1

14 de julho de 1979

— Não estás a falar a sério!

— Nunca falei tão a sério, pai, como aliás já saberia se tivesse prestado atenção a alguma coisa do que tenho dito nos últimos dez anos.

— Mas ofereceram-te uma vaga na minha antiga faculdade em Oxford para estudar Direito e, depois de terminares o curso, poderás vir trabalhar comigo. O que mais pode um jovem pedir?

— Que lhe seja permitido seguir uma carreira escolhida por ele, e não esperar que se limite apenas a seguir as pisadas do pai.

— Seria assim tão mau? No fim de contas, tenho tido uma carreira fascinante e digna e, atrevo-me a dizer, razoavelmente bem-sucedida.

— Extraordinariamente bem-sucedida, pai, mas não é da sua carreira que estamos a falar, é da minha. E talvez eu não queira ser um eminente advogado criminal que passa toda a vida a defender um monte de bandidos que nunca lhe passaria pela cabeça convidar para almoçar no seu clube.

— Pareces ter-te esquecido que foram precisamente esses bandidos que pagaram os teus estudos e o estilo de vida que gozas atualmente.

— Nunca consigo esquecê-lo, pai, e é por isso que pretendo passar a minha vida a certificar-me de que esses bandidos ficam presos por muito tempo e não saem em liberdade para continuarem a vida de crime graças aos seus dotes de advogado.

William pensava que tinha conseguido finalmente calar o pai, mas estava enganado.

— Talvez pudéssemos chegar a uma solução de compromisso… O que achas, filho?

— Nem pensar, pai — disse ele com firmeza. — Parece um advogado a pedir uma redução da pena, quando sabe que o caso que defende é fraco. Mas, por uma vez, as suas eloquentes palavras caem em orelhas moucas.

— Nem sequer me deixas apresentar o caso antes de o julgares improcedente? — replicou o pai.

— Não, porque não sou culpado e não tenho de provar a minha inocência a um júri só para lhe agradar.

— Mas estarias disposto a fazer uma coisa para me agradar, meu querido?

No calor da discussão, William esquecera-se por completo de que a mãe estava sentada em silêncio na outra ponta da mesa, a seguir atentamente o esgrimir de argumentos entre o marido e o filho. William estava bem preparado para enfrentar o pai, mas sabia que não era adversário à altura da mãe. Calou-se uma vez mais, e o pai tirou partido desse silêncio.

— O que tem em vista, Meritíssima? — inquiriu Sir Julian, puxando pelas lapelas do casaco e dirigindo-se à esposa como se ela fosse juíza do Supremo Tribunal.

— O William poderá frequentar a universidade que escolher — disse Marjorie —, assim como fazer o curso que quiser, e, quando o concluir, seguir a carreira que deseja abraçar. E, mais importante ainda, quando o fizer, irás aceitar de forma cordata e não voltarás a tocar no assunto.

— Confesso que, embora aceite a sua sábia sentença, sou capaz de ter dificuldade em cumprir a última parte — disse Sir Julian.

Mãe e filho desataram a rir.

— Será que me permitem invocar circunstâncias atenuantes? — perguntou Sir Julian com ar inocente.

— Não — retorquiu William —, porque eu só concordo com as condições da mãe se daqui a três anos o pai apoiar sem reservas a minha decisão de ingressar na Polícia Metropolitana.

Sir Julian Warwick levantou-se do lugar à cabeceira da mesa, fez uma pequena vénia à mulher e disse com relutância:

— Se é do agrado de Vossa Excelência.

William Warwick queria ser inspetor da polícia desde os oito anos, quando resolvera «o caso dos chocolates Mars desaparecidos». Bastara seguir simplesmente o rasto do papel, tal como tinha explicado ao diretor do colégio interno, e nem sequer precisara de lupa.

A prova — os invólucros das guloseimas — tinha sido encontrada no cesto dos papéis do gabinete de estudo do culpado, o qual não conseguira provar que não tinha gastado dinheiro da mesada na loja de doces naquele período letivo.

E o pior para William foi que Adrian Heath era um dos seus amigos mais chegados e ter presumido que seria uma amizade para toda a vida. Quando discutiu o assunto com o pai, a meio do período letivo, ele disse-lhe:

— Esperemos que o Adrian tenha aprendido a lição. Caso contrário, quem sabe qual será o seu destino.

Apesar de William ser alvo de chacota por parte dos colegas, que sonhavam ser médicos, advogados, professores e até contabilistas, o orientador profissional não se mostrou surpreendido quando ele o informou de que ia ser inspetor da polícia. No fim de contas, os outros rapazes tinham-no alcunhado de Sherlock antes do final do primeiro período.

O pai de William, Sir Julian Warwick, queria que o filho fosse para Oxford estudar Direito, tal como ele fizera trinta anos antes. Mas, apesar dos seus esforços, William continuara decidido a ingressar nas forças policiais assim que terminasse o liceu. Os dois homens inflexíveis tinham chegado finalmente a uma solução de compromisso com o selo de aprovação materno. William iria para a Universidade de Londres estudar História da Arte — um curso que o pai se recusava a levar a sério — e, se ao fim de três anos continuasse a querer ser polícia, Sir Julian aceitaria a sua decisão de forma cordata. William sabia que isso nunca iria acontecer.

De qualquer forma, gozou intensamente cada momento dos três anos que passou no King’s College, em Londres, onde se apaixonou por várias vezes. Primeiro, por Hannah e Rembrandt, depois por Judy e Turner e, finalmente, por Rachel e Hockney, até se dedicar inteiramente a Caravaggio: uma relação que iria durar uma vida, embora o pai tivesse feito notar que o grande artista italiano fora um assassino e devia ter sido enforcado. Uma razão suficientemente boa para abolir a pena de morte, sugeriu William. Uma vez mais, pai e filho não estavam de acordo.

Durante as férias de verão depois de terminado o curso, William viajou de mochila às costas pela Europa: Roma, Paris, Berlim e, finalmente, São Petersburgo, para se juntar às longas filas de admiradores que desejavam prestar culto aos antigos mestres. Quando finalmente se licenciou, o professor sugeriu-lhe a hipótese de um doutoramento no lado mais negro de Caravaggio. William respondeu que era precisamente o lado mais negro que tencionava investigar, mas preferia saber mais acerca dos criminosos do século XX do que do século XVI.

Aos cinco minutos para as três da tarde de domingo, 5 de setembro de 1982, William apresentou-se no Hendon Police College, no norte de Londres. Gostou praticamente de todos os minutos do curso de formação, desde o momento que jurou fidelidade à rainha até ao desfile de formatura, dezasseis semanas mais tarde.

No dia seguinte, entregaram-lhe uma farda de sarja azul-marinho, um capacete e um bastão, e ele não resistia a mirar o seu reflexo sempre que passava por uma montra. Logo no primeiro dia, o comandante advertira-o de que uma farda da polícia podia mudar a personalidade de uma pessoa, e nem sempre para melhor.

A formação em Hendon tinha começado no segundo dia e dividia-se entre a sala de aulas e o ginásio. William aprendeu inúmeros artigos da legislação até conseguir repeti-los palavra por palavra. Adorou a parte relacionada com a análise forense e do local do crime, mas, quando confrontado com a pista de teste, depressa descobriu que as suas aptidões de condução eram bastante rudimentares.

Após anos e anos de um aceso debate de ideias com o pai à mesa do pequeno-almoço, William sentia-se à vontade na sala para simulação de audiências, onde os instrutores o contrainterrogavam no banco das testemunhas, e até se mostrou capaz durante as aulas de autodefesa, onde aprendeu a desarmar, a algemar e a imobilizar alguém muito maior do que ele. Também aprendeu tudo sobre os poderes de detenção, revista e busca, o uso de força razoável e, acima de tudo, a discrição.

— Não se cinja sempre estritamente às regras — aconselhou o instrutor. — Às vezes, é preciso usar o senso comum, o qual, quando lidar com o público, verá que afinal não é assim tão comum.

Os exames surgiam a intervalos muito mais regulares do que nos seus tempos de universitário e ele não ficou surpreendido por vários candidatos terem ficado pelo caminho antes de o curso chegar ao fim.

Na sequência do desfile de formatura e após uma pausa de duas semanas, que lhe pareceu interminável, William recebeu finalmente uma carta a informá-lo de que devia apresentar-se às oito da manhã da segunda-feira seguinte na esquadra de Lambeth, uma área de Londres que nunca visitara.

O agente 565LD ingressou na Polícia Metropolitana como licenciado, mas decidiu não tirar partido do esquema de promoção acelerada que lhe teria permitido subir mais rapidamente na hierarquia, pois queria estar em pé de igualdade com todos os novos recrutas no seu primeiro dia. Sabia que, enquanto estagiário, teria de passar pelo menos dois anos como polícia de giro até poder aspirar a ser inspetor e, na verdade, estava ansioso por se atirar de cabeça ao trabalho.

Desde o primeiro dia como estagiário que William foi orientado pelo seu mentor, o agente Fred Yates, que tinha vinte e oito anos de serviço e a quem o inspetor-chefe da esquadra pedira para «olhar pelo rapaz». Os dois homens tinham pouco em comum, a não ser o facto de ambos quererem ser polícias desde tenra idade e os seus pais terem feito tudo o que estava ao seu alcance para os impedir de seguir a carreira escolhida.

— ABC — foi a primeira coisa que Fred disse quando foi apresentado ao recruta jovem e inexperiente. Não esperou que William perguntasse. — A: Não aceites nada; B: Não acredites em ninguém; C: Questiona tudo. É a única lei por que me rejo.

Durante os meses seguintes, Fred apresentou William ao mundo dos ladrões, traficantes de droga e chulos, assim como ao seu primeiro cadáver. Com o zelo de Sir Galahad, William queria prender todos os delinquentes e fazer do mundo um lugar melhor; Fred era mais realista, mas nem por uma vez tentou arrefecer o entusiasmo juvenil que ele demonstrava. O jovem estagiário depressa descobriu que o público não tem maneira de saber se um polícia enverga a farda há dois dias ou dois anos.

— Está na altura de mandares parar o teu primeiro carro — disse-lhe Fred no seu segundo dia de serviço, parando junto a uns semáforos. — Ficamos por aqui até alguém passar um sinal vermelho e, nessa altura, vais para a estrada e dás-lhe sinal de paragem. — William parecia apreensivo. — Deixa o resto comigo. Estás a ver aquela árvore a cerca de cem metros? Vai esconder-te atrás dela e espera até eu te fazer sinal.

William conseguia ouvir o bater do seu coração enquanto esperava atrás da árvore. Não teve de esperar muito até Fred levantar a mão e gritar:

— O Hillman azul! Agarra-o!

William saltou para a estrada, ergueu o braço e mandou o carro encostar na berma.

— Não digas nada — disse Fred, juntando-se ao recruta inexperiente. — Observa com atenção e toma nota.

Dirigiram-se ambos para o carro, ao mesmo tempo que o condutor baixava o vidro da janela.

— Bom dia — disse Fred. — O senhor tem consciência de que passou um sinal vermelho?

O condutor acenou afirmativamente com a cabeça, mas não falou.

— Posso ver a sua carta de condução?

O condutor abriu o porta-luvas, tirou de lá a carta e entregou-a. Depois de analisar o documento durante alguns momentos, Fred disse:

— É especialmente perigoso a esta hora da manhã, uma vez que há duas escolas aqui perto.

— Peço desculpa — redarguiu o condutor. — Não volta a acontecer.

Fred devolveu-lhe a carta de condução.

— Desta vez, é apenas um aviso — disse, enquanto William anotava a matrícula no seu bloco de notas. — Mas veja se no futuro tem mais cuidado.

— Obrigado, senhor agente — disse o condutor.

— Porquê uma simples advertência — perguntou William enquanto o carro se afastava lentamente —, quando podia tê-lo multado?

— A atitude — respondeu Fred. — O cavalheiro foi educado, reconheceu o erro e pediu desculpa. Por que razão havia de irritar um cidadão que normalmente respeita e cumpre a lei?

— Nesse caso, o que o teria levado a multá-lo?

— Se ele tivesse dito, por exemplo: «Não tem nada melhor para fazer, senhor agente?» Ou, pior ainda: «Não devia andar atrás de criminosos a sério?» Ou então a minha favorita: «Não percebe que sou eu que lhe pago o salário?» Qualquer uma destas respostas, e eu tê-lo-ia multado sem hesitar. Aliás, já tive de arrastar um tipo até à esquadra e enfiá-lo numa cela durante duas horas.

— Tornou-se violento?

— Não, muito pior. Disse-me que era amigo íntimo do comissário e que eu iria ter notícias dele. Por isso, disse-lhe que podia ligar-lhe da esquadra. — William desatou a rir. — Bem — concluiu Fred —, volta para trás da árvore. Da próxima vez, podes ser tu a falar com o condutor e eu fico a assistir.

Sir Julian Warwick estava sentado a uma ponta da mesa, com a cabeça enfiada no The Daily Telegraph. De vez em quando, murmurava entre dentes, enquanto a mulher, sentada na outra ponta, continuava a sua luta diária com as palavras-cruzadas do The Times. Num dia bom, Marjorie teria encontrado solução para a última palavra antes de o marido se levantar e ir para Lincoln’s Inn. Num dia mau, teria de lhe pedir conselho, serviço pelo qual ele cobrava normalmente cem libras à hora, fazendo questão de lhe lembrar com regularidade que, até à data, ela lhe devia mais de vinte mil libras. A dez horizontal e a quatro vertical estavam a empatá-la.

Sir Julian tinha chegado ao artigo de fundo quando a sua mulher se debatia com a última palavra. Ainda não estava convencido de que a pena de morte devia ter sido abolida, sobretudo quando a vítima era um agente da polícia ou um funcionário público, mas o Telegraph também não. Virou para a última página, para descobrir como se tinha portado o clube de râguebi Blackheath contra o Richmond no derby anual. Depois de ler o relato do jogo, abandonou as páginas de desporto, pois considerava que o jornal dava demasiada cobertura ao futebol. Mais um sinal de que a nação estava a ruir.

— O The Times traz uma fotografia encantadora do Carlos e da Diana — disse Marjorie.

— Isso não vai durar — retorquiu Julian, levantando-se e indo até à outra ponta da mesa para beijar a mulher na testa, como fazia todas as manhãs.

Trocaram de jornal, para ele poder analisar a secção dedicada à justiça durante a viagem de comboio até Londres.

— Não te esqueças de que os miúdos vêm almoçar connosco no domingo — recordou-lhe Marjorie.

— O William já fez o exame para inspetor? — perguntou ele.

— Como bem sabes, meu querido, não pode fazê-lo até completar dois anos de serviço como polícia de giro, e ainda lhe faltam pelo menos mais seis meses.

— Se ele me tivesse dado ouvidos, por esta altura já seria advogado.

— E se tu lhe tivesses dado ouvidos saberias que está muito mais interessado em prender criminosos do que em descobrir formas de ajudá-los a safarem-se.

— Ainda não desisti — disse Sir Julian.

— Devias dar graças por a nossa filha ter seguido as tuas pisadas.

— A Grace não fez nada disso — resmungou ele. — Aquela rapariga defende todos os falhados sem cheta que lhe aparecem à frente.

— Ela tem um coração de ouro.

— Nesse caso, sai a ti — disse Sir Julian, examinando a única palavra que a mulher não conseguira solucionar: «Soldado esbelto que acabou com um bastão». Quatro letras. — Marechal de campo SLIM1! — exclamou com ar triunfante. — O único homem que entrou para o exército como soldado raso e acabou como marechal de campo.

— Parece-se com o William — disse Marjorie, mas só depois de a porta se fechar.

1 SLIM, que figura aqui como apelido, significa igualmente «esbelto» enquanto nome comum. (N. da T.)