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A primeira coisa que William fez depois de regressar à Scotland Yard foi informar o chefe sobre o encontro com Appleyard.

— Apenas uma das informações que ele deu poderá ter alguma utilidade — disse Lamont. — Sabe qual?

— A tatuagem?

— Nem mais. Se encontrarmos essa Angie, ela poderá levar-nos ao comprador misterioso.

— Mas a única coisa que temos para trabalhar é uma tatuagem.

— E pode ser o bastante.

— Porquê?

— Pense como um criminoso, meu rapaz, e não como um menino de coro — disse Lamont, recostando-se na sua cadeira.

— Pentonville — disse William, após um breve silêncio.

— Está no caminho certo. Mas com quem precisará falar em Pentonville?

— Com o diretor da prisão?

— Não. É demasiado importante para o que precisamos.

William pareceu desorientado e teve de esperar uma vez mais que Lamont viesse em seu auxílio.

— Disse-me que o Appleyard só esteve em Pentonville três semanas e depois foi transferido para Ford Open.

— Sim.

— Durante esse tempo, terá tido direito a três visitas prisionais. Por isso, você precisa de descobrir se alguém chamado Angie visitou um preso em Pentonville enquanto o Appleyard lá estava. Se o fez, hão de ter os dados dela em arquivo.

— Esperemos igualmente que ainda seja a namorada dele.

— Isso não deve ser problema. Uma tatuagem para um recluso é o mesmo que uma aliança para nós os dois. É um compromisso e, convenhamos, é a única coisa que temos. Dê uma palavrinha ao graduado encarregado das visitas. Chama-se Leslie Rose. Não se esqueça de lhe dar cumprimentos meus.

William voltou para a secretária e procurou o número do responsável pelas visitas no Estabelecimento Prisional de Pentonville. Quando atenderam, uma voz retumbante bradou:

— Rose.

— Boa tarde. Daqui fala o inspetor estagiário Warwick e estou a ligar-lhe por sugestão do meu chefe, o inspetor-chefe Lamont.

— Um perfeito otário.

— Desculpe?

— Qualquer idiota que acredita que o Arsenal pode ganhar a taça é um perfeito otário. O que posso fazer por si, inspetor?

— Em 1981, tiveram aí um prisioneiro chamado Appleyard. Ken Appleyard. Só esteve convosco durante três semanas, entre nove e trinta de abril, e depois seguiu para Ford Open.

— O que tem ele?

— Durante a sua estadia, outro prisioneiro, de cujo nome ele não se lembra…

— Ou não quer lembrar-se.

— … pode ter recebido uma visita da namorada, que sabemos chamar-se Angie.

— Como é que têm tanta certeza?

— O Appleyard lembra-se de ver uma tatuagem no braço direito do homem. Um coração vermelho com o nome Angie escrito por cima.

— Belo trabalho de investigação, jovem! As probabilidades não são por aí além, mas depois entro em contacto consigo.

— Obrigado.

— Dê cumprimentos meus ao Bruce. Diga-lhe que não há hipótese no sábado.

— Hipótese de quê?

— De o Arsenal ganhar ao Spurs.

— Nesse caso, presumo que seja adepto do Tottenham Hotspur, não?

— Vejo que a Scotland Yard continua a recrutar apenas os melhores e mais inteligentes. Então e qual é o seu clube?

— O Fulham. E devo fazer notar que ultimamente vocês não nos têm ganhado.

— E eu devo fazer notar que isso talvez se deva ao facto de não jogarmos convosco há vários anos… E é pouco provável que o façamos enquanto estiverem a definhar na segunda divisão.

O telefone começou a fazer um ruído surdo.

William passou o resto da tarde a redigir o seu relatório sobre o encontro com Appleyard e a conversa telefónica com o chefe dos guardas Rose, em Pentonville. Decidiu deixar de fora os impropérios e as referências ao Arsenal, e pouco passava das cinco e meia da tarde quando deixou uma versão depurada na secretária do inspetor-chefe Lamont.

Contava escapulir-se pouco antes das seis, para não chegar atrasado à palestra adiada de Tim Knox no Fitzmolean e, depois, ir jantar com Beth.

Estava a preparar-se para sair quando o telefone tocou. Jackie atendeu.

— É para si, Bill — disse ela, transferindo a chamada para a secretária de William, que sorriu, esperando ouvir a voz animada do chefe dos guardas Rose do outro lado.

— Inspetor estagiário Warwick? — disse uma voz que ele mal conseguiu perceber.

— Sim. Quem fala?

— O meu nome é Martin. Trabalho na livraria John Sandoe Books, em Chelsea, e o senhor visitou a nossa loja na semana passada. O seu homem está de volta, mas desta vez está a ver uma primeira edição de Dickens.

William pôs uma mão no ar, sinal de que todos os inspetores disponíveis deviam pegar na sua extensão e escutar a conversa.

— Recorde-me a morada, por favor?

— Blacklands Terrace, em frente à King’s Road.

— Empate-o — disse William. — Vou a caminho.

— Tem lá fora um carro-patrulha à sua espera — disse Lamont quando ele desligou o telefone. — Toca a andar.

William saiu a correr do gabinete, desceu as escadas dois degraus de cada vez e saiu disparado para a rua, onde tinha um carro à sua espera, com o motor a trabalhar e a porta do passageiro aberta. O condutor arrancou, com a sirene a tocar e as luzes a piscar, ainda antes de ele ter fechado a porta.

— Danny Ives — disse o condutor, estendendo-lhe a mão esquerda e mantendo a outra firmemente agarrada ao volante enquanto acelerava; era óbvio que não precisava que lhe dissessem aonde ir.

— William Warwick — disse William, partindo do princípio de que, se um colega não dizia a sua patente, o mais provável era ser um simples agente.

Se bem que, na realidade, a maioria dos condutores da Polícia Metropolitana se considerassem uma classe à parte e achassem que a capital não passava de uma pista de Fórmula 1, com o desafio acrescido dos peões.

Ives entrou rapidamente na Victoria Street, serpenteando por entre o trânsito do final da tarde à medida que avançava em direção à Parliament Square, onde passou um sinal vermelho. Embora William já tivesse participado numas quantas emergências que requeriam a utilização de luzes e sirene, continuava a sentir-se um rapazinho a realizar os seus sonhos mais delirantes à medida que os carros, carrinhas, camiões e autocarros se desviavam para os deixar passar. Quando chegaram aos semáforos da Chelsea Bridge, Ives abrandou e ignorou o sinal de proibido virar à direita, poupando assim vários minutos. Acelerou ao longo da Chelsea Bridge Road em direção à Sloane Street, sempre particularmente movimentada durante a hora de ponta. Chegaram aos semáforos da Sloane Square precisamente quando caiu o vermelho e ele entrou na faixa dos autocarros sem parar. Quando viraram à esquerda, passando pelos armazéns Peter Jones e continuando a descer a King’s Road, Ives desligou a sirene, mas manteve as luzes azuis a piscar.

— Não queremos que ele saiba que vamos a caminho, não é verdade? — disse. — Um erro que cometem muitas vezes nos filmes.

Virou para Blacklands Terrace, onde William avistou um homem jovem à porta da livraria, a agitar os braços. Saiu do carro e foi a correr ao seu encontro.

— Acabou de perder o seu homem. Não consegui empatá-lo mais tempo. É ele que vai ali, de gabardina bege, em direção à Sloane Square.

William olhou para onde o livreiro estava a apontar, mas já só viu o homem de relance, na altura em que dobrava a esquina.

— Obrigado! — gritou, enquanto empreendia a perseguição a pé.

Ia perscrutando continuamente a multidão à sua frente, mas tinha de serpentear entre os peões, pois já não tinha a ajuda da sirene. E foi então que viu um homem com uma gabardina bege. Preparava-se para o agarrar quando reparou que ele estava a empurrar um carrinho de bebé com uma mão e a segurar uma criança pequena com a outra.

William continuou a persegui-lo, menos confiante a cada passo, mas depois avistou outra gabardina bege a desaparecer na estação de metropolitano da Sloane Square. Quando chegou ao torniquete, mostrou a sua identificação, mas nem deu oportunidade ao fiscal de verificá-la, passando por ele a correr. Viu o homem já ao fundo da escada rolante, mas depois voltou a perdê-lo de vista. Desceu precipitadamente a escada rolante, afastando as pessoas que voltavam do trabalho ao final da tarde, e já estava quase a alcançá-lo quando ele virou à direita, em direção à linha do Leste.

William chegou à plataforma apinhada de gente no momento em que o metro chegava à estação. Olhou para a esquerda e para a direita e acabou por ver o homem a entrar, cerca de cinco carruagens mais à frente. William saltou para dentro da carruagem mais próxima quando as portas começavam a fechar, agarrou-se a um corrimão para se equilibrar e recuperou o fôlego. Quando o metro parou na estação seguinte, saiu, mas não viu aparecer nenhuma gabardina bege. Por isso, tal como o rei num tabuleiro de xadrez, foi avançando uma casa de cada vez, passando para a carruagem seguinte a cada paragem.

O passageiro de gabardina não se apeou e, quatro paragens depois, William já se encontrava na carruagem contígua. Escolheu um assento na parte da frente e espreitou pelo vidro da porta de separação, para observar mais atentamente a sua presa. O homem estava a virar uma página do Evening Standard e, quando pararam na estação seguinte, nem sequer levantou os olhos do jornal. Ia ser uma longa viagem.

Quando o homem dobrou o jornal, tinham parado vinte e uma vezes, o que dera tempo mais do que suficiente a William para ter a certeza de que estava a seguir o homem certo. Entre sessenta e sessenta e cinco anos, cabelo grisalho, ligeiramente curvado. Não precisava de lhe ouvir o sotaque para saber que era o mesmo cliente que o gerente da Hatchards lhe descrevera.

O homem saiu finalmente na estação de Dagenham East. William manteve a distância enquanto ele saía da estação. De início, conseguiu passar despercebido no meio da multidão, mas, à medida que os passageiros começaram a escassear, foi obrigado a ficar cada vez mais para trás. Ainda pensou na hipótese de prendê-lo ali mesmo, mas primeiro precisava de descobrir onde ele morava, para saber onde as provas estavam escondidas.

O homem virou numa rua secundária e parou junto a uma pequena cancela. William continuou a andar e anotou o número, 43, enquanto o homem abria a porta de casa e desaparecia lá dentro. Quando William chegou ao fundo da rua, acrescentou a Monkside Drive ao seu banco de memória e decidiu com relutância que talvez fosse mais prudente não tentar entrar na casa até informar o inspetor-chefe Lamont e obter um mandado de busca. Estava confiante de que o homem da gabardina bege não iria tão depressa a lado nenhum.

Deu meia-volta e encaminhou-se para a estação, sentindo-se triunfante, mas passados uns instantes o seu estado de espírito mudou. Olhou para o relógio: 19h21. Beth devia estar a pensar onde ele se tinha metido.

Correu até à estação, mas, enquanto esperava sozinho na plataforma fria e ventosa que aparecesse o próximo metro, sabia muito bem que nunca conseguiria estar em Kensington a horas da palestra do doutor Knox. O avanço aos solavancos entre cada paragem, que ele não notara durante a viagem até Dagenham devido à adrenalina e à concentração absoluta, pareceu-lhe interminável. O metro parou finalmente em South Kensington às 20h15. William subiu a escada rolante a correr, desembocando na Thurloe Place, mas quando chegou à entrada do Fitzmolean o edifício já estava às escuras.

Enquanto caminhava lentamente em direção à casa de Beth, começou a preparar um discurso para lhe explicar a razão de não ter aparecido a tempo para a palestra. Quando chegou à porta de entrada, já praticamente o decorara.

Ficou ali especado algum tempo até bater duas vezes com a aldraba. Passados uns instantes, a porta abriu-se e um homem jovem, alto e bem-parecido perguntou:

— Posso ajudá-lo?

William sentiu um calafrio.

— Queria falar com a Beth — deixou escapar, ao mesmo tempo que via aparecer uma figura em roupão, com o cabelo enrolado numa toalha.

— Entra, William — disse Beth. — Estou desejosa de saber por que motivo me deixaste pendurada. Será que encontraste o Rembrandt? Jez, enquanto seco o cabelo — disse ela para o jovem —, podes levar o William para a sala de estar e servir-lhe uma bebida? Não que ele a mereça.