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A regra era simples. Se o telefone tocasse, atendia-se a chamada sem questionar, da mesma forma como se entrava para o primeiro táxi da fila. Tomava-se nota dos pormenores antes de informar o inspetor-chefe Lamont, que decidiria qual deles ficaria com o caso, presumindo que havia um caso para tratar.

Muitas vezes, o telefonema vinha de um cidadão a quem tinham roubado uma recordação de família e que queria saber o que ia a polícia fazer em relação a isso. Era preciso explicar que a maior parte dos roubos era da competência das forças policiais locais, uma vez que a Brigada de Arte e Antiguidades só tinha quatro elementos, pelo que não podia acompanhar todas as investigações. No entanto, o comandante Hawksby estava sempre a lembrar-lhes que, para uma senhora idosa, o facto de ter ficado sem o seu alfinete vitoriano era como ficar sem as Joias da Coroa e que, para muitas das pessoas que ligavam, aquele era o único contacto direto com a polícia.

— Quando desligar o telefone — disse ele a William —, certifique-se de que do outro lado está uma pessoa feliz e satisfeita, e não alguém que pensa que a polícia não está ao seu lado.

William agarrou no auscultador.

— Desculpe incomodá-lo — disse uma voz bem-falante. — Só espero não estar a fazê-lo perder o seu tempo.

— Se crê que foi cometido um crime — replicou William —, não estará a fazer-me perder tempo.

— O problema é esse. Não tenho a certeza absoluta de ter sido cometido um crime, mas cheira-me um bocadinho a esturro.

William sorriu ao ouvir a expressão pitoresca.

— Vamos começar por anotar o seu nome, está bem? — disse, pegando numa caneta, sabendo que metade das vezes a pessoa que fazia o telefonema desligava ao ouvir essa pergunta.

— Jeremy Webb. Trabalho no London Silver Vaults, o mercado de prata, na City. É capaz de nunca ter ouvido falar de nós.

— O meu pai levou-me lá numas férias escolares para comprar uma prenda para o aniversário da minha mãe. Nunca me esqueci. Deviam ser pelo menos duas dúzias de bancas diferentes, com tudo misturado…

— Trinta e sete lojas — disse Webb. — Sou presidente da Associação do London Silver Vaults este ano, e é por isso que estou a ligar. Vários dos nossos membros vieram ter comigo para me informar de um problema.

— Que tipo de problema? — perguntou William. — Leve o tempo que for necessário, senhor Webb, e não hesite em mencionar todos os pormenores, por mais irrelevantes que lhe pareçam.

— Obrigado — disse Webb. — A nossa associação é constituída por um grupo de membros afiliados cuja principal atividade é comprar e vender prata. Pode ser qualquer coisa, desde uma colher de chá vitoriana a um grande centro de mesa para a sala de jantar. Ora, como certamente saberá, a prata tem de ser marcada e contrastada antes de poder ser descrita como prata de lei. Nenhum colecionador que se preze consideraria sequer comprar um artigo que não tivesse contraste.

William continuava de caneta na mão, ciente de que o senhor Webb haveria de chegar ao busílis da questão no seu próprio tempo.

— Ao longo do último mês, o mercado tem sido visitado regularmente por um cavalheiro cujo único interesse é comprar prata que tenha pelo menos cem anos. Parece não se importar com as peças em si: tanto lhe faz ser uma medalha da coroação do rei Jorge V como um troféu escolar do salto em comprimento. Um dos quatro contrastes indica o ano de fabrico e vários dos meus colegas notaram que o dito cavalheiro verifica sempre a idade da peça usando uma loupe, antes de se interessar por ela.

— Uma loupe?

— Desculpe — disse Webb. — É uma pequena lupa, frequentemente usada por joalheiros e relojoeiros.

— Ah, compreendo — disse William, embora continuasse sem saber bem onde é que a conversa ia levar.

— A outra coisa que deixou os meus colegas desconfiados foi o facto de ele pagar sempre em dinheiro.

— Notas de grande valor facial?

— Não. Estamos sempre atentos a isso, na sequência das recentes diretivas do Ministério das Finanças relativas à lavagem de dinheiro. Será que estou a fazer sentido, inspetor?

— Está, sim, senhor Webb. Sabe o nome do indivíduo?

— O problema é esse. Tomamos sempre nota do nome e morada de todos os clientes, mas este homem deu-nos vários nomes diferentes e nunca a mesma morada.

De repente, William ficou mais interessado.

— Algum dos vendedores faz alguma ideia de quem poderá ser?

— Um dos nossos comerciantes diz que o reconhece, mas não sabe de onde. Alega não se lembrar do nome dele.

— Disse «alega». Isso sugere que o senhor não está convencido de que seja verdade.

— Aqui há uns anos, o vendedor em questão foi condenado a seis meses de prisão por negociar bens roubados. A comissão de liberdade condicional pediu-nos para lhe darmos uma segunda oportunidade, coisa que fizemos com alguma relutância. Mas avisámo-lo de que, caso voltasse a pisar o risco, seria expulso da nossa associação.

— Como se chama ele?

— Ken Appleyard.

William anotou o nome.

— E dada a sua experiência na área, senhor Webb, tem alguma teoria para o facto de o homem misterioso andar a comprar tanta prata antiga?

— De início, pensei que podia ser lavagem de dinheiro, mas ele estava sempre a voltar. Por isso, a menos que fosse estúpido, isso não fazia sentido. A seguir, comecei a pensar se não andaria a derreter a prata, mas isso também não fazia sentido, porque recentemente o preço da prata tem estado a cair. Portanto, confesso que estou completamente perdido. Contudo, a direção da associação achou que devia dar conhecimento disto à polícia, por precaução.

— Fico muito grato, senhor Webb. Vou relatar as suas preocupações ao meu chefe e é muito possível que volte a entrar em contacto consigo.

A primeira coisa que William fez depois de desligar não foi informar Lamont, mas apanhar o elevador para a subcave, onde se encontrava o computador da polícia nacional. Um agente que parecia ainda mais novo do que ele digitou o nome Ken Appleyard no sistema e, em poucos segundos, imprimiu uma cópia do respetivo registo criminal. Confirmava que Appleyard tinha sido condenado a seis meses de prisão por recetação de bens roubados. William ficou satisfeito por ver que não tinha outras condenações e que, desde que fora libertado, nem uma simples multa de estacionamento apanhara.

Regressou ao seu gabinete com o registo criminal. Lamont estava ao telefone, mas fez-lhe sinal para se sentar na cadeira ao seu lado. William sabia que o chefe estava a colaborar com a Interpol na investigação de uma rede de contrabando de diamantes, que operava a partir do Gana e do Dubai. Depois de desligar, Lamont focou a sua atenção no que ele tinha para lhe dizer.

— O que acha que ele anda a tramar, chefe? — perguntou William, depois de ter concluído o seu relato.

— Não faço ideia, mas a primeira coisa a fazer é descobrir quem é esse homem misterioso, pois até lá são apenas tiros no escuro.

— E por onde começo?

— Siga a sua única pista. Vá ao Silver Vaults e tente falar com o Appleyard. Mas avance com cautela. Ele pode mostrar algum melindre relativamente à pena de prisão, sobretudo com os colegas por perto. Tente agir como um cliente e não como um polícia.

— Entendido.

— Já agora, William, porque é que ainda não prendeu o falsificador da assinatura de Churchill?

— Meteu-se na toca, mas se vier à superfície vou apanhá-lo e espremê-lo com todo o gosto.

Lamont sorriu e voltou para os seus contrabandistas de diamantes.

William sabia exatamente onde ficava o Silver Vaults, mas antes de sair ligou ao pai a perguntar se estava disponível para almoçar, pois precisava de lhe pedir conselho.

— Posso dar-te uma hora — foi a resposta de Sir Julian —, mas não mais.

— É o tempo que tenho, pai. Ah, e só posso dar-lhe 2,80 libras para ajudar a pagar a conta.

— Aceito essa ninharia, embora seja consideravelmente menos do que costumo cobrar por uma hora de aconselhamento. Encontramo-nos à entrada de Lincoln’s Inn à uma hora. Depois, logo me dizes se a tua cantina é melhor do que a nossa.

William saiu da Scotland Yard e apanhou um autocarro para a City. Depois de uma curta caminhada ao longo da Chancery Lane, entrou no London Silver Vaults. Na área da receção, estava afixada uma lista de todos os comerciantes. A loja do senhor K. Appleyard tinha o número 23.

William desceu pela escadaria até à cave, onde encontrou um espaço amplo ladeado por bancas. Gostaria de ter parado e inspecionado melhor várias peças requintadas que lhe chamaram a atenção, mas não permitiu que isso o distraísse de tentar encontrar o número 23.

Appleyard estava a mostrar um açucareiro a um cliente quando William viu o nome por cima da banca. Parou na banca em frente, pegou num pimenteiro de prata na forma de uma sufragista e analisou-o atentamente. Era o presente de Natal ideal para Grace, pensou. Preparava-se para perguntar o preço quando o cliente de Appleyard se foi embora e, por isso, atravessou o espaço até à banca dele.

— Bom dia! Está à procura de alguma coisa em particular?

— De alguém — disse William baixinho, e mostrou-lhe a identificação.

— Não fiz nada de mal — disse Appleyard com ar de desafio.

— Ninguém está a insinuar que fez. Apenas quero fazer-lhe algumas perguntas.

— É por causa do tipo que tem andado a comprar prata antiga?

— Acertou em cheio.

— Não há muito que lhe possa dizer. Cruzei-me com ele na prisão de Pentonville, mas não consigo lembrar-me do nome. Passei anos a tentar esquecer esse período da minha vida, e não a revisitá-lo.

— Compreendo — disse William. — Mas seria uma grande ajuda se conseguisse lembrar-se de alguma coisa sobre ele… Idade, altura, alguma particularidade física.

Appleyard olhou o vazio, como se tentasse conjurar a imagem do homem.

— Cabeça rapada, cinquenta a cinquenta e cinco anos, mais de um metro e oitenta.

— Sabe por que razão estava preso?

— Não faço ideia. Uma das regras de ouro na prisão é não perguntar que crime cometeu outro prisioneiro e não dizer por que motivo estamos presos.

William adicionou esta informação ao seu banco de memória. Appleyard calou-se por uns instantes e depois acrescentou:

— Tinha uma pequena tatuagem no antebraço direito, um coração que dizia «Angie».

— Isso já ajuda bastante, senhor Appleyard — disse William, entregando-lhe o seu cartão. — No caso de se lembrar de mais alguma coisa, peço-lhe o favor de me telefonar.

— Não há necessidade de mencionar a sua visita aos meus colegas, pois não?

— Sou apenas mais um cliente — disse William, encaminhando-se novamente até à banca em frente para perguntar o preço do pimenteiro: o salário de uma semana.

Havia relógios suficientes a dar horas à sua volta para ele se lembrar de que tinha de ir ter com o pai dentro de quinze minutos; sabia que, se não chegasse a horas, já ele teria começado o primeiro prato.

Subiu a escadaria a correr, saiu para a rua, virou à direita e continuou a correr. Chegou ao portão de Lincoln’s Inn às 12h56 e viu o pai do outro lado da praça, a dirigir-se a passos largos para o edifício principal.

— O que te traz a estas paragens? — perguntou Sir Julian, enquanto levava o filho por um longo corredor com retratos de juízes eminentes dos dois lados.

— Trabalho e lazer. Já explico durante o almoço. Mas, antes de mais, como está a mãe?

— Está bem e manda-te lembranças.

— E a Grace?

— Tontinha como sempre. Anda a defender um rastafári que tem cinco mulheres e catorze filhos, e está a tentar alegar que ele é mórmon e, como tal, não se encontra sujeito às leis da poligamia. É claro que vai perder, mas já está habituada.

— Talvez um dia ela o surpreenda — disse William ao entrarem na sala de refeições.

— É self-service, por isso agarra num tabuleiro — disse o pai, como se não o tivesse ouvido. — Evita a carne a todo o custo. Normalmente, as saladas são uma aposta segura.

William escolheu um prato de salsichas com puré e um pudim de melaço, e depois foram sentar-se a uma mesa que ficava ao fundo da sala.

— Isto é um encontro social ou precisas do meu aconselhamento? — perguntou Sir Julian, pegando num saleiro. — É que eu cobro cem libras à hora e o tempo já está a contar.

— Nesse caso, vai ter de deduzi-las à minha mesada, porque preciso de ouvir a sua opinião em relação a algumas coisas.

— Diz lá.

William levou algum tempo a contar o que o levara a passar a manhã ao fundo da rua, no Silver Vaults.

— Fascinante — disse o pai quando ele chegou ao fim da narrativa. — Então, precisas de descobrir quem é o comprador misterioso e por que motivo anda a derreter prata com mais de cem anos.

— Mas nem sequer temos a certeza de que seja isso que ele anda a fazer.

— Então, terás de descobrir o que ganha ele com a operação, a menos que seja um colecionador excêntrico… Mas, se fosse, não teria dado nomes e moradas diferentes.

— Tem alguma ideia, pai?

Sir Julian não voltou a falar até ter terminado a sopa.

— Moedas — disse. — Têm de ser moedas.

— Porquê moedas?

— Tem de ser alguma coisa que valha consideravelmente mais do que a prata original, pois caso contrário não faria sentido. — Sir Julian empurrou a tigela de sopa vazia para o lado e começou a comer a salada. — E qual é o outro problema?

— Já alguma vez se cruzou com um advogado chamado Booth Watson? E, em caso afirmativo, qual a sua opinião sobre ele?

— Não é nome que se mencione na alta sociedade — disse Sir Julian, parecendo falar a sério pela primeira vez. — Não se importa nada de contornar a lei de toda a forma e feitio. Porque perguntas?

— Estou a investigar um dos clientes dele… — começou William.

— Nesse caso, esta conversa acaba aqui, porque não tenho vontade nenhuma de aparecer em tribunal com esse homem.

— Isso nem parece seu, pai. Raramente diz mal dos seus colegas.

— O Booth Watson não é um colega. Apenas temos a mesma profissão.

— Porque é que fala com tanta animosidade?

— Começou tudo quando andávamos em Oxford e ele se candidatou a presidente da Law Society. Sinceramente, eu estava mais do que disposto a apoiar qualquer candidato que lhe fizesse frente. Depois de o indivíduo que propus ser eleito, o Booth Watson culpou-me e nunca mais trocámos uma palavra. Na verdade, é ele que está ali, do outro lado da sala. A comer sozinho, que é tudo o que precisas de saber sobre ele. Não olhes, senão ele processa-te por invasão de propriedade privada.

— Então, quem está a defender presentemente, pai? — perguntou William, mudando de assunto, embora sem conseguir resistir a olhar de relance para o outro lado da sala.

— Um chef nigeriano que cortou a mulher aos bocados e depois enviou pelo correio várias partes do corpo à sogra.

— Ou seja, não vai conseguir safá-lo, certo?

— Nem por sombras, graças a Deus! Na verdade, estou a pensar desistir de defender homicídios. A Agatha Christie livrou-se mesmo a tempo.

— O que quer dizer com isso?

— O Poirot nunca teve de lidar com as provas baseadas no ADN, que estão a tornar praticamente impossível apresentar uma defesa razoável para os eventuais clientes. Não, futuramente, vou concentrar-me em casos de fraude e difamação. Os julgamentos são mais longos, o que dá origem a honorários suplementares mais elevados, e continua a haver cinquenta por cento de probabilidades de ganhar — elucidou Sir Julian, limpando a boca ao guardanapo.

William olhou para o relógio.

— Tenho de ir andando.

— Está bem, mas primeiro diz-me em que pé está a tua vida social, porque a tua mãe vai querer saber.

— Um bocadinho mais promissora. Conheci alguém que acho especial. Na verdade, vou voltar a vê-la esta noite.

— Posso dizer à tua mãe?

— Nem uma palavra, por favor. Caso contrário, ela vai querer convidar-nos aos dois para almoçar no domingo e eu ainda não preparei a Beth para essa provação.

— A minha boca é um túmulo — disse o pai, rindo.

Ao saírem da sala, William não conseguiu resistir a olhar outra vez para Booth Watson, que estava a comer o pudim de melaço.

— Gostei de te ver, rapaz — disse Sir Julian quando chegaram ao pátio.

— Eu também, pai.

William sorriu enquanto via o pai afastar-se a passos largos. Devia-lhe tanto…