Existem duas figuras de estupidez opostas. A primeira é o sujeito (eventualmente) hiperinteligente que “não entende”, que compreende uma situação “logicamente” e não percebe suas regras contextuais ocultas. Por exemplo, quando visitei Nova York pela primeira vez, um garçom de um café me perguntou: “Como foi seu dia?”. Interpretando a frase como uma pergunta real, respondi com toda a franqueza (“Estou morto de cansaço, atordoado com o fuso horário...”) e ele me olhou como se eu fosse um completo idiota. Mas ele estava certo: esse é o tipo de estupidez característico de um idiota. Alan Turing era o idiota exemplar: um homem de inteligência extraordinária, porém um protopsicótico incapaz de processar regras contextuais implícitas. Na literatura, é impossível não se lembrar do bom soldado Schweik, de Jaroslav Hašek, que, ao ver soldados atirando contra soldados inimigos, correu para a frente das trincheiras e começou a gritar: “Parem de atirar, tem gente do outro lado!”. O arquimodelo dessa idiotice, no entanto, é a criança ingênua do conto de Andersen que exclama diante de todos que o imperador está nu – sem perceber que, como diz Alphonse Allais, todos estamos nus por baixo da roupa.
A segunda figura de estupidez é o débil: é a estupidez oposta de quem se identifica plenamente com o senso comum e corresponde ao “grande Outro” das aparências. Na longa série desse tipo de figura, a começar pelo coro na tragédia grega, que representa o choro ou o riso enlatado, sempre pronto a comentar a ação com uma sabedoria corriqueira, devemos mencionar ao menos o “estúpido” parceiro dos grandes detetives – o Watson de Sherlock Holmes, o Hastings de Hercule Poirot... Essas figuras existem não só para contrastar com a grandeza do detetive, e assim torná-la mais visível, como são indispensáveis para o trabalho do detetive. Em uma de suas histórias, Poirot explica a Hastings seu papel: imerso em senso comum, Hastings reage à cena do crime da maneira como o assassino, que deseja apagar os rastros de seu ato, espera que o público reaja, e é só assim que o detetive, incluindo em sua análise a reação que se espera do “grande Outro” imbuído de senso comum, consegue solucionar o crime.
Mas essa oposição dá conta do campo todo? Onde situar Franz Kafka, cuja grandeza reside (entre outras coisas) em sua capacidade única de apresentar a idiotice disfarçada de debilidade como algo totalmente normal e convencional (basta se lembrar do raciocínio exageradamente “idiota” no longo debate entre o padre e Josef K., que sucede à parábola da porta da lei). Para essa terceira posição, não precisamos ir muito longe – a Wikipédia diz: “Imbecil foi um termo usado para descrever o retardo mental, de moderado a severo, bem como certo tipo de criminoso. É derivado do latim imbecillus, que significa fraco, ou de mente fraca. A palavra ‘imbecil’ era aplicada a pessoas com QI de 26-50, entre ‘débil’ (QI de 51-70) e ‘idiota’ (QI de 0-25)”. Não é tão ruim então: abaixo de “débil” e acima de “idiota”. A situação é catastrófica, mas não é séria, como (talvez só) um imbecil austríaco diria. Os problemas começam quando se faz a pergunta: de onde vem a raiz “becil”, precedida da negação “im-”? Por mais nebulosa que seja sua origem, é provável que derive do latim baculum (bastão, cajado, báculo); portanto, “imbecil” é alguém que caminha sem a ajuda de um bastão. Podemos tornar a questão clara e lógica se concebermos o bastão em que todos nós, como seres humanos que falam, temos de nos apoiar, como a linguagem, a ordem simbólica, isto é, o que Lacan chama de o “grande Outro”. Nesse caso, a tríade idiota, imbecil e débil faz sentido: o idiota está sozinho, fora do grande Outro; o débil está nele (habita a linguagem de maneira estúpida); já o imbecil é um meio-termo – tem consciência da necessidade do grande Outro, mas não conta com ele, suspeita dele, mais ou menos à maneira como a banda punk eslovena Laibach definiu sua relação com Deus (e com os Estados Unidos, referindo-se à frase “In God We Trust” da nota de um dólar): “Assim como vocês, norte-americanos, nós acreditamos em Deus; mas, ao contrário de vocês, não confiamos Nele”. Em lacanês, o imbecil tem consciência de que o grande Outro não existe, é inconsistente, “barrado”. Assim, se o débil parece mais inteligente que o imbecil, tendo em vista a escala de QI, sua inteligência é grande demais para que lhe faça bem (como os débeis mentais reacionários, mas não imbecis, gostam de dizer sobre os intelectuais). Entre os filósofos, o segundo Wittgenstein é o imbecil par excellence, obcecado pelas variações da questão do grande Outro: há uma ação que garanta a consistência de nossa fala? Podemos estar seguros das regras de nossa fala?
Não estaria Lacan visando a mesma posição de (im)becil quando conclui seu ensaio “Vers un nouveau signifiant” dizendo “Sou apenas relativamente estúpido – quer dizer, sou como todo mundo – talvez porque tenha um pouco de iluminação”1? Devemos interpretar essa relativização da estupidez – “não totalmente estúpido” – no sentido estrito do não-Todo: a questão não é que Lacan tenha alguns insights específicos que o tornam não de todo estúpido. Não há nada em Lacan que não seja estúpido, não há nenhuma exceção à estupidez; sendo assim, o que o torna não totalmente estúpido é apenas a própria inconsistência de sua estupidez. O nome dessa estupidez da qual todas as pessoas participam é, obviamente, o grande Outro.
Em uma conversa com Edgar Snow no início da década de 1970, Mao definiu a si mesmo como um monge careca com um guarda-chuva. O guarda-chuva alude à separação em relação ao céu, e, em chinês, o caractere que significa “cabelo” também designa a lei e o céu. Logo, em termos lacanianos, o que Mao está dizendo é que ele se subtraiu da dimensão do grande Outro, da ordem celestial que regula o curso normal das coisas. O que torna paradoxal essa autodesignação é que Mao ainda se refere a si mesmo como um monge (em geral, o monge é visto como alguém que justamente dedica sua vida ao céu) – então como pode um monge ser subtraído dos céus? Essa “imbecilidade” é o núcleo da posição subjetiva de um revolucionário radical (e do analista).
Este livro não é um Hegel para completos idiotas nem mais um livro universitário sobre Hegel (dedicado aos débeis mentais, é claro). É um Hegel para imbecis – Hegel para aqueles cujo QI está mais próximo da temperatura corporal (em grau Celsius), como diz o insulto... não é? O problema em “imbecil” é que nenhum de nós, falantes comuns, sabemos o que o “im” nega: sabemos o que significa “imbecil”, mas não sabemos o que é “becil” – apenas suspeitamos de que, de alguma maneira, deve ser o oposto de “imbecil”2. Mas e se a coincidência de palavras com significado oposto (sobre a qual Freud escreveu um artigo famoso – mostrando que heimlich e unheimlich significam a mesma coisa) também for válida aqui? E se “becil” for o mesmo que “imbecil”, só que com um toque a mais? No uso comum, “becil” nunca aparece sozinho, funciona como negação de “imbecil”; então, na medida em que “imbecil” já é uma espécie de negação, “becil” deveria ser a negação da negação – mas essa dupla negação não nos leva de volta a uma positividade primordial. Se “imbecil” é aquele que carece de um apoio substancial no grande Outro, um “becil” redobra a falta, transpondo-a para o Outro em si. Becil não é um não imbecil, consciente de que, se for um imbecil, Deus também deve ser.
Desse modo, o que um becil sabe que os idiotas e os débeis mentais não sabem? Diz a lenda que, em 1633, Galileu Galilei murmurou: Eppur si muove [E, no entanto, ela se move], depois de desmentir, diante da Inquisição, a teoria de que a Terra se movia ao redor do Sol. Ele não precisou ser torturado, bastou uma visita para conhecer os instrumentos de tortura... Não há nenhuma evidência contemporânea de que ele tenha dito essas palavras. Hoje, a frase é usada para indicar que, embora alguém que tenha o conhecimento verdadeiro seja forçado a renunciar a ele, isso não o impede de ser verdadeiro. Mas o que torna essa frase tão interessante é o fato de poder ser usada no sentido oposto, para afirmar uma verdade simbólica “mais profunda” de algo que não é literalmente verdade – como a própria frase “Eppur si muove”, que pode ser falsa como fato histórico sobre a vida de Galileu, mas é verdadeira como designação de sua posição subjetiva quando foi obrigado a renunciar a suas visões. É nesse sentido que um materialista pode dizer que, embora saiba que não existe um deus, a ideia de um deus não obstante o “move”. É interessante notar que em “Terma”, um dos episódios da quarta temporada de Arquivo X, “Eppur si muove” substitui a usual “A verdade está lá fora”, significando que, embora a existência de monstros alienígenas seja negada pela ciência oficial, eles estão lá fora. Mas também pode significar que, ainda que não haja alienígenas lá fora, a ficção de uma invasão alienígena (como a que está presente em Arquivo X) pode nos envolver e comover: para além da ficção da realidade, existe a realidade da ficção3.
Menos que nada é uma tentativa de mostrar todas as consequências ontológicas desse eppur si muove. Eis a fórmula em sua forma mais elementar: “mover-se” é o esforço de alcançar o vazio, isto é, “coisas se movem”, existe algo, ao invés de nada, não porque a realidade é, em excesso, mais que o nada, mas porque a realidade é menos que nada. É por isso que a realidade precisa ser suplementada pela ficção: para ocultar seu vazio. Lembremo-nos da velha piada judaica, tão cara a Derrida, sobre um grupo de judeus que admite publicamente, em uma sinagoga, sua nulidade aos olhos de Deus. Primeiro, um rabino se levanta e diz: “Ó Deus, sei que sou inútil, não sou nada!”. Quando o rabino termina, um rico comerciante se levanta e, batendo no peito, diz: “Ó Deus, também sou inútil, obcecado pela riqueza material, não sou nada!”. Depois desse espetáculo, um pobre judeu do povo também se levanta e proclama: “Ó Deus, não sou nada...”. O rico comerciante cutuca o rabino e sussurra no ouvido dele, com desdém: “Que insolência! Quem é esse sujeito que ousa afirmar que também não é nada?!”. De fato, é preciso ser alguma coisa para alcançar o puro nada, e Menos que nada discerne essa lógica estranha nos domínios ontológicos mais díspares, em diferentes níveis, da física quântica à psicanálise.
Essa lógica estranha, a lógica daquilo que Freud chamou de pulsão, é perfeitamente traduzida na hipótese do “campo de Higgs”, amplamente discutida na física de partículas contemporânea. Se forem deixados por conta própria em um ambiente onde possam transferir sua energia, todos os sistemas físicos acabarão assumindo um estado de baixíssima energia; dito de outra maneira, quanto mais massa retiramos de um sistema, mais baixamos sua energia, até que chegamos a um estado de vácuo em que a energia é zero. No entanto, existem fenômenos que nos impelem a propor a hipótese de que tem de haver algo (alguma substância) que não podemos tirar de um dado sistema sem aumentar a energia desse sistema. Esse “algo” é chamado de campo de Higgs: uma vez que esse campo aparece em um recinto que foi esvaziado e cuja temperatura foi reduzida ao mínimo possível, sua energia também reduz. Esse “algo” que aparece contém menos energia que nada, um “algo” caracterizado por uma energia negativa global. Em suma, o que temos aqui é uma versão física de como “algo surge do nada”.
A frase “Eppur si muove” deveria ser lida, portanto, em contraste com as muitas versões da extinção/superação da pulsão, desde a noção budista de se distanciar do desejo até a Vontade heideggeriana de “ultrapassar” que forma o núcleo da subjetividade. Este livro tenta demonstrar que a pulsão freudiana não pode ser reduzida ao que o budismo condena como desejo ou ao que Heidegger condena como Vontade: mesmo depois de chegarmos ao fim dessa superação crítica do desejo-vontade-subjetividade, algo continua se movendo. O que sobrevive à morte é o Espírito Santo, sustentado por um “objeto parcial” obsceno que representa a pulsão indestrutível. Portanto, deveríamos (também) considerar os cinco estágios de Elisabeth Kübler-Ross de como lidamos com a proximidade da morte no sentido kierkegaardiano de “doença até a morte”, como uma série de cinco atitudes diante do fato insuportável da imortalidade. Primeiro, nós a negamos: “Que imortalidade? Depois de morrer, simplesmente virarei pó!”. Depois, temos um acesso de fúria: “Mas que situação terrível a minha! Não tenho saída!”. E continuamos barganhando: “Tudo bem, mas imortal não sou eu, e sim uma parte minha que não morre, então posso viver com isso...”. Caímos em depressão: “O que posso fazer de mim mesmo, se estou condenado a ficar aqui eternamente?”. Até que aceitamos o fardo da imortalidade.
Por que, então, colocar Hegel em foco? Na história da filosofia (ou da filosofia ocidental, o que dá no mesmo), a expressão eppur si muove chegou a sua formulação mais consequente no idealismo alemão, em especial no pensamento de Hegel. Mas como essa referência a Hegel se encaixa em nosso próprio momento histórico? Há quatro posições principais que, juntas, constituem o atual campo ideológico-filosófico. Há, em primeiro lugar, os dois lados do que Badiou batizou de maneira muito apropriada de “materialismo democrático”: (1) o naturalismo científico (ciências do cérebro, darwinismo...) e (2) o historicismo discursivo (Foucault, desconstrução...). Há, em segundo lugar, os dois lados da reação espiritualista: (3) o “budismo ocidental” da nova era e (4) o pensamento da finitude transcendental (que culmina em Heidegger). Essas quatro posições formam uma espécie de quadrado greimasiano ao longo dos dois eixos do pensamento a-histórico versus pensamento histórico e do materialismo versus espiritualismo. A tese deste livro é dupla: (1) existe uma dimensão ignorada por essas quatro posições, a dimensão de uma lacuna/ruptura pré-transcendental, o que Freud denomina pulsão; (2) essa dimensão designa exatamente o núcleo da subjetividade moderna.
A premissa básica do materialismo discursivo foi conceber a linguagem em si como um modo de produção e aplicar a ela a lógica marxista do fetichismo da mercadoria. Portanto, da mesma maneira que, para Marx, a esfera da troca oblitera (torna invisível) seu processo de produção, a troca linguística oblitera o processo textual que engendra o significado: em uma má percepção fetichista espontânea, vivenciamos o significado de uma palavra ou ato como algo que é propriedade direta da coisa ou processo designados, isto é, negligenciamos o campo complexo das práticas discursivas que produzem seu significado. É a ambiguidade fundamental dessa noção de fetichismo linguístico que deveríamos pôr em foco aqui: é a ideia de que, no velho e bom modo moderno, deveríamos fazer distinção entre as propriedades “objetivas” das coisas e entre as nossas projeções de significados sobre as coisas, ou estaríamos lidando com uma versão linguística mais radical de constituição transcendental, para a qual a própria ideia de “realidade objetiva”, de que “coisas existem lá fora, independente da nossa mente”, é uma “ilusão fetichista”, que não enxerga como a nossa atividade simbólica constitui ontologicamente a própria realidade à qual ela “se refere” ou que ela designa? Nenhuma das duas opções é correta – o que deveríamos abandonar é a premissa subjacente comum, a homologia (cruel, abstrata-universal) entre “produção” discursiva e produção material4.
Kafka estava certo (como sempre) quando escreveu: “Um dos meios que o mal possui é o diálogo”. Consequentemente, este livro não é um diálogo, pois a premissa subjacente que sustenta sua tese dupla é descaradamente hegeliana: aquilo a que nos referimos como o continente da “filosofia” pode ser visto como algo que se estende, tanto quanto quisermos, ao passado ou ao futuro, mas há um momento filosófico único em que a filosofia aparece “enquanto tal” e que serve como chave – a única chave – para lermos toda a tradição anterior e posterior como filosofia (da mesma maneira que Marx afirma que a burguesia é a primeira classe na história da humanidade posta como tal, como classe, tanto que é somente com o advento do capitalismo que toda a história torna-se legível como história da luta de classes). Esse é o momento do idealismo alemão, delimitado por duas datas: 1787, ano em que foi publicada a Crítica da razão pura, de Kanta, e 1831, ano da morte de Hegel. Essas poucas décadas representam uma concentração impressionante de intensidade do pensamento: nesse curto intervalo, aconteceram mais coisas que nos séculos ou até milênios de desenvolvimento “normal” do pensamento humano. Tudo que aconteceu antes pode e deve ser lido de maneira descaradamente anacrônica como a preparação para essa explosão, e tudo que aconteceu depois pode e deve ser lido exatamente assim: como um período de interpretações, reviravoltas, (más) leituras críticas do idealismo alemão.
Ao rejeitar a filosofia, Freud cita a irônica descrição que Heinrich James faz do filósofo hegeliano: “Com seu barrete e seus trapos de dormir, ele remenda os buracos na estrutura do mundo”. (O barrete e os trapos são, na verdade, referências irônicas ao famoso retrato de Hegelb.) Mas será a filosofia, em sua forma mais fundamental, realmente redutível a uma tentativa desesperada de preencher as lacunas e inconsistências da nossa noção de realidade e fornecer, assim, uma harmoniosa Weltanschauung? Será a filosofia realmente uma forma mais desenvolvida da sekundaere Bearbeitung na formação de um sonho, do esforço de harmonizar os elementos de um sonho em uma narrativa consistente? Podemos dizer que, ao menos na virada transcendental de Kant, acontece exatamente o contrário: Kant não expõe uma rachadura, uma série de antinomias irreparáveis que emerge no momento em que queremos conceber a realidade como Tudo? E Hegel, em vez de superar essa rachadura, não a radicalizou? A crítica de Hegel a Kant é que ele é gentil demais com as coisas: situa as antinomias na limitação da nossa razão, em vez de situá-las nas coisas em si, isto é, em vez de conceber a realidade em si como rachada e antinômica. É verdade que encontramos em Hegel um impulso sistemático de cobrir tudo, de propor uma explicação para todos os fenômenos do universo em sua estrutura essencial; mas esse impulso não significa que Hegel se esforça para situar cada fenômeno em um edifício harmonioso global; ao contrário, o propósito da análise dialética é demonstrar que cada fenômeno, ou tudo que acontece, falha a seu próprio modo, implica em seu próprio cerne uma rachadura, um antagonismo, um desequilíbrio. O olhar fixo de Hegel sobre a realidade é o de um aparelho de raio X: ele vê em tudo que é vivo os traços de sua futura morte.
As coordenadas básicas desse período de densidade insuportável do pensamento são dadas pela mãe de todas as camarilhas dos quatro: Kant, Fichte, Schelling e Hegel5. Embora cada um desses nomes represente um “mundo próprio”, uma posição filosófica radical única, podemos ordenar a série dos quatro grandes idealistas alemães precisamente com referência às quatro “condições” da filosofia elaboradas por Badiou: Kant relaciona-se à ciência (newtoniana), ou seja, sua questão básica é que tipo de filosofia é adequado à inovação newtoniana; Fichte relaciona-se à política, ao evento da Revolução Francesa; Schelling relaciona-se à arte (romântica) e subordina explicitamente a filosofia à arte como a mais elevada abordagem do Absoluto; por fim, Hegel relaciona-se ao amor, e seu problema fundamental é, desde os primórdios de seu pensamento, o amor.
Tudo começa com Kant e com sua ideia de constituição transcendental da realidade. De certo modo, podemos afirmar que foi somente com essa ideia de Kant que a filosofia conquistou seu próprio terreno: antes de Kant, a filosofia era vista basicamente como uma ciência geral do Ser enquanto tal, uma descrição da estrutura universal de toda a realidade, sem nenhuma diferença qualitativa em relação às ciências particulares. Foi Kant que introduziu a diferença entre a realidade ôntica e seu horizonte ontológico, a rede a priori de categorias que determina como compreendemos a realidade, o que nos aparece como realidade. Daqui, a filosofia precedente pode ser lida não como o conhecimento positivo mais geral da realidade, mas, em seu núcleo hermenêutico, como a descrição da “abertura do Ser” historicamente predominante, como diria Heidegger. (Por exemplo, quando Aristóteles se esforça para definir a vida e propõe uma série de definições em sua Físicac – um ser vivo é algo movido por si mesmo e que tem em si a causa do próprio movimento –, ele não explora de fato a realidade dos seres vivos, antes descreve o conjunto de noções preexistentes que determinam o que sempre-já compreendemos por “ser vivo” quando designamos os objetos como “vivos”.
A maneira mais apropriada de apreender o caráter radical da revolução filosófica kantiana é com referência à diferença entre Schein (aparência como ilusão) e Erscheinung (aparência como fenômeno). Na filosofia pré-kantiana, a aparência era concebida como o modo ilusório (defectivo) em que as coisas apareciam para nós, seres finitos; nossa tarefa é alcançar, além dessas falsas aparências, o modo como as coisas realmente são (das Ideias de Platão à “realidade objetiva” científica). Com Kant, no entanto, a aparência perde essa característica pejorativa: ela designa o modo como as coisas aparecem (são) para nós naquilo que percebemos como realidade, e a tarefa não é tachá-las de “meras aparências ilusórias” e ultrapassá-las para chegar à realidade transcendente, mas sim algo totalmente diferente, que é discernir as condições de possibilidade desse aparecer das coisas, de sua “gênese transcendental”: o que pressupõe tal aparição, o que deve sempre-já ter acontecido para que as coisas apareçam para nós da maneira como aparecem? Se, para Platão, a mesa que vejo diante de mim é uma cópia defectiva/imperfeita da Ideia eterna de mesa, para Kant não teria sentido dizer que a mesa que vejo é uma cópia defectiva temporal/material de suas condições transcendentais. Mesmo que consideremos uma categoria transcendental como a de Causa, não faz sentido para um kantiano dizer que a relação empírica de causalidade entre dois fenômenos participa (é uma cópia imperfeita) da Ideia eterna de uma causa: as causas que percebo entre os fenômenos são apenas as causas que são, e a noção a priori de Causa não é o modelo perfeito delas, mas precisamente a condição de possibilidade que me permite perceber a relação entre os fenômenos como causal.
Embora um abismo intransponível separe a filosofia crítica de Hegel de seus nobres sucessores idealistas (Fichte, Schelling, Hegel), as coordenadas básicas que tornam possível a Fenomenologia do espírito de Hegeld já estão lá na Crítica da razão pura, de Kant. Primeiro, como diz concisamente Dieter Henrich, “a motivação filosófica de Kant não era idêntica ao que ele considerava ser a motivação original para fazer filosofia”6: a motivação original para fazer filosofia é metafísica, é dar uma explicação da totalidade da realidade numenal; como tal, essa motivação é ilusória, dita uma tarefa impossível, ao passo que a motivação de Kant é uma crítica de toda metafísica possível. O empenho de Kant, portanto, vem depois: para que haja uma crítica da metafísica, primeiro tem de haver uma metafísica original; para condenar a “ilusão transcendental” metafísica, primeiro deve haver essa ilusão. Nesse sentido preciso, Kant foi “o inventor da história filosófica da filosofia”7: existem estágios necessários no desenvolvimento da filosofia, isto é, não se pode chegar à verdade de maneira direta, não se pode partir dela, a filosofia começa necessariamente com as ilusões metafísicas. O caminho da ilusão até sua condenação crítica é o próprio núcleo da filosofia, o que significa que a (“verdadeira”) filosofia bem-sucedida não é mais definida por sua explicação verídica da totalidade do ser, mas sim por ter êxito ao explicar as ilusões, isto é, ao explicar não só por que as ilusões são ilusões, mas também por que são estruturalmente necessárias, inevitáveis, e não apenas acidentes. O “sistema” da filosofia, portanto, não é mais uma estrutura ontológica direta da realidade, mas “um sistema puro, completo, de todas as declarações e provas metafísicas”8. A prova da natureza ilusória das proposições metafísicas é o fato de necessariamente engendrarem antinomias (conclusões contraditórias) e, visto que a metafísica tenta evitar as antinomias que surgem quando levamos as noções metafísicas ao extremo, o “sistema” da filosofia crítica é a sucessão completa – e, portanto, autocontraditória, “antinômica” – das noções e proposições metafísicas: “Somente quem consegue examinar a ilusão da metafísica consegue desenvolver o mais coerente e consistente sistema da metafísica, pois o sistema consistente da metafísica é também contraditório”9 – o que quer dizer, precisamente, inconsistente. O “sistema” crítico é a estrutura sistemática a priori de todos os “erros” possíveis/imagináveis em sua necessidade imanente: o que temos no fim não é a Verdade que supera/suprassumee as ilusões precedentes – a única verdade é o edifício inconsistente da interconexão lógica de todas as ilusões possíveis... Não foi isso que Hegel fez em sua Fenomenologia (e, em um nível diferente, em sua Lógica)? A única (porém fundamental) diferença é que, para Kant, esse processo “dialógico” da verdade que surge como condenação crítica da ilusão precedente pertence à esfera do nosso conhecimento e não concerne à realidade numenal que permanece externa e indiferente a ele, ao passo que, para Hegel, o locus peculiar desse processo é a Coisa em si.
Schopenhauer comparou de modo memorável Kant “com um homem que, num baile de máscara, corteja toda a noite uma beldade mascarada, na ilusão de ter feito uma conquista. Até que, no final, ela tira a máscara e se dá a conhecer como sua mulher”f – a situação de O Morcego, de Johann Strauss. É claro que, para Schopenhauer, o ponto de comparação é que a beldade mascarada é a filosofia e a esposa, a cristandade – a crítica radical de Kant não passa de uma nova tentativa de dar suporte à religião, sua transgressão é uma falsa transgressão. Mas e se houver mais verdade na máscara que no rosto real por trás dela? E se esse jogo crítico tiver mudado de maneira radical a natureza da religião, de modo que Kant tenha de fato solapado o que pretendia proteger? E se estiverem certos os teólogos católicos que veem a crítica de Kant como a catástrofe original do pensamento moderno que abriu caminho para o liberalismo e o niilismo?
A “radicalização” que Fichte faz de Kant é a ligação mais problemática na cadeia dos idealistas alemães: ele foi e é rejeitado, e até mesmo ridicularizado, como um “idealista subjetivo”, um solipsista meio maluco. (Não admira que Kant seja o único idealista alemão levado a sério pela tradição analítica anglo-saxã; com Fichte, entramos no campo da especulação obscura.) Sendo o menos popular, é preciso um grande esforço para chegar ao verdadeiro núcleo de seu pensamento, a seu “insight fundamental” (Fichte’s Grundeinsicht, como diz o título do estudo de Dieter Henrich sobre Fichte). No entanto, sua obra vale o esforço: assim como ocorre com todos os pensadores verdadeiramente notáveis, uma compreensão apropriada de seu pensamento revela uma descrição sem igual da subjetividade engajada.
O pensamento de Schelling deve ser dividido em duas fases – a primeira é a “filosofia da identidade” e a segunda, a “filosofia da revelação” – e, como de hábito, a verdadeira inovação está entre as duas, no curto período de 1805 a 1815, quando ele produz suas duas obras-primas absolutas, o tratado sobre a liberdade humana e as três versões do manuscrito das “idades do mundo”. Todo um novo universo é revelado aqui: o universo das pulsões “pré-lógicas”, o sombrio “fundamento do Ser”, que habita até mesmo o coração de Deus como aquilo que é “em Deus mais que o próprio Deus”. Pela primeira vez na história do pensamento humano, a origem do Mal não é situada na Queda do homem, mas em uma cisão no coração do próprio Deus.
Em Schelling, a figura derradeira do Mal não é o Espírito em oposição à Natureza, mas o espírito diretamente materializado na Natureza como não natural, como uma distorção monstruosa da ordem natural, desde espíritos malignos e vampiros até produtos monstruosos da manipulação tecnológica (clones etc.). A Natureza em si é o Bem e, nela, o fundamento-mal é, por definição, subordinado ao Bem:
em cada estágio da natureza anterior à aparição do homem, o fundamento é subordinado à existência; em outras palavras, a vontade própria do particular é necessariamente subordinada à vontade universal do todo. Por conseguinte, a vontade própria de cada animal individual é necessariamente subordinada à vontade da espécie, que contribui para a harmonia do todo da natureza.10
Quando se permite, com o surgimento do homem, que o fundamento da existência opere por conta própria, afirmando egoisticamente a si mesmo, isso não significa apenas que ele afirma a si mesmo contra o amor divino, a harmonia do todo, a vontade universal (não egoísta), mas significa que ele afirma a si mesmo na forma mesma de seu oposto: o horror do homem é que, nele, o Mal torna-se radical, deixa de ser o simples mal egoísta e passa a ser o Mal mascarado de (aparecendo como) universalidade, como acontece exemplarmente no totalitarismo político, em que um agente político particular apresenta-se como a incorporação da Vontade universal e da Liberdade da humanidade11.
Em nenhum lugar a diferença entre o pensamento de Hegel e a filosofia posterior de Schelling é mais palpável que na questão do começo: assim como Hegel parte da noção mais pobre do ser (que, em sua abstração, é desprovido de determinações, igual a nada), a “filosofia negativa” de Schelling (que continua sendo parte de seu sistema, mas suplementada pela filosofia “positiva”) também começa com a afirmação de uma negação, de um vazio, mas esse vazio é a força afirmadora do desejo da vontade: “todo começo repousa em uma ausência; a mais profunda potência, que se apega a tudo, é não-ser e sua fome de ser”12. Do domínio da lógica e suas noções a priori, passamos para o domínio da vida efetiva, cujo ponto de partida é um querer, a “fome” de preencher um vazio pelo ser positivo efetivo. Portanto, a crítica de Schelling a Hegel é que, para realmente passar do ser/nada para o efetivo tornar-se que resulta em “algo” positivo, o “nada” do qual partimos deve ser um “nada vivente”, o vazio de um desejo que expressa uma vontade de gerar ou obter algum conteúdo.
O enigma da leitura que Heinrich faz do idealismo alemão é: por que ele subestima sistematicamente Schelling, sobretudo o Schelling intermediário, de Freiheitschrift e Weltalter? Essa subestimação é um enigma porque foi precisamente esse Schelling intermediário que explorou profundamente o que Henrich designa como o problema central de Fichte (e do idealismo alemão), o problema do “espinosismo da liberdade”: como pensar o Fundamento da Liberdade, um Fundamento transubjetivo da subjetividade que não só não restrinja a liberdade humana, mas também a fundamente? A resposta de Schelling em Freiheitschrift é literalmente o Fundamento em si: a liberdade humana é possibilitada pela distinção, no Deus em si, entre o Deus existente e seu próprio Fundamento, o que em Deus ainda não é totalmente Deus. Isso explica a singularidade de Schelling também no que se refere ao “Ser e Juízo” de Hölderlin: assim como o segundo Fichte (embora de uma maneira totalmente diferente, é claro), Schelling chega ao Fundamento transubjetivo da liberdade subjetiva, mas, para Hölderlin (e Fichte), essa ordem transubjetiva do Ser (ou Vida divina) é plenamente Una, pré-reflexiva, indivisível, e não só idêntica a si mesma (porque a identidade-de-si já envolve uma distância formal de um termo com o si) – apenas Schelling abriu uma brecha radical, a instabilidade, a discórdia, nesse próprio Fundamento pré-subjetivo/pré-reflexivo. Em uma tentativa especulativa mais ousada em Weltalter, Schelling tenta reconstruir (“narrar”) dessa maneira o próprio advento do lógos, do discurso articulado, a partir do Fundamento pré-lógico: o lógos é uma tentativa de resolver o impasse debilitante desse Fundamento. É por essa razão que os dois verdadeiros pontos altos do idealismo alemão são o Schelling intermediário e o Hegel maduro: eles fizeram o que ninguém mais ousou fazer – abriram uma brecha no Fundamento em si.
O famoso fragmento de Hölderlin, “Juízo e Ser”, merece ser citado em detalhe, já que costuma ser visto como a indicação de uma espécie de “realidade alternativa”, de um caminho diferente que os idealistas alemães poderiam tomar para romper com as inconsistências kantianas. Sua premissa básica é que a autoconsciência subjetiva se esforça para superar a unidade perdida entre Ser/Absoluto/Deus, da qual ela foi irrevogavelmente separada pela “divisão primordial (Ur-Theilung)”, a atividade discursiva do “juízo (Urteil)”:
Ser [Seyn] – expressa a ligação [Verbindung] do sujeito e do objeto.
Onde sujeito e objeto estão unidos [vereinigt] pura e simplesmente, e não apenas em parte, portanto unidos de tal maneira que não se pode proceder a nenhuma partição sem lesar a essência [Wesen] daquilo que é para ser separado [getrennt], ali e somente ali pode se falar de um ser puro e simples, como é o caso na intuição intelectual.
Mas não se deve confundir [verwechselt] esse ser com a identidade. Se digo “eu sou eu”, então o sujeito (eu) e o objeto (eu) não estão unidos de tal maneira que não se possa proceder a uma partição sem lesar a essência daquilo que é para ser separado; pelo contrário, o eu só é possível através dessa separação do eu e do eu. Como posso dizer “eu” sem autoconsciência? Mas como é possível autoconsciência? Por me contrapor a mim mesmo, por me separar de mim mesmo, e, apesar dessa separação, reconhecer-me no contraposto como o mesmo. Mas em que medida como o mesmo? Eu pode, Eu tem de perguntar assim, pois em outra perspectiva ele é contraposto a si mesmo. Portanto a identidade não é uma união do objeto e do sujeito que se desse pura e simplesmente, portanto a identidade não é igual ao ser absoluto.
Juízo: é no sentido mais alto e rigoroso a separação original do objeto e do sujeito intimamente unidos na intuição intelectual, aquela partição tão somente pela qual objeto e sujeito se torna possível, a partição original [Ur-Theilung]. No conceito da partição [Theilung] já se encontra o conceito da relação [Beziehung] recíproca do objeto e do sujeito um ao outro e a pressuposição de um todo, de que objeto e sujeito são as partes. “Eu sou eu” é o exemplo apropriado para esse conceito da partição original como partição original teórica [Urtheilung], pois na partição original prática ele se contrapõe ao não-eu, e não a si mesmo.
Efetividade e possibilidade se distinguem como consciência mediata e imediata. Quando penso em um objeto [Gegenstand] como possível, apenas retomo a consciência precedente, pela qual ele é efetivo. Não nos é possível pensar uma possibilidade que não foi efetividade. Por isto, o conceito da possibilidade também não se aplica de maneira alguma aos objetos da razão, porque eles nunca comparecem na consciência como aquilo que eles devem ser, mas apenas o conceito da necessidade [se aplica aos mesmos]. O conceito da possibilidade se aplica aos objetos do entendimento, o da efetividade aos objetos da percepção e intuição.13
O ponto de partida de Hölderlin é a lacuna entre a unidade tradicional orgânica (o impossível retorno a ela) e a liberdade reflexiva moderna: nós, como sujeitos finitos, discursivos e autoconscientes, somos expulsos da unidade com o todo do ser para a qual, não obstante, ansiamos voltar, mas sem sacrificar nossa independência. Como devemos superar essa lacuna? A resposta é o que ele chama de “via excêntrica”: a cisão entre substância e subjetividade, Ser e reflexão, é intransponível, e a única reconciliação possível é a narrativa, a do sujeito que conta a história de sua interminável oscilação entre os dois polos. Enquanto o conteúdo permanece não reconciliado, a reconciliação ocorre na forma narrativa em si – o exato oposto da afirmação lógica da identidade do sujeito (eu=eu), em que a própria forma (divisão, redobramento dos “eus”) solapa o conteúdo (identidade).
Essa solução de Hölderlin deve ser situada em seu contexto e concebida como uma das três maneiras de resolver o mesmo problema, a lacuna entre a autonomia subjetiva e o Todo orgânico que caracteriza a modernidade; as outras duas são de Schiller e Schlegel. Para Schiller, a vida humana livre dentro da natureza e da cultura é possível se ela atinge aquele tipo de organização interna, a determinação do íntimo ou a harmonia das partes, característica tanto da beleza artística quanto da natural. Em um objeto natural belo, encontramos, por assim dizer, “a pessoa da coisa”; temos uma noção do “livre consentimento da coisa a sua técnica” e de “uma regra que é, ao mesmo tempo, dada e obedecida pela coisa”, e esse é um modelo para o livre consentimento de um indivíduo ao valor de um repertório social ou modo de vida. Friedrich Schlegel, por outro lado, busca representar um tipo de liberdade imperfeita, porém sempre ativa na atividade contínua, irônica, engenhosa e de autorrevisão que caracteriza a poesia romântica – um tipo de comprometimento com o desassossego eterno. É fácil perceber como essas três posições formam uma espécie de triângulo: Schiller – Schlegel – Hölderlin. Schiller acredita na integração do sujeito à ordem substancial orgânica – a livre individualidade pode aparecer totalmente na arte bela e na natureza bela; Schlegel afirma a força da subjetividade como um desarranjo constante de qualquer harmonia substancial (podemos afirmar que, no idealismo alemão, essa posição se repete como Schelling versus Fichte, isto é, a positividade do Ur-Grund anterior à reflexão versus o “desassossego eterno” da subjetividade).
Hegel ocupa aqui a quarta posição – o que ele acrescenta a Hölderlin é uma mudança puramente formal de transposição da lacuna trágica que separa o sujeito reflexivo do Ser pré-reflexivo para esse mesmo Ser. Quando fazemos isso, o problema torna-se a solução: é nossa própria divisão do Ser absoluto que nos une a ele, pois essa divisão é imanente ao Ser. Já em Hölderlin a divisão é redobrada, autorrelativa: a derradeira divisão não é a divisão Sujeito-Objeto, mas a própria divisão entre a divisão (de Sujeito-Objeto) e a unidade. Portanto, deveríamos complementar a fórmula da “identidade entre identidade e não identidade” com a “divisão entre divisão e não divisão”. Quando damos esse passo, o Ser como Fundamento pré-reflexivo inacessível desaparece; mais precisamente, revela-se como a categoria reflexiva derradeira, como o resultado da divisão autorrelativa: o Ser emerge quando a divisão se divide de si. Ou, para usarmos os termos de Hölderlin, a narrativa não é apenas o sujeito enfrentando sua divisão do Ser: ele é simultaneamente o Ser da história contando para si sobre si. A perda suplementada pela narrativa é inscrita no Ser em si. Isso significa que a última distinção em que Hölderlin insiste – entre a intuição intelectual (o acesso imediato ao Ser, a unicidade direta do sujeito com o Ser) e a via narrativa “excêntrica” (o acesso mediato ao Ser por meio da reconciliação narrativa) – tem de vir abaixo: a narrativa já exerce a função da intuição intelectual, de nos unir ao Ser. Ou, em termos mais paradoxais, a relação-padrão entre os dois termos deveria ser invertida. É a intuição intelectual que é meramente uma categoria reflexiva, que nos separa do Ser em sua própria representação da unicidade imediata do sujeito com o Ser, e é a via narrativa que exprime diretamente a vida do Ser em si:
Que “a verdade é o todo” significa que não deveríamos encarar o processo da automanifestação como uma privação do Ser original. Tampouco deveríamos encará-lo como uma ascensão ao mais elevado. O processo já é o mais elevado. [...] O sujeito, para Hegel, é [...] nada mais que a relação ativa consigo mesmo. No sujeito não há nada subjacente a sua autorreferência, há somente a autorreferência. Por essa razão, há somente o processo e nada subjacente a ele. Modelos filosóficos e metafóricos como “emanação” (neoplatonismo) ou “expressão” (espinosismo) apresentam a relação entre o infinito e o finito de tal maneira que não caracteriza o que é o processo (automanifestação).14
Portanto, é Hölderlin, e não Hegel, que permanece metafísico, preso à noção de um Fundamento pré-reflexivo acessível por meio da intuição intelectual – o que é propriamente metafísico é a mera pressuposição de um Ser substancial além do processo de (auto)diferenciação. (É por essa razão também – como vemos no último parágrafo da citação – que Hölderlin subordina a possibilidade à efetividade.) É por isso que Hegel se apropria da solução do Hipérion, de Hölderling (o que não pode ser reconciliado na realidade é reconciliado depois, por meio de sua reconstrução narrativa), contra o próprio Hölderlin: em um paralelo claro à Fenomenologia do espírito, Hölderlin vê a solução numa narrativa que reconstrói retroativamente a própria “via excêntrica” (a via da permanente oscilação entre a perda do Centro e as repetidas tentativas fracassadas de recuperar a imediaticidade do Centro) como o processo de maturação, de educação espiritual. Essa solução não implica o construtivismo discursivo (a consistência da nossa realidade é a de uma narrativa après-coup), mas sim uma posição hegeliana muito mais radical: enquanto o construtivismo discursivo pode ser lido como um transcendentalismo neokantiano da linguagem (como afirma Gadamer em sua paráfrase da tese de Heidegger sobre a “linguagem como a morada do ser”, “ser é ser compreendido”, isto é, o horizonte do entendimento sustentado pela linguagem é o horizonte transcendental derradeiro da nossa abordagem do ser), ou seja, enquanto o transcendentalismo discursivo põe em foco a maneira como o que experienciamos como “realidade” é sempre-já mediado/construído pela linguagem, a solução de Hölderlin muda o foco para como (segundo afirma Lacan) o significante em si incorre no real, isto é, como a intervenção significante (narrativização) intervém no real, como ela promove a resolução de um antagonismo real.
Hegel, portanto, continua sendo o auge de todo o movimento do idealismo alemão: os quatro não equivalem a um, mas sim a três mais um. Por quê? O que torna Hegel único? Uma das maneiras de delimitar essa singularidade de Hegel é usar a noção lacaniana da “falta no Outro”, que, no caso de Hegel, aponta na direção de uma mediação epistemo-ontológica única inexistente nos três outros idealistas: a figura mais elementar da reversão dialética reside na transposição de um obstáculo epistemológico para a coisa em si, como sua falha ontológica (o que nos parece incapacidade de conhecer a coisa indica uma rachadura na coisa em si, de modo que nosso próprio fracasso em atingir a verdade plena é indicador da verdade). É premissa deste livro que esse “insight fundamental” de Hegel continua forte nos dias de hoje, e é muito mais radical (e uma ameaça muito maior ao pensamento metafísico) que todos os temas juntos da antitotalidade de contingência-alteridade-heterogeneidade15.
Podemos muito bem imaginar uma versão realmente obscena da piada dos “aristocratas”h, que supera com facilidade toda a vulgaridade de membros de uma família vomitando, evacuando, fornicando e humilhando uns aos outros de todas as maneiras possíveis: quando solicitados por um agente de talentos a fazer uma performance, eles dão uma aula curta sobre o pensamento de Hegel, debatendo o verdadeiro significado da negatividade, da suprassunção, do saber absoluto etc.; quando o agente, surpreso, pergunta o nome da estranha apresentação, respondem com entusiasmo: “Os aristocratas!”. Na verdade, parafraseando o velho e bom lema de Brecht (“O que é o assalto a um banco comparado à fundação de um novo banco?”): o que é o choque de parentes evacuando na boca uns dos outros comparado ao choque de uma bela reversão dialética? Mas talvez devêssemos mudar o título da piada: uma família procura o gerente de uma boate especializada em shows hardcore, apresenta seu diálogo hegeliano e, quando ele pergunta o nome daquela estranha apresentação, eles exclamam com entusiasmo: “Os pervertidos!”16.
No entanto, o objetivo de Menos que nada não é simplesmente (ou não tão simplesmente) retornar a Hegel, mas antes repetir Hegel (no sentido kierkegaardiano radical). Na última década, o trabalho teórico da troika da qual faço parte (com Mladen Dolar e Alenka Zupančič) tinha o eixo Hegel-Lacan como ponto de referência “indesconstrutível”: independentemente do que fizéssemos, o axioma básico era que ler Hegel por intermédio de Lacan (e vice-versa) era nosso horizonte intransponível. Recentemente, no entanto, as limitações desse horizonte apareceram: em Hegel, sua incapacidade de pensar a pura repetição e tematizar a singularidade do que Lacan chamou de objeto a; em Lacan, o fato de sua obra ter chegado ao fim com uma abertura inconsistente: o Seminário XX: mais, ainda representa sua derradeira realização e um impasse – nos anos seguintes, ele forjou diferentes saídas (sinthoma, nós [knots]...), mas fracassou em todas. Então, em que ponto estamos agora?
Minha aposta era (e é) que, através dessa interação (ler Hegel por intermédio de Lacan e vice-versa), a psicanálise e a dialética hegeliana redimem-se mutuamente, desvencilhando-se da pele a que estão acostumadas e aparecendo em uma forma nova, inesperada. O mote do livro poderia ser a afirmação de Alain Badiou de que “o antifilósofo Lacan é uma condição do renascimento da filosofia. Hoje, uma filosofia somente é possível se for compatível com Lacan”17. Guy Lardreau faz a mesma observação com respeito ao espaço ético-político quando escreveu que Lacan “é o único pensador da atualidade, o único que nunca mente, le chasse-canaille [o caça-canalhas]”, e “canalhas”, aqui, são os que propagam o semblante de liberação que encobre a realidade da perversão capitalista, o que, para Lardreau, quer dizer Lyotard e Deleuze e, para nós, muito mais. O que Badiou tem em comum com Lardreau é a ideia de que devemos pensar por intermédio de Lacan, ir além dele, mas que a única maneira de superá-lo é por meio dele. Os riscos desse diagnóstico são claramente políticos: Lacan expôs as ilusões em que se baseiam tanto a realidade capitalista quanto suas falsas transgressões, mas o resultado é que estamos condenados à dominação – o Mestre é o ingrediente constitutivo da própria ordem simbólica, por isso as tentativas de superar a dominação só geram novas figuras do Mestre. A grande tarefa daqueles que estão dispostos a passar por Lacan é, portanto, articular o espaço para uma revolta que não será recapturada por uma ou outra versão do discurso do mestre. Lardreau, juntamente com Christian Jambet, foi o primeiro a tentar desenvolver essa abertura, tanto que se concentrou na ligação entre a dominação e a sexualidade: como não há sexualidade sem relação de dominação, todo projeto de “liberação sexual” acaba gerando novas formas de dominação – ou, como teria dito Kafka, a revolta não é uma gaiola em busca de um pássaro, mas um pássaro em busca de uma gaiola. Baseado na ideia de que uma revolta tem de ser completamente dessexualizada, Lardreau e Jambet delinearam a figura lacaniano-asceta-maoista do “anjo” como agente da emancipação radical. No entanto, diante da violência destrutiva da Revolução Cultural e, sobretudo, do regime do Khmer Vermelho no Kampuchea Democrático, eles abandonaram qualquer noção de emancipação radical nas relações sociais e acabaram em uma posição cindida do menor mal na política e na revolução espiritual interna: na política, deveríamos ser modestos e simplesmente aceitar que alguns Mestres são melhores que outros, e a única revolta é a revolta espiritual interna18. Este livro rejeita essa espiritualização da revolta e permanece fiel à ideia original de Badiou de um projeto emancipatório radical que ultrapasse Lacan19.
1 Jacques Lacan, “Vers un signifiant nouveau”, Ornicar?, n. 17-18, 1979, p. 23. [Ed. bras.: “Rumo a um significante novo”, Opção Lacaniana, trad. Jairo Gerbase, São Paulo, Eólia, n. 22, 1998.]
2 Ver Alain Badiou, Le fini et l’infini (Paris, Bayard, 2010), p. 10.
3 O eppur si muove de Freud foi a ressalva do professor Charcot, que ele sempre repetia: “La théorie, c’est bon, mais ça n’empêche pas d’exister” (“A teoria é uma coisa boa, mas não impede de existir [os fatos que não se encaixam nela]”). É desnecessário dizer que a mesma ambiguidade vale para a teoria, isto é, ela não deveria ser reduzida a mero empirismo.
4 Esse “materialismo discursivo” baseia-se na chamada “virada linguística” da filosofia, que enfatiza a linguagem não como um meio neutro de designação, mas como uma prática incorporada no mundo vivido: fazemos coisas com ela, realizamos atos específicos... Será que não seria o momento de inverter esse clichê: quem é que afirma hoje que a linguagem é um meio neutro de designação? Talvez devêssemos enfatizar que a linguagem não é um mero momento do mundo vivido, uma prática dentro dele: o verdadeiro milagre da linguagem é o fato de que ela também serve como um meio neutro que só designa um conteúdo conceitual/ideal. Em outras palavras, a verdadeira tarefa não é situar a linguagem como um meio neutro dentro de uma prática do mundo vivido, mas mostrar como, dentro desse mundo vivido, pode surgir um meio neutro de designação.
a Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Frandique Morujão, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1994. (N. E.)
b O autor se refere à gravura de Julius L. Sebbers, incluída na p. 4 deste volume, que retrata Hegel aos 58 anos de idade. (N. E.)
5 É claro que apoio totalmente os resultados das novas pesquisas que mostram definitivamente que não só não há uma progressão linear simples na ordem de sucessão desses quatro nomes – Fichte e Hegel claramente “compreenderam mal” Kant em sua crítica, Schelling compreendeu mal Fichte, e Hegel foi totalmente cego para aquilo que é provavelmente a maior realização de Schelling, isto é, seu tratado da liberdade humana –, como também, em geral, não podemos nem passar diretamente de um nome para outro: Dieter Henrich mostrou que, para apreendermos a lógica interna da passagem de Kant para Fichte, temos de levar em conta os primeiros seguidores críticos de Kant (Reinhold, Jacobi e Schulze), isto é, o sistema inicial de Fichte só pode ser devidamente compreendido como uma reação a essas primeiras críticas de Kant.
c Campinas, Unicamp, 1999. (N. E.)
d 7. ed., Petrópolis, Vozes, 2001. (N. E.)
6 Dieter Henrich, Between Kant and Hegel (Cambridge, Harvard University Press, 2008), p. 32.
7 Idem.
8 Idem.
9 Idem.
e No original, overcome/sublate. O autor se refere ao verbo alemão aufheben. Tornou-se lugar-comum a discussão da tradução desses termos em diferentes línguas, o que não é nosso propósito aqui. Queremos apenas indicar que, doravante, usaremos “superar” para overcome e “suprassumir” para supersede, solução proposta por Paulo Meneses em suas traduções da obra de Hegel (ver, por exemplo, Enciclopédia das ciências filosóficas, Fenomenologia do espírito e Filosofia do direito). (N. T.)
f Arthur Schopenhauer, Sobre o fundamento da moral (trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, São Paulo, Martins Fontes, 2001), p. 86. (N. T.)
10 Bret W. Davis, Heidegger and the Will: On the Way to Gelassenheit (Evanston, Northwestern University Press, 2007), p. 107.
11 Para uma análise mais detalhada dessa inversão, ver meu The Indivisible Remainder (Londres, Verso Books, 1996).
12 Citado na introdução do tradutor de F. W. J. Schelling, The Grounding of Positive Philosophy (trad. Bruce Matthews, Albany, Suny Press, 2007), p. 34.
13 Friedrich Hölderlin, “Juízo e Ser” (“Über Urtheil und Seyn”, 1795), em H. S. Harris, Development: Toward the Sunlight 1770-1801 (Oxford, Clarendon Press, 1972), p. 515-6. [A tradução utilizada aqui é de Joãosinho Beckenkamp (Entre Kant e Hegel, Porto Alegre, Edipucrs, 2004, p. 106-7). Os itálicos são de Beckenkamp, os colchetes com os termos em alemão são de Žižek e o trecho em português entre colchetes é do tradutor da edição brasileira. A ordem dos parágrafos também foi alterada por Žižek: tanto na edição brasileira quanto no fragmento original, Juízo vem antes de Ser. (N. T.)]
14 Dieter Henrich, Between Kant and Hegel, cit., p. 289-90.
g 2. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2012. (N. E.)
15 Tenho aqui uma grande dívida com a obra de Catherine Malabou. Seu L’avenir de Hegel [O futuro de Hegel], de 1996 – assim como A paciência do conceito, de Gérard Lebrun, e Hegel et la critique de la metaphysique [Hegel e a crítica da metafísica], de Béatrice Longuenesse – é um dos livros fenomenais sobre Hegel que, regularmente a cada uma ou duas décadas, surgem misteriosamente na França, livros que são de época, no sentido estrito da expressão: eles redefinem todo o campo em que intervêm – literalmente, tudo muda depois que fazemos a leitura de um desses livros. Somos obrigados a concordar com Derrida quando ele diz que “jamais seremos perdoados por não acompanhar passo a passo, página por página, a extraordinária trajetória de L’avenir de Hegel”: “Mais uma vez recomendo a todos que leiam esse livro”. Devemos acrescentar a essa série o Mourning Sickness [Mal do luto], de Rebecca Comay, considerado “o” livro sobre Hegel, e que confirma a suspeita de que – ao menos nas últimas décadas – só as mulheres podem escrever bons livros sobre Hegel.
h Piada suja e ofensiva muito comum entre comediantes norte-americanos e contada de infinitas maneiras, geralmente de improviso. Começa com uma família que procura uma agência de talentos afirmando ter um espetáculo excelente para encenar. A apresentação costuma envolver elementos de incesto, estupro, coprofagia, assassinato etc. O agente gosta muito do que vê e pergunta o título da apresentação, ao que a família responde: “Os aristocratas”. Em 2005, os comediantes Penn Jillette e Paul Provenza produziram um documentário de mesmo título sobre a piada. (N. T.)
16 No entanto, podemos insistir que, em vez de se basear na reversão da inocência superficial para uma mensagem suja (sexualizada), as boas piadas, muito frequentemente, fazem a reversão oposta, isto é, da obscenidade vulgar para a inocência, como na piada russa maravilhosamente idiota (apolítica!) da época da União Soviética: dois estranhos sentam-se lado a lado no mesmo vagão de um trem. De repente, depois de um longo silêncio, um diz ao outro: “Você já transou com um cachorro?”. Surpreso, o outro responde: “Não, e você?”. “É claro que não. Só perguntei para começar a conversa!”.
17 Alain Badiou, Manifesto for Philosophy (Londres, Verso Books, 1999), p. 84 [ed. bras.: Manifesto pela filosofia, trad. MD Magno, Rio de Janeiro, Aoutra, 1991].Quem é antifilósofo de quem? Badiou especula em algum lugar que Heráclito é o antifilósofo de Parmênides, os sofistas são o de Platão (embora o precedam temporal e logicamente), Pascal é o de Descartes, Hume, de Leibniz, Kierkegaard (e Marx?), de Hegel, e até Lacan, de Heidegger. Contudo, esse quadro pode se complicar: o pensamento de Kant – ou mesmo todo o idealismo alemão, com seu motivo central da primazia da prática sobre a razão teórica – não seria a antifilosofia da metafísica clássica em sua última modalidade notável (de Espinosa e Leibniz)? Ou Sade – na leitura lacaniana – não seria o antifilósofo de Kant, de modo que o “avec” de Lacan significa ler um filósofo por intermédio de seu antifilósofo? E o verdadeiro antifilósofo de Hegel não seria o último Schelling? Ou, se dermos um passo além, a singularidade de Hegel não seria o fato de ele ser seu próprio antifilósofo?
18 Seguindo essa via, Jambet mergulhou no pensamento de Molla Sadra, um grande pensador iraniano do século XVII – um modo de pensar que não é alheio à virada gnóstica de pensadores europeus como Peter Sloterdijk. Ver Christian Jambet, The Act of Being (Nova York, Zone Books, 2006).
19 O leitor me perdoe eventuais repetições de passagens de outros livros meus, tendo em mente que, em todo e qualquer caso, a repetição reinterpreta radicalmente a passagem.