32

— Sou portador de boas notícias — disse Booth Watson, ao mesmo tempo que um empregado de mesa aparecia ao seu lado. — Mas primeiro vamos pedir o pequeno-almoço.

— Para mim, apenas café simples, uma torrada e doce de laranja — disse Faulkner. — Perdi o apetite.

— Eu quero o pequeno-almoço à inglesa completo — disse Booth Watson. Não voltou a falar até o empregado de mesa se afastar. — Tive uma proposta da outra parte. Estão dispostos a retirar a acusação de intenção de roubo caso se confesse culpado do crime de recetação de bens roubados.

— Conclusão? — perguntou Faulkner.

— Se aceitarmos a oferta, provavelmente apanha uns dois anos, o que significa que será libertado dentro de dez meses.

— Como assim?

— Desde que tenha bom comportamento, só irá cumprir metade da sentença, à qual ainda são retirados dois meses por ser o seu primeiro crime. Sairia a tempo do Natal.

— Dez meses em Pentonville não é a minha ideia de uma oferta generosa e, mais importante ainda, isso daria tempo suficiente à Christina para roubar toda a minha coleção.

— Isso não será problema — disse Booth Watson —, porque, enquanto estiver preso, eu irei certificar-me de que ela não chega perto de nenhuma das suas propriedades.

Faulkner não pareceu convencido.

— E se eu não aceitar a oferta?

— Se for considerado culpado de ambos os crimes, roubo e recetação, a pena máxima é de oito anos, juntamente com uma pesada multa.

— Estou-me nas tintas para a multa. Tenho a sensação de que o Palmer sabe que está a lutar por uma causa perdida e só espera salvar a face. De qualquer forma, creio que o júri está do meu lado. Pelo menos, dois dos jurados sorriram para mim ontem.

— Dois não é suficiente — replicou Booth Watson, fazendo uma pausa enquanto um empregado voltava a encher-lhes as chávenas de café. — O porta-voz tem ar de coronel reformado ou diretor de uma escola privada e, provavelmente, é de opinião que o castigo deve ser adequado ao crime.

— Esse é um risco que estou disposto a correr, BW. Por isso, pode dizer ao Palmer para ir dar uma volta. Apetece-lhe uma taça de champanhe?

A COROA CONTRA RAINSFORD

— Chamo o inspetor Bob Clarkson — gritou o funcionário judicial.

Grace não tirou os olhos de Clarkson enquanto ele atravessava a sala de audiências e subia ao banco das testemunhas. Fez o juramento sem a bazófia que Stern exibira.

«Um agente honesto e decente, que é fácil de manipular e às vezes é desviado do bom caminho», tinha sido uma das frases que Grace sublinhara depois de ler o processo individual de Clarkson.

Sir Julian deixou-se ficar sentado pacientemente durante o interrogatório superficial que o advogado da Coroa fez a Clarkson e que não trouxe qualquer surpresa. Mas, no fim de contas, também não estava à espera de que trouxesse.

— Deseja contrainterrogar esta testemunha? — perguntou o juiz Arnott.

Sir Julian acenou afirmativamente enquanto se levantava. Sempre pretendera que Stern o visse como inimigo, mas que tal não acontecesse com Clarkson.

— Inspetor Clarkson — começou, num tom suave e persuasivo —, enquanto agente da polícia, conhece as consequências de cometer perjúrio. Por isso, quero que pense muito bem antes de responder às minhas perguntas.

Clarkson não respondeu.

— No dia em que o senhor Arthur Rainsford foi detido e acusado do homicídio do seu sócio, Gary Kirkland, esteve presente no local do crime?

— Não, senhor. Estava na esquadra.

— Nesse caso, não assistiu à detenção?

— Não, não assisti.

— Mas o senhor foi o outro agente que assinou o depoimento que o senhor Rainsford fez ainda nessa noite.

— Sim, fui.

— E esse depoimento, escrito pelo inspetor Stern e testemunhado por si, consistia em três páginas ou duas?

— Inicialmente, pensava que eram três, mas o inspetor Stern assegurou-me na manhã seguinte que eram apenas duas e eu aceitei a sua palavra.

Aquela não era a resposta de que Sir Julian estava à espera. Ficou calado por um momento, ciente de que as suas próximas cinco perguntas eram redundantes, e depois decidiu pedir a confirmação do que acabara de ouvir.

— Então, inicialmente, pensava que o depoimento era composto por três páginas e não por duas, como o senhor Stern afirmava?

— Sim, senhor, e depois de analisar o relatório do tribunal relativo ao dia de ontem aceito plenamente as conclusões do professor Abrahams.

— Mas isso significa que também aceita que o senhor Stern deve ter retirado uma página do depoimento original, não é verdade? — indagou Sir Julian.

— Sim, aceito, e arrependo-me de não o ter questionado na altura.

— E questionou-o sobre a possibilidade de haver um homem misterioso, o homem que o senhor Rainsford afirmou ter passado por ele a correr quando ia a entrar no escritório e que sempre alegou poder ser o assassino?

— Sim, questionei, mas o inspetor Stern disse que era apenas produto da imaginação do Rainsford e que valia o que valia.

— Então e o telefonema anónimo a informar a polícia do homicídio do senhor Kirkland? Também foi produto da imaginação do senhor Rainsford?

— Não, senhor. Recebemos efetivamente um telefonema de um homem com sotaque estrangeiro, que nos disse que ia a passar na rua quando ouviu o som de dois homens aos gritos, seguido de silêncio, e depois viu um homem sair a correr do edifício, e que foi isso que o levou a ligar imediatamente à polícia.

— Ele identificou-se?

— Não, senhor, mas isso não é invulgar nestes casos.

— Tal como registado na página desaparecida do depoimento do senhor Rainsford, a polícia chegou ao escritório da RGK logo a seguir a ele.

— Isso é o que alguém culpado diria se quisesse incriminar outra pessoa — ripostou Clarkson. — Por isso, não me dei ao trabalho de seguir essa pista, quanto mais não fosse porque ir atrás de telefonemas anónimos é uma tarefa ingrata que normalmente acaba por ser uma completa perda de tempo.

— Nesse caso, nunca chegou a descobrir quem era o homem misterioso, não é verdade?

— Descobri, sim — disse Clarkson.

Uma vez mais, Sir Julian foi apanhado de surpresa. Estava a caminhar em direção ao desconhecido.

— Inspetor, faça o favor de contar ao tribunal por palavras suas como é que descobriu quem era o homem misterioso.

— Dois dias depois de o Rainsford ter sido acusado, um taxista negro apareceu lá na esquadra e contou-nos que tinha visto a história no noticiário da noite. Disse que tinha trazido o Rainsford de Euston na tarde do homicídio e que o tinha deixado à porta de um edifício de escritórios, na Marylebone High Street. Assim que acendeu o sinal de «Livre», um homem saiu a correr do edifício e pediu-lhe que o levasse ao pub Admiral Nelson, em West Ham, mas cerca de cem metros mais à frente disse-lhe para parar, saiu do táxi e correu até uma cabina telefónica. Regressou passados alguns minutos, altura em que o taxista retomou a viagem até West Ham.

— Ele deu-lhe a descrição do homem?

— Posso consultar as notas que tirei nessa ocasião? — perguntou Clarkson, virando-se para os juízes.

O juiz Arnott anuiu e ele abriu um pequeno livrinho preto e virou várias páginas antes de responder.

— O taxista disse que ele tinha um metro e setenta e pouco, cabelo escuro e que bem podia perder uns bons quilinhos. Também disse que apostava em como era grego ou turco.

— O que o levava a pensar tal coisa? — perguntou Sir Julian.

— O taxista fez a tropa no Chipre, na altura da revolta, e tinha a certeza de ter reconhecido o sotaque.

— Relatou essa conversa ao inspetor Stern?

— Sim, e ele não ficou nada satisfeito, mas disse que ia fazer uma visita ao pub Admiral Nelson para confirmar a história.

— E ele descobriu quem era o homem misterioso?

— Sim, descobriu, mas disse-me que o homem tinha um álibi sólido. Encontrava-se no Admiral Nelson à hora do homicídio, coisa que o dono do bar confirmou, assim como vários outros clientes que lá estavam nessa altura. De qualquer forma, uma vez que tínhamos uma confissão assinada, conforme o Stern fez questão de me lembrar, o que mais queria eu?

— Então, não seguiu essa linha de investigação…

— Não, não segui. No fim de contas, o inspetor Stern era o agente principal neste caso e eu não passava de um novato que tinha terminado o estágio há pouco tempo. Por isso, não podia fazer grande coisa.

— E não há papéis que provem que o inspetor Stern tenha visitado realmente o pub Admiral Nelson ou entrevistado o chamado homem misterioso, ou haverá?

— O inspetor Stern não queria saber de burocracias. Dizia que a sua missão era prender criminosos e não pô-los em pastas de arquivo.

— Segundo sei, você não foi chamado como testemunha no julgamento do senhor Rainsford…

— Não, não fui. E, quando o Rainsford foi condenado, presumi que o inspetor Stern devia ter razão. Mas isso foi só até ter lido no Daily Mail sobre o pedido de recurso apresentado pelo Rainsford. Aí, comecei a arrepender-me de não ter interrogado o senhor Fortounis na altura e de não ter deixado…

— Vasilis Fortounis? — disse Arthur, levantando-se de um salto do banco dos acusados.

— Sim, tenho a certeza de que era esse o nome — disse Clarkson.

— A filha dele era secretária do Gary Kirkland — gritou Arthur.

— Sir Julian, controle o seu cliente antes que eu tenha de fazê-lo — disse o juiz Arnott com firmeza.

Arthur voltou a sentar-se, mas começou a acenar freneticamente em direção a Sir Julian.

— Creio que será uma boa altura para fazer uma pausa, Sir Julian, já que é óbvio que o seu cliente deseja trocar impressões consigo. Reunimos novamente dentro de uma hora?

A COROA CONTRA FAULKNER

— Senhores jurados — disse o juiz Nourse —, ouviram os argumentos apresentados por ambos os advogados e é agora minha responsabilidade recapitular o caso de forma desapaixonada e sem preconceito. Cabe aos senhores decidir se o senhor Faulkner é culpado ou inocente relativamente às três acusações que lhe são feitas em nome da Coroa.

»Vamos analisar uma de cada vez. Em primeiro lugar: terá o senhor Faulkner roubado do Museu Fitzmolean um quadro da autoria de Rembrandt? Consideram que a Coroa apresentou elementos suficientes para provar os factos para lá de qualquer dúvida razoável? Se a resposta for não, deverão decidir a favor do arguido. Em segundo lugar: mesmo não estando envolvido diretamente no roubo, será que o senhor Faulkner foi ainda assim parte interessada no mesmo? Devem tomar a vossa decisão com base unicamente nos factos apresentados nesta sala de audiências.

Faulkner permitiu-se um sorriso breve, enquanto Booth Watson se recostava no seu lugar de braços cruzados, ciente de que o juiz ainda não chegara à parte menos convincente das alegações do seu cliente.

— Depois, temos a acusação de que o senhor Faulkner comprou o quadro roubado com conhecimento de causa, tal como a sua mulher afirma. Embora o senhor Faulkner tenha apresentado uma cópia do Rembrandt, devem perguntar-se há quanto tempo teria o original na sua posse.

»Estão predispostos a acreditar no testemunho do senhor Faulkner, quando diz que foi a Nápoles e tentou chegar a acordo com a Camorra para comprar o quadro por cem mil dólares, tendo como único objetivo devolvê-lo ao Fitzmolean? E consideram provável que a Camorra tenha começado por recusar a sua proposta, mas tenha aparecido algum tempo depois com o quadro em casa do senhor Faulkner, em Monte Carlo, e exigido os cem mil dólares? Isto, apesar de o senhor Faulkner nos ter dito que, segundo a sua experiência — o juiz olhou de relance para as suas notas —, a Camorra raramente sai do seu território.

»E consideraram credível que um desses homens, que nunca lhe dirigiu a palavra enquanto ele estava em Nápoles, tenha ameaçado cortar a garganta aos seis síndicos e depois a ele, caso não pagasse? Ou consideram que é demasiado rebuscado? Só os senhores podem decidir em quem acreditar, no senhor ou na senhora Faulkner, porque não podem estar ambos a dizer a verdade. Contudo, também devem perguntar-se se a prova avançada pela senhora Faulkner será fiável, já que ela admitiu abertamente estar a tentar retirar todas as obras de arte do marido das suas casas em Monte Carlo e Limpton Hall enquanto ele estava na Austrália, e não tenho dúvidas de que teria seguido para Nova Iorque para levar a cabo a mesma operação, caso o marido não interviesse. E, finalmente, senhores jurados, deverão ter em consideração o facto de o arguido não ter antecedentes criminais.

»Senhores jurados — concluiu, olhando diretamente para os cinco homens e sete mulheres —, depois de terem ponderado todas as provas, terão de ter a certeza da culpabilidade do arguido para lá de qualquer dúvida razoável antes de poderem declará-lo culpado. Se não tiverem a certeza, deverão absolvê-lo. Por isso, façam o favor de não ter pressa. Durante a deliberação, caso necessitem de ajuda em algum assunto relacionado com a lei, não hesitem em voltar a esta sala de audiências e eu farei tudo o que puder para responder às vossas perguntas. O oficial de diligências irá agora acompanhá-los à sala do júri, onde podem dar início à vossa deliberação. Levem o tempo que for preciso a examinar todas as provas antes de chegarem a um veredito.

A COROA CONTRA RAINSFORD

— Sir Julian.

— Meritíssimo, estou grato por ter tido a oportunidade de trocar impressões com o meu cliente e pedia ao tribunal que voltasse a chamar o senhor Stern, e que também intimasse o senhor Vasilis Fortounis, uma vez que a defesa gostaria de ter a oportunidade de interrogar ambos sob juramento.

— Vou aceder ao seu pedido, Sir Julian, e sugerir que a sessão seja suspensa até amanhã de manhã, altura em que espero que o oficial de diligências já tenha conseguido localizar os dois cavalheiros em questão.

— Obrigado, Meritíssimo — disse Sir Julian, tentando parecer convencido.

Os três juízes levantaram-se dos seus lugares, fizeram uma vénia e deixaram a sala de audiências.

— Mal consigo esperar por amanhã — disse Beth.

— Não fiques muito esperançada — disse Grace, enquanto reunia os seus dossiês. — O Stern e o Fortounis saberão certamente o que aconteceu esta tarde no tribunal, e não creio que nenhum deles esteja neste momento a caminho de cá.

A COROA CONTRA FAULKNER

— Pretendem o meu conselho? — indagou o juiz Nourse, depois de os jurados terem voltado a entrar e a ocupar os seus lugares.

— Sim, Meritíssimo — disse o porta-voz do júri, um distinto cavalheiro que envergava um fato cinzento-escuro assertoado e uma gravata do Regimento de Cavalaria. — Conseguimos chegar a um veredito em relação à primeira e segunda acusações, mas estamos divididos no que toca à terceira, a da recetação de bens roubados.

— Crê que será possível chegarem a um veredito por maioria em que pelo menos dez dos jurados estejam de acordo?

— Creio que sim, Meritíssimo, se nos derem mais algum tempo.

— Nesse caso, vamos suspender os trabalhos mais cedo e voltamos a reunir amanhã de manhã, pelas dez horas, para deixar os jurados dormir sobre o assunto.

Toda a gente que estava na sala se levantou e fez uma vénia. O juiz Nourse retribuiu o cumprimento antes de deixar os seus domínios.

— Às vezes, não tem vontade de poder saltar vinte e quatro horas e descobrir o que vai acontecer? — perguntou William.

— Quando chegar à minha idade, não vai querer isso — replicou Hawksby.