23
William chegou uns minutos antes da hora marcada ao número 31A da Wimpole Street e premiu a campainha que dizia «Doutor Ashton». Sentia-se confiante de que passaria o exame médico sem problemas. No fim de contas, corria duas ou três vezes por semana, jogava squash regularmente e o seu novo objetivo de caminhar dez quilómetros por dia era normalmente alcançado à noite, quando regressava a Fulham a pé.
— A única coisa que tem de fazer, rapaz — dissera-lhe Lamont —, é tocar nos dedos dos pés, fazer vinte flexões e tossir quando ele lhe agarrar os testículos, e fica safo por mais um ano.
William ouviu o som da porta a abrir e empurrou-a. Subiu ao segundo andar e disse o nome à rececionista.
— O doutor está com outro doente neste momento, senhor Warwick, mas irá recebê-lo em breve. Faça o favor de se sentar.
Ele sentou-se numa cadeira de couro antiga e examinou a seleção limitada de material de leitura impecavelmente disposta sobre a mesa de centro. Os exemplares desatualizados de Punch e Country Life pareciam ser obrigatórios na sala de espera de qualquer médico. Além disso, a única publicação periódica disponível era o jornal quinzenal da Polícia Metropolitana, The Job.
Depois de ter esgotado o talento e a sabedoria do senhor Punch e de ter admirado as fotografias de várias casas de campo que nunca teria dinheiro para comprar, desistiu e virou-se para os jornais já bem manuseados da Polícia Metropolitana. Folheou várias edições, parando apenas quando se deparou com uma fotografia de Fred Yates numa capa antiga. Abrindo no editorial, o heroísmo do polícia e mentor que lhe salvara a vida prolongava-se por quatro páginas; William disse mais uma oração silenciosa em memória de Fred. Preparava-se para pousar o jornal na mesa quando o título de primeira página de uma edição mais antiga o fez suster a respiração: «RAINSFORD CONDENADO A PENA PERPÉTUA POR ASSASSINAR SÓCIO. Dois agentes da Polícia Metropolitana elogiados pela forma como trataram o caso.»
— O doutor vai recebê-lo agora, inspetor estagiário Warwick — disse a rececionista, antes de ele ter tido hipótese de terminar o artigo.
Tal como Lamont tinha previsto, o exame foi bastante superficial, embora o doutor Ashton quisesse verificar-lhe a frequência cardíaca em repouso uma segunda vez, por achá-la demasiado alta para um homem ainda tão novo.
Depois de uma página cheia de quadrículas ser preenchida com pequenos vistos, William recebeu o atestado de boa saúde.
— Até para o ano — disse Ashton.
— Obrigado — replicou William, correndo o fecho das calças.
De volta à sala de espera, agarrou no jornal da Polícia Metropolitana e continuou a ler o artigo. Se o homicida se chamasse Smith ou Brown, não teria pensado duas vezes, mas Rainsford não era um nome vulgar. Voltou a pôr o jornal em cima da mesa e tentou tirar aquela ideia da cabeça. Mas não foi capaz.
— És mesmo idiota! — exclamou. A rececionista fez um ar ofendido. — Desculpe. Estava a falar de mim e não de si.
Porém, enquanto se dirigia para a estação de metro, não conseguiu deixar de pensar naquela possibilidade e percebeu qual era a única pessoa que podia dissipar os seus receios.
Saiu na estação de St. James’s Park e atravessou a rua, como se fosse um dia de trabalho normal. Foi direito à secretária e procurou o número. Estava bem ciente de que não devia fazer chamadas pessoais, mas não tinha outra opção.
— Chefe da guarda prisional Rose — disse uma voz.
— Bom dia — disse William. — Daqui fala o inspetor estagiário Warwick, da Scotland Yard. É capaz de não se lembrar de mim. Eu…
— Como poderia esquecê-lo? O infeliz adepto do Fulham. O que posso fazer por si desta vez?
— Queria fazer umas perguntas sobre um dos vossos reclusos, Arthur Rainsford, preso por homicídio.
— Se o Rainsford é um assassino, eu sou Jack, o Estripador — disse Rose. — Quer encontrar-se com ele?
— Não, senhor, mas gostaria de saber se ele está à espera de alguma visita hoje.
— Espere um bocadinho, que eu vou ver. — William conseguia sentir o coração a bater-lhe no peito; ainda bem que o doutor Ashton não estava a medir-lhe a pulsação em repouso naquele momento. — Sim, o Rainsford vai ter uma visita esta tarde. A filha. Visita-o regularmente. Adora o pai e é óbvio que está perfeitamente convicta da sua inocência. Mas isso é o que todos dizem sempre…
— E como se chama ela? — perguntou William, quase lhe faltando a voz.
Outra pausa.
— Elizabeth Rainsford.
— Por acaso, sabe onde é que ela trabalha?
— Toda a gente que visita um recluso da categoria A tem obrigatoriamente de registar o local onde trabalha. — Após nova pausa, Rose acrescentou: — Trabalha no Museu Fitzmolean. E, antes que pergunte, deixe-me dizer-lhe que apostava a minha reforma em como ela não teve nada a ver com o roubo daquele Rembrandt.
— Não é o Rembrandt que me preocupa.
— Folgo em ouvir isso.
— Obrigado pela sua ajuda — disse William, e desligou.
Deixou-se ficar ali sentado durante mais de uma hora, no mínimo, a tentar pôr as ideias em ordem. Percebia agora por que razão não havia fotografias do pai de Beth no apartamento. E quando ela lhe dissera que tinha telefonado aos pais em Hong Kong, logo a seguir a ele ter voltado de Roma, era óbvio que se esquecera de que no Extremo Oriente ainda estariam a meio da noite. Quem lhe dera ter visto a parte de trás daqueles postais ilustrados. Os seus pensamentos foram interrompidos quando a porta se abriu e Hawksby espreitou para dentro da sala.
— Vi uma luz debaixo da porta e achei que devia ver o que se passava.
Ele olhou para o chefe com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto.
— O que foi, William? — perguntou Hawksby, sentando-se ao seu lado.
— Há quanto tempo é que sabe?
Hawksby não respondeu de imediato.
— Desde o roubo do Rembrandt, temos verificado regularmente os antecedentes de todos quantos trabalham no Fitzmolean e o nome do pai dela veio à baila. Discuti o problema com o Bruce depois de vocês terem começado a sair juntos e ambos presumimos que ela lhe tinha contado o que se passava com o pai.
— Acabei de descobrir.
— Lamento — disse Hawksby, pondo-lhe uma mão no ombro. — Todos sabemos o que sente por ela e a Jackie avisou-nos de que podia ser coisa séria.
— Acabei de descobrir até que ponto é séria — disse William. — Agora, não sei o que fazer.
— Se pudesse dar-lhe um conselho, sugeriria que contasse tudo ao seu pai. É um homem perspicaz e ponderado, e uma coisa é certa: não se limitará a dar-lhe a resposta que quer ouvir.
— Lembra-se do caso?
— Não muito bem, mas lembro-me dos dois agentes envolvidos, Stern e Clarkson. O inspetor Stern reformou-se pouco depois do final do julgamento e, sinceramente, já foi tarde. Mas, agora que já sabe, o que vai fazer em relação a isso?
— Vou para casa e fico à espera de que a Beth regresse de Pentonville.
— Porque é que não vai diretamente à prisão? Assim, estará lá quando ela sair e pode levá-la a casa.
William não respondeu. Continuou sentado a olhar para o vazio, como se não tivesse ouvido.
— E, se quiser chegar a tempo — acrescentou Hawksby, olhando para o relógio —, é melhor pôr-se a andar.
— Tem toda a razão, senhor comandante — disse William. Pôs-se em pé de um salto, pegou no casaco e correu para a porta, virando-se apenas para dizer: — Obrigado.
Já na rua, fez sinal ao primeiro táxi que viu.
— Para onde é, chefe?
— Prisão de Pentonville.
— Era só o que me faltava — resmungou o taxista enquanto ele entrava.
— Qual é o problema?
— Não há pior corrida para um taxista.
— Como assim?
— Quando levamos alguém a Pentonville, nunca conseguimos passageiros para a viagem de regresso, porque a maioria dos reclusos está a cumprir perpétua! — William riu-se, coisa que não julgava possível poucos minutos antes. — Vai lá ficar ou está apenas de visita?
— Vou buscar a minha namorada.
— Não sabia que havia mulheres na prisão de Pentonville.
— E não há. Ela foi visitar o pai.
— Nada de muito grave, espero.
— Homicídio.
O longo silêncio que se seguiu permitiu que William organizasse as ideias e pensasse no que dizer quando Beth o visse à porta da prisão. De início, ficaria chocada, possivelmente incrédula por ele estar disposto a partilhar os problemas dela, em vez de abandoná-la.
O táxi saiu da estrada principal e virou para uma rua secundária que levava a um muro de tijolo tão alto, que quase tapava o sol. Pararam junto a uma barreira e o taxista disse:
— Isto é o mais longe que me deixam ir.
William olhou para um grande portão de madeira. Uma placa do lado de fora anunciava: ESTABELECIMENTO PRISIONAL DE PENTONVILLE.
— Vai entrar, chefe?
— Não, vou esperar cá fora.
— Quer que vos leve aos dois para a cidade?
— Receio que não seja possível — disse ele, depois de olhar para o taxímetro e entregar as suas últimas duas libras. — Mal me sobra dinheiro para pagar a viagem de autocarro.
— Esta corrida fica por minha conta, chefe. De qualquer forma, tenho de voltar.
— É muito generoso da sua parte, mas ainda pode levar algum tempo até…
— Não há problema. É para compensar a mania de me meter na vida dos outros.
— Obrigado.
Entretanto, abriu-se uma porta lateral, que só permitia a passagem de uma pessoa de cada vez. As visitas começaram a sair.
Para muitas das pessoas que tinham ido visitar familiares ou amigos, aquela era apenas mais uma tarde de sábado. Mas algumas afastavam-se lentamente de cabeça baixa, enquanto outras queriam claramente sair dali o mais depressa possível. Mães, pais, esposas, namoradas, alguns com bebés ao colo, todos com uma história para contar. E depois William viu-a surgir, com ar esgotado e lágrimas a rolar-lhe pelas faces. Quando Beth o viu, ficou petrificada, obviamente horrorizada por ter sido apanhada.
Ele caminhou rapidamente na sua direção e tomou-a nos braços.
— Amo-te — disse — e sempre te amarei.
Sentiu o corpo dela desfalecer e quase teve de suportar o seu peso.
Vários visitantes passaram por eles enquanto Beth continuava agarrada a ele, como uma prisioneira que tivesse acabado de ser libertada.
— Sinto muito — disse ela, sem o largar. — Devia ter-te contado quando nos conhecemos, mas foi ficando mais difícil a cada dia que passava. Não contava apaixonar-me por ti. Alguma vez conseguirás perdoar-me?
— Não há nada para perdoar — disse William, dando-lhe a mão.
Depois abriu-lhe a porta do táxi e sentou-se ao lado dela, no banco de trás.
— Para onde vamos, chefe?
— Fulham Gardens, número trinta e dois — disse ele, enquanto Beth deitava a cabeça no seu ombro.
— Quando é que descobriste?
— Esta manhã.
— Se quiseres sair lá de casa, eu compreendo.
— Vou dizer isto uma vez, Beth, e só uma vez. Tens de levar comigo, por isso vê se te habituas.
— Mas…
— Não há mas nem meio mas.
— Há um mas — disse ela baixinho. — Tens de compreender que não tenho dúvidas de que o meu pai está inocente.
William conseguia ouvir Rose, o chefe da guarda prisional, a repetir: Isso é o que todos dizem.
— Isso não me importa — disse, tentando tranquilizá-la. — Tanto me faz que esteja como não.
— Mas importa-me a mim — disse Beth —, porque estou decidida a limpar o nome dele, nem que seja a última coisa que faça na vida.
Ficaram em silêncio durante algum tempo, até William dizer:
— Posso pedir-te uma coisa?
— Tudo o que quiseres. Sempre parti do princípio de que me deixarias assim que descobrisses a verdade sobre o meu pai. Por isso, pede o que quiseres.
— Como sabes, o meu pai é um dos advogados mais notáveis na esfera criminal.
— E eu caí na tolice de me apaixonar pelo filho.
— Se eu lhe pedisse para examinar o caso e dar uma opinião imparcial, estarias disposta a aceitar o seu parecer?
Beth não respondeu de imediato, mas, depois de pensar um pouco, disse:
— É o mínimo que posso fazer.
— E também estarias disposta a seguir em frente, mesmo que não seja aquilo que querias ouvir?
— Isso é capaz de ser um bocadinho mais difícil.
— Bem, pelo menos é um começo — disse William. — Se vieres almoçar connosco amanhã, podes contar-lhe por que motivo estás tão convicta da inocência do teu pai.
— Ainda não estou pronta para isso — disse Beth, pegando-lhe na mão. — O dia a seguir à visita é quase pior do que este. Às vezes, choro o dia inteiro e fico ansiosa por que chegue segunda-feira para poder voltar ao trabalho. Um passo de cada vez, por favor. Quando chegarmos a casa, conto-te a história toda, mas ainda vou ter de esperar algum tempo para conseguir enfrentar o parecer do teu pai.
— Mas terás de acabar por conhecê-lo, independentemente do que ele decida, porque os meus pais vão querer conhecer a mulher com quem vou casar.
A maioria dos pedidos de casamento são seguidos de explosões de alegria e comemoração, mas Beth chorou.
Quando o táxi parou à porta de casa deles, William saiu e agradeceu ao taxista.
— Foi um prazer, chefe, e tenho de admitir que foi a primeira vez que alguém fez um pedido de casamento no banco de trás do meu táxi.
O que levou William a rir-se pela segunda vez.
Abriu a porta da rua e desviou-se para deixar Beth entrar. A primeira coisa que ela fez foi ir direita ao escritório e tirar todos os postais que estavam expostos sobre a lareira, rasgá-los em bocadinhos e deitá-los no cesto dos papéis. A seguir, abriu a gaveta de baixo da secretária, tirou de lá uma fotografia dos pais e colocou-a no lugar dos postais.
— Acabaram-se os segredos — disse, enquanto iam para a cozinha. — Daqui em diante, apenas a verdade.
Ele acenou afirmativamente, inclinou-se sobre a mesa e pegou-lhe na mão, enquanto ela começava a contar-lhe as circunstâncias em que o pai tinha sido acusado de homicídio e condenado a prisão perpétua.
William interrompia-a de vez em quando para fazer alguma pergunta e, quando chegou a hora de se irem deitar, também ele queria acreditar que Arthur Rainsford podia estar inocente. Mas sabia que o seu pai seria muito mais exigente e cético na apreciação da matéria de facto do que um inspetor inexperiente e uma jovem que tinha uma adoração sem reservas pelo pai. Ambos concordaram em acatar a decisão de Sir Julian.
No domingo de manhã, depois de uma noite de insónia, William tinha mais perguntas do que respostas enquanto se preparava para enfrentar o pai. Quando saiu para a estação de comboio a seguir ao pequeno-almoço, nem ele nem Beth tinham dúvidas sobre o que estava em jogo.
Embora fosse a olhar para o exterior pela janela da carruagem, a verdade é que ia completamente alheado da paisagem por onde passava. Quando se apeou em Shoreham, decidiu fazer a pé os três quilómetros que faltavam até Nettleford, para organizar os pensamentos e rever o que planeava dizer, ciente de que teria pela frente não só o pai, mas também um dos melhores advogados do país.
Quando avistou a casa de campo onde fora criado, começou a andar mais devagar. Abriu a porta, sabendo que estaria apenas no trinco, e encontrou o pai sentado no seu escritório junto à lareira, a ler o The Observer.
— Bons olhos te vejam, filho — disse ele, pousando o jornal. — Já encontraste o tal Rembrandt?
— Pai, conheci a mulher com quem vou casar.
— Que notícia maravilhosa! A tua mãe vai ficar encantada. E porque é que a jovem não veio almoçar connosco?
— Porque o pai dela está a cumprir uma pena de prisão perpétua por homicídio.
Sir Julian Warwick sentou-se à cabeceira da mesa e escutou atentamente o filho, enquanto ele contava à família como a sua vida mudara nas últimas vinte e quatro horas.
— Estou ansiosa por conhecê-la — disse a mãe. — Parece ser uma pessoa muito especial.
Sir Julian não emitiu nenhuma opinião.
— Lembra-se do caso, pai? — perguntou Grace, quando William chegou ao final da história.
— Tenho uma vaga ideia do julgamento, mas não mais do que isso. O Rainsford condenou-se quando confessou o crime na presença de dois agentes graduados da polícia.
— Mas… — começou William.
— No entanto, vou ler as transcrições do tribunal e, se encontrar a mais pequena dúvida, vou visitá-lo em Pentonville e ouvir o seu lado da história. Mas devo avisar-te, William, que o procurador-geral só irá concordar com a reabertura do processo se houver novas provas que sugiram a existência de um erro judicial. É raro, mas já tem acontecido. Por isso, ainda bem que a Beth concordou em seguir em frente se eu considerar que não vale a pena contestar a acusação.
— Obrigado, pai. Não podia pedir-lhe mais do que isso.
— Se visitar o senhor Rainsford, posso ir consigo? — perguntou Grace.
— Com que finalidade, se é que posso saber?
— Bem, se considerar que ele pode estar inocente e se surgirem novas provas, e se…
— Se, se, se… Onde é que queres chegar?
— Se decidir aceitar o caso e ele chegar ao Supremo Tribunal, vai precisar de um advogado assistente…