5

— É o teu último dia fardado — disse Fred ao saírem ambos da esquadra para a ronda noturna.

— A não ser que não seja talhado para inspetor — disse William. — E, nesse caso, volto às ruas em menos de nada.

— Tretas! Vais ser um inspetor de renome, e toda a gente sabe disso.

— Apenas graças a si, Fred. Ensinou-me mais sobre a vida real do que tudo o que aprendi na universidade.

— Só porque tiveste uma vida tão protegida, menino de coro, ao contrário de mim. E então? Em que brigada vais ficar?

— Arte e Antiguidades.

— Pensava que isso era apenas um passatempo para pessoas que tinham tempo e dinheiro a mais, e não propriamente um crime.

— Pode ser um crime muito lucrativo para quem descobrir uma forma de contornar a lei.

— Explica-me lá isso.

— Atualmente, anda por aí um esquema em que criminosos profissionais roubam quadros sem qualquer intenção de vendê-los.

— Já me baralhaste — disse Fred. — Para quê roubar algo que não se pretende vender ou passar a um recetador?

— Por vezes, as seguradoras preferem fazer um acordo com um intermediário do que pagar o montante total coberto pela apólice.

— Um recetador que veste Armani? — disse Fred. — E como é que os apanham?

— Temos de esperar até eles se tornarem demasiado gananciosos e a companhia de seguros se recusar a pagar.

— Isso soa-me a muita burocracia… É por isso que eu nunca teria dado um bom inspetor.

— Que área vamos patrulhar esta noite? — perguntou William, ciente de que Fred nem sempre seguia as ordens do dia à letra.

— É sábado à noite. O melhor é ir à Barton Estate, para ter a certeza de que os Suttons e os Tuckers não estão com vontade de guerrear. A seguir, voltamos à Luscombe Road antes da hora de fecho dos pubs. Somos bem capazes de encontrar um bêbedo desordeiro para prenderes na tua última noite como polícia de giro.

Embora William tivesse passado dois anos a estagiar com Fred, não sabia quase nada sobre a sua vida particular. Não podia queixar-se, já que era igualmente reservado, mas como seria a última patrulha que faziam juntos decidiu perguntar-lhe algo que sempre o intrigara.

— O que o levou a entrar para as forças policiais?

Fred levou algum tempo a responder, quase como se tivesse ignorado a pergunta.

— Como não vou voltar a ver-te, menino de coro — lá acabou por dizer —, vou contar-te. Para começar, foi mais por acaso do que por querer.

William ficou calado enquanto entravam numa viela que levava às traseiras da Barton Estate.

— Nasci num bloco de apartamentos em Glasgow. O meu pai passou a maior parte da vida no desemprego e, por isso, a minha mãe era a nossa única fonte de rendimento.

— O que fazia ela?

— Era empregada de bar, mas depressa aprendeu que podia ganhar muito mais a fazer favores por fora. O problema é que continuo sem ter a certeza se não serei o resultado de um desses favores.

William não comentou.

— Mas o dinheiro acabou quando a beleza começou a murchar, e também não ajudava que o meu pai a deixasse regularmente com um olho negro se ela não voltasse para casa no sábado à noite com dinheiro suficiente para lhe pagar a próxima garrafa de uísque e poder apostar em mais um cavalo que nunca passava do quarto lugar.

Fred calou-se, enquanto William pensava nos seus próprios pais, que, aos sábados à noite, iam normalmente jantar fora e ao teatro. Ainda tinha dificuldade em compreender a tirania da violência doméstica. Nunca ouvira o pai levantar a voz à mãe.

— Londres fica muito longe de Glasgow — incitou, esperando ficar a saber mais.

— Para mim, não ficava suficientemente longe — disse Fred, iluminando o beco com uma lanterna e sorrindo quando um jovem casal fugiu precipitadamente. — Tinha catorze anos quando saí de casa. Embarquei no primeiro cargueiro que me aceitou. Aos dezoito anos, já tinha visto meio mundo e acabei em Londres.

— Foi nessa altura que se juntou às forças policiais?

— Não. Continuava a vê-las como o inimigo. Passei uns meses como repositor de produtos em supermercados antes de me tornar motorista de autocarro. Mas não tardei a fartar-me disso e foi então que decidi ir para o exército ou para a polícia. Se a polícia não me tivesse entrevistado primeiro, por esta altura já era capaz de ser general.

— Ou estar morto — disse William, enquanto entravam na propriedade.

— Tens tantas probabilidades de ser morto a fazer este trabalho como nas forças armadas modernas — retorquiu Fred. — Perdi sete colegas nos últimos vinte anos, e foram muitos mais os que ficaram feridos e acabaram por ser dispensados por invalidez. Pelo menos, no exército, sabemos quem é o inimigo e temos permissão para matá-lo. Já nós temos de lidar com traficantes de droga, crimes com armas brancas e guerras entre gangues, enquanto a maior parte da população prefere ignorar.

— Então, porque é que continuou, quando podia ter escolhido uma vida muito mais fácil?

— Podemos ter origens sociais opostas, menino de coro — disse Fred —, mas temos uma coisa em comum: somos ambos um bocadinho chanfrados, mas pelo menos fazemos aquilo para que fomos destinados. E, para ser franco, nunca tive um emprego que fosse tão estimulante ou compensador como ser agente da polícia de Londres.

— Compensador?

— Não estou a falar em termos financeiros, se bem que, juntando as horas extraordinárias, o salário não é tão mau como isso. Deprehendo Deprehensio Vitum — disse Fred. — «Horas extraordinárias solucionam crimes».

William não conseguia parar de rir e Fred acrescentou:

— Não te preocupes, são as únicas palavras em latim que conheço. Aquilo de que mais gosto neste trabalho é não haver dois dias iguais. E, mais importante ainda, este é o meu território e conheço praticamente toda a gente que aqui mora. Podem nem sempre ser uma grande família feliz, mas são a minha família e, embora nunca admitisse uma coisa dessas na cantina, gosto de imaginar que fiz a diferença.

— E tem dois louvores para o provar.

— Para não falar em três suspensões, mas, como só me faltam uns meses para pendurar o cassetete, não vou voltar a pisar o risco. Não quero fazer nada que possa afetar a minha reforma — acrescentou ele, enquanto abandonavam a Barton Estate.

— Está tudo muito calmo esta noite — disse William.

— Viram-nos chegar e desapareceram como ratazanas na sarjeta mais próxima. Vão voltar a aparecer assim que nos perderem de vista. Mas também não queríamos problemas na sua última noite de patrulha, pois não, inspetor?

William riu-se e estava prestes a fazer outra pergunta, quando Fred olhou para o outro lado da rua e disse:

— Velha tonta… Bem, suponho que não perceba as implicações.

William desconfiava estar prestes a ouvir outra singela tirada filosófica, embora não percebesse do que estava ele a falar.

— Número vinte e três — disse Fred. — A casa da senhora Perkins.

— Assaltada há duas semanas — disse William. — Uma televisão e um videogravador, se bem me lembro.

— Cinco em dez — ripostou Fred. — Agora, faz por merecer os outros cinco.

William olhou fixamente para o número 23, mas não ficou mais esclarecido.

— O que vês, menino de coro?

— Duas caixas de cartão vazias.

— E o que é que isso te diz?

William tentou pensar como alguém habituado a apanhar ladrões, um apanágio concedido apenas àqueles que, como Fred, conseguiam farejar um crime ainda antes de ter acontecido.

Fred soltou um suspiro exagerado.

— A companhia de seguros deve ter pagado a indemnização à senhora Perkins, que é agora a orgulhosa proprietária de uma televisão e um videogravador novinhos em folha. Mas o que ela não sabe é que os assaltantes regressam muitas vezes ao local do crime, cientes de que haverá um televisor novo para roubar. E, neste caso, ela até se dá ao luxo de anunciar esse facto. A única coisa que o meliante tem de fazer é esperar que ela saia uma noite para visitar a amiga do número noventa e um, a senhora Cassidy, e depois voltar a entrar lá em casa e roubá-la uma segunda vez.

— Então, o que devemos fazer? — perguntou William.

— Dar-lhe uma palavrinha e sugerir que destrua as provas da existência de novos aparelhos — disse Fred, e bateu à porta do número 23.

A senhora Perkins veio abrir quase de imediato e, depois de ele explicar por que motivo estavam ali, apressou-se a retirar as caixas, agradeceu-lhe e ofereceu-lhes um chá.

— É muito amável, senhora Perkins, mas é melhor ir andando. — Fred levou a mão à pala do capacete antes de prosseguir a ronda com William. — Quando começas as novas funções? — perguntou, depois de terem percorrido alguns metros.

— Vou passar duas semanas de férias em Itália antes de me apresentar na Scotland Yard, a um de outubro.

— Há muitas raparigas giras em Itália, segundo dizem.

— A maior parte delas presas.

— Presas?

— Em molduras de talha dourada.

Fred riu-se.

— Nunca fui a Itália. Aliás, nem sequer fui à Scotland Yard, mas disseram-me que têm a melhor sala de snooker da Polícia Metropolitana.

— Eu depois volto e conto-lhe como é…

— Tu nunca mais voltas, menino de coro. Lambeth foi apenas o primeiro degrau de uma escada que presumo ser bastante alta. Mas desde já te aviso que, na subida, vais encontrar muitas víboras que terão todo o prazer em atirar-te da escada abaixo, e algumas delas usam farda azul — disse ele, ao mesmo tempo que abanava a porta de uma loja para se certificar de que estava fechada.

William soltou um riso abafado. Não havia um turno que chegasse ao fim sem aprender alguma coisa com Fred.

— Boa noite, Jacob.

— Olá, Fred.

William olhou para um homem que estava sentado de pernas cruzadas no passeio, a segurar uma garrafa de uísque meio vazia. Quando se iniciara como polícia de giro, Fred ensinara-lhe que havia quatro tipos de bêbedos: os dorminhocos, que caem num estupor alcoólico e, quando finalmente acordam, vão para casa; os inofensivos, que estão normalmente a afogar as mágoas e raramente causam problemas; os amantes, que querem levar-nos para casa e experimentar o nosso uniforme; e os agressivos, que andam à procura de desavenças e consideram um polícia uma presa fácil. Fred conseguia identificar cada categoria de longe, sobretudo os que andavam à procura de desavenças e que normalmente acabavam por passar a noite numa cela, revelando-se muitas vezes pessoas completamente diferentes na manhã seguinte. William já se deparara com os quatro tipos ao longo dos últimos dois anos e, graças ao senso comum e à força do braço direito de Fred, tinha escapado com apenas uma ou duas nódoas negras.

— Qual é a categoria? — perguntou.

— Está a afogar as mágoas. Os Spurs devem ter perdido esta tarde.

— Como sabe?

— O Jacob é uma joia de pessoa quando eles ganham, mas, quando perdem, é uma causa perdida.

Viraram para a Luscombe Road e viram uns quantos habitantes locais a regressar a casa, vindos de Marlborough Arms.

— Que desilusão… — disse Fred. — A Luscombe Road já não é o que era desde que a câmara municipal fez uma limpeza. Tinha esperança de encontrar um traficante de droga, ou mesmo o bufo Lenny, para teres algo para recordar desta tua última noite.

— Podemos sempre prendê-la — sugeriu William, apontando para uma rapariga de minissaia de cabedal preto, que conversava com um homem através da janela aberta de um carro.

— Para quê? Passa a noite na cela, de manhã paga a multa e à noite está de volta à má vida. Quem eu gostava de prender não são as raparigas, mas sim os chulos que vivem à conta delas… E um em particular — acrescentou Fred.

O carro afastou-se a toda a velocidade quando o condutor avistou dois polícias no espelho retrovisor. Eles continuaram a andar em direção ao centro, com Fred a deliciar William com as suas histórias, algumas das quais ele já ouvira, mas que valia a pena revisitar, e outras que não tinha a certeza se não teriam sido exageradas com o passar dos anos.

Ia interrogar o seu mentor sobre os planos para a reforma quando ele o agarrou pelo braço e o puxou para o vão da porta mais próxima, deixando de ser o amigável polícia de proximidade para se transformar num agente que avistara um criminoso a sério.

— É a nossa noite de sorte — disse Fred, acenando com a cabeça na direção de um homem gigantesco que estava a agarrar uma rapariga aterrorizada pelo pescoço. — Há anos que ando atrás daquele filho da mãe. Não te dês ao trabalho de lhe ler os direitos. Isso pode esperar até ele estar enfiado numa cela.

Sacou do cassetete, saltou da sombra e começou a correr para o agressor, fazendo várias outras raparigas dispersar como pombos assim que o viram. William foi atrás dele e depressa ultrapassou o veterano, que não só tinha mais trinta anos do que ele, como nunca ganhara a corrida dos cem metros no último ano de escola.

O brutamontes olhou à sua volta e, ao ver William a correr na sua direção, largou a rapariga, que caiu de joelhos a choramingar. Foi nessa altura que William viu a faca, mas estava apenas a dois passos dele e empenhado em dominá-lo. Mergulhou sobre o homem, atingindo-o abaixo dos joelhos e fazendo com que ambos se estatelassem no passeio. Quando recuperou, já o homem estava novamente de pé. William ergueu instintivamente um braço para se proteger quando a faca desceu sobre ele. A última coisa que sentiu foi o choque da lâmina a entrar-lhe no peito.

— Agente ferido, agente ferido! Pede-se ajuda urgente na Luscombe Road! — gritou Fred pelo rádio, saltando sobre o agressor.

Ele abriu os olhos. Pestanejou e olhou à volta do quarto desconhecido. Os pais e a irmã estavam ao lado da cama, e junto à porta um agente graduado que não reconheceu. Três estrelas em cada dragona indicavam que se tratava de um inspetor-chefe.

William sorriu ligeiramente para a sua família enquanto tentava sentar-se, mas só conseguiu soerguer-se uns centímetros antes de perceber que tinha o peito envolto em ligaduras. Voltou a deitar-se.

— Como está o Fred? — foram as primeiras palavras que balbuciou.

Nenhum dos presentes se predispôs a responder à pergunta. Por fim, o polícia avançou e disse:

— Sou o inspetor-chefe Cuthbert e lamento imenso tudo isto, agente Warwick, mas tenho de lhe fazer algumas perguntas sobre o que sucedeu na noite de sábado, porque, como sabe, não podemos deter um suspeito por mais de vinte e quatro horas, a menos que tenhamos provas suficientes para o acusar.

— Com certeza, senhor inspetor — disse William, tentando uma vez mais sentar-se.

O inspetor-chefe abriu um grande envelope de papel pardo e tirou de lá várias fotografias a preto-e-branco de uma série de homens, entre eles um que William nunca iria esquecer.

— É este o homem que tentou deter no sábado à noite? — perguntou Cuthbert.

William disse que sim com a cabeça.

— Mas por que razão precisa de me perguntar quando o Fred podia identificá-lo pessoalmente?

O inspetor-chefe Cuthbert permaneceu em silêncio enquanto voltava a guardar as fotografias no envelope.

A igreja paroquial de St. Michael e St. George raramente enchia, mesmo por altura do concerto de Natal anual patrocinado pelo presidente da câmara, mas nesta ocasião os bancos já estavam cheios antes de o coro ter entrado na nave. O agente da polícia Fred Yates tivera direito às cerimónias fúnebres da praxe, ao mesmo tempo que uma guarda de honra fardada formava em linha no acesso à igreja.

O cortejo fúnebre fora escoltado pela polícia montada e o caixão de Fred estava envolto nas cores azul e prateado da Polícia Metropolitana, com a Medalha de Bravura e um troféu de prata sobre o tampo. No interior da igreja, os agentes graduados estavam sentados à frente, enquanto os que não tinham conseguido arranjar lugar tiveram de se contentar em ficar de pé, ao fundo. O pai de William empurrou a cadeira de rodas do filho ao longo da nave central e a congregação levantou-se em sinal de reconhecimento. Um capelão conduziu-os aos lugares reservados na primeira fila.

Aquele que for valente…

William aguentou firme até o caixão, carregado aos ombros por oito agentes da polícia, iniciar o lento trajeto até à capela-mor, altura em que não conseguiu reprimir as lágrimas. O pároco olhou do alto dos degraus do altar e orou pelas pessoas que residiam na área policiada por Fred, muitas das quais raramente ou nunca iam à missa. Tinham vindo prestar-lhe homenagem, embora algumas delas nem sequer soubessem o seu apelido. William olhou em volta e avistou a senhora Perkins entre os presentes.

Ser peregrino…

Quando a congregação ajoelhou para rezar, William baixou a cabeça e recordou as palavras de Fred: «Gosto de imaginar que fiz a diferença.» Quem lhe dera que o seu mentor pudesse ali estar para testemunhar a diferença que fizera.

Os cânticos foram entoados vigorosamente pelos colegas e amigos de Fred, e William sabia que ele teria gostado disso. Já quanto ao elogio fúnebre pronunciado pelo superintendente-chefe da esquadra, tê-lo-ia seguramente considerado exagerado. William recordou o riso abafado de Fred quando o superintendente falou sobre os seus louvores. «E as minhas suspensões?», conseguiu ouvi-lo dizer.

Depois de o padre ter dado a última bênção, a congregação levantou-se e os homens que pegavam no caixão retomaram as suas funções, carregando a urna ao longo da nave central até sair da igreja, em direção à última morada. William tentou levantar-se à sua passagem, mas só conseguiu quando o sargento de plantão e o superintendente foram em seu auxílio.

Quando chegaram a casa nessa noite, o pai disse-lhe que não seria desonra nenhuma se ele sentisse que tinha de abandonar as forças policiais. Estava certo de que os seus colegas iriam compreender.

— Podias ir estudar Direito à noite e depois vir trabalhar comigo no tribunal, onde podes continuar a combater criminosos, mas na segurança de uma sala de audiências e durante o dia, em vez de andares pelas ruas à noite.

William sabia que o pai tinha razão, mas foi Fred quem teve a última palavra.

Podemos ter origens sociais opostas, menino de coro, mas temos uma coisa em comum: somos ambos um bocadinho chanfrados, mas pelo menos fazemos aquilo para que fomos destinados.