plena ciência de que a verdadeira autoridade sempre contém um elemento de autoafirmação tautológica? “É assim porque digo que é!”. O exercício da autoridade é um ato de decisão contingente “irracional” que rompe com a cadeia infinita de enumerar razões pro et contra. Essa não é a mesma argumentação da defesa hegeliana da monarquia? O Estado como totalidade racional precisa ter como chefe uma figura de autoridade “irracional”, uma autoridade não justificada por suas qualificações: enquanto todos os outros servidores públicos têm de provar sua capacidade de exercer o poder, o rei é justificado pelo próprio fato de ser rei. Em termos mais contemporâneos, o aspecto performativo das ações do Estado está reservado para o rei: a burocracia estatal prepara o conteúdo da ação estatal, mas é a assinatura do rei que a decreta, impondo-a à sociedade. Hegel sabia muito bem que é somente essa distância entre “conhecimento” encarnado na burocracia estatal e a autoridade do Mestre encarnada no rei que protege o corpo social contra a tentação “totalitária”: o que chamamos de “regime totalitário” não é um regime em que o Mestre impõe sua autoridade irrestrita e ignora as sugestões do conhecimento racional, mas um regime em que o Conhecimento (autoridade racionalmente justificada) assume de imediato o poder “performativo” – Stalin não era (não se apresentava como) um Mestre; ele era o principal servo do povo, legitimado por seu conhecimento e suas capacidades.
Essa compreensão de Hegel aponta para sua posição única entre o discurso do mestre (da autoridade tradicional) e o discurso da universidade (do poder moderno justificado por razões ou pelo consenso democrático de seus sujeitos): Hegel reconheceu que o carisma da autoridade do Mestre é falso, que o Mestre é um impostor – é apenas o fato de ocupar a posição de Mestre (de seus sujeitos o tratarem como Mestre) que o torna Mestre. No entanto, ele também tinha plena consciência de que, se tentarmos nos livrar desse excesso e impor uma autoridade transparente a si mesma e totalmente justificada pelo conhecimento de especialista, o resultado é ainda pior: em vez de se limitar ao simbólico chefe de Estado, a “irracionalidade” se espalha por todo o corpo do poder social. A burocracia de Kafka é justamente esse regime de um conhecimento especializado destituído da figura do Mestre – Brecht estava certo quando afirmou, como reporta Benjamin em seus diários, que Kafka é “o único escritor bolchevique genuíno”17.
Seria, então, a posição de Hegel uma posição cínica? Ele diz para agirmos como se o monarca fosse qualificado para governar por causa de suas propriedades, para celebrarmos sua glória etc., mesmo sabendo que ele não é ninguém? Uma lacuna, no entanto, separa a posição de Hegel do cinismo: a aposta hegeliana (utópica?) é que podemos admirar um monarca não por suas supostas qualidades reais, mas por sua própria mediocridade, como representante da fragilidade humana. Mas aqui as coisas se complicam: não seria o excesso no topo do edifício social (rei, líder) suplementado pelo excesso de baixo, por aquelas pessoas que não têm lugar próprio dentro do corpo social, o que Rancière chama de “parte de nenhuma parte” e que Hegel chamou de Pöbel (populaça)? Hegel não levou em conta que a populaça, em sua própria condição de excesso destrutivo da totalidade social, sua “parte de nenhuma parte”, é a “determinação reflexiva” da totalidade como tal, ou seja, a encarnação imediata de sua universalidade, o elemento particular na forma do qual a totalidade social se encontra entre seus elementos e, como tal, o principal constituinte de sua identidade18. É por isso que Frank Ruda se justifica plenamente ao interpretar as curtas passagens de Hegel sobre a populaça na Filosofia do direito como um ponto sintomático de sua filosofia do direito como um todo, quiçá de seu sistema como um todo19. Se Hegel tivesse visto a dimensão universal da populaça, teria inventado o sintoma (como fez Marx, que via no proletariado a encarnação dos impasses da sociedade existente, a classe universal)20. Em outras palavras, o que torna sintomático o conceito de populaça é ele descrever um excesso “irracional” e necessariamente produzido do Estado moderno racional, ou seja, um grupo de pessoas para as quais não há lugar dentro da totalidade organizada, embora pertençam formalmente a ela – como tal, elas exemplificam com perfeição a categoria da universalidade singular (uma singularidade que dá corpo diretamente a uma universalidade, passando por cima da mediação por meio do particular):
A queda de uma grande massa [de indivíduos] abaixo da medida de certo modo de subsistência, que se regula por si mesmo como o necessário para um membro da sociedade – e com isso a perda do sentimento do direito, da retidão e da honra de subsistir mediante atividade própria e trabalho próprio – produz o engendramento da populaça, a qual, por sua vez, acarreta ao mesmo tempo uma facilidade maior de concentrar, em poucas mãos, riquezas desproporcionais.21
Vemos com nitidez uma ligação entre o tema eminentemente político da condição da populaça e o tema ontológico básico de Hegel da relação entre universalidade e particularidade, ou seja, o problema de como entender a “universalidade concreta” hegeliana. Se entendemos “universalidade concreta” no sentido usual da subdivisão orgânica do universal em seus momentos particulares, de modo que a universalidade não seja uma característica abstrata da qual os indivíduos participam de maneira direta e a participação do indivíduo no universal seja sempre mediada pela rede particular de determinações, então a noção correspondente de sociedade é corporativa: a sociedade como um Todo orgânico, no qual cada indivíduo tem de encontrar seu lugar particular e do qual participa do Estado cumprindo seu dever ou obrigação particular. Não há cidadãos desse tipo, é preciso ser membro do Estado (fazendeiro, autoridade estatal, mãe de família, professor, artesão...) para contribuir para a harmonia do Todo. Esse é o Hegel protofascista bradleiano, que se opõe ao liberalismo atomístico (em que a sociedade é uma unidade mecânica de indivíduos abstratos) em proveito do Estado como um organismo vivente em que cada parte tem sua função. Nesse espaço, a populaça tem de aparecer como um excesso racional, como uma ameaça à ordem e à estabilidade social, como marginalizados que são excluídos e se excluem da totalidade social “racional”.
Mas é realmente isso que Hegel visa com sua “universalidade concreta”? O núcleo da negatividade dialética não seria o curto-circuito entre o gênero e (uma de) suas espécies, de modo que o gênero apareça como uma de suas próprias espécies oposta às outras, entrando em uma relação negativa com elas? Nesse sentido, a universalidade concreta é exatamente uma universalidade que se inclui entre suas espécies, disfarçada de um momento singular que carece de conteúdo particular – em suma, são justamente aqueles que não têm lugar apropriado no Todo social (como a populaça) que representam a dimensão universal da sociedade que os gera. É por isso que a populaça não pode ser eliminada sem que todo o edifício social seja radicalmente transformado – e Hegel tem plena consciência disso; ele é consistente o bastante para confessar que a solução desse “problema perturbador” é impossível não só por razões externas contingentes, mas por razões conceituais estritamente imanentes. Embora enumere uma série de medidas para resolver o problema (controle e repressão policial, caridade, envio da populaça para colônias...), ele mesmo reconhece essas medidas como paliativos secundários, que não resolvem de fato o problema – não porque o problema seja complicado demais (porque não há riqueza suficiente na sociedade para cuidar dos pobres), mas porque há riqueza demais, pois quanto mais rica a sociedade, maior sua produção de pobreza:
Caso se impuser à classe mais rica o encargo direito, ou se os meios diretos estivessem presentes aí numa outra propriedade pública (ricos hospitais, fundações, conventos), de manter a massa que se encaminha para a pobreza numa situação de seu modo de vida regular, assim seria assegurada a subsistência dos carecidos, sem ser mediada pelo trabalho, o que seria contrário ao princípio da sociedade civil-burguesa e ao sentimento de seus indivíduos de sua autonomia e honra; – ou se ela fosse mediada pelo trabalho (mediante a oportunidade desse), assim seria aumentada a quantidade dos produtos, em cujo excesso e em cuja falta de um número de consumidores eles próprios produtivos consiste precisamente o mal, o qual de ambos os modos apenas se amplia. Aqui aparece que a sociedade civil-burguesa, apesar do seu excesso de riqueza, não é suficientemente rica, isto é, não possui, em seu patrimônio próprio, o suficiente para governar o excesso de miséria e a produção da populaça.22
Devemos notar aqui a fineza da análise de Hegel: ele afirma que a pobreza não é apenas uma condição material, mas também a posição subjetiva de ser destituído de reconhecimento social, e por isso não basta satisfazer as necessidades dos pobres pela caridade pública ou privada – desse modo, eles continuam destituídos da satisfação de cuidar de maneira autônoma da própria vida. Além disso, quando Hegel enfatiza o fato de que a sociedade – a ordem social existente – é o maior espaço em que o sujeito encontra seu conteúdo substancial e seu reconhecimento, isto é, o fato de que a liberdade subjetiva somente pode se efetivar na racionalidade da ordem ética universal, o anverso implícito (embora não declarado explicitamente) é que aqueles que não encontram esse reconhecimento têm também o direito de se rebelar: se uma classe de pessoas é sistematicamente destituída de seus direitos, de sua própria dignidade humana, elas são eo ipso eximidas de seus deveres para com a ordem social, pois essa ordem social não é mais sua substância ética. O tom depreciativo das declarações de Hegel sobre a “populaça” não deve nos desviar do fato básico de que ele considerava a rebelião dessa populaça inteiramente justificada em termos racionais: a “populaça” é uma classe de pessoas à qual o reconhecimento pela substância ética é negado de maneira não apenas contingente, mas também sistemática, por isso elas não devem nada à sociedade e são dispensadas de qualquer dever para com ela.
A negatividade – elemento não reconhecido da ordem existente – é, portanto, necessariamente produzida, inerente à ordem existente, mas sem nenhum lugar dentro dela. Nesse ponto, no entanto, Hegel comete um erro (medido por seus próprios padrões): ele não arrisca a tese óbvia de que, como tal, a populaça deveria representar imediatamente a universalidade da sociedade. Como excluída, carente do reconhecimento de sua posição particular, a populaça é o universal como tal. Nesse ponto, pelo menos, Marx estava certo em criticar Hegel, pois nesse aspecto era mais hegeliano que o próprio Hegel – como é sabido, este é o ponto de partida da análise marxiana: o “proletariado” designa tal elemento “irracional” da totalidade social “racional”, sua incontável “parte de nenhuma parte”, o elemento sistematicamente gerado por ela e, ao mesmo tempo, nega os direitos básicos que definem essa totalidade; como tal, o proletariado representa a dimensão da universalidade, pois sua emancipação só é possível na/pela emancipação universal. De certo modo, todo ato é proletário: “Só existe um sintoma social: todo indivíduo é efetivamente proletário, ou seja, não dispõe de um discurso pelo qual possa estabelecer um elo social”23. O ato só pode surgir da posição “proletária” de ser destituído de um discurso (de ocupar o lugar da “parte de nenhuma parte” dentro do corpo social existente).
De que maneira então os dois excessos (no topo e na base) se relacionam um com o outro? A ligação entre os dois não fornece a fórmula para um regime populista autoritário? Em seu O 18 de brumário, uma análise do primeiro desses regimes (o reinado de Napoleão III), Marx destacou que, enquanto Napoleão III jogava uma classe contra a outra, roubando de uma para satisfazer a outra, a única verdadeira base de classe de seu governo era o lumpemproletariado. De maneira homóloga, o paradoxo do fascismo é o fato de defender uma ordem hierárquica em que “todos têm seu lugar apropriado”, ao passo que sua única base social verdadeira é a populaça (assassinos da SA etc.) – nela, o único elo de classe direto do Líder é aquele que o liga à populaça, somente no meio da populaça é que Hitler estava realmente “em casa”.
É claro que Hegel tinha consciência de que a pobreza objetiva não é suficiente para gerar uma populaça: essa pobreza objetiva deve ser subjetivada, transformada em uma “disposição da mente”, vivenciada como injustiça radical, por conta da qual o sujeito sente que não tem nenhum dever ou obrigação para com a sociedade. Hegel não deixa dúvida de que essa injustiça é real: a sociedade tem o dever de garantir as condições de uma vida livre, autônoma e digna para todos os seus membros – esse é um direito deles e, se lhes for negado, eles não têm deveres para com a sociedade:
Adendo: O mais baixo nível de subsistência, de uma populaça de pobres, é fixado automaticamente, mas o mínimo varia de maneira considerável em diferentes países. Na Inglaterra, mesmo os mais pobres acreditam ter direitos; isso é diferente do que satisfaz os pobres em outros países. A pobreza em si não transforma os homens em uma populaça; esta é criada somente quando há, na pobreza, uma disposição de espírito, uma indagação interior contra os ricos, contra a sociedade, contra o governo etc. Outra consequência dessa atitude é que, por sua dependência do acaso, os homens tornam-se frívolos e indolentes, como o lazarone napolitano, por exemplo. Desse modo, na populaça nasce o mal de não haver respeito próprio suficiente para assegurar a subsistência pelo próprio trabalho e mesmo assim, ao mesmo tempo, da pretensão à subsistência como um direito. Contra a natureza, o homem não pode reivindicar nenhum direito, mas, uma vez que a sociedade está estabelecida, a pobreza imediatamente toma a forma de uma injustiça cometida por uma classe contra outra. A importante questão de como deve ser abolida a pobreza é um dos mais perturbadores problemas que agitaram a sociedade moderna.24
É fácil discernir a ambiguidade e a oscilação na linha de argumentação de Hegel. Ele parece primeiro culpar os pobres por subjetivar sua posição como se fosse a de uma populaça, por abandonar o princípio de autonomia que obriga o sujeito a garantir sua subsistência por seu próprio trabalho e por afirmar que deveriam receber da sociedade meios de sobrevivência como se fossem um direito. Em seguida, muda sutilmente o tom, enfatizando que, em contraste com suas relações com a natureza, o homem pode reivindicar direitos contra a sociedade, e por isso a pobreza não é apenas um fato social, mas uma injustiça cometida por uma classe contra a outra. Além disso, há um sutil non sequitur no argumento: Hegel passa diretamente da indignação da populaça contra os ricos/a sociedade/o governo para sua falta de respeito próprio – a populaça é irracional porque demanda uma vida decente sem trabalhar para isso, negando o axioma moderno básico de que a liberdade e a autonomia se baseiam no trabalho da mediação de si. Consequentemente, o direito de subsistir sem trabalho
só pode parecer irracional porque [Hegel] vincula o conceito de direito ao conceito de livre-arbítrio, que só pode ser livre se se tornar um objeto para si por meio da atividade objetiva. Reivindicar um direito à subsistência sem atividade, e reivindicar esse direito ao mesmo tempo somente para si, significa, segundo Hegel, reivindicar um direito que não tem nem a universalidade nem a objetividade de um direito. O direito reivindicado pela populaça é, para ele, um direito sem direito e [...], consequentemente, ele define a populaça como a particularidade que se desprende também da inter-relação essencial de direito e dever.25
Mas indignação não é o mesmo que falta de respeito próprio: não gera automaticamente a demanda a ser satisfeita sem trabalho. Indignação também pode ser uma indicação direta de respeito próprio: como a populaça é produzida necessariamente, como parte do processo social de (re)produção da riqueza, é a própria sociedade que nega o direito da populaça de participar do universo social de liberdades e direitos – é negado a ela o direito de ter direitos, pois o “direito sem direito” é de fato um metadireito ou direito reflexivo, um direito universal de ter direitos, de estar em posição de agir como um sujeito livre e autônomo. A demanda a ser satisfeita sem trabalho é, portanto, uma forma (possivelmente superficial) de aparição da demanda mais básica e em absoluto “irracional” de termos uma chance de agir como sujeitos livres e autônomos, de ser incluídos no universo de liberdades e obrigações. Em outras palavras, como a populaça é excluída da esfera universal da vida livre autônoma, sua própria demanda é universal:
[seu] reivindicado direito sem direito contém uma dimensão latente e não é em absoluto um mero direito particular. Como direito particularmente articulado, trata-se de um direito que afeta qualquer pessoa de modo latente e promove o entendimento de uma demanda por igualdade para além das circunstâncias objetivas e estatistas existentes.26
Há ainda uma distinção importante a ser feita aqui, uma distinção apenas latente em Hegel (na forma de oposição entre os dois excessos da pobreza e da riqueza), mas desenvolvida por Ruda: os membros da populaça (aqueles excluídos da esfera dos direitos e da liberdade),
podem ser estruturalmente diferenciados em dois tipos: há os pobres e os apostadores. Qualquer um pode se tornar pobre não arbitrariamente, mas apenas quem decide arbitrariamente não satisfazer seus desejos e necessidades egoístas por meio do trabalho pode se tornar um apostador. Ele confia plenamente no movimento contingente da economia burguesa e espera garantir a própria subsistência de maneira igualmente contingente – por exemplo, ganhando dinheiro de maneira contingente na bolsa de valores.27
Os excessivamente ricos, portanto, também são uma espécie de populaça no sentido de que violam as regras (ou se excluem) da esfera dos deveres e liberdades: além de demandar que a sociedade proveja a sua subsistência sem trabalho, eles são providos de facto dessa maneira. Consequentemente, enquanto Hegel critica a posição da populaça como uma particularidade irracional que opõe de modo egoísta seus próprios interesses particulares à universalidade existente e organizada racionalmente, essa distinção entre duas populaças mostra que somente a populaça rica se enquadra no veredito de Hegel: “Enquanto a populaça rica é, como julga Hegel corretamente, uma simples populaça particular, a populaça pobre contém, contra o julgamento de Hegel, uma dimensão universal latente que nem sequer é inferior à universalidade da concepção hegeliana de ética”28.
Portanto, podemos demonstrar que, no caso da populaça, Hegel foi inconsistente no que se refere a sua própria matriz do processo dialético, regredindo de facto da noção propriamente dialética de totalidade para um modelo corporativo do Todo social. Seria essa apenas uma falha empírica e acidental da parte de Hegel, de modo que possamos corrigir esse ponto (e outros semelhantes) e assim estabelecer o “verdadeiro” sistema hegeliano? A questão, obviamente, é que aqui também podemos aplicar a diretriz dialética fundamental: esses fracassos locais na tentativa de desenvolver de maneira apropriada o mecanismo do processo dialético são seus pontos sintomáticos imanentes, eles indicam uma falha estrutural mais fundamental no próprio mecanismo de base. Em suma, se Hegel tivesse sistematizado o caráter universal da populaça, seu modelo inteiro do Estado racional teria de ser abandonado. Isso quer dizer que tudo o que temos de fazer é a passagem de Hegel a Marx? A inconsistência é resolvida quando substituímos a populaça pelo proletariado como “classe universal”? Eis como Rebecca Comay resume a limitação sociopolítica de Hegel:
Hegel não é Marx. A populaça não é o proletariado, o comunismo não está no horizonte e a revolução não é a solução. [...] Hegel não está preparado para ver na contradição da sociedade civil o dobre fúnebre da sociedade de classes, para identificar o capitalismo como seu próprio coveiro ou para ver nas massas privadas de direitos algo mais que um surto de cegueira, reação informe, “elementar, irracional, selvagem e terrível” [...] um enxame cuja integração continua irrealizada e irrealizável, um “dever” [...]. Mas a aporia, atípica para Hegel, aponta para algo inacabado ou já desmoronando dentro do edifício cuja construção Hegel declara completa, uma falha tanto da efetividade quanto da racionalidade que solapa a solidez do Estado que ele celebra alhures, em linguagem hobbesiana, como divindade mundana.29
Será que Hegel é simplesmente limitado por seu contexto histórico? Será que era muito cedo para ver o potencial emancipatório da “parte de nenhuma parte”, de modo que tudo o que ele poderia fazer era registrar honestamente as aporias não resolvidas e não resolvíveis de seu Estado racional? Talvez, mas a experiência histórica do século XX também não torna problemática a visão marxiana da revolução? Hoje, num mundo pós-Fukuyama, não estamos exatamente na situação do último Hegel? Vemos “algo inacabado ou já desmoronando dentro do edifício” do Estado de bem-estar social liberal-democrático, que, no utópico “momento Fukuyama” da década de 1990, surgiu como o “fim da história”, a melhor forma político-econômica possível enfim encontrada. Assim, talvez tenhamos aqui mais um caso de falta de sincronismo: de certo modo, Hegel estava mais perto da marca do que Marx, ou seja, as tentativas de representar no século XX a Aufhebung da fúria das massas privadas de direitos no desejo do agente proletário de resolver os antagonismos sociais acabou fracassando, o Hegel “anacrônico” é mais contemporâneo nosso que Marx.
Também podemos perceber que Althusser estava errado quando, em sua crua oposição entre estrutura sobredeterminada e totalidade hegeliana, reduziu esta última a um mero sincronismo, que chamou de “totalidade expressiva”: para o Hegel de Althusser, cada época histórica é dominada por um princípio espiritual que se manifesta em todas as esferas sociais. No entanto, como mostrou o exemplo da discórdia temporal entre França e Alemanha, a não contemporaneidade é, para Hegel, um princípio: em termos políticos, a Alemanha estava atrasada em relação à França (onde aconteceu a Revolução) e, por isso, só poderia se prolongar no domínio do pensamento; no entanto, a Revolução somente aconteceu na França porque esta estava atrasada em relação à Alemanha, ou seja, porque não passara pela Reforma que garantia liberdade interna e, portanto, reconciliava os domínios secular e espiritual. Desse modo, longe de ser uma exceção ou uma complicação acidental, o anacronismo é a “assinatura” da consciência:
a experiência se excede continuamente, reivindica eternamente que ela (isto é, o mundo) não está equipada para realizar e está despreparada para reconhecer, e que a compreensão não faz diferença, pois é inevitavelmente tardia, ainda que somente porque o que estava em jogo já se modificou.30
Essa extemporaneidade anacrônica vale especialmente para as revoluções:
A Revolução “Francesa”, que fornece a medida da extemporaneidade “alemã”, é em si extemporânea [...]. Não existe um momento certo ou “maduro” para a revolução (do contrário, não haveria a necessidade de nenhuma). A revolução sempre chega muito cedo (as condições nunca estão prontas) e muito tarde (ela fica sempre atrás da própria iniciativa).31
Agora podemos ver a estupidez dos “críticos marxistas” que repetem o mantra de que o stalinismo surgiu porque a primeira revolução proletária aconteceu no lugar errado (na Rússia semidesenvolvida, “asiática” e despótica, e não na Europa Ocidental) – por definição, as revoluções sempre acontecem no lugar errado e no momento errado, são sempre “deslocadas”. E a Revolução Francesa não foi condicionada pelo fato de que, por causa de seu absolutismo, a França estava ficando para trás da Inglaterra em termos de modernização capitalista? E essa não contemporaneidade não é irredutível? O Saber Absoluto, momento conclusivo do sistema hegeliano, não é o momento em que finalmente a história acomete a si mesma, quando conceito e realidade se sobrepõem na plena contemporaneidade? Comay rejeita essa leitura superficial:
O Saber Absoluto é a exposição desse atraso. Sua obrigação é tornar explícita a dissonância estrutural da experiência. Se a filosofia faz qualquer reivindicação à universalidade, não é porque sincroniza os calendários ou fornece uma compensação intelectual por sua tardança. Sua contribuição, ao contrário, é formalizar a necessidade do atraso, junto com estratégias inventivas com as quais esse mesmo atraso é invariavelmente disfarçado, ignorado, glamorizado ou racionalizado.32
Esse atraso – em última análise, não só o atraso entre os elementos da mesma totalidade histórica, mas o atraso da totalidade com respeito a si própria, a necessidade estrutural de que uma totalidade contenha elementos anacrônicos que, sozinhos, possibilitem que ela se estabeleça como totalidade – é o aspecto temporal de uma lacuna que propele o processo dialético, e o “Saber Absoluto”, longe de preencher essa lacuna, torna-a visível como tal, em sua necessidade estrutural:
O Saber Absoluto não é nem compensação, como no resgate de uma dívida, nem satisfação: o vazio é constitutivo (o que não significa que seja historicamente sobredeterminado). Em vez de tentar fechar a lacuna pela acumulação de mais-valia conceitual, Hegel procura desmistificar os fantasmas que usamos para preenchê-la.33
Nisto reside a diferença entre Hegel e o evolucionismo histórico: este concebe o progresso histórico como sucessão de formas, das quais cada uma cresce, chega ao auge, torna-se obsoleta e desintegra-se; já para Hegel, a desintegração é o próprio sinal da “maturidade”, pois não existe nenhum momento de puro sincronismo, quando forma e conteúdo se sobrepõem sem atraso.
Talvez devêssemos conceber a própria trindade europeia como um nó borromeano dos anacronismos: o modelo de excelência de cada país (economia política britânica, política francesa e filosofia alemã) baseia-se em um atraso anacrônico em outros domínios (a excelência do pensamento alemão é o resultado paradoxal de seu retardo político-econômico; a Revolução Francesa baseou-se no atraso do capitalismo devido ao absolutismo do Estado francês etc.). Nesse sentido, a trindade funcionou como um nó borromeano: cada par de países só se interliga por intermédio do terceiro (na política, a França faz o elo entre a Inglaterra e a Alemanha etc.).
Nesse ponto, arriscaríamos dar um passo adiante e desmistificar a própria noção de nação histórico-mundial, uma nação destinada a incorporar o nível que a história mundial atingiu em determinado ponto. Dizem que, na China, quando realmente se odeia alguém, o mal que se deseja ao outro é: “Que você viva em tempos interessantes!”. Hegel tinha plena consciência de que, em nossa história, “tempos interessantes” são, na verdade, tempos de inquietação, guerra e lutas de forças, com milhões de observadores inocentes sofrendo suas consequências: “A história do mundo não é o teatro da felicidade. Períodos de felicidade são páginas em branco, pois são períodos de harmonia, períodos de ausência de oposição”34. Deveríamos conceber a sucessão de grandes nações “históricas” que, passando a tocha uma para a outra, incorporaram o progresso de uma era (Irã, Grécia, Roma, Alemanha...) não como uma bênção pela qual uma nação é temporariamente elevada a determinada categoria histórico-mundial, mas antes como a transmissão de uma doença espiritual contagiosa, uma doença da qual uma nação só pode se livrar passando-a para outra nação, uma doença que só traz sofrimento e destruição para o povo contaminado? Os judeus eram uma nação normal, que vivia uma “página em branco” da história, até que, por razões desconhecidas, Deus os apontou como o povo escolhido, e isso só lhes trouxe dor e dispersão – pela solução de Hegel, esse fardo pode ser passado adiante para que se volte à feliz “página em branco”. Ou, em termos althusserianos, embora as pessoas vivam como indivíduos, de tempos em tempos algumas delas têm o infortúnio de ser interpeladas como sujeitos do grande Outro.
Voltando à populaça, podemos argumentar que a posição da “populaça universal” captura à perfeição a situação dos novos proletários de hoje. No clássico dispositif marxista da exploração de classe, o capitalista e o trabalhador encontram-se no mercado como indivíduos formalmente livres, sujeitos iguais da mesma ordem legal, cidadãos do mesmo Estado, com os mesmos direitos civis e políticos. Hoje, esse quadro legal de igualdade, essa participação compartilhada nos mesmos espaços civis e políticos, está se dissolvendo aos poucos com o advento de novas formas de exclusão social e política: imigrantes ilegais, moradores de cortiços, refugiados etc. É como se, paralelamente à regressão do lucro para a renda, o sistema existente, para continuar a funcionar, tivesse de ressuscitar formas pré-modernas de exclusão direta – ele não pode mais propiciar a exploração e a dominação na forma de autoridade legal e civil. Em outras palavras, enquanto a clássica classe trabalhadora é explorada pela própria participação na esfera de direitos e liberdades – isto é, enquanto sua escravidão de facto é realizada por meio da própria forma de sua autonomia e liberdade, por meio do trabalho que provenha sua subsistência –, a populaça de hoje não tem sequer o direito de ser explorada pelo trabalho, seu status oscila entre o de vítima, sustentado pela ajuda humanitária, e o de terrorista, que deve ser contido ou massacrado; e, justamente como descreveu Hegel, muitas vezes ela expõe sua demanda como demanda de subsistência sem trabalho (como os piratas somalianos).
Aqui, poderíamos reunir, como aspectos da mesma limitação, os dois temas em que Hegel fracassa (por seus próprios padrões): a populaça e o sexo. Longe de propiciar o fundamento natural da vida humana, a sexualidade é o verdadeiro terreno em que os seres humanos se destacam da natureza: a ideia de perversão sexual, ou de uma paixão sexual mortal, é totalmente alheia ao universo animal. Nesse aspecto, nem mesmo Hegel atinge os próprios padrões: ele simplesmente descreve como, por meio da cultura, a substância natural da sexualidade é cultivada, suprassumida, mediada – nós, seres humanos, já não fazemos amor para procriar, mas entramos em um processo complexo de sedução e casamento em que a sexualidade se torna expressão do vínculo espiritual entre homem e mulher etc. Contudo, o que Hegel não percebe é que, nos seres humanos, a sexualidade não é apenas transformada ou civilizada, mas sim, e de uma maneira muito mais radical, modificada em sua própria substância: ela não é mais a pulsão instintiva de reprodução, mas uma pulsão que se descobre tolhida em relação a seu objetivo natural (a reprodução) e, com isso, explode em uma paixão infinita, propriamente metafísica. O devir cultural da sexualidade, portanto, não é o devir da natureza, mas a tentativa de domesticar um excesso propriamente desnatural da paixão sexual metafísica. Esse excesso de negatividade discernível no sexo e na populaça é a própria dimensão da “insubordinação” identificada por Kant como a liberdade violenta em virtude da qual o homem, ao contrário dos animais, precisa de um mestre. Portanto, não é só que a sexualidade seja a substância animal “suprassumida” em rituais e modos civilizados, remodelada, disciplinada etc., mas o próprio excesso da sexualidade, a sexualidade como Paixão incondicional que ameaça detonar todas as restrições “civilizadas”, é resultado da Cultura. Nos termos do Tristão, de Wagner: a civilização não é apenas o universo do Dia, dos rituais e das honras que nos cegam, mas a própria Noite, a paixão infinita na qual dois amantes querem dissolver sua existência ordinária e cotidiana – os animais não conhecem tal paixão. Desse modo, a civilização/Cultura retroativamente põe/transforma seu próprio pressuposto natural, retroativamente “desnaturaliza” a natureza – é o que Freud chamou de id, libido. É desse modo que, também aqui, ao combater seu obstáculo natural, ou sua substância natural oposta, o Espírito combate a si mesmo, sua própria essência.
Elisabeth Lloyd sugere que o orgasmo feminino não tem nenhuma função evolutiva positiva: ele não é uma adaptação biológica com vantagens evolutivas, mas um “apêndice”, como os mamilos masculinos35. No estágio embrionário de crescimento, macho e fêmea têm a mesma estrutura anatômica durante os dois primeiros meses, antes de aparecerem as diferenças; a fêmea adquire a capacidade do orgasmo somente porque o macho precisará dela depois, assim como o macho adquire mamilos somente porque as fêmeas precisarão deles. Todas as explicações usuais (como a tese da “sucção uterina”, isto é, o orgasmo provoca contrações que “sugam” o esperma e, assim, ajuda a concepção) são falsas: embora o prazer sexual e até o clitóris sejam adaptáveis, o orgasmo não é. O fato de essa tese ter provocado a fúria das feministas é em si uma prova do declínio de nossos padrões intelectuais: como se a própria superfluidade do orgasmo feminino não o tornasse ainda mais “espiritual” – não devemos nos esquecer de que, segundo alguns evolucionistas, a própria linguagem é um subproduto sem nenhuma função evolutiva clara. Aqui, devemos ficar atentos para não deixar passar a reversão propriamente dialética da substância: o momento em que o ponto de partida substancial (“natural”) imediato não é influenciado, transformado, mediado/cultivado, mas modificado em sua própria substância. Nós não agimos simplesmente sobre a natureza e assim a transformamos – em um gesto de reversão retroativa, a própria natureza muda sua “natureza”36. É por isso que os católicos que insistem que o sexo humano é somente para procriar – e a cópula por luxúria é bestial – passam totalmente ao largo do problema e acabam celebrando a animalidade do homem.
Por que o cristianismo é contra a sexualidade, aceitando-a como mal necessário apenas quando serve ao propósito natural da procriação? Não porque nossa natureza inferior emerge na sexualidade, mas exatamente porque a sexualidade compete com a espiritualidade como atividade metafísica primordial. A hipótese freudiana diz que a passagem dos instintos animais (de acasalamento) para a sexualidade propriamente dita (pulsões) é o passo primordial do campo físico da vida biológica (animal) para a metafísica, para a eternidade e a imortalidade, para um nível que é heterogêneo com respeito ao ciclo biológico da geração e da corrupção37. Platão já sabia disso quando escreveu sobre Eros, a ligação erótica a um corpo belo, como o primeiro passo no caminho para o Bem supremo; cristãos observadores (como Simone Weil) perceberam no desejo sexual uma aspiração ao Absoluto. A sexualidade humana é caracterizada pela impossibilidade de atingir seu objetivo, e essa impossibilidade constitutiva o eterniza, como no caso dos mitos sobre grandes amantes cujo amor perdura para além da vida e da morte. O cristianismo concebe esse excesso propriamente metafísico da sexualidade como um distúrbio que deve ser eliminado; assim, paradoxalmente, é o próprio cristianismo (sobretudo o catolicismo) que quer se livrar de seu rival, reduzindo a sexualidade à função animal de procriação: o cristianismo quer “normalizar” a sexualidade, espiritualizando-a de fora (impondo sobre ela o invólucro externo da espiritualidade – o sexo deve acontecer em uma relação de amor, com respeito pelo parceiro ou parceira etc.), obliterando assim sua dimensão espiritual imanente, a dimensão da paixão incondicional. Até mesmo Hegel cai nesse erro quando entende a dimensão espiritual propriamente humana da sexualidade apenas em sua forma cultivada ou mediada, ignorando que essa mediação transubstancia ou eterniza retroativamente o próprio objeto de sua mediação. Em todo caso, o objetivo é se livrar do estranho duplo da espiritualidade, de uma espiritualidade em sua forma libidinal obscena, do excesso que absolutiza o próprio instinto na pulsão eterna.
A limitação do conceito de sexualidade em Hegel é claramente discernível em sua teoria do casamento (na Filosofia do direito), mas merece ainda assim uma leitura mais atenta: por baixo da superfície do conceito burguês padrão de casamento escondem-se muitas implicações perturbadoras. Embora o sujeito entre no casamento voluntariamente, renunciando à própria autonomia a título de imersão na unidade imediata ou substancial da família (que funciona com relação a sua aparência como uma pessoa), a função da família é exatamente o oposto dessa unidade substancial: é educar quem nasce dentro dela para que a abandone (os pais) e busque o próprio caminho, independentemente dela. A primeira lição do casamento, portanto, é que o objetivo maior de cada unidade ética substancial é se dissolver, dando origem a indivíduos que vão impor sua plena autonomia contra a unidade substancial que os deu à luz.
É por causa dessa renúncia da individualidade autônoma que Hegel se opõe àqueles (inclusive Kant) que insistem na natureza contratual do casamento:
o casamento, a respeito do seu fundamento essencial, não é a relação de um contrato, pois ele consiste em sair precisamente do ponto de vista do contrato da personalidade autônoma em sua singularidade para suprassumi-lo. A identificação das personalidades, pela qual a família é uma pessoa, e os membros dela, acidentes (mas a substância é essencialmente a relação dos acidentes com ela mesma), é o espírito ético.f
Está claro em que sentido, para Hegel, o casamento consiste em “sair precisamente do ponto de vista do contrato”: um contrato é um acordo entre dois ou mais indivíduos autônomos, e cada um deles resguarda sua liberdade abstrata (como no caso da troca de mercadorias), ao passo que o casamento é um contrato esquisito, pelo qual as partes interessadas se obrigam justamente a abandonar sua liberdade e sua autonomia abstratas, ou renunciar a elas, e subordiná-las a uma unidade ética orgânica e superior38.
Hegel formula sua tese sobre o casamento contra dois oponentes: sua rejeição da teoria contrária está relacionada a sua crítica à noção romântica de casamento, que concebe o núcleo do casamento como a ligação de amor e paixão do casal, de modo que a forma do casamento é, na melhor das hipóteses, apenas o registro externo dessa ligação e, na pior, um obstáculo para o verdadeiro amor. Podemos ver como essas duas noções se complementam: se o verdadeiro núcleo do casamento é o amor íntimo e apaixonado, então, naturalmente, o próprio casamento nada mais é que um contrato externo. Para Hegel, ao contrário, a cerimônia externa é apenas externa – nela reside o núcleo ético real do casamento:
Quando o concluir do casamento enquanto tal, a solenidade pela qual a essência dessa união é enunciada e constatada como um algo ético, que se eleva acima da contingência do sentimento e da inclinação particular, é tomado por uma formalidade exterior e por um assim denominado mero imperativo civil, assim não resta quase nada a esse ato, a não ser que tem por fim o caráter edificante e a certificação da relação civil [...]. [o ato] não apenas seria indiferente à natureza do casamento, mas também, na medida em que o ânimo coloca, por causa do imperativo, um valor nesse concluir formal, e enquanto considerado como a condição prévia do completo abandono recíproco, desuniria a disposição de espírito do amor e, enquanto algo estranho, iria de encontro à intimidade dessa unificação. Tal opinião, dado que ela tem a pretensão de dar o conceito mais elevado da liberdade, da intimidade e da perfeição do amor, antes nega o ético do amor, a mais elevada inibição e preterição do mero impulso natural [...]. Mais precisamente, é mediante essa maneira de ver que se recusa a determinação ética, que consiste em que a consciência, desde sua naturalidade e sua subjetividade, se reúna no pensamento do substancial, e em vez de se reservar sempre ainda o contingente e o arbitrário da inclinação sensível, a união desprende-se desse arbitrário e [...] entrega-se ao substancial.39
Nesse sentido, Hegel rejeita a visão romântica de Schlegel e seus amigos, segundo a qual:
a solenidade do casamento é supérflua, uma formalidade que deveria ser descartada. Sua razão é que o amor, assim o dizem, é a substância do casamento, e que a solenidade, portanto, deprecia seu valor. A renúncia ao impulso natural é aqui representada como necessária para demonstrar a liberdade e a interioridade do amor – argumento que os sedutores desconhecem.40
A visão romântica não compreende, portanto, que o casamento é “amor ético-legal [rechtlich sittliche], e isso elimina do casamento os aspectos transientes, volúveis e puramente subjetivos do amor”. O paradoxo é que, no casamento, “a unidade dos sexos naturais, que é apenas interior ou sendo em si, e precisamente com isso apenas exterior em sua existência, é, na autoconsciência, transformada numa unidade espiritual, no amor autoconsciente”g: a espiritualização da ligação natural, portanto, não é simplesmente sua interiorização; ao contrário, ela ocorre disfarçada de seu oposto, de exteriorização em uma solenidade simbólica:
a declaração solene do consentimento para o vínculo ético do casamento e o reconhecimento e a confirmação correspondentes dele pela família e comunidade [...] constituem a conclusão formal e a efetividade do casamento, de modo que essa união apenas é constituída, enquanto ética, pelo desenrolar dessa cerimônia, enquanto consumação do substancial pelo sinal, pela linguagem, enquanto o ser-aí mais espiritual do espiritual.41
Aqui, Hegel destaca a função “performativa” da cerimônia do casamento: mesmo que, para os parceiros, pareça um simples formalismo burocrático, ela representa a inscrição de sua ligação sexual no grande Outro, uma inscrição que muda radicalmente a posição subjetiva das partes envolvidas. Isso explica o fato notório de que as pessoas casadas são com frequência mais ligadas aos cônjuges do que parece (até para si mesmas): um homem pode ter casos secretos, pode até sonhar em abandonar a esposa, mas, quando surge a oportunidade, a angústia evita que ele faça isso – em suma, estamos dispostos a enganar nossos cônjuges, desde que o grande Outro não o saiba (registre). A última frase citada é muito precisa nesse sentido: “a união apenas é constituída, enquanto ética, pelo desenrolar dessa cerimônia, enquanto consumação do substancial pelo sinal, pela linguagem, enquanto o ser-aí mais espiritual do espiritual”. A passagem da ligação natural para a autoconsciência espiritual não tem nada a ver com “percepção interior” e tudo a ver com registro “burocrático” exterior, um ritual cujo verdadeiro escopo pode ser desconhecido para os participantes, que podem pensar que estão simplesmente executando uma formalidade externa.
A principal característica do casamento não é a ligação sexual, mas “o livre consentimento das pessoas [...] em constituir uma pessoa, em renunciar à sua personalidade natural e singular nessa unidade, que, segundo esse aspecto, é uma autodelimitação, mas elas ganham ali precisamente sua autoconsciência substancial, é sua libertação”42. Em suma, a verdadeira liberdade é a libertação das ligações patológicas a objetos particulares, determinadas pelo capricho e pela contingência. Mas aqui Hegel vai até o fim, direto para a reversão dialética da necessidade em contingência: superar a contingência não significa arranjar um casamento com base em um exame cuidadoso das qualidades físicas e mentais do futuro cônjuge (como em Platão); ao contrário, significa que, no casamento, o cônjuge é contingente, e essa contingência deveria ser assumida como necessária. Assim, quando Hegel trata dos dois extremos dos casamentos pré-arranjados e dos casamentos baseados na atração e no amor, em fundamentos éticos, ele prefere o primeiro. Em um extremo:
que a organização dos pais bem-intencionados constitui o começo e que a inclinação surja nas pessoas determinadas à união no amor recíproco, de que se tornem conhecidas enquanto determinadas a ela – o outro [extremo], que a inclinação apareça primeiro nas pessoas e enquanto elas são essas pessoas infinitamente particularizadas. – Aquele extremo ou, em geral, o caminho no qual a resolução [para o casamento] constitui o começo e tem a inclinação por consequência, de modo que nas núpcias efetivas ambos os aspectos são então reunidos, podem mesmo ser vistos como o caminho mais ético.43
Vale a pena ler de novo o começo da última frase: “Aquele extremo ou, em geral, o caminho no qual a resolução [para o casamento] constitui o começo e tem a inclinação por consequência [...], podem de fato ser vistos como o caminho mais ético”. Em outras palavras, o casamento pré-arranjado é mais ético não porque os pais, mais velhos e bem-intencionados, podem ver o futuro e estão em melhor posição que o jovem casal, cego pela paixão, para julgar se o casal tem ou não as qualidades necessárias para compartilhar uma vida feliz; o que o torna mais ético é que, nesse caso, a contingência do cônjuge é assumida direta e abertamente – sou simplesmente informado de que se espera de mim que eu escolha livremente como cônjuge para toda a vida uma pessoa desconhecida, imposta a mim por outros. Essa liberdade para escolher o que é necessário é mais espiritual, porque o amor físico e os laços emocionais são secundários: seguem-se da decisão abissal do casamento. Duas consequências surgem desse paradoxo: não é só a renúncia da liberdade abstrata no casamento que é uma dupla renúncia (eu não renuncio apenas a minha liberdade abstrata, concordando em mergulhar na unidade familiar; a própria renúncia só é livre em termos formais, pois o cônjuge por quem renuncio a minha liberdade abstrata é de fato escolhido por outros); além disso, a renúncia de minha liberdade abstrata não é a única renúncia implicada pelo ato do casamento. Devemos ler cuidadosamente a seguinte passagem:
A distinção entre casamento e concubinato é que este último trata principalmente da satisfação de um desejo natural, ao passo que essa satisfação é secundária no primeiro [...]. O aspecto ético do casamento consiste na consciência que os cônjuges têm dessa unidade enquanto seu objetivo substantivo e assim, em seu amor, da confiança e do compartilhamento de toda a sua existência como indivíduos. Quando os cônjuges assumem esse modo de pensar e sua união é efetiva, a paixão física declina para o nível de um momento físico, destinado a desaparecer em sua própria satisfação. Por outro lado, o elo espiritual da união garante seus direitos como substância do casamento e assim se eleva, inerentemente indissolúvel, a um plano acima da contingência da paixão e da transitoriedade do capricho particular.44
Então o que renunciamos no casamento45? Na medida em que, no casamento, a atração patológica e a luxúria são suprassumidas em um elo simbólico e subordinadas assim ao espírito, o resultado é um tipo de dessublimação do cônjuge: o pressuposto implícito (ou, antes, injunção) da ideologia-padrão do casamento é que, precisamente, não deveria haver amor nele. A verdadeira fórmula pascaliana do casamento, portanto, não é “Você não ama seu cônjuge? Então se case com ele, adote os rituais da vida compartilhada e o amor surgirá por si só!”, mas, ao contrário: “Você está muito apaixonado? Então se case, ritualize a relação para se curar da excessiva ligação da paixão, para substituí-la por hábitos cotidianos e entediantes – e, se não puder resistir à tentação da paixão, sempre poderá recorrer aos casos extraconjugais...”. O casamento, portanto, é um meio de renormalização que nos cura da violência de nos apaixonar (em basco, o termo para “apaixonar-se” é maitemindu, que significa literalmente “ser ferido pelo amor”). Em outras palavras, o objeto é sacrificado no casamento – a lição do casamento está em Così fan tutte, de Mozart: o objeto substituível.
O que faz de Così fan tutte a mais desconcertante e até a mais traumática das óperas de Mozart é o caráter ridículo de seu conteúdo: é quase impossível “conter nossa descrença” e aceitar a premissa de que as duas mulheres não reconhecem nos oficiais albaneses seus próprios amantes. Não surpreende que durante todo o século XIX a ópera tenha sido apresentada em uma versão modificada para que a história parecesse convincente. Ela sofreu três tipos principais de modificação, que correspondem perfeitamente aos modos principais da negação freudiana de determinado conteúdo traumático: (1) a encenação implicava que as mulheres sabiam o tempo todo da verdadeira identidade dos “oficiais albaneses”, apenas fingiam não saber para dar uma lição nos amantes; (2) os casais formados no fim da ópera não são os mesmos do início, eles trocam de lugar para que, pela confusão de identidades, os elos amorosos verdadeiros e naturais sejam estabelecidos; (3) de maneira mais radical, apenas a música foi aproveitada, e um libreto totalmente novo conta uma história totalmente diferente.
Edward Said chamou a atenção para uma carta de Mozart a sua esposa Constanze, datada de 30 de setembro de 1790, ou seja, da época em que estava compondo Così fan tutte. Depois de manifestar satisfação diante da possibilidade de encontrá-la em breve, ele diz: “se as pessoas pudessem ver dentro do meu coração, eu teria quase de me envergonhar de mim mesmo...”. Nesse ponto, como observa Said com muita perspicácia, esperaríamos a confissão de um segredo indecente (fantasias sexuais sobre o que ele faria com a esposa quando eles finalmente se encontrassem etc.); no entanto, a carta prossegue: “tudo é frio para mim – frio como gelo”46. É aqui que Mozart entra no estranho domínio de “Kant avec Sade”, um domínio em que a sexualidade perde o caráter intenso e apaixonado e se transforma em seu oposto, em um exercício “mecânico” de prazer executado a uma fria distância, como o sujeito ético kantiano cumprindo seu dever sem nenhum compromisso patológico. Não seria essa a visão subjacente de Così fan tutte, um universo em que os sujeitos são determinados não por seus engajamentos apaixonados, mas por um mecanismo cego que regula suas paixões? O que nos leva a aproximar Così fan tutte do domínio de “Kant avec Sade” é a própria insistência na dimensão universal já indicada no título: “Todos agem assim”, todos são determinados pelo mesmo mecanismo cego. Em suma, Alfonso, o filósofo que prepara e manipula o jogo de identidades trocadas em Così fan tutte, é uma versão da figura do pedagogo sadiano, que educa seus jovens discípulos na arte da libertinagem. Assim, é por demais simplista e inadequado conceber essa frieza como a da “razão instrumental”.
O núcleo traumático de Così fan tutte reside em seu “materialismo mecânico” radical, no sentido pascaliano aludido anteriormente – Pascal aconselhava os descrentes: “Ajam como se acreditassem, ajoelhem-se, sigam o ritual e a crença surgirá por si só!”. Così aplica a mesma lógica ao amor: longe de ser expressões exteriores de um sentimento interior, os gestos e rituais de amor são o que gera o amor; portanto, aja como se amasse, siga os procedimentos e o amor surgirá por si só. Os moralistas que condenam Così fan tutte por sua suposta frivolidade não captam o principal: Così é uma ópera “ética”, no sentido kierkegaardiano estrito de “estádio ético”. O estádio ético é definido pelo sacrifício do consumo imediato da vida, de nossa entrega ao momento efêmero, em nome de uma norma universal superior. Se Don Giovanni, de Mozart, incorpora a estética (como desenvolvida pelo próprio Kierkegaard em sua minuciosa análise em Ou/Ou), a lição de Così fan tutte é ética. Por quê? A questão em Così fan tutte é que o amor que une os dois casais no início da história não é menos “artificial” e provocado mecanicamente que a paixão posterior das irmãs pelos parceiros trocados, vestidos de oficiais albaneses, o que acontece como resultado das manipulações de Alfonso – em ambos os casos, estamos lidando com um mecanismo a que o sujeito obedece cegamente, como uma marionete. É nisto que consiste a “negação da negação” hegeliana: primeiro, percebemos o amor “artificial”, produto da manipulação, como o oposto do amor “autêntico” do início da história; depois, de súbito, tomamos consciência de que, na verdade, não há nenhuma diferença entre os dois – o amor original não é menos “artificial” que o segundo. A conclusão é que, como um amor é tão importante quanto o outro, os casais podem voltar ao acordo matrimonial do início.
Em termos lacanianos, o casamento subtrai do objeto (cônjuge) “o que há nele mais que ele”, o objeto a, o objeto-causa do desejo – ele reduz o cônjuge a um objeto ordinário. A lição do casamento que se tira do amor romântico é: você ama apaixonadamente certa pessoa? Então se case com ela e veja como ela é na vida cotidiana, com seus tiques vulgares, suas pequenas mesquinharias, suas roupas íntimas sujas, seu ronco etc. Devemos ser claros aqui: é função do casamento vulgarizar o sexo, retirar dele toda a paixão verdadeira e transformá-lo em um dever entediante. Aliás, deveríamos corrigir Hegel sobre esse ponto: o sexo em si não é natural, é função do casamento reduzi-lo a um momento patológico/natural subordinado. Também deveríamos corrigi-lo na medida em que confunde idealização e sublimação: e se o casamento for o grande teste do verdadeiro amor, em que a sublimação supera a idealização? Na paixão cega, o parceiro ou a parceira não são sublimados, mas idealizados; a vida de casado definitivamente desidealiza o cônjuge, mas não necessariamente o dessublima.
O velho ditado “o amor é cego, os amantes não” deveria ser interpretado de maneira precisa, voltado para a estrutura da renegação: “Eu sei muito bem (que aquele que amo é cheio de falhas), mas mesmo assim (eu o amo plenamente)”. A questão, portanto, não é que somos realistas mais cínicos do que parecemos, mas sim que, quando estamos apaixonados, esse realismo se torna inoperativo: em nossos atos, obedecemos ao amor cego. Em um velho melodrama cristão, um ex-soldado acometido de cegueira temporária apaixona-se pela enfermeira que cuida dele, fica fascinado com sua bondade e cria uma imagem idealizada dela; quando a cegueira passa, ele vê que ela é feia. Sabendo que esse amor não sobreviveria a um contato prolongado com essa realidade, e que a beleza interior de sua boa alma tem mais valor que sua aparência externa, ele intencionalmente se cega olhando ininterruptamente para o sol, para que seu amor por aquela mulher possa sobreviver. Se existe uma falsa celebração do amor, acabamos de citá-la. No verdadeiro amor, não há necessidade de idealização do objeto, não há necessidade de ignorar as características dissonantes do objeto: o ex-soldado seria capaz de ver a beleza da enfermeira resplandecendo através de sua “feiura”.
É fácil perceber o paralelo entre o sexo e a populaça aqui: Hegel não reconhece na populaça (no lugar da burocracia estatal) a “classe universal”; do mesmo modo, não reconhece na paixão sexual o excesso que não é nem cultura nem natureza. Apesar de a lógica ser diferente em cada caso (a propósito da populaça, Hegel ignora a dimensão universal do elemento excessivo/discordante; a propósito do sexo, ignora o excesso como tal, a destruição da oposição entre natureza e cultura), as duas falhas estão conectadas, pois o excesso é o lugar da universalidade, o modo como a universalidade como tal inscreve-se na ordem de seu conteúdo particular.
O problema subjacente é o seguinte: o esquema “hegeliano” da morte (negatividade) como momento subordinado ou mediador da Vida só pode ser sustentado se permanecermos dentro da categoria da Vida, cuja dialética é a da Substância automediadora que retorna a si mesma a partir de sua alteridade. No momento em que passamos efetivamente de Substância a Sujeito, de (princípio de) Vida a (princípio de) Morte, não há uma “síntese” geral, a morte em sua “negatividade abstrata” continua sendo para sempre uma ameaça, um excesso que não pode ser economizado. Na vida social, isso significa que a paz universal de Kant é uma esperança vã, a guerra continua sendo para sempre uma ameaça à Vida estatal organizada e, na vida subjetiva do indivíduo, a loucura está sempre à espreita como possibilidade.
Isso significa que voltamos ao tópos padrão do excesso de negatividade que não pode ser “suprassumida” em uma “síntese” reconciliadora, ou mesmo à ingênua visão engelsiana da suposta contradição entre a abertura do “método” de Hegel e o fechamento de seu “sistema”? Há indícios que apontam nessa direção: como observaram diversos comentadores, os escritos políticos “conservadores” de Hegel em seus últimos anos (como a crítica à reforma eleitoral inglesa) revelam o temor de qualquer desenvolvimento posterior que afirmasse a liberdade “abstrata” da sociedade civil-burguesa à custa da unidade orgânica do Estado e, com isso, abrisse caminho para mais violência revolucionária47. Por que Hegel deu um passo para trás, por que não ousou levar adiante sua regra dialética básica, adotando com coragem a negatividade “abstrata” como único caminho um estágio superior de liberdade?
Hegel talvez pareça celebrar o caráter prosaico da vida em um Estado moderno bem organizado, no qual tumultos heroicos são superados na tranquilidade dos direitos privados e na segurança da satisfação das necessidades: a propriedade privada é garantida, a sexualidade é restrita ao casamento, o futuro é seguro. Nessa ordem orgânica, a universalidade e os interesses particulares parecem reconciliados: o “direito infinito” da singularidade subjetiva tem seu valor reconhecido, os indivíduos não vivenciam mais a ordem estatal objetiva como uma força estrangeira que se introduz em seus direitos, reconhecem nela a substância e o quadro da própria liberdade. Aqui, Lebrun faz a pergunta decisiva: “O sentimento do Universal poderá ser dissociado de um tal apaziguamento?”48. Contra Lebrun, nossa resposta seria: sim, e é por isso que a guerra é necessária – na guerra, a universalidade reafirma seu direito sobre e contra o apaziguamento orgânico-concreto na vida social prosaica. A necessidade da guerra, portanto, não seria a prova definitiva de que, para Hegel, cada reconciliação social está fadada ao fracasso, nenhuma ordem social orgânica pode efetivamente conter a força da negatividade universal abstrata? É por isso que a vida social está condenada à “falsa infinidade” de uma eterna oscilação entre vida civil estável e perturbação em tempos de guerra – a noção de “permanecer com o negativo” adquire aqui um significado mais radical: não só “passar pelo” negativo, mas persistir nele.
A necessidade da guerra deve ser relacionada a seu oposto: a necessidade de uma rebelião que chacoalhe a complacência do edifício de poder, tornando-o ciente tanto de sua dependência do apoio popular quanto de sua tendência a priori de “alienar-se” de suas raízes. Ou, nas palavras memoráveis de Jefferson, “uma rebeliãozinha de vez em quando é sempre bom”: “É um remédio necessário para a boa saúde do governo. Deus me livre passarmos vinte anos sem uma rebelião. A árvore da liberdade deve ser renovada de tempos em tempos com o sangue dos patriotas e dos tiranos. Esse é seu adubo natural”49. Em ambos os casos, na guerra e na rebelião, libera-se um potencial “terrorista”: na primeira, é o Estado que libera a negatividade absoluta para destruir os indivíduos em sua complacência particular; na segunda, é o povo que lembra o poder estatal da dimensão terrorista da democracia destruindo todas as estruturas particulares do Estado. A beleza dos jacobinos é que, em seu terror, eles juntaram essas duas dimensões opostas: o Terror foi ao mesmo tempo o terror do Estado contra os indivíduos e o terror do povo contra funcionários ou instituições particulares do Estado que se identificavam excessivamente com suas posições institucionais (a objeção contra Danton foi apenas que ele queria se destacar dos outros). É desnecessário dizer que, de uma maneira propriamente hegeliana, as duas dimensões opostas devem ser identificadas, ou seja, a negatividade do poder estatal contra os indivíduos, mais cedo ou mais tarde, volta-se inexoravelmente contra (os indivíduos que exercem) o próprio poder do Estado.
A propósito da guerra, mais uma vez Hegel não é totalmente consistente com suas próprias premissas teóricas: para ser consistente, teria de reconhecer a ação jeffersoniana, a óbvia passagem dialética da guerra externa (entre Estados) à guerra “interna” (revolução, rebelião contra o poder do Estado), como uma explosão esporádica da negatividade que rejuvenesce o edifício do poder. É por isso que, ao lermos os infames parágrafos 322-4 da Filosofia do direito, em que Hegel justifica a necessidade ética da guerra, devemos ter todo o cuidado para notar a ligação entre sua argumentação e suas proposições básicas a respeito da negatividade autorrelativa que constitui o verdadeiro núcleo de um indivíduo livre e autônomo. Ele simplesmente aplica a negatividade autorrelativa básica da livre subjetividade às relações entre Estados:
A individualidade, enquanto ser-para-si excludente, aparece como relação a outros Estados, cada um dos quais é autônomo face aos outros. Visto que nessa autonomia o ser-para-si do espírito efetivo tem seu ser-aí, ela é a primeira liberdade e a honra suprema de um povo. [...]
No ser-aí, essa vinculação negativa do Estado consigo aparece assim como a vinculação de um outro com um outro e como se o negativo fosse algo exterior. A existência dessa vinculação negativa tem, por isso, a figura de um acontecer e do entrelaçamento com eventos contingentes que vêm de fora. Mas ela é seu momento próprio supremo, – sua infinitude efetiva enquanto a idealidade de todo finito nele, – o aspecto em que a substância, enquanto força absoluta contra todo singular e particular, contra a vida, a propriedade e os seus direitos, assim como contra os demais círculos, traz a nulidade dos mesmos ao ser-aí e à consciência. [...]
[...] Há um cálculo muito equivocado, quando, na exigência desse sacrifício, o Estado é considerado apenas como sociedade civil-burguesa e como seu fim último apenas a garantia da vida e da propriedade dos indivíduos; pois essa garantia não é alcançada pelo sacrifício do que deve ser garantido; – ao contrário. [A guerra] não é de se considerar como um mal absoluto e como uma mera contingência exterior, que teria seu fundamento, com isso, ele mesmo contingente, no que quer que seja, nas paixões dos poderosos ou dos povos, nas injustiças etc., em geral, no que não deve ser. O que é da natureza do contingente vem de encontro ao contingente, e, com isso, esse destino é precisamente a necessidade, – assim como, em geral, o conceito e a filosofia fazem desaparecer o ponto de vista da mera contingência e nela, enquanto aparência, conhecem sua essência, a necessidade. É necessário que o finito, a posse e a vida sejam postos como contingentes, porque esse é o conceito do finito. Essa necessidade, de uma parte, tem a figura do poder da natureza, e tudo o que é finito é mortal e perecível. Mas, na essência ética, no Estado, esse poder é retirado da natureza, e a necessidade é elevada à obra da liberdade, ao elemento ético; – essa transitoriedade torna-se um passar querido, e a negatividade que reside no fundamento torna-se individualidade substancial própria da essência ética.
Na paz, a vida civil expande-se continuamente; todos os seus departamentos se emparedam, e no longo prazo os homens estagnam. Suas idiossincrasias se tornam cada vez mais solidificadas e enrijecidas. Mas, para haver saúde, é necessária a unidade do corpo e, se suas partes se endurecem na exclusividade, isso é morte. A paz perpétua é muitas vezes defendida como um ideal pelo qual a humanidade deveria lutar. Com esse fim em vista, Kant propôs uma liga de monarcas para ajustar as diferenças entre os Estados, e a Santa Aliança tinha como objetivo ser uma liga da mesma espécie. Mas o Estado é um indivíduo, e a individualidade essencialmente implica negação. Donde mesmo que uma série de Estados se junte em uma família, esse grupo, como indivíduo, tem de gerar um oposto e criar um inimigo. Como resultado da guerra, nações são fortalecidas, mas povos envolvidos na disputa civil também conseguem a paz em casa provocando guerras no exterior. Para ser exato, a guerra gera a insegurança da propriedade, mas essa insegurança de coisas não passa de sua transitoriedade – que é inevitável. Escutamos do púlpito uma abundância de sermões sobre a insegurança, a futilidade e a instabilidade das coisas temporais, mas todos pensam, por mais movidos pelo que escutam, que serão capazes de ao menos conservar o que é seu. Contudo, se essa insegurança entrar em cena na forma de hussardos com sabres brilhantes e realizar a sério o que disseram os pregadores, então os discursos comoventes e edificantes que predisseram todos esses eventos se transformarão em maldições contra o invasor.50
A função do que Hegel conceitua como necessidade de guerra é justamente o repetido desatar das ligações sociais orgânicas. Quando Freud esboçou em Psicologia das massas e análise do euh a “negatividade” de desfazer os laços sociais (Tânatos em oposição a Eros, a força da ligação social), ele (com suas limitações liberais) descartou com muita facilidade as manifestações desse desenlace como fanatismo da multidão “espontânea” (em oposição às multidões artificiais, isto é, a Igreja e o Exército). Contra Freud, devemos manter a ambiguidade desse desenlace: é o nível zero que abre espaço para a intervenção política. Em outras palavras, esse desatar é a condição pré-política da política, e, com respeito a isso, toda intervenção política propriamente dita vai “longe demais”, comprometendo-se com um novo projeto (ou Significante-Mestre)51. Hoje, esse assunto aparentemente abstrato é mais uma vez relevante: a energia do “desenlace” é amplamente monopolizada pela nova direita (o movimento do Tea Party nos Estados Unidos, onde o Partido Republicano está cada vez mais cindido entre a Ordem e seu Desenlace). No entanto, também nesse caso, todo fascismo é sinal de uma revolução fracassada, e a única maneira de combater esse desenlace direitista é o envolvimento da esquerda em seu próprio desenlace – e já existem sinais disso (as vastas manifestações por toda a Europa em 2010, da Grécia à França e ao Reino Unido, onde as manifestações contra o aumento das mensalidades universitárias de repente se tornaram violentas). Ao assumir a ameaça da “negatividade abstrata” contra a ordem existente como um traço permanente que não pode ser aufgehoben [suprassumido], Hegel é mais materialista que Marx: em sua teoria da guerra (e da loucura), ele tem consciência do retorno repetitivo da “negatividade abstrata” que desata violentamente os elos sociais. Marx reata a violência ao processo de onde surge uma Nova Ordem (violência como “parteira” de uma nova sociedade), ao passo que, em Hegel, o desatar continua não suprassumido.
Nunca é demais enfatizar que essas ruminações “militaristas” se baseiam diretamente nas matrizes e nos insights ontológicos fundamentais de Hegel. Quando escreve que a relação negativa do Estado consigo mesmo (sua autoafirmação como agente autônomo, cuja liberdade é expressa por sua propensão a distanciar-se de todo o seu conteúdo particular) “aparece como vinculação de um outro com um outro e como se o negativo fosse algo exterior”, ele evoca uma figura dialética precisa da unidade entre contingência e necessidade: a coincidência da oposição (contingente) externa e a autonegatividade (necessária) imanente – nossa essência mais íntima, a negativa relação consigo, tem de aparecer como a intrusão ou o obstáculo contingente exterior. É por isso que, para Hegel, a “verdade” da oposição contingente exterior é a necessidade da autorrelação negativa. E essa coincidência direta dos opostos, essa sobreposição direta (ou curto-circuito) entre a interioridade extrema (a autonomia mais íntima do Si) e a exterioridade extrema de um encontro acidental, não pode ser “superada”, os dois polos não podem ser “mediados” em uma unidade complexa estável. É por isso que Hegel evoca surpreendentemente os “ciclos solenes da história”, deixando claro que não há uma Aufhebung [suprassunção] final: o complexo edifício das formas particulares da vida social tem de ser posto em risco de novo e de novo – um lembrete de que o edifício social é um ente virtual frágil, que pode se desintegrar a qualquer momento, não por causa das ameaças contingentes exteriores, mas por sua essência mais íntima. Essa passagem da regeneração pela negatividade radical jamais pode ser “suprassumida” em um edifício social estável – uma prova, se é que precisamos de uma, do materialismo definitivo de Hegel. Ou seja, a persistente ameaça de que a negatividade radical e autorrelativa porá em risco e acabará dissolvendo toda e qualquer estrutura social orgânica aponta para a condição finita de todas essas estruturas: sua condição é ideal-virtual, carece de garantia ontológica definitiva, é sempre exposta ao perigo da desintegração quando, precipitada por uma intrusão acidental exterior, sua negatividade fundamental eclode. Aqui, a identidade dos opostos não significa que, idealisticamente, o espírito interior “gera” obstáculos externos que surgem como acidentais: os acidentes externos que provocam guerras são genuinamente acidentais – a questão é que, como tais, eles “ecoam” a mais íntima negatividade que é o núcleo da subjetividade.
a Trad. Aureliano Sampaio, São Paulo, Nova Alexandria, 2003. (N. E.)
b Literalmente, “do meio-dia às três”. É conhecido no Brasil como Três horas para matar, O proscrito e a dama e O grande assalto. (N. T.)
1 O mesmo não se aplica à filosofia? O maior objetivo de um sistema filosófico não é explicar o próprio pensador, construir uma narrativa em que o pensador seja o personagem principal (Hegel, mais especificamente)? A crítica de Kierkegaard é que Hegel fracassa justamente nesse ponto.
c G. K. Chesterton, Ortodoxia, cit., p. 34-5. (N. T.)
2 G. W. F. Hegel, Filosofia do direito, cit., § 281, p. 267-8. [Citado em Karl Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus, 2. ed. rev., São Paulo, Boitempo, 2010, p. 55.]
3 Karl Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, cit., p. 55, 60. [Colchetes de Žižek.]
4 Note-se também a ironia da situação: na medida em que a lacuna entre meu ser corporal imediato e minha identidade simbólica é a lacuna da castração, ser reduzido ao próprio pênis é a verdadeira fórmula da castração.
5 Em termos inerentemente filosóficos, podemos ver aqui como Hegel é radical em sua afirmação da contingência: a única forma de superar a contingência é por seu redobramento.
6 Jean-Claude Milner, Clartés de tout (Paris, Verdier, 2011), p. 54.
7 Ibidem, p. 60
8 G. W. F. Hegel, Filosofia do direito, cit., § 279, p. 263.
d Ibidem, § 280, p. 266. (N. T.)
e Ibidem, § 280, p. 266-7. (N. T.)
9 Ibidem, § 279, p. 266.
10 Os marxistas que zombaram de Hegel tiveram de pagar por essa negligência: nos regimes que os legitimavam como marxistas, surgiu um líder que, mais uma vez, não só encarnou diretamente a totalidade racional, como também a encarnou por completo, como uma figura do Conhecimento pleno, e não apenas o idiota ato de colocar os pingos nos is. Em outras palavras, o líder stalinista não é um monarca, o que o torna ainda pior.
11 G. K. Chesterton, Ortodoxia, cit., p. 181.
12 Descartes e outros “voluntaristas” estavam na pista desse paradoxo quando mostraram que as leis necessárias universais se sustentam por causa da decisão divina arbitrária: 2 + 2 = 4 e não 5 porque Deus quis assim.
13 Daniel Dennett, Darwin’s Dangerous Idea: Evolution and the Meanings of Life (Nova York, Touchstone, 1996), p. 506. [Ed. bras.: A perigosa ideia de Darwin, Rio de Janeiro, Rocco, 1998.]
14 Jean-Pierre Dupuy, La marque du sacré (Paris, Carnets Nord, 2008).
15 Ver Claude Lefort, Essais sur le politique (Paris, Seuil, 1986).
16 Ver Slavoj Žižek, Looking Awry (Cambridge, MIT Press, 1991).
17 Citado em Stathis Gourgouris, Does Literature Think? (Stanford, Stanford University Press, 2003), p. 179.
18 Note-se o requinte dialético dessa última característica: o que “sutura” a identidade de uma totalidade social como tal é o próprio elemento “livre-flutuante” que dissolve a identidade fixa de todo elemento intrassocial. Podemos até mesmo estabelecer uma ligação entre o antissemitismo residual de Hegel e sua incapacidade de pensar a pura repetição: quando ele se rende ao descontentamento com os judeus que se apegam obstinadamente a sua identidade, em vez de “seguir em frente” e, como outras nações, permitir que sua identidade seja suprassumida (aufgehoben) no progresso histórico, esse descontentamento não teria sido provocado pela percepção de que os judeus continuam presos à repetição do mesmo? A propósito, sou solidário a Benjamin Noys, que em seu The Persistence of the Negative (Edimburgo, Edinburgh University Press, 2010) destaca e desenvolve a ligação entre as vicissitudes da noção “puramente filosófica” de negatividade e as mudanças e impasses da política radical: quando se fala em negatividade, a política nunca fica muito para trás.
19 Baseio-me aqui em Frank Ruda, Hegel’s Rabble: An Investigation into Hegel’s Philosophy of Right (Nova York, Continuum, 2011).
20 Devo essa formulação a Mladen Dolar.
21 G. W. F. Hegel, Filosofia do direito, cit., § 244, p. 223.
22 Ibidem, § 245, p. 223.
23 Jacques Lacan, “La troisième”, Lettres de l’École freudienne, n. 16, 1975, p. 187.
24 G. W. F. Hegel, Hegel’s Philosophy of Right (trad. T. M. Knox, Oxford, Oxford University Press, 1978), § 244.
25 Frank Ruda, Hegel’s Rabble, cit., p. 132.
26 Idem.
27 Idem.
28 Ibidem, p. 133.
29 Rebecca Comay, Mourning Sickness: Hegel and the French Revolution (Stanford, Stanford University Press, 2011), p. 141.
30 Ibidem, p. 6.
31 Ibidem, p. 7.
32 Ibidem, p. 6.
33 Ibidem, p. 125.
34 G. W. F. Hegel, Lectures on the Philosophy of History, cit., p. 73.
35 Ver Elisabeth Lloyd, The Case of the Female Orgasm (Cambridge, Harvard University Press, 2006).
36 De maneira homóloga, quando entramos no domínio da sociedade civil legal, a ordem tribal de honra e vingança é destituída de sua nobreza e surge de repente como um crime comum.
37 É por isso que é tão equivocado o argumento católico de que sexo sem procriação, de sexo sem o objetivo de procriar, é sexo animal: a verdade é o exato oposto, pois o sexo se espiritualiza somente quando abstrai seu fim natural e torna-se um fim-em-si-mesmo.
f G. W. F. Hegel, Filosofia do direito, cit., § 163, p. 176. (N. T.)
38 Em uma estranha virada argumentativa, Hegel deduz a proibição do incesto do próprio fato de que “é da livre entrega dessa personalidade infinitamente própria a si mesma dos dois sexos que surge o casamento”: “Assim, não é preciso que esse seja concluído dentro do círculo já naturalmente idêntico, familiar de si e íntimo em toda a singularidade, em que os indivíduos não têm uma personalidade própria de si mesmo, uns em relação aos outros; porém, que ocorra entre famílias separadas e de personalidades originalmente diversas” (G. W. F. Hegel, Filosofia do direito, cit., § 168, p. 180).
39 G. W. F. Hegel, Filosofia do direito, cit., § 164, p. 177-8.
40 Idem.
g Ibidem, § 161, p. 175. (N. T.)
41 Ibidem, § 164, p. 177.
42 Ibidem, § 162, p. 175.
43 Idem.
44 Ibidem, § 163.
45 Baseio-me aqui em Jure Simoniti, “Verjetno bi pod drugim imenom dišala drugače”, Problemi 1-2 (2010).
46 Ver Edward W. Said, “Così fan tutte”, Lettre International, n. 39, 1997, p. 69-70.
47 Hegel morreu um ano depois da Revolução Francesa de 1830.
48 Gérard Lebrun, O avesso da dialética, cit., p. 194.
49 Citado em Howard Zinn, A People’s History of the United States (Nova York, HarperCollins, 2001), p. 95.
50 G. W. F. Hegel, Filosofia do direito, cit., § 322-4, p. 296-8.
h São Paulo, Companhia das Letras, 2011. (N. E.)
51 Badiou também dá um salto muito claro da mera “vida animal” para o Evento político, ignorando a negatividade da pulsão de morte que intervém entre os dois.