18
Beth telefonou para casa de William no domingo à noite para pedir desculpa, explicar que tivera de ir visitar uma amiga ao hospital e que tinha ficado com receio de lhe telefonar para o trabalho.
— Claro que podes telefonar, se for alguma coisa suficientemente importante para me tirar o sono — disse ele.
— Podes vir jantar amanhã?
— Desde que não apareça mais nenhum imprevisto! — disse William, lamentando a dureza da réplica assim que desligou o telefone.
Na segunda-feira de manhã, foi o primeiro a chegar ao trabalho. Sentou-se à secretária e preparava-se para abrir um dos dossiês dos seus casos quando o telefone tocou. Reconheceu imediatamente a voz do outro lado da linha.
— William, pediu-me que o avisasse assim que o Carter obtivesse a licença para procurar o Patrice — disse o tenente Monti. — O pedido foi deferido esta manhã e remetido para a morada dele. Por isso, deve chegar-lhe às mãos no final da semana.
— Obrigado, Toni. Vou dizer imediatamente ao meu chefe.
— Dizer-me o quê? — perguntou Lamont, que tinha acabado de entrar na sala.
— O Carter obteve a sua licença de exploração. Portanto, é capaz de avançar dentro de dias.
— Vou ligar para a polícia de Devon e pedir-lhes que o vigiem. Também vou avisar o Jim Travers da British Airways para ficar atento e nos informar quando surgir uma reserva em nome do Carter. Não devia ir já a caminho?
— A caminho?
— Tem de estar no tribunal de Snaresbrook esta manhã para prestar depoimento. Recebemos uma chamada depois de se ter ido embora na sexta-feira à tarde, a dizer que, para surpresa geral, o Cyril Amhurst se declarou inocente e a audiência tem lugar esta manhã. É melhor ir andando se não quiser perder o seu primeiro caso antes de o juiz declarar aberta a sessão.
William tirou rapidamente o dossiê Amhurst-Churchill da gaveta da secretária e voltou a vestir o casaco.
— Certifique-se de que ele vai dentro por vinte anos — disse Lamont.
— No mínimo — disse Jackie, que apareceu precisamente quando ele se dirigia para a porta.
A longa viagem de metro até Snaresbrook deu a William oportunidade de voltar a familiarizar-se com os pormenores do caso. Porém, quando chegou à última página do dossiê, continuava sem perceber por que motivo Amhurst se declarara inocente.
O metro chegou à estação pouco depois das 9h45 e, assim que saiu para a rua, William perguntou a um vendedor de jornais o caminho para o tribunal. Seguiu as indicações do homem e não tardou a ver um edifício imponente que se erguia ameaçadoramente à sua frente. Subiu a escadaria a correr e abriu a porta pouco antes das dez horas. Consultando o calendário do tribunal, viu que o caso que opunha a Coroa a Amhurst estava agendado para as dez horas, na sala de audiências número cinco. Subiu a correr mais outro lanço de escadas até ao primeiro andar, onde encontrou um homem ainda novo, que envergava uma comprida toga preta e segurava uma peruca, a andar de um lado para o outro com ar preocupado.
— É o doutor Hayes? — perguntou William.
— Sim, e espero que você seja o inspetor estagiário Warwick.
William acenou afirmativamente.
— A primeira coisa que lhe devo dizer — disse Hayes — é que, como o caso Amhurst foi agendado tão em cima da hora, posso requerer um adiamento e conseguir que o julgamento seja marcado para uma data posterior.
— Não, vamos despachar isto — disse William. — Esse desgraçado não tem nada a que se agarrar.
— Concordo, mas, como o seu testemunho ainda pode vir a ser crucial, vou explicar-lhe rapidamente os pontos que considero mais importantes.
— Quando pensa que nos irão chamar? — perguntou William, enquanto se sentavam num banco à porta da sala de audiências número cinco.
— Antes de nós, ainda vão ser apreciados dois pedidos de fiança e um pedido de licença para venda de bebidas alcoólicas. Por isso, devem chamar-nos por volta das dez e meia.
Depois de Hayes lhe explicar tudo o que queria, William sentiu-se ainda mais confiante de que Amhurst não tinha como se safar, embora tivesse confessado a Hayes que esta seria a primeira vez que testemunhava num julgamento.
— Tenho a certeza de que vai sair-se bem — disse o advogado. — Agora, tenho de entrar para preparar a mesa na sala de audiências. Deixe-se ficar aqui sentado até virem chamar pelo seu nome.
William não ficou sentado. Começou a andar de um lado para o outro no corredor, sentindo-se mais nervoso a cada minuto que passava. Por fim, o oficial de diligências veio cá fora e anunciou:
— Inspetor estagiário Warwick.
William seguiu-o nervosamente até ao interior da sala de audiências. Passou pelo arguido e, sem olhar para ele, dirigiu-se para o banco das testemunhas.
O funcionário judicial pôs-lhe uma Bíblia à frente e William fez o juramento, aliviado ao perceber que a sua voz revelava uma segurança que estava longe de sentir. Porém, quando o doutor Hayes se levantou do seu lugar, a réstia de confiança que ele possuía evaporou-se.
— Inspetor estagiário Warwick, queira fazer o favor de relatar ao tribunal como é que se viu envolvido neste caso.
William começou por descrever o encontro que tivera com o senhor Giddy, o gerente da Hatchards, e como este lhe dera conta do receio de lhe terem vendido a obra The Second World War, de Winston Churchill, com assinatura falsificada. Em seguida, relatou ao tribunal as suas visitas a outras livrarias, nas quais comprovara que uma série delas tinha recebido idêntica proposta e algumas tinham efetivamente comprado a obra, num total de vinte e dois volumes das memórias de Churchill alegadamente assinados pelo antigo primeiro-ministro.
— E o que aconteceu a seguir? — perguntou Hayes.
— Recebi um telefonema de um livreiro da John Sandoe Books, em Chelsea, a dizer-me que o suspeito tinha voltado e, por isso, fui direito à loja. Mas ele tinha acabado de sair.
— Nesse caso, perdeu-o de vista?
— Não. O livreiro conseguiu mostrar-me quem era, enquanto o homem em causa seguia em direção à Sloane Square. Fui em sua perseguição e estava quase a apanhá-lo quando ele desapareceu na estação de metropolitano da Sloane Square. Continuei a persegui-lo e consegui entrar no metro onde ele se encontrava quando as portas já estavam a fechar.
— E depois o que aconteceu?
— O suspeito apeou-se em Dagenham East, onde o segui até uma casa na Monkside Drive. Tomei nota da morada e depois apanhei o metro de volta à Scotland Yard. No dia seguinte, obtive um mandado de busca para a casa do arguido, onde encontrei uma série de livros autografados, incluindo um conjunto completo da obra de Winston Churchill, The Second World War, em que três dos livros estavam assinados, e várias folhas de papel com a assinatura manuscrita de Churchill, linha após linha.
— Está tudo na lista de provas, Meritíssimo — disse Hayes, antes de se virar novamente para a testemunha. — E descobriu mais alguma coisa relevante?
— Sim. Encontrei uma primeira edição de Um Conto de Natal, assinada por Charles Dickens.
— Meritíssimo — disse Hayes —, também isso está incluído no conjunto entregue ao tribunal. Talvez o júri queira dar-se ao trabalho de examinar as provas.
O juiz anuiu e os elementos do júri analisaram demoradamente os livros, assim como as páginas com a assinatura de Churchill, antes de devolverem tudo ao funcionário judicial.
— E o que fez a seguir, inspetor estagiário Warwick?
— Prendi o senhor Amhurst e acompanhei-o à esquadra de Dagenham, onde foi posteriormente acusado dos crimes de fraude e falsificação.
— Obrigado, inspetor estagiário Warwick. Não tenho mais perguntas para esta testemunha, Meritíssimo — disse Hayes, e sentou-se.
William sentiu-se aliviado por aquele suplício ter chegado ao fim. Não tinha sido tão mau quanto receara. Preparava-se para sair do banco das testemunhas quando Hayes voltou a levantar-se de um salto e disse:
— Fique onde está, por favor, inspetor estagiário, pois desconfio que a minha ilustre colega quererá fazer-lhe uma ou duas perguntas.
— Pode ter a certeza de que quero — disse a advogada de defesa, levantando-se do seu lugar, na outra ponta da mesa.
William fitou-a, incrédulo.
— Antes de começar o contrainterrogatório, Meritíssimo, devo informar o tribunal de que esta testemunha é meu irmão.
O juiz inclinou-se para a frente e olhou mais atentamente, primeiro na direção de Grace e depois na de William, mas não fez nenhum comentário.
— Posso assegurar ao tribunal que nem a minha assistente nem o meu cliente se sentem incomodados com esta situação pouco habitual. Mas, como é óbvio, é possível que o meu distinto colega ou até mesmo a testemunha se sintam. E, se assim for, retiro-me e deixo que seja a minha assistente a conduzir o contrainterrogatório.
O doutor Hayes levantou-se rapidamente.
— Creio que essa seria a solução mais simples, Meritíssimo.
— Possivelmente — replicou o juiz. — Mas estou mais interessado em ouvir a opinião do inspetor estagiário Warwick.
William recordou as palavras do pai: «A Grace só aceita casos perdidos… e nunca ganha.»
— Venha ela — murmurou, olhando para a irmã com ar de desafio.
— Como disse? — indagou o juiz.
— Não me incomoda nada que seja a minha irmã a conduzir o contrainterrogatório, Meritíssimo.
— Nesse caso, pode prosseguir, doutora Warwick.
Grace fez uma vénia, endireitou a toga e virou-se para a testemunha. Brindou-o com um sorriso caloroso, que ele não retribuiu.
— Inspetor estagiário Warwick, permita-me que comece por dizer como gostei da animada descrição que nos fez sobre a perseguição que moveu ao meu cliente através de meia Londres, acabando por não o prender e voltar antes na manhã seguinte para uma segunda tentativa. Parecia um episódio de Keystone Cops, o que pode levar o júri a perguntar-se: há quanto tempo é inspetor? — William hesitou. — Não seja tímido. Estamos a falar de semanas, meses ou anos?
— Três meses.
— E foi esta a sua primeira detenção enquanto inspetor estagiário?
— Sim — admitiu ele com relutância.
— Importa-se de falar mais alto? Não tenho a certeza se o júri terá ouvido a sua resposta.
— Sim, foi — disse William, agarrando-se ao gradeamento do banco das testemunhas.
— Bem, tenho curiosidade em saber uma coisa: tendo perseguido o meu cliente de Chelsea a Dagenham, por que razão não o prendeu muito antes de ele chegar à segurança da sua casa?
— Precisava de obter um mandado de busca para entrar em casa dele.
— Isto está a ficar cada vez mais curioso — disse Grace. — Porque podia muito bem ter detido o senhor Amhurst assim que ele saiu do metro, em Dagenham East, tê-lo levado à esquadra local e obtido uma autorização do agente graduado de serviço, ao abrigo do artigo décimo oitavo, para realizar a busca domiciliária nesse mesmo dia.
William sabia que ela tinha razão, mas não podia admitir que tinha cometido um erro tão básico e, por isso, ficou em silêncio.
— Presumo, senhor inspetor estagiário, que tenha lido o artigo décimo oitavo da Lei da Polícia e da Prova Penal de 1984, que lhe dá o poder de revistar a casa de um suspeito na sequência de uma detenção, certo?
Várias vezes, teve ele vontade de lhe responder, mas continuou sem dizer nada.
— Como não parece disposto a responder à minha pergunta, senhor inspetor estagiário, será que posso presumir que não teve receio de que o meu cliente destruísse as provas ou se ausentasse do local antes de lá regressar na manhã seguinte?
— Mas eu sabia que ele não me tinha visto — disse William, tentando defender-se.
— Sabia mesmo? Lembra-se do que o senhor Amhurst disse quando o viu a si e a uma colega sua chegarem no dia seguinte com um mandado de busca domiciliária? — Grace segurou as lapelas da toga, ajustou a peruca e olhou fixamente para o irmão, esboçando o mesmo sorriso desarmante antes de perguntar: — Ajudaria se lhe refrescasse a memória? — E prolongou o embaraço de William esperando um pouco mais até virar-se para o júri. — Ele disse: «Querem um chá?»
Algumas pessoas que estavam a assistir começaram a rir. O juiz franziu-lhes o sobrolho.
— Não concorda que não parece a reação de um homem culpado, com medo de ser detido e mandado para a prisão? — persistiu Grace.
— Sim, mas…
— Se pudesse responder apenas ao que lhe é perguntado, senhor inspetor estagiário, e abster-se de dar opiniões pessoais, seria muito mais vantajoso.
William estava espantado com a ferocidade do ataque dela e certamente não se encontrava preparado para a pergunta seguinte.
— É perito em reconhecer assinaturas falsificadas ou partiu simplesmente do princípio de que o meu cliente era culpado?
— Não, não parti. Havia depoimentos escritos de nove livreiros a quem o senhor Amhurst tinha proposto a venda de edições autografadas por Churchill da sua obra em seis volumes sobre a Segunda Guerra Mundial.
— Infelizmente, nenhum deles, incluindo o gerente da Hatchards, que apresentou a queixa original, conseguiu arranjar tempo para vir hoje a tribunal prestar depoimento. Por acaso, esteve na Hatchards no sábado de manhã?
— Não — disse William, intrigado com a pergunta.
— Se lá tivesse estado, senhor inspetor estagiário, podia ter conseguido um exemplar do último romance de Graham Greene, O Décimo Homem, porque o autor autografou para cima de cem exemplares antes de ir assinar mais livros em várias outras livrarias do West End. Ora, sendo Sir Winston um político, não me parece que tivesse problemas em assinar um ou outro exemplar das suas obras.
Um ou dois dos elementos do júri acenaram com a cabeça.
— Mas encontrámos outros livros… — balbuciou William, ainda a tentar dar luta. — Não se esqueça, por exemplo, da primeira edição de Um Conto de Natal, autografada por Charles Dickens.
— Ainda bem que mencionou o livro de Dickens — disse Grace —, porque o meu cliente há muito que guarda essa relíquia de família, que lhe foi deixada pelo falecido pai, razão pela qual nunca lhe teria passado pela cabeça vendê-la. Na verdade, o tribunal pode estar interessado em saber que o meu cliente está na posse do recibo original da compra do livro, datado de dezanove de dezembro de 1843, pelo preço de cinco xelins.
O doutor Hayes levantou-se rapidamente.
— Meritíssimo, sou obrigado a protestar. Este documento não consta das provas disponibilizadas pela defesa.
— Há uma explicação simples para isso, Meritíssimo — ripostou Grace. — O meu cliente anda à procura do recibo desde o dia em que foi detido, mas o inspetor estagiário Warwick e a colega deixaram a casa numa confusão tal, que só esta manhã o encontrou.
— Que conveniente! — disse Hayes, suficientemente alto para o júri ouvir.
O juiz franziu o sobrolho, mas não o repreendeu e, mais uma vez, o júri examinou demoradamente o recibo.
— Espero, senhor inspetor estagiário Warwick — disse Grace, depois de William ter olhado rapidamente para o recibo —, que não vá sugerir que o meu cliente também falsificou isso…
Vários jurados começaram a conversar entre si enquanto Hayes anotava qualquer coisa no seu bloco.
Grace sorriu para o irmão e disse:
— Não tenho mais perguntas para esta testemunha, Meritíssimo.
— Obrigado, doutora Warwick — disse o juiz. — Talvez seja uma boa altura para suspender a sessão até depois do almoço.
— Ainda não fomos derrotados — disse Hayes, enquanto comia uma salada César na cantina.
— Mas não ajudei propriamente a nossa causa — replicou William, incapaz de comer. — Devia ter recordado à minha irmã as folhas com a assinatura de Churchill que encontrámos em casa do Amhurst.
— Não se preocupe. Quando o Amhurst se sentar no banco das testemunhas, vou relembrar ao júri as assinaturas falsificadas vezes sem fim.
— E estou perplexo com aquele recibo — disse William. — Porque é que não o encontrámos quando revistámos a casa?
— Porque desconfio que não estava lá. O mais provável é o Amhurst tê-lo comprado muito recentemente para se precaver. Uma questão que irei colocar-lhe sob juramento.
William olhou de relance para a irmã, que estava a almoçar do outro lado da cantina com a advogada assistente, que ele desconfiava ser Clare. Mas nenhuma delas olhou uma vez que fosse na sua direção.
Quando o tribunal voltou a reunir, o juiz Gray perguntou à advogada de defesa se queria chamar a sua primeira testemunha. A doutora Warwick levantou-se e disse:
— Não tenciono chamar nenhuma testemunha, Meritíssimo.
Um murmúrio percorreu a sala de audiências. William inclinou-se para a frente e segredou ao ouvido de Hayes:
— Então, se o Amhurst não vai testemunhar, isso não levará o júri a presumir que é culpado?
— É possível, mas não se esqueça de que a sua irmã terá a última palavra. E, se fosse eu que estivesse a representar o Amhurst, ter-lhe-ia dado o mesmo conselho.
O juiz focou a sua atenção no advogado de acusação.
— Doutor Hayes, está pronto para recapitular o caso em nome da Coroa?
— Sem dúvida, Meritíssimo — disse Hayes, erguendo-se e colocando as suas conclusões no pequeno suporte diante de si. Tossiu, ajustou a cabeleira e virou-se para o júri. — Senhores jurados, mas que fascinante se revelou este caso… embora talvez sintam que estão a assistir a uma representação de Hamlet sem o príncipe. Deixem-me começar por vos perguntar por que razão a advogada de defesa nunca mencionou no contrainterrogatório ao inspetor estagiário Warwick as folhas com assinaturas de Winston Churchill que foram encontradas em casa do arguido, feitas em folhas rasgadas de um bloco pautado da W. H. Smith de quarenta e nove pence. Creio que podemos presumir que não foram assinadas pelo grande líder, quanto mais não seja porque ele morreu antes da introdução do sistema decimal.
»Também sabemos que o inspetor estagiário Warwick encontrou em casa do arguido um conjunto completo da obra de Churchill, The Second World War, em que três dos seis volumes estavam autografados e os outros três não. — Hayes fez uma pausa. — Talvez fossem os próximos da sua lista?
Um ou dois jurados recompensaram-no com um sorriso.
— E, a seguir, têm de ter em conta o exemplar assinado de Um Conto de Natal, de Charles Dickens. A advogada de defesa quis levar-vos a crer que se trata de uma relíquia de família, transmitida de geração em geração. Não acharam isso demasiado conveniente? Não será mais provável que o senhor Amhurst tenha comprado um exemplar não assinado de Um Conto de Natal, juntamente com o recibo original, numa das suas muitas visitas às livrarias de Londres? Também devem perguntar-se por que razão dois inspetores da Scotland Yard, tendo levado a cabo uma busca meticulosa à residência do senhor Amhurst, não encontraram o tal recibo.
»Tenho todo o gosto em deixar-vos decidir — prosseguiu Hayes, sem nunca desviar os olhos do júri — se preferem acreditar na versão mais romântica sugerida pela minha douta colega, ou na versão mais provável, sustentada pelos factos. Estou confiante de que o bom senso irá prevalecer.
Quando Hayes retomou o seu lugar na mesa, William teve vontade de aplaudir e sentiu que tinham voltado a ter uma hipótese. O juiz olhou para a advogada de defesa e perguntou se ela estava pronta para apresentar os seus argumentos.
— Mais do que pronta, Meritíssimo — replicou Grace, levantando-se e olhando diretamente para o júri durante algum tempo antes de falar.
Começou por lhes lembrar que, na lei inglesa, era uma prerrogativa do arguido não se sentar no banco das testemunhas, o que poderia ter-se revelado uma provação enorme para «este cavalheiro idoso e frágil».
— Ele só tem sessenta e dois anos — murmurou Hayes, mas Grace continuou, ignorando o remoque.
— Consideremos então aquela que é, sem dúvida, a prova crucial neste caso. Partindo do princípio de que o senhor Amhurst é culpado das acusações e estava na posse de uma primeira edição autografada da obra Um Conto de Natal, porque é que não a tentou vender, já que teria conseguido um valor dez vezes superior ao do conjunto de livros autografados por Churchill sobre a história da Segunda Guerra Mundial? Eu digo-vos porquê: porque não estava disposto a separar-se de uma relíquia de família, que a seu tempo passará para a geração seguinte.
— Ele não tem filhos — segredou William ao ouvido de Hayes.
— Devia ter-me dito isso mais cedo.
— Ontem à noite, ilustres membros do júri — prosseguiu Grace —, enquanto estava a preparar este caso, perdi algum tempo a calcular quanto o senhor Amhurst ganharia se tivesse vendido os três volumes das memórias de Churchill que o inspetor estagiário Warwick apresentou como prova, alegando que a assinatura era falsa. Ronda pouco mais de cem libras. Por isso, senhoras e senhores jurados, dificilmente se poderá considerar o crime do século! Contudo, por razões que só ela conhece, a Scotland Yard optou por cair em cima do senhor Amhurst com toda a força da lei. Se acreditarem para lá de toda a dúvida razoável — sublinhou ela — que a Coroa provou que Cyril Amhurst é um falsificador e um vigarista consumado, então ele deve passar o Natal na prisão. Mas se considerarem, como acredito que farão, que a Coroa não provou as suas acusações, irão seguramente libertá-lo desta provação e permitir-lhe que, tal como o pai do pequeno Tim, passe o Natal no seio da sua família.
Quando Grace se sentou, Hayes virou-se e segredou a William:
— Mas que profissional! Quem sai aos seus, não degenera. O seu pai teria ficado orgulhoso dela.
— Mas não do filho — sibilou William, que estava capaz de matar a irmã.
O juiz resumiu o caso de forma justa e imparcial. Apresentou os factos, sem tentar influenciar o júri num sentido ou noutro. Deu considerável ênfase às folhas com a assinatura de Churchill, para as quais não tinha sido dada qualquer explicação, mas também sublinhou que a Coroa não apresentara provas de que o livro Um Conto de Natal não era uma relíquia de família. Depois de concluir o seu resumo, deu instruções ao júri para se retirar e dar o seu veredito.
Mais de duas horas depois, os sete homens e as cinco mulheres regressaram à bancada do júri. Depois de se acomodarem, o funcionário judicial pediu ao porta-voz que se levantasse. Uma mulher forte e com ar determinado, vestindo um elegante fato de xadrez bastante justo, ergueu-se num dos extremos da primeira fila.
— Senhora porta-voz do júri, conseguiram chegar a um veredito unânime?
— Sim, Meritíssimo.
— Em relação à primeira acusação, de falsificação, nomeadamente da assinatura de Sir Winston Churchill em dezoito livros, com a intenção de ludibriar o público e ganhar dinheiro, consideram o arguido culpado ou inocente?
— Inocente — replicou ela com firmeza.
— E em relação à segunda acusação, de estar na posse de um livro com a assinatura falsificada de Charles Dickens, com a intenção de ludibriar o público e ganhar dinheiro, consideram o arguido culpado ou inocente?
— Inocente.
— E em relação à terceira acusação, de possuir três volumes da obra The Second World War com a assinatura falsificada de Sir Winston Churchill, consideram o arguido culpado ou inocente?
— Culpado.
Enquanto algumas das pessoas presentes na sala de audiências manifestavam a sua surpresa, William soltou um suspiro de alívio. Poderia regressar ao trabalho no dia seguinte, senão triunfante, pelo menos não tendo de admitir ser um fracasso total.
— Queira fazer o favor de se levantar o arguido — disse o funcionário judicial.
Amhurst levantou-se, com a cabeça ligeiramente baixada.
— Cyril Amhurst, foi considerado culpado de um crime grave, pelo qual o condeno a um ano de prisão.
William tentou não sorrir.
— No entanto, como não tem antecedentes criminais e este é o seu primeiro delito, a pena será suspensa por dois anos, durante os quais recomendo que não visite demasiadas livrarias. É livre de sair do tribunal.
— Obrigado, Meritíssimo — disse Amhurst, antes de sair do seu lugar e dar um longo abraço à sua advogada.
William apertou a mão a Hayes e agradeceu-lhe o esforço heroico.
— A sua irmã foi brilhante — admitiu Hayes. — Quase sem nada para jogar, ganhou-nos por dois a um e, no final, até conseguiu que o árbitro decidisse a seu favor. Se voltar a cruzar-me com ela, não cometerei o mesmo erro.
— Nem eu — retorquiu William, e saiu de mansinho da sala de audiências.
Encontrou Grace no corredor à sua espera, que lhe fez aquele sorriso que ele conhecia tão bem.
— Tens tempo para tomar qualquer coisa, mano?
Nessa noite, durante o jantar, William contou a Beth exatamente o que tinha acontecido em tribunal. Ela desatou a rir e disse:
— És um perfeito idiota.
— Concordo. Até estou com receio de ir trabalhar amanhã. Se não voltar ao policiamento de rua, podes ter a certeza de que vou ser condenado ao cepo.
— Vais ser o bobo da corte, isso sim! — disse Beth. — Quem me dera ter estado lá, para ver a tua cara quando o juiz decidiu suspender a pena.
— Graças a Deus que não estavas! Mas, se voltar a defrontar a minha irmã, hei de certificar-me de que vou mais bem preparado.
— E ela também irá.
— Afinal, de que lado estás?
— Ainda não decidi, porque ainda não me contaste como é que te saíste quando visitaste o Eddie Leigh, em Pentonville.
William pousou a faca e o garfo e descreveu o encontro com todos os pormenores. Quando chegou ao fim, a única coisa que Beth disse foi:
— Gema de ovo. Isso mais do que compensa os teus fracos esforços no banco das testemunhas esta manhã. Mas achas mesmo que o Leigh sabe onde está o Rembrandt?
— Tenho quase a certeza de que sim, porque ele e o Faulkner frequentaram a Slade ao mesmo tempo. Mas nós somos as últimas pessoas a quem ele irá contar. Na verdade, até estou à espera de que se arrependa de ter ido tão longe como foi.
— Talvez fiques a saber mais quando levares amanhã a cópia a casa do Faulkner.
— Talvez não passe do portão da entrada.