11
— Chegou à livraria a tempo? — perguntou Lamont, quando William entrou no departamento na manhã seguinte.
— Sim, cheguei.
— Então, deteve-o?
— Não, senhor inspetor.
— E porquê?
— Quando consegui alcançá-lo, já ele estava no metro para Dagenham East. Decidi descobrir primeiro onde morava e voltar lá esta manhã com um mandado de busca.
— Cretino! — exclamou Lamont. — Devia tê-lo detido logo e feito a busca de imediato. Esperemos que não tenha de explicar ao Hawk porque é que ele desapareceu de um dia para o outro.
— Ele não vai a lado nenhum.
— E como pode ter a certeza disso, inspetor estagiário? É polícia e não vidente. Ele viu-o a segui-lo?
— Não me parece.
— Esperemos que não, porque não há dúvida que lhe deu tempo mais do que suficiente para destruir as provas, e até para fugir.
William sentiu-se como um aluno malcomportado a receber um sermão do diretor por não ter feito o trabalho de casa como devia ser.
— E já agora, meu rapaz, será que posso perguntar-lhe porque é que ainda está com a mesma roupa que tinha ontem?
— Acordei tarde e vesti a primeira coisa que encontrei. Não queria chegar atrasado.
— E também foi por isso que não fez a barba? — William baixou a cabeça. — Bem, espero que ela tenha valido a pena — disse Lamont —, porque você já tem problemas de sobra. Eu digo-lhe o que acontece agora. Vai para casa, toma um duche, faz a barba e troca de roupa, e volta daqui a uma hora, altura em que já terei obtido um mandado de busca à casa do suspeito. Depois vai com a inspetora Roycroft até Dagenham prender o suspeito, acusá-lo e reunir o máximo de provas possível, para termos a certeza de que o filho da mãe é condenado quando o caso for a tribunal. A seguir, escoltam-no até à esquadra local, onde ele pode ficar até ser presente a um juiz amanhã de manhã. E, Warwick, se ele tiver fugido ou destruído as provas, vai ter de responder perante o comandante e eu até sou capaz de sugerir que não lhe faria mal nenhum passar mais uns tempos como polícia de giro. Agora, toca a andar, antes que o tipo morra de velho.
Durante o caminho de regresso a Victoria, William não conseguia parar de pensar no que acontecera na noite anterior. Ele e Jez, o amigo que dividia o apartamento com Beth, tinham partilhado uma cerveja e Jez falara pelos dois, explicando que ele e Beth tinham sido colegas na universidade e que a sua relação era puramente platónica. William não precisou que lhe explicasse porquê.
Quando Beth se juntou a eles, ainda de roupão, Jez desapareceu rapidamente.
— Não precisavas de lavar o cabelo por minha causa — disse William.
— Não tentes safar-te — disse Beth, sentando-se ao lado dele no sofá. — Continuo a querer saber por que razão me deixaste pendurada.
William nem sequer chegou à parte de Dagenham antes de beijá-la pela primeira vez. E teria terminado a história da perseguição ao falsificador da assinatura de Churchill durante o pequeno-almoço se Beth não lhe tivesse lembrado que horas eram.
— Vou visitar a Galeria de Falsificações amanhã — disse, quando já se dirigia para a porta. — Queres ir comigo?
— Sim, partindo do princípio de que não ficas retido pelo Estrangulador de Boston.
Quando William se apresentou naquela manhã na Scotland Yard, tinha passado alguns minutos na casa de banho, a fazer o possível para ficar apresentável. Mas os seus fracos esforços não tinham enganado Lamont.
Assim que regressou ao seu quartinho na Trenchard House, tomou um duche, fez a barba e vestiu roupa lavada. Estava de volta à secretária passada uma hora, altura em que o seu chefe já tinha identificado o suspeito a partir da sua morada em Dagenham: tratava-se de um tal Cyril Amhurst. Lamont também obtivera um mandado de busca junto de um magistrado local.
— A Jackie vai acompanhá-lo — disse ele a William —, uma vez que precisa claramente de uma ama que lhe dê a mão. Para seu bem, esperemos que o senhor Amhurst não se tenha posto a andar.
William requisitou um dos carros do parque automóvel e rumou a leste, ao longo do Embankment e em direção a Dagenham, com a ama sentada no lugar do passageiro. Era a primeira vez que passavam tanto tempo juntos, tirando a ocasional sessão de confraternização no Tank, o famoso bar no rés do chão da Scotland Yard. Ele ainda não tinha conseguido descobrir a sala de snooker.
Enquanto atravessavam o East End, ficou a saber que Jackie era divorciada e tinha uma filha chamada Michelle, e também uma mãe compreensiva, o que lhe possibilitava ter a profissão de que gostava.
William não falou nos pais nem na irmã, mas disse a Jackie que tencionava visitar a Galeria de Falsificações em Notting Hill no dia seguinte, acompanhado de uma assistente de investigação do Fitzmolean.
— Foi por causa dela que se atrasou esta manhã?
— Sim — respondeu ele, virando-se para olhar pela janela.
— Nesse caso, esperemos que ela seja uma pessoa compreensiva.
— O que quer dizer com isso?
— Há mais separações nas forças policiais do que em qualquer outra profissão. Ainda adoro o meu ex-marido, mas ele fartou-se de nunca saber quando eu chegaria a casa, se chegasse, e por isso encontrou outra pessoa que voltava sempre a horas para o jantar, e não para o pequeno-almoço. A propósito, talvez seja melhor dizer ao chefe que planeia visitar a Galeria de Falsificações amanhã.
— Porquê? É o meu dia de folga.
— Mesmo assim, ele não gosta de descobrir coisas por terceiros.
— Obrigado pelo conselho — disse William, enquanto chegavam a Dagenham.
Tinha ficado a saber mais sobre Jackie nos últimos quarenta minutos do que durante o mês anterior.
— O que fazemos se ele não estiver em casa? — perguntou, quando pararam à porta do número 43 da Monkside Drive.
— Esperamos até aparecer. Muito do trabalho policial consiste simplesmente em esperar.
— Toco eu ou você? — perguntou ele, enquanto percorriam o caminho da entrada.
— Você, uma vez que é o agente encarregado do caso.
William estava nervoso quando bateu à porta e, à medida que os segundos passavam, começou a temer o pior. Preparava-se para voltar para o carro quando a porta se abriu.
— Senhor Cyril Amhurst?
— Sim — disse o homem com um sorriso caloroso. — Em que posso ajudá-los?
— Sou o inspetor Warwick e esta é a minha colega, a inspetora Roycroft. — Exibiram ambos a identificação, fazendo com o que o sorriso de Amhurst se evaporasse. — Podemos entrar?
— Sim, claro — respondeu ele, de forma menos calorosa. Levou-os até à sala, mas não se sentou. — Então, de que se trata?
— Recebemos queixas de várias livrarias londrinas, que alegam que o senhor lhes tem vendido exemplares autografados da obra The Second World War, de Winston Churchill.
— Não sabia que isso era crime.
— É, quando a assinatura é sua e não de Sir Winston — disse Jackie com firmeza.
— Devo igualmente informá-lo — acrescentou William — de que estou na posse de um mandado de busca domiciliária.
Amhurst ficou lívido e deixou-se cair no sofá. Por um momento, William pensou que o homem ia desmaiar.
Ele e Jackie passaram as duas horas seguintes a levar a cabo a sua tarefa, de maneira a que ficasse sempre um deles na sala, onde Amhurst continuava sentado no sofá com ar resignado. William depressa percebeu que a inspetora Roycroft já efetuara aquele procedimento muitas vezes.
— Querem um chá? — perguntou Amhurst, enquanto um pequeno monte de livros no meio da sala se transformava numa montanha.
— Não, obrigado — replicou William, colocando dois frascos de tinta preta Waterman ao lado de várias folhas de papel pautado com a assinatura de Winston S. Churchill, linha após linha.
Quando Jackie considerou que o trabalho estava concluído a seu contento, tinham ambos desencantado várias preciosidades, incluindo os seis volumes da obra The Second World War, de Churchill, três dos quais assinados, assim como livros de Lewis Carrol, do marechal de campo Montgomery e do presidente Eisenhower, por assinar. Mas o prémio supremo foi uma primeira edição de Um Conto de Natal, assinada por Charles Dickens.
Depois de Jackie ter guardado cada um dos itens no respetivo saco de prova e de os ter identificado, William prendeu o senhor Amhurst e advertiu-o.
— Vou para a prisão? — perguntou Amhurst, ansioso.
— Para já, não. Mas terá de nos acompanhar à esquadra de Dagenham, onde será interrogado e, possivelmente, acusado. Nessa altura, o oficial de detenção decidirá se terá ou não direito a fiança. Para jogar pelo seguro, recomendo-lhe que faça a mala para uma noite.
Amhurst não conseguia parar de tremer.
William e Jackie escoltaram-no até à esquadra local, registaram-no e entregaram as provas ao agente de serviço. Quando Amhurst foi acusado, não fez qualquer comentário, a não ser perguntar se podia telefonar ao seu advogado. Estavam a tirar-lhe as impressões digitais e a fotografá-lo quando William e Jackie saíram para fazer a viagem de regresso à Scotland Yard.
Depois de William ter depositado as chaves do carro no parque de veículos, foi ter com Jackie à receção e apanharam o elevador para o quinto andar. Ao saírem para o corredor, ele reparou que ainda havia luz debaixo da porta do comandante.
— Acha que ele a deixa acesa, mesmo depois de sair?
— Não me surpreenderia — replicou Jackie. — Mas nunca iremos descobrir.
Quando entraram no departamento, Lamont estava ao telefone, mas, assim que desligou, recostou-se e ouviu o relato de ambos.
— Teve sorte, William — disse, quando eles chegaram ao fim. — Certifique-se apenas de que não volta a cometer um erro tão estúpido. E lembre-se de que as suas responsabilidades neste caso ainda não acabaram. Se o Amhurst se declarar inocente, será chamado para prestar depoimento.
— Com certeza que vai declarar-se culpado — disse William. — As provas são irrefutáveis.
— Nunca se pode contar com isso. Nem imagina os casos garantidos que já perdi. Mas admito que este parece bastante sólido. A propósito, o chefe da guarda prisional Rose telefonou de Pentonville. Quer que lhe dê uma apitadela.
Depois de William voltar para a sua secretária, ficou sentado em silêncio durante alguns momentos, com muitos pensamentos diferentes às voltas na sua cabeça: Amhurst, seguido de Beth, por sua vez substituída por Rose. Agarrou no telefone, marcou o número do Estabelecimento Prisional de Pentonville e pediu para falar com o chefe dos guardas.
— Rose.
— Daqui fala Warwick, a devolver-lhe a chamada.
— Está com sorte, inspetor Warwick. — William abriu o bloco de apontamentos. — Entre nove e trinta de abril, houve três mulheres chamadas Angie que visitaram reclusos em Pentonville: Angie Oldbury, Angela Ibrahim e Angie Carter.
— Se me pudesse dar os dados das três…
— Não é necessário — disse Rose —, porque um dos reclusos que foi visitado por uma Angie ainda está cá e outro era negro, pelo que tenho a sensação de que o Appleyard teria dado por isso. O terceiro foi libertado há mais de um ano.
— Qual é o nome dele?
— Um pouco de paciência, jovem. Aquele que lhe poderá interessar é um patifezeco chamado Kevin Carter, que reside em Barnstaple. Fica em Devon, caso não saiba. É gravador durante o dia e ladrão à noite. E pronto, agora é a sua vez de provar que é digno do prefixo que acompanha o seu nome.
— Vou já tratar disso.
— E deu os meus cumprimentos ao seu chefe?
— Dei, sim, senhor.
— E o que disse ele?
— Acho melhor perguntar-lhe pessoalmente.
— Foi assim tão mau, hem? — comentou Rose, e desligou.
William redigiu um memorando pormenorizado da sua conversa com Rose e entregou-o ao chefe.
— E qual é a palavra que salta à vista? — perguntou Lamont depois de ter lido o relatório.
— Gravador.
— Está a aprender depressa — disse o inspetor-chefe. — Embora Carter e Barnstaple também sejam boas candidatas. — Girou a cadeira. — Jackie, é melhor juntares-te a nós.
Depois de a inspetora Roycroft se instalar, com a inevitável esferográfica em punho e o bloco de apontamentos aberto, Lamont prosseguiu — Vocês os dois vão ter de passar pelo menos dois dias no Sudoeste, a vigiar o Carter. Preciso que descubram o que está ele a tramar e o que anda a gravar na prata que comprou nos Silver Vaults. E porque é que passou de repente a comprador, quando normalmente se limita a gamar o material. Uma vez que não tem dinheiro para isso, alguém deve andar a financiá-lo. Mas quem?
— E é para irmos quando? — perguntou Jackie.
— O mais cedo possível. A menos que tenham alguma coisa mais importante que vos faça ficar em Londres…
— Eu sou capaz de ter — disse William. — Conheci recentemente uma investigadora que trabalha no Fitzmolean e, embora não tenha ficado a saber muito mais acerca do roubo do Rembrandt, ela sugeriu que visitasse a Galeria de Falsificações, em Notting Hill, coisa que tencionava fazer amanhã de manhã.
— Porquê? — resmoneou Lamont.
— Na hipótese remota de poder ver uma obra semelhante realizada pelo artista que fez a cópia do Rembrandt.
— Vale a pena tentar — disse o inspetor-chefe. — E leve a jovem investigadora consigo, sobretudo se tiver sido por causa dela que chegou atrasado esta manhã.
Jackie reprimiu um sorriso.
— Então, está combinado — concluiu Lamont. — Na segunda-feira de manhã, a primeira coisa que fazem é ir até Barnstaple.
— Posso perguntar-lhe como está a correr o caso do contrabando de diamantes? — indagou William.
— Não se arme em atrevido comigo, inspetor estagiário, senão é muito bem capaz de estar de volta a Lambeth a tempo do turno da noite.
— Tenho um caso interessante que talvez te agrade — disse Clare, entregando um dossiê identificado como PARTICULAR.
Grace analisou demoradamente a avaliação que a sua assistente jurídica fizera do caso e, por fim, perguntou:
— Mas com certeza que, dadas as circunstâncias, o juiz presidente não iria permitir que o julgamento fosse por diante, não é verdade?
— Há um precedente — disse Clare. — O Meritíssimo Havers permitiu que o filho e a filha comparecessem diante dele, um na qualidade de procurador e o outro na de advogado de defesa. Mas só depois de o arguido ter concordado com isso.
— Não é o meu género de caso — confessou Grace, enquanto lia os termos da acusação uma segunda vez. — Mas confesso que acho o desafio irresistível. E aposto que o meu pai não iria levantar nenhuma objeção.
— Contaste-lhe sobre nós? — perguntou Clare, tentando não parecer muito ansiosa.
— Não entrei em pormenores.
— E alguma vez irás fazê-lo? — disse Clare com um suspiro, e depois acrescentou: — Procurei a palavra «reacionário» no dicionário e descobri que o nome do teu pai figurava nas notas de rodapé.
Grace riu-se.
— Já contei tudo à minha mãe, e ela não podia ter sido mais compreensiva. Perguntou se gostarias de almoçar connosco no domingo e deixar que o meu pai perceba por si mesmo…
— Quem achas que o teu pai gostaria mais de propor como membro do Garrick3? Um assassino em massa ou uma lésbica?
— Em massa, não tenho a certeza — disse Grace, enquanto pousava o dossiê na mesa de cabeceira e desligava a luz.
3 Clube de cavalheiros londrino que não aceita mulheres como membros. (N. da T.)