27

Se era tudo uma questão de timing, como Christina Faulkner sugerira a William, então ela cometeu um erro fatal. Deu instruções ao seu advogado para intentar uma ação de divórcio a 22 de dezembro. A petição chegou à secretária de Booth Watson no dia 24.

O advogado não ficou surpreendido com o timing, pois presumiu que a senhora Faulkner escolhera a data na tentativa de estragar o Natal ao seu cliente. Decidiu contactar Miles apenas quando ele regressasse ao escritório, a 28 de dezembro. No fim de contas, que diferença fariam mais uns dias? Guardou o pedido de divórcio no cofre e foi para casa.

Mike Harrison telefonou de Melbourne à senhora Faulkner a 27 de dezembro, para a informar de que o marido passara o dia num camarote do MCG, a assistir ao segundo dia do campeonato de críquete. No fim, tinha ido jantar com amigos e levantado a chave do quarto na receção pouco depois da meia-noite.

— Estava sozinho? — perguntou Christina.

— Não, estava com uma jovem que trabalha como empregada de bar na sala de acolhimento do hotel. Tenho uma fotografia e um nome.

— Obrigada, Mike.

A seguir, Harrison ligou para a Scotland Yard e repetiu ao inspetor-chefe Lamont a mesma mensagem antes de se ir deitar.

Booth Watson regressou ao escritório pouco depois das dez da manhã do dia 28 de dezembro, satisfeito por o Natal já ter passado e poder voltar ao trabalho. Leu o pedido de divórcio uma segunda vez, ciente de que os motivos invocados eram preocupantes. Era óbvio que a mulher de Faulkner andava a preparar o pedido há algum tempo, uma vez que eram nomeadas várias mulheres. Decidiu ligar ao seu cliente e dar-lhe a notícia do divórcio iminente, embora desconfiasse que não ia constituir grande surpresa.

Primeiro, ligou para Limpton Hall, mas ninguém atendeu, pelo que presumiu que Makins ainda devia estar de férias. Se tivesse feito o telefonema uma hora mais tarde, teria sido a senhora Faulkner a atender. A seguir, ligou para a casa dos Faulkners em Monte Carlo, e foi uma criada que atendeu. Era óbvio que o inglês não era a sua primeira língua.

— Posso falar com monsieur Faulkner? — perguntou ele.

— Não estar.

— Sabe onde ele se encontra? — perguntou Booth Watson, pronunciando lentamente cada palavra.

— Não. Rapaz dizer Austrália.

Ele escreveu no seu bloco: Austrália/rapaz.

— E a senhora Faulkner está aí? — perguntou, de forma igualmente lenta.

— Não. Madame voar para casa.

— Casa?

Angleterre.

— Obrigado — disse Booth Watson. — Foi muito útil.

Perguntou-se o que Miles poderia estar a fazer na Austrália e em que cidade estaria. Reg Bates, o funcionário mais antigo do escritório, veio em seu auxílio.

— Tem de ser Melbourne. Deve ter ido assistir ao segundo jogo.

Booth Watson não se interessava por críquete e limitou-se a pedir ao funcionário que localizasse o cliente.

Bates passou o resto da manhã a telefonar para os principais hotéis de Melbourne e, quando Booth Watson regressou do almoço, encontrou um post-it amarelo em cima da secretária com os pormenores. Ligou imediatamente para o Sofitel e pediu que o pusessem em contacto com a suíte de Miles Faulkner.

— Antes de eu fazer isso — disse a voz do outro lado da linha —, o senhor tem a noção de que é uma e meia da manhã?

— Não, não tinha — admitiu Booth Watson. — Eu volto a ligar mais tarde.

Depois de desligar, fez alguns cálculos e decidiu que voltaria a tentar quando chegasse a casa nessa noite.

Miles Faulkner estava a barbear-se quando o telefone tocou na sua suíte, mas largou a gilete quando ouviu a voz sonante de Booth Watson. Sempre que BW ligava, raramente eram boas notícias. Sentou-se na borda da cama e escutou o que o seu advogado tinha a dizer.

— Há alguma razão para eu apressar o meu regresso, BW? — perguntou, depois de Booth Watson o ter informado do pedido de divórcio. — O campeonato está muito equilibrado. Tinha planeado apanhar um voo até Sydney para comemorar o Ano Novo e por isso, na melhor das hipóteses, só estaria de volta no dia três.

— Não deve haver problema. Uma vez que temos catorze dias para acusar a receção do pedido, podemos tratar disso quando voltar.

— Ótimo. Nesse caso, ligo-lhe daqui a duas semanas. Mais alguma coisa?

— Sim, há mais uma coisa. Parece que a sua mulher passou o Natal em Monte Carlo com um homem mais novo. Quando você vier, já devo ter o nome dele e todos os pormenores. Pode vir a ser útil quando chegar a altura de negociar um acordo.

— Ponha um detetive privado a trabalhar nisso de imediato — disse Faulkner.

— Já pus — disse Booth Watson — e o melhor é partir do princípio de que a sua mulher fez a mesma coisa.

— Alguma boa notícia? — perguntou Miles.

— Entreguei o Renoir à Standard Life e eles transferiram meio milhão para a sua conta nas ilhas Caimão.

— Meio milhão a que a Christina não conseguirá deitar a mão.

— Bom campeonato, e ligue-me assim que voltar.

Miles desligou o telefone e acabou de se barbear. Depois de a empregada de bar — cujo nome não recordava — se ter ido embora, decidiu descobrir se a mulher ainda estava em Monte Carlo.

A criada conseguiu dar mais pormenores ao patrão do que a Booth Watson, mas apenas porque Faulkner falava francês fluentemente. Perguntou quando é que a Madame tinha ido para Inglaterra e ela respondeu:

— Não tenho a certeza, senhor. A única coisa que sei é que seguiu a carrinha até ao iate.

— Qual carrinha? — quis saber Faulkner.

— A carrinha de mudanças que veio buscar todos os seus quadros.

Miles desligou iradamente o telefone e depois voltou a pegar nele.

— Vou deixar o hotel — disse à rececionista. — Ponha-me no primeiro voo disponível para Londres, não me importa em que companhia.

— Mas parece que a Austrália vai ganhar… — começou ela.

— A Austrália que se lixe!

Mike Harrison ligou para o número da senhora Faulkner em Monte Carlo e a criada disse-lhe igualmente:

Madame voar para casa.

A seguir, tentou Limpton Hall, mas ninguém atendeu. Finalmente, ligou para o comandante, que estava à secretária.

— O Faulkner reservou lugar num voo da Qantas com destino a Heathrow, que aterra amanhã à tarde, às duas horas. Isso não fazia parte do seu plano original.

— Era só o que me faltava — disse Hawksby. — E não tenho forma de entrar em contacto com o Warwick para o avisar.

Quando o avião de Christina Faulkner aterrou em Heathrow, o motorista do marido foi buscá-la e levou-a a Limpton Hall, onde ela comeu uma refeição ligeira antes de se ir deitar. No fim de contas, tinha um dia muito preenchido pela frente.

William estava deitado numa espreguiçadeira do convés, a apanhar sol e a desfrutar de um copo de Pinot Grigio quando o avião de Faulkner descolou para a sua viagem de vinte e três horas até Londres. De onde estava, via perfeitamente a entrada para o porão, da qual ninguém se aproximara nos últimos dois dias. E porque haviam de fazê-lo? O sol brilhava, o mar estava calmo e ele não tinha nada que o preocupasse.

Às nove horas da manhã seguinte, uma carrinha de mudanças da Bishop’s Move parou à porta de casa. Os homens demoraram bastante tempo a embalar as sessenta e nove obras de arte em caixotes de madeira, que depois carregaram para a carrinha. Após uma longa pausa de almoço, partiram para Southampton.

— Em circunstância alguma, não excedam os cinquenta quilómetros por hora — disse Christina ao motorista. — Não podemos correr o risco de danificar algum quadro.

— Como queira, minha senhora — replicou ele, mais do que satisfeito por lhe fazer a vontade, já que isso lhes garantiria mais horas extraordinárias.

Christina almoçou sem pressas numa sala de jantar rodeada de ganchos próprios para pendurar quadros. Partiu para Southampton pouco passava das três, mas não tinha pressa, pois o Christina só devia ancorar ao final da tarde. Esperava que Miles estivesse a gostar do seu jogo de críquete. Tinha ficado contente ao ler no Mail dessa manhã que o campeonato estava muito equilibrado.

Miles Faulkner passou pela alfândega em Heathrow pouco depois das duas da tarde. Tinha pensado em telefonar para Limpton Hall da sala de espera da primeira classe do aeroporto de Melbourne e pedir ao motorista que o fosse buscar, mas decidira não o fazer, pois isso poderia alertar Christina para o seu regresso inesperado.

Deixou um taxista feliz quando este lhe perguntou «Para onde é, chefe?» e recebeu como resposta:

— Limpton, em Hampshire. E pago-lhe o dobro da corrida se conseguir lá chegar em menos de uma hora.

Mike Harrison tinha viajado no mesmo avião que Faulkner, mas não na mesma classe. Não seguiu o seu alvo fora do terminal, pois considerou que era mais importante contactar a senhora Faulkner e avisá-la de que o marido ia a caminho de Limpton Hall. Mas ninguém atendeu.

A seguir, telefonou para a Scotland Yard e pediu para falar com o inspetor-chefe Lamont.

— Inspetora Roycroft — disse uma voz.

— Olá, Jackie, é o Mike Harrison. Posso dar uma palavrinha ao Bruce?

— Ele foi para Southampton com o comandante Hawksby há mais de uma hora, Mike.

— Obrigado — disse Harrison. — É bom saber que estás de volta, Jackie — acrescentou.

— Pois, mas à experiência… — disse ela, antes de desligar o telefone.

Harrison deixou outro taxista feliz quando lhe disse:

— Southampton.

Faulkner levou bem mais de uma hora a chegar a Limpton Hall, mas a verdade é que já sabia que o taxista não tinha hipótese de lá chegar mais depressa.

— Espere por mim — disse, e saltou para fora do táxi. — Sou capaz de não demorar.

Subiu os degraus a correr e abriu a porta de entrada. Quando chegou ao átrio, sentiu-se maldisposto. Não havia ali nenhum Constable, nenhum Turner. Até o Henry Moore ela tinha retirado. Deambulou lentamente pela casa, horrorizado com a extensão da pilhagem, encontrando apenas retângulos e quadrados escuros nos sítios onde antes estavam quadros pendurados, e peanhas vazias onde antes havia esculturas orgulhosamente expostas. Mas a derradeira humilhação aconteceu quando entrou na sala de estar e viu o único quadro que ela lá deixara. A cópia do Rembrandt pintada por Eddie Leigh continuava pendurada por cima da lareira. Se Christina tivesse entrado na sala naquele momento, ele tê-la-ia estrangulado com todo o prazer. Saiu de casa a correr e gritou para o taxista:

— Para o portão da entrada!

O táxi acelerou ao longo do caminho de acesso, imobilizando-se junto ao portão. Faulkner saiu disparado e correu até à casa do guarda.

— Viu a senhora Faulkner hoje? — perguntou rispidamente.

— Sim, senhor — disse o guarda, depois de verificar a lista de chegadas e partidas. — Saiu há pouco mais de uma hora.

— Para onde?

— Não faço ideia.

— E eles? — perguntou Faulkner, colocando um dedo em cima das palavras «Bishop’s Move, chegaram às 8h55, partiram às 14h04». — Para onde iam?

— Não faço ideia — repetiu o desafortunado guarda.

Faulkner agarrou no telefone e precisou de dois telefonemas e muitas ameaças até um gestor lhe dar relutantemente a informação de que precisava. Voltou para o táxi e disse «Southampton», sem se dar ao trabalho de olhar para o taxímetro. O motorista nem queria acreditar na sua sorte.

O comandante ia sozinho no banco de trás do primeiro carro. Eram seguidos por uma carrinha da polícia com seis agentes e um graduado. A fechar o cortejo, ia um Wolseley, com o inspetor-chefe Lamont ao volante. Mobilização em força, tinha sido como ele descrevera o exercício, mas Hawk não queria correr riscos.

O pequeno comboio de veículos manteve-se na faixa de dentro da autoestrada e, embora nunca ultrapassassem o limite de velocidade, ainda assim conseguiram chegar à saída para as docas de Southampton com duas horas de sobra.

Hawksby apresentou-se de imediato ao capitão do porto, que confirmou que o iate Christina devia ancorar no cais 29 por volta das sete da tarde. A seguir, o comandante entregou-lhe um mandado especial que autorizava a retirada de uma caixa de madeira específica do iate, sem interferência ou inspeção das autoridades aduaneiras e fiscais.

— Devem ser as Joias da Coroa — disse o capitão do porto, depois de analisar o mandado.

— Não anda muito longe — retorquiu Hawksby. — Mas a única coisa que lhe posso dizer é que tem de ser manuseada com o máximo cuidado e o seu conteúdo não deve ser exposto à luz do sol.

— Parece o Drácula.

— Não, esse é o atual proprietário — disse Hawksby.

— Posso ajudar de alguma forma?

— Não faria mal nenhum ter alguns dos seus rapazes por perto, para o caso de haver algum problema.

— Cérebro ou músculos?

— Dois de cada, se possível.

— Considere feito. Estarão consigo meia hora antes de o Christina ancorar. Acho que também lá vou estar… Dá ideia de ser interessante.

Hawksby voltou para o carro e o pequeno comboio seguiu até ao cais 29, para aguardar pela chegada dos seis síndicos que descansavam serenamente no porão do Christina.

Toda a gente estava a postos e impacientemente à espera quando apareceu um Bentley, que parou a cerca de cinquenta metros deles.

— Quem diabo…? — disse Lamont.

— Tem de ser a senhora Faulkner — disse Hawksby. — Ignore-a. Desde que o Rembrandt seja entregue, não é da nossa conta o que ela irá fazer com o resto da coleção de arte do marido, embora espere que, para seu próprio bem, saiba que ele já regressou ao país.

— Devemos informá-la? — perguntou o inspetor-chefe.

— Também não é da nossa conta — replicou o comandante.

— E o que estão eles a fazer aqui? — perguntou Lamont, quando uma grande carrinha da Bishop’s Move avançou lentamente ao longo do cais e parou atrás do Bentley.

— Não é difícil adivinhar o que está lá dentro — disse Hawksby, enquanto o motorista descia da cabina e se aproximava do Bentley.

A senhora Faulkner desceu o vidro da janela.

— Que diabo estão eles a fazer aqui? — quis saber o motorista, apontando para os três veículos da polícia.

— Vieram buscar uma caixa que vem no iate do meu marido, para a devolverem ao seu legítimo proprietário, em Londres. Depois de a terem na sua posse, vão-se embora e vocês podem começar a carregar os quadros para bordo.

— Em que é que os polícias estão assim tão interessados?

— Em seis cavalheiros de Amesterdão, que saíram do país há vários anos sem visto.

— Tem muita graça — disse o motorista, que voltou para a carrinha sem dizer mais nada.

Christina estava a subir o vidro da janela quando apareceu um táxi preto. Mike Harrison pagou ao taxista e depois foi ter rapidamente com a sua cliente, no banco de trás do Bentley, sem falar a nenhum dos seus antigos colegas.

— Creio que estou a ver os nossos amigos holandeses — disse Lamont, que tinha uns binóculos assestados na entrada do porto e passando-os a Hawksby.

— Quanto tempo calcula que levem a chegar? — perguntou o comandante ao capitão do porto, enquanto mantinha os olhos focados no Christina.

— Vinte minutos. Trinta, no máximo.

— Acabei de ver o Warwick na ponte de comando — disse Hawksby. — Acha que ele vem a pilotar o barco?

— Ou então foi posto a ferros — disse Lamont. — Seja como for, é melhor pôr as tropas em alerta.

O comandante, o capitão do porto, o inspetor-chefe Lamont, um graduado e seis agentes, a senhora Faulkner, Mike Harrison e os carregadores da carrinha de mudanças viram o Christina aproximar-se cada vez mais, até encostar finalmente ao cais e ancorar. William foi a primeira pessoa a descer pela prancha de desembarque.

— Está tudo a postos. A caixa deve ser descarregada dentro de poucos minutos.

— Nesse caso, vamos… — começou Hawksby, ao mesmo tempo que um segundo táxi passava por eles a alta velocidade e parava com um chiar de pneus ao lado do iate.

Faulkner saltou lá de dentro, subiu a prancha a correr, parou e trocou umas palavras com o capitão do iate antes de desaparecerem ambos no porão.

— Não saia de onde está — disse Hawksby a William, que estava impaciente por voltar a bordo. — Se a nossa caixa não for descarregada, temos provas suficientes para acusá-lo do crime.

— Mas…

— Seja paciente, William. Ele não vai a lado nenhum. Senhor capitão, se eles tentarem fugir…

— Não conseguiriam chegar sequer à entrada do porto sem que os meus homens os impedissem.

— Portanto, se eles pensarem em içar a âncora — disse Hawksby a William —, tem a minha permissão para voltar a bordo e prender o Faulkner.

— Não me parece que venha a ser necessário — disse Lamont, enquanto quatro elementos da tripulação saíam do porão a carregar uma longa caixa de madeira, levando algum tempo a atravessar o convés e a descer a prancha de desembarque até ao cais.

Hawksby verificou demoradamente a etiqueta: «Propriedade do Museu Fitzmolean, Prince Albert Crescent, Londres SW7. Para ser recolhida». Fez um aceno de cabeça e quatro agentes tomaram o lugar dos quatro tripulantes.

— Ponham-na na parte de trás da carrinha — ordenou — e não a percam de vista.

Os quatro jovens agentes levantaram a caixa e, como caranguejos, começaram a encaminhar-se lentamente para a carrinha da polícia.

— Muito bem, Bruce — disse Hawksby. — Creio que conquistou o direito de liderar o comboio de veículos na viagem de regresso a Londres. Warwick, venha comigo. Preciso de discutir uma coisa consigo.

William não se mexeu. Continuava a vigiar Miles Faulkner, que estava especado na ponte de comando com ar presunçoso, enquanto os quatro tripulantes começavam a preparar-se para a partida iminente.

— Vamos embora, Warwick. Já temos o que viemos buscar.

— Não tenho a certeza disso, senhor comandante.

— Mas temos a nossa caixa. Viu a etiqueta.

— Sim, vi a etiqueta, mas não estou convencido de que tenhamos a caixa certa. O senhor tem autoridade para abrir qualquer caixa que esteja a bordo?

— Não — disse Hawksby. — Para isso, precisaríamos de um mandado de busca.

— Mas eu tenho — disse o capitão do porto, dirigindo-se para a prancha de embarque, com William no seu encalço; Hawksby e Lamont tiveram de correr atrás deles.

William foi direito ao porão, onde se confrontou com oitenta caixas de madeira de diferentes tamanhos.

— Uma delas deve ter sido etiquetada de novo — anunciou.

— Mas qual? — perguntou Hawksby.

— Estejam à vontade — disse Faulkner, juntando-se a eles, com o capitão do iate logo atrás. — Mas se danificarem alguma das minhas preciosas obras posso assegurar-vos que os vossos salários todos juntos não vão chegar para pagar a indemnização — acrescentou com um sorriso cínico.

William olhou mais atentamente para ele. Se estava à espera de um bandido com o nariz partido, musculado e cheio de tatuagens, não podia estar mais enganado. Faulkner era alto, elegante, com uma farta cabeleira loura e ondulada e olhos de um azul intenso. O seu sorriso caloroso explicava por que razão tantas mulheres se tinham deixado levar tão facilmente. Vestia um blazer e calças largas, camisa branca de colarinho aberto e mocassins, tendo mais ar de playboy internacional do que de criminoso inveterado.

William compreendeu pela primeira vez o que o comandante quisera dizer quando o aconselhara a esperar até conhecer o indivíduo em questão.

— Talvez seja bom lembrarem-se do que aconteceu da última vez que invadiram uma das minhas propriedades — disse Faulkner. — Consegui dar-vos os recibos de todas as minhas obras de arte. E, para o caso de se terem esquecido, dessa vez também achavam que tinham o Rembrandt.

William hesitou enquanto olhava em volta, mas não conseguia decidir-se.

— Então, qual quer abrir, inspetor estagiário? — perguntou Hawksby com ar de desafio.

— Esta — disse ele por fim, encaminhando-se para uma grande caixa e batendo nela com firmeza.

— Tem a certeza absoluta de que é essa? — indagou Faulkner.

— Sim — disse William, mais por bravata do que por convicção.

— Pelo que vejo, comandante, é um novato quem dirige agora o seu departamento — disse Faulkner.

— Abra-a! — ordenou Hawksby.

O capitão do porto avançou e, ajudado por dois homens da sua equipa, começou a arrancar os pregos um por um, até conseguirem finalmente abrir a caixa. Depois de retirarem várias camadas de revestimento protetor, foram saudados pelos seis síndicos de Amesterdão, que lhes devolveram o olhar.

— Há anos que queria fazer isto — disse Hawksby.

Deu um passo em frente, disse a Faulkner que estava preso e depois leu-lhe os direitos. Lamont puxou-lhe as mãos para trás das costas, algemou-o e arrastou-o para fora do iate, enquanto quatro agentes desciam lentamente a prancha de desembarque com a segunda caixa e a depositavam com todo o cuidado na parte de trás da carrinha da polícia, junto à sua companheira não identificada.

— Como é que conseguiu saber em que caixa estava o Rembrandt? — perguntou Lamont a William depois de voltarem para terra.

— Não tinha a certeza absoluta — admitiu ele —, mas era a única que tinha uma grande marca circular no sítio onde devia estar a etiqueta original. Obviamente, o Faulkner trocou as etiquetas, mas não reparou que a caixa que escolheu era consideravelmente maior do que a que contém o Rembrandt, nem que tinha ficado uma marca circular nessa mesma caixa, no sítio onde a etiqueta original deve ter sido arrancada.

— Afinal, sempre é capaz de dar um bom inspetor — disse Hawksby.

— E o que está na outra caixa? — quis saber Lamont.

— Não faço ideia — replicou William. — Só iremos descobrir depois de ser entregue ao Fitzmolean, tal como a etiqueta indica expressamente que façamos.

Entretanto, a senhora Faulkner tinha ficado no Bentley, a assistir de longe a toda a operação. Não se mexeu até ver que o marido tinha sido preso, altura em saiu do carro e correu em direção ao cais, a gritar:

— Detenham-nos! Detenham-nos!

Mike Harrison estava apenas a um metro dela enquanto viam o iate Christina a sair do porto.

— Com que fundamento? — perguntou ele quando a alcançou.

— Ainda têm os meus quadros a bordo.

— Isso ia ser bastante difícil de provar — disse Harrison —, uma vez que o capitão está provavelmente apenas a cumprir ordens do seu marido.

— Mas de que lado é que você está? — quis saber Christina.

— Do seu, senhora Faulkner, e assim que o seu marido estiver preso tenho a certeza de que irá arranjar forma de recuperá-los a todos.

— Mas ele há de vir atrás de mim — protestou ela.

— Não me parece — disse Harrison. — O seu marido vai a caminho de Pentonville e não creio que saia de lá durante vários anos.

— Muito bem, rapazes — disse Hawksby. — Está na hora de devolver o Rembrandt ao seu legítimo proprietário, juntamente com o que quer que esteja na outra caixa.

— Desculpem incomodar-vos — disse um homem que parecia ainda mais perturbado do que a senhora Faulkner. — Mas aquele tipo que acabaram de prender deve-me 274 libras da corrida de táxi.

— Receio que não vá pôr-lhes a vista em cima durante algum tempo — disse Lamont. — Sugiro que contacte o advogado dele, um tal senhor Booth Watson, em Lincoln’s Inn. Tenho a certeza de que ele terá todo o prazer em pagar-lhe.

— Bom trabalho, Warwick! — disse Hawksby, assim que William se juntou a ele no banco de trás do carro e o pequeno comboio partiu para Londres. — Pode estar orgulhoso do papel que desempenhou.

William não respondeu.

— Qual é o problema? — perguntou o comandante. — Prendemos o Faulkner e recuperámos o Rembrandt, mais um possível bónus na outra caixa com o qual não contávamos. O que mais poderia querer?

— Alguma coisa não está bem — disse William.

— O quê?

— Não sei, mas o Faulkner estava a sorrir quando o prendeu.