I
O Eu e o “Moi”[*]

A) Teoria da presença formal do Eu

Temos que atribuir a Kant que “o Eu Penso deve poder acompanhar todas as nossas representações”[1]. Mas é preciso concluir que um Eu, de fato, habita todos os nossos estados de consciência e opera realmente a síntese suprema de nossa experiência? Parece que isso seria forçar o pensamento kantiano. O problema da crítica sendo um problema de direito, Kant não afirma nada sobre a existência de fato do Eu Penso. Parece, ao contrário, que ele tenha perfeitamente visto que havia momentos de consciência sem “Eu”, já que diz: “deve poder acompanhar”. Trata-se, com efeito, de determinar as condições de possibilidade da experiência. Uma dessas condições é que eu possa sempre considerar minha percepção ou meu pensamento como meu: eis aí tudo. Mas existe uma tendência perigosa na filosofia contemporânea – cujos traços poderiam ser encontrados no neokantismo, no empírio-criticismo e num intelectualismo como o de Brochard – que consiste em realizar as condições de possibilidade determinadas pela crítica[2]. É uma tendência que leva alguns autores, por exemplo, a se perguntar o que pode ser a “consciência transcendental”. Se a questão é colocada nesses termos, somos obrigados naturalmente a conceber essa consciência – que constitui nossa consciência empírica – como um inconsciente. Mas Boutroux, em suas lições sobre a filosofia de Kant[3], fazia já justiça a essas interpretações. Kant nunca se preocupou com o modo com que se constitui de fato a consciência empírica, ele não a deduziu, absolutamente ao modo de um processo neoplatônico, de uma consciência superior, de uma hiperconsciência constituinte. A consciência transcendental, para ele, é apenas o conjunto das condições necessárias à existência de uma consciência empírica. Consequentemente, realizar o Eu transcendental, fazer dele o companheiro inseparável de cada uma de nossas “consciências”[a], é julgar sobre o fato e não sobre o direito, é posicionar-se em um ponto de vista radicalmente diferente do de Kant. E, no entanto, se se pretende autorizar-se considerações kantianas sobre a unidade necessária à experiência, comete-se o mesmo erro daqueles que fazem da consciência transcendental um inconsciente pré-empírico.

Se, portanto, se atribui a Kant a questão de direito, a questão de fato nem por isso fica resolvida. Convém, portanto, colocá-la aqui claramente: o Eu Penso deve poder acompanhar todas as nossas representações, mas as acompanha de fato? Suponhamos, ademais, que uma certa representação A passe de um determinado estado em que o que Eu Penso não a acompanha para um estado em que o Eu Penso a acompanhe; nesse caso, segue-se para ela uma modificação de estrutura ou antes ela permanecerá inalterada em seu fundo? Esta segunda questão nos leva a colocar uma terceira: o Eu Penso deve poder acompanhar todas as nossas representações; mas deve-se entender com isso que a unidade de nossas representações é, direta ou indiretamente, realizada pelo Eu Penso – ou então deve-se compreender que as representações de uma consciência devem ser unidas e articuladas de tal modo que um “Eu Penso” de constatação seja sempre possível a propósito delas? Essa terceira questão parece colocar-se no terreno do direito e abandonar, nesse terreno, a ortodoxia kantiana. Mas trata-se, na realidade, de uma questão de fato que pode ser formulada da seguinte forma: o Eu que encontramos em nossa consciência é possibilitado pela unidade sintética de nossas representações ou será ele que unifica, de fato, as representações entre si?

Se abandonarmos todas as interpretações mais ou menos forçadas que os pós-kantianos deram ao “Eu Penso” e quisermos, no entanto, resolver o problema da existência de fato do Eu na consciência, encontraremos em nosso caminho a fenomenologia de Husserl[4]. A fenomenologia é um estudo científico e não crítico da consciência[5]. Seu procedimento essencial é a intuição. A intuição, de acordo com Husserl, nos coloca em presença da coisa[6]. Tem-se, então, que entender que a fenomenologia é uma ciência de fato e que os problemas que ela coloca são problemas de fato[b], como, ademais, pode-se compreender considerando que Husserl a denomina uma ciência descritiva[7]. Os problemas das relações do Eu com a consciência são, portanto, problemas existenciais. A consciência transcendental de Kant, Husserl a encontra e distingue por meio da ἐποχή[8]. Mas essa consciência não é mais um conjunto de condições lógicas, é um fato absoluto. Tampouco é uma hipóstase do direito, um inconsciente que flutua entre o real e o ideal. É uma consciência real acessível a cada um de nós desde que tenha operado a “redução”. Resta o fato de que é ela que constitui nossa consciência empírica, essa consciência “no mundo”, essa consciência com um “eu” psíquico e psicofísico. Quanto a nós, preferimos acreditar na existência de uma consciência constituinte. Seguimos Husserl em cada uma das admiráveis descrições[9] em que mostra a consciência transcendental constituindo o mundo ao aprisionar-se na consciência empírica; estamos persuadidos como ele de que nosso eu psíquico e psicofísico é um objeto transcendente que deve cair sob a ação da ἐποχή[10]. Mas nós nos colocamos a seguinte questão: Esse eu psíquico e psicofísico não é suficiente? É preciso duplicá-lo em um Eu transcendental, estrutura da consciência absoluta?[11] Vejamos as consequências da resposta. Sendo negativa, resulta:

1) que o campo transcendental torna-se impessoal, ou, se preferirmos, “pré-pessoal”, ele é sem Eu;

2) que o Eu aparece somente no nível da humanidade e não é mais que uma face do Moi, a face ativa[12];

3) que o Eu Penso pode acompanhar nossas representações porque ele vem à tona sobre um fundo de unidade que não contribuiu para criar e que, ao contrário, é esta unidade anterior que o torna possível;

4) que será lícito perguntar-se se a personalidade (mesmo a personalidade abstrata de um Eu) é um acompanhamento necessário de uma consciência e se não se podem conceber consciências absolutamente impessoais[13].

Ora, Husserl respondeu a essa questão. Depois de considerar que o Moi era uma produção sintética e transcendente da consciência (nas Investigações lógicas)[14], ele voltou, nas Ideen (Ideias)[15], à tese clássica de um Eu transcendental que estaria como que por detrás de toda consciência, que seria uma estrutura necessária dessas consciências cujos raios (Ichstrahl) incidiriam em cada fenômeno que se apresentasse no campo da atenção. Assim a consciência transcendental torna-se rigorosamente pessoal. Essa concepção era necessária? Ela é compatível com a definição que Husserl dá da consciência?

Acredita-se ordinariamente que a existência de um Eu transcendental se justifique pela necessidade de unidade e de individualidade da consciência. É porque todas as minhas percepções e todos os meus pensamentos se reportam a essa morada permanente que minha consciência é unificada; é porque eu posso dizer minha consciência e Pedro e Paulo podem também falar de sua consciência, que essas consciências se distinguem entre si. O Eu é produtor de interioridade. Ora, é certo que a fenomenologia não tem necessidade de recorrer a esse Eu unificador e individualizante. Com efeito, a consciência se define pela intencionalidade[16]. Pela intencionalidade, ela se transcende a si mesma, ela se unifica evadindo-se[17]. A unidade de mil consciências ativas pelas quais eu somei, somo e somarei dois com dois para fazer quatro é o objeto transcendente “dois mais dois fazem quatro”. Sem a permanência dessa verdade eterna seria impossível conceber uma unidade real e haveria tantas operações irredutíveis quantas consciências operatórias. É possível que aqueles que acreditam que “dois mais dois são quatro” é o conteúdo de minha representação sejam obrigados a recorrer a um princípio transcendental e subjetivo de unificação, que será então o Eu. Mas precisamente Husserl não precisa disso. O objeto é transcendente às consciências que o apreendem e é nele que se encontra sua unidade. Dir-se-á que, no entanto, é preciso um princípio de unidade na duração para que o fluxo contínuo das consciências seja suscetível de definir objetos transcendentes fora dele. É preciso que as consciências sejam sínteses perpétuas de consciências passadas e da consciência presente. Está certo. Mas é típico que Husserl, que analisou em A consciência interna do tempo essa unificação subjetiva das consciências, jamais recorreu a um poder sintético do Eu. É a consciência que se unifica a si mesma e concretamente por um jogo de intencionalidades “transversais” que são retenções concretas e reais de consciências passadas. Assim, a consciência remete perpetuamente a si mesma; quem diz “uma consciência” diz toda a consciência e essa propriedade singular pertence à consciência ela mesma, quaisquer que sejam ademais suas relações com o Eu[18]. Parece que Husserl, nas Meditações cartesianas, manteve inteiramente essa concepção da consciência que se unifica no tempo[19]. Por outro lado, a individualidade da consciência provém evidentemente da natureza da consciência. A consciência não pode ser demarcada (como a substância de Spinoza)[20] senão por si mesma. Ela constitui portanto uma totalidade sintética e individual totalmente isolada de outras totalidades do mesmo tipo e o Eu só pode ser evidentemente uma expressão (e não uma condição) dessa incomunicabilidade e dessa interioridade das consciências. Portanto, podemos responder sem hesitar: a concepção fenomenológica da consciência torna o papel unificante e individualizante do Eu totalmente inútil. É a consciência, ao contrário, que torna possível a unidade e a personalidade de meu Eu. O Eu transcendental, portanto, não tem razão de ser.

Mas, além disso, esse Eu supérfluo é nocivo. Se ele existisse, arrancaria a consciência de si mesma, a dividiria, escorregaria em cada consciência como uma lama opaca. O Eu transcendental é a morte da consciência. Com efeito, a existência da consciência é um absoluto porque a consciência é consciente de si mesma. Ou seja, o tipo de existência da consciência é de ser consciente de si[21]. E ela toma consciência de si enquanto como é consciente de um objeto transcendente[22]. Assim, tudo é claro e lúcido na consciência: o objeto encontra-se diante dela com toda a sua opacidade característica, mas ela, ela é pura e simplesmente consciência de ser consciência desse objeto, esta é a lei de sua existência. Devemos acrescentar que essa consciência de consciência – fora dos casos de consciência refletida sobre os quais nos deteremos logo à frente – não é posicional, quer dizer, que a consciência não é para si mesma seu objeto[23]. Seu objeto está fora dela por natureza, e é por isso que, em um mesmo ato, ela o põe e o apreende. Ela mesma não se conhece senão como interioridade absoluta. Denominaremos como essa consciência: consciência de primeiro grau ou irrefletida. Perguntamos: Existe aí lugar para um Eu em uma consciência assim? A resposta é clara: evidentemente não. Com efeito, esse Eu não é nem objeto (já que é interior por hipótese) nem tampouco da consciência, já que é alguma coisa para a consciência, não uma qualidade translúcida da consciência, mas, de alguma maneira, um habitante. Com efeito, o Eu, com sua personalidade, é tão formal, tão abstrato que o supomos como um centro de opacidade. Ele é para o eu concreto e psicofísico aquilo que o ponto é para as três dimensões: ele é um Moi infinitamente contraído. Se, portanto, introduzimos essa opacidade na consciência destruímos, dessa forma, a definição tão fecunda que dávamos há pouco, a coagulamos, a obscurecemos, já não será uma espontaneidade, ela carrega em si mesma como que um germe de opacidade. Mas, além disso, somos obrigados a abandonar esse ponto de vista original e profundo que faz da consciência um absoluto não substancial. Uma consciência pura é um absoluto tão somente porque ela é consciência de si mesma. Ela permanece portanto um “fenômeno” no sentido muito particular em que “ser” e “aparecer” compõem uma unidade[24]. Ela é completa leveza, completa translucidez. É nisso que o Cogito de Husserl se difere tanto do Cogito cartesiano. Mas se o Eu é uma estrutura necessária da consciência, esse Eu opaco é elevado ao mesmo tempo à posição de absoluto. Eis-nos, portanto, na presença de uma mônada. E é exatamente essa, infelizmente, a orientação do novo pensamento de Husserl (cf. as Meditações cartesianas)[25]. A consciência tornou-se pesada, ela perdeu o caráter que fazia dela o existente absoluto por força da inexistência. Ela é pesada e ponderável. Todos os resultados da fenomenologia ameaçam ruir se o Eu não for, tanto quanto o mundo, um existente relativo, significa dizer, um objeto para a consciência[26] .


B) O Cogito como consciência reflexiva

O “Eu Penso” kantiano é uma condição de possibilidade. O Cogito de Descartes e de Husserl é uma constatação de fato. Falou-se da “necessidade de fato” do Cogito, e essa expressão me parece muito justa. Ora, é inegável que o Cogito é pessoal. No “Eu Penso” há um Eu que pensa. Chegamos aqui ao Eu em sua pureza e é exatamente do Cogito que uma “Egologia” deve partir. O fato que pode servir de partida é, portanto, o seguinte: cada vez que nós apreendemos nosso pensamento, seja por uma intuição imediata, seja por uma intuição apoiada na memória, nós apreendemos um Eu que é o Eu do pensamento apreendido e que se dá, além disso, como transcendente a esse pensamento e a todos os outros pensamentos possíveis. Se, por exemplo, eu quero recordar determinada paisagem percebida no trem, ontem, é-me possível fazer retornar a recordação dessa paisagem enquanto tal, mas eu posso lembrar-me também que eu via essa paisagem. É o que Husserl denomina, na Consciência interna do tempo, a possibilidade de refletir na recordação[27]. Dito de outra forma, eu posso sempre operar uma rememoração qualquer sobre o modo pessoal e o Eu aparece imediatamente. Essa é a garantia de fato da afirmação de direito feita por Kant. Assim fica evidente que não há uma de minhas consciências que eu não apreenda como provida de um Eu. Mas devemos lembrar que todos os autores que descreveram o Cogito consideraram-no uma operação reflexiva, quer dizer, uma operação de segundo grau. Esse Cogito é operado por uma consciência dirigida sobre a consciência, que toma a consciência como objeto. Entendamo-nos: a certeza do Cogito é absoluta porque, como diz Husserl[28], existe uma unidade indissolúvel entre a consciência reflexiva e a consciência refletida (a tal ponto que a consciência reflexiva não poderia existir sem a consciência refletida). Permanece o fato de que estamos diante de uma síntese de duas consciências em que uma é consciência da outra. Assim, o princípio essencial da fenomenologia “Toda consciência é consciência de alguma coisa” está preservado. Ora, minha consciência reflexiva não se toma a si mesma como objeto quando eu realizo o Cogito. O que ela afirma diz respeito à consciência refletida. Enquanto minha consciência reflexiva é consciência de si mesma, ela é consciência não posicional. E se torna posicional apenas quando visa a consciência refletida que, ela própria, não era consciência posicional de si até ser refletida. Assim a consciência que diz “Eu Penso” não é precisamente a consciência que pensa. Ou antes não é seu pensamento que ela assenta por meio desse ato tético. Temos, portanto, fundamentos para nos perguntar se o Eu que pensa é comum às duas consciências sobrepostas ou se não é, ao invés disso, o Eu da consciência refletida. Toda consciência reflexiva, com efeito, é em si mesma irrefletida e é necessário um ato novo e de terceiro grau para assentá-la. Não existe aqui, por outro lado, remissão infinita, uma vez que uma consciência não tem absolutamente necessidade de uma consciência reflexiva para ser consciente de si mesma. Ela simplesmente não se coloca como objeto para si mesma[29].

Mas não seria precisamente o ato reflexivo que faria nascer o Moi na consciência refletida? Assim se explicaria que todo pensamento apreendido pela intuição possui um Eu, sem cair nas dificuldades assinaladas em nosso capítulo precedente. Husserl[30] é o primeiro a reconhecer que um pensamento irrefletido sofre uma modificação radical tornando-se refletido. Mas é preciso restringir essa modificação a uma perda de “naïveté”? O essencial da mudança não seria a aparição do Eu? Evidentemente, é preciso recorrer à experiência concreta e esta pode parecer impossível, pois, por definição, uma experiência desse tipo é reflexiva, ou seja, provida de um Eu. Mas toda consciência irrefletida, sendo consciência não tética dela mesma, deixa uma recordação não tética que é possível consultar[31]. Basta para isso procurar reconstituir o momento completo em que apareceu essa consciência irrefletida (o que é, por definição, sempre possível). Por exemplo, eu estava absorvido agora há pouco em minha leitura. Eu vou procurar lembrar as circunstâncias de minha leitura, minha atitude, as linhas que eu lia. Vou assim ressuscitar não apenas esses detalhes exteriores, mas uma certa espessura de consciência irrefletida, pois os objetos não puderam ser percebidos se não por esta consciência e permanecem relativos a ela. Essa consciência, não é preciso colocá-la como objeto de minha reflexão, mas ao contrário, é preciso que eu dirija minha atenção aos objetos ressuscitados, mas sem perdê-la de vista, mantendo com ela uma espécie de cumplicidade e inventoriando seu conteúdo de modo não posicional. O resultado não é duvidoso: enquanto eu estava lendo, havia a consciência do livro, dos heróis da história, mas o Eu não habitava essa consciência, ela era apenas consciência do objeto e consciência não posicional dela mesma. Esses resultados apreendidos ateticamente eu posso agora torná-los objeto de uma tese e declarar: não havia Eu na consciência irrefletida. Não é preciso considerar essa operação como artificial e concebida para as necessidades da causa: é evidentemente graças a ela que Titchener[32] podia dizer em seu Textbook of psychology que muitas vezes o Moi estava ausente de sua consciência. Ele não ia além disso, no entanto, e não procurou classificar os estados de consciência sem Moi.

Haverá, sem dúvida, a tentação de objetar que essa operação, essa apreensão não reflexiva de uma consciência por uma outra consciência, não pode evidentemente operar-se senão pela recordação e que, portanto, ela não goza da certeza absoluta inerente ao ato reflexivo. Nos encontraríamos, então, na presença, por um lado, na presença de um ato certo que me permite afirmar a presença do Eu na consciência refletida e, por outro, diante de uma recordação duvidosa que tenderia a fazer crer que o Eu está ausente na consciência irrefletida. Parece que não teríamos o direito de opor isso àquilo. Mas proponho considerarmos que a recordação da consciência irrefletida não se opõe aos dados da consciência reflexiva. Ninguém cogitaria negar que o Eu aparece em uma consciência refletida. Trata-se simplesmente de opor a recordação reflexiva de minha leitura (“Eu lia”), que é, também ela, de natureza duvidosa a uma recordação não refletida. A validade da presente reflexão, com efeito, não se estende para além da consciência apreendida presentemente. E a recordação reflexiva, à qual somos obrigados a recorrer para restituir as consciências transcorridas, além do caráter duvidoso que ela deve à sua natureza de recordação, continua suspeito uma vez que, na opinião do próprio Husserl, a reflexão modifica a consciência espontânea. Uma vez, portanto, que todas as recordações não reflexivas da consciência irrefletida me mostram uma consciência sem mim, e como, por outro lado, as considerações teóricas baseadas na intuição de essência da consciência nos obrigaram a reconhecer que o Eu não podia fazer parte da estrutura interna das “Erlebnissen”, só nos resta concluir que: não existe Eu sobre o plano irrefletido. Quando corro para pegar um ônibus, quando eu olho as horas, quando me absorvo contemplando um retrato, ali não há um Eu. O que há é consciência do ônibus-que-eu-devo--pegar etc., e consciência não posicional da consciência. De fato, estou então mergulhado no mundo dos objetos, são eles que constituem a unidade de minhas consciências, que se apresentam com valores, qualidades atrativas e repulsivas, mas eu mesmo desapareci, aniquilei-me. Não há lugar para mim neste nível, e isso não provém de um acaso, de uma falha momentânea da atenção, mas da estrutura própria da consciência.

É isso que uma descrição do cogito nos deixará ainda mais perceptível. Pode-se dizer, com efeito, que o ato reflexivo apreende no mesmo grau e da mesma maneira o Eu da consciência pensante? Husserl insiste no fato de que a certeza do ato reflexivo vem de que aí se apreende a consciência sem facetas, sem perfis, inteiramente (sem “Abschattungen”)[33]. É evidente. Do contrário, o objeto espaçotemporal se manifesta sempre através de uma infinidade de aspectos e, no fundo, não é mais que a unidade ideal dessa infinidade. Quanto às significações, às verdades eternas, elas afirmam sua transcendência na medida em que se dão, desde que aparecem como independentes do tempo, ao passo que a consciência que as apreende é, ao contrário, individualizada rigorosamente na duração. Então nos perguntamos: Quando uma consciência reflexiva apreende o Eu penso, o que ela apreende é uma consciência plena e concreta recolhida em um momento real da duração concreta? A resposta é clara: o Eu não se dá como um momento concreto[34], uma estrutura transitória de minha consciência atual; Ele afirma, ao contrário, sua permanência para além dessa consciência e de todas as consciências e – embora, certamente, ele não se pareça nem um pouco com uma verdade matemática – seu tipo de existência se aproxima bem mais das verdades eternas do que da consciência. Inclusive, é evidente que é por ter considerado que Eu e penso encontram-se no mesmo plano que Descartes passou do Cogito à ideia de substância pensante. Nós vimos há pouco que Husserl, embora mais sutilmente, cai, no fundo, na mesma questão. Sei perfeitamente que ele reconhece ao Eu uma transcendência especial que não é a do objeto e que se poderia denominar uma transcendência “por cima”. Mas com que direito? E como explicar esse tratamento privilegiado do Eu se não for por preocupações metafísicas ou críticas que nada têm a ver com a fenomenologia? Sejamos mais radicais e afirmemos sem temor que toda a transcendência deve cair sob a ἐποχή[35]; isto talvez nos poupe de escrever capítulos tão embaraçosos quanto o § 61 das Ideen. É porque o Eu se afirma a si próprio como transcendente no “Eu penso” que ele não é da mesma natureza que a consciência transcendental.

Observemos, além disso, que ele não aparece à reflexão como a consciência refletida: ele se dá por meio da consciência refletida. Certamente que ele é apreendido pela intuição e é o objeto de uma evidência. Mas, sabemos do serviço que Husserl prestou à filosofia ao distinguir diversas espécies de evidência[36]. Pois bem, é mais do que certo que o Eu do Eu penso não é objeto de uma evidência nem apodítica nem adequada. Não é uma evidência apodítica porque ao dizer Eu nós afirmamos bem mais do que sabemos. E não é adequada porque o Eu se apresenta como uma realidade opaca cujo conteúdo seria preciso desenvolver. Certamente, ele se manifesta como fonte da consciência, mas isso mesmo deveria nos fazer refletir: com efeito, por isso ele aparece velado, mal distinguido através da consciência, como um seixo no fundo da água – por isso mesmo é imediatamente enganador porque nós sabemos que nada, exceto a consciência, pode ser a fonte da consciência. Além disso, se o Eu faz parte da consciência, haverá, portanto, dois Eus: o Eu da consciência reflexiva e o Eu da consciência refletida. Fink[37], discípulo de Husserl, conhece ainda um terceiro, o Eu da consciência transcendental, liberado pela ἐποχή. Daí o problema dos três Eus, cujas dificuldades ele menciona não sem uma certa complacência. Para nós, esse problema é simplesmente insolúvel, pois não é admissível que se estabeleça uma comunicação entre o Eu reflexivo e o Eu refletido, se eles são elementos reais de consciência e, principalmente, que eles se identifiquem finalmente em um único Eu.

Como conclusão dessa análise parece-me que se pode fazer as seguintes constatações:

1ª) O Eu é um existente. Ele tem um tipo de existência concreta, diferente sem dúvida do tipo de existência das verdades matemáticas, das significações ou dos seres espaçotemporais, mas não menos real. Ele se dá a si mesmo como transcendente.

2ª) Ele se entrega a uma intuição de um tipo especial que o apreende por detrás da consciência refletida, de uma maneira sempre inadequada.

3ª) Ele nunca aparece, exceto por ocasião de um ato reflexivo. Nesse caso, a estrutura complexa da consciência é a seguinte: há um ato irrefletido de reflexão sem Eu que se dirige sobre uma consciência refletida. Esta torna-se o objeto da consciência que reflete, sem cessar, no entanto, de afirmar seu objeto próprio (uma cadeira, uma verdade matemática etc.). Ao mesmo tempo um objeto novo aparece, que é a ocasião de uma afirmação da consciência reflexiva e que não está consequentemente nem sobre o mesmo plano da consciência irrefletida (porque esta é um absoluto que não tem necessidade da consciência reflexiva para existir) nem sobre o mesmo plano que o objeto da consciência irrefletida (cadeira etc.). Esse objeto transcendente do ato reflexivo é o Eu.

4ª) O Eu transcendente deve cair sobre o golpe da redução fenomenológica. O Cogito afirma demais. O conteúdo certo do pseudo “Cogito” não é “eu tenho consciência desta cadeira”, mas “existe consciência desta cadeira”. O conteúdo é suficiente para constituir um campo infinito e absoluto para as pesquisas da fenomenologia.


C) Teoria da presença material do Moi

Para Kant e para Husserl o Eu é uma estrutura formal da consciência. Nós tentamos mostrar que um Eu nunca é puramente formal, que ele é sempre, mesmo de maneira abstrata concebido, uma contração infinita do Moi material. Mas precisamos, antes de ir adiante, nos desembaraçar de uma teoria puramente psicológica que afirma, por razões psicológicas, a presença material do Moi em todas as nossas consciências. É a teoria dos moralistas do “amor-próprio”. Segundo ele, se o amor por si – e consequentemente o Moi – seria dissimulado em todos os sentimentos sob mil formas diferentes. De uma maneira muito geral, o Moi, em função desse amor que ele se outorga, desejaria para ele mesmo todos os objetos que ele deseja. A estrutura essencial de cada um de meus atos seria uma referência a mim mesmo. O “Retorno para mim” seria constitutivo de toda consciência.

Objetar a esta tese que esse retorno a mim não está de forma alguma presente na consciência – por exemplo, quando tenho sede, e quero um copo de água e ele aparece para mim como desejável – não lhe causa problema: ela nos concederia isso de boa vontade. La Rochefoucauld é um dos primeiros a ter feito uso, sem nomeá-lo, do inconsciente: para ele o amor-próprio se dissimula sob as formas mais diversas. É preciso despistá-lo antes de apreendê-lo[38]. De uma forma mais genérica foi admitido em seguida que o Moi, se não está presente na consciência, está escondido atrás dela e que ele é o polo de atração de todas as nossas representações e de todos os nossos desejos. O Moi busca, portanto, obter o objeto para satisfazer seu desejo. Dito de outra forma, é o desejo (ou se preferimos o Moi desejante), que é dado como fim e o objeto desejado que é o meio.

Agora, o interesse desta tese nos parece ser que coloca em relevo um erro muito frequente dos psicólogos: ele consiste em confundir a estrutura essencial dos atos reflexivos com a dos atos irrefletidos[39]. Ignora-se que existem sempre duas formas de existência possível para uma consciência; e cada vez que as consciências observadas se dão como irrefletidas se lhes sobrepõe uma estrutura reflexiva a qual se pretende espantosamente que permaneça inconsciente.

Tenho piedade de Pedro e lhe presto socorro. Para minha consciência uma só coisa existe nesse momento: Pedro-devendo-ser-socorrido. Essa qualidade de “devendo-ser-socorrido” se encontra em Pedro. Ela age sobre mim como uma força. Aristóteles dissera: é o desejável que move o desejante. Neste nível o desejo[40] é dado à consciência como centrífugo (ele se transcende a si mesmo, ele é consciência tética do “devendo-ser” e consciência não tética de si mesmo) e impessoal (não existe Moi: estou diante da dor de Pedro como diante da cor deste tinteiro. Existe um mundo objetivo de coisas e de ações feitas ou a fazer, e as ações vêm aplicar-se como qualidades sobre as coisas que as reclamam). Ora, esse primeiro momento do desejo – supondo que ele não tenha escapado completamente aos teóricos do amor-próprio – não é considerado por eles como um momento completo e autônomo. Eles imaginaram por trás dele um outro estado que permanece na penumbra: por exemplo, eu socorro Pedro para fazer cessar o estado desagradável em que colocou-me a visão de seus sofrimentos. Mas esse estado desagradável não pode ser conhecido como tal e não se pode tentar suprimi-lo senão por meio de um ato de reflexão. Com efeito, um desagrado no plano irrefletido se transcende da mesma maneira que a consciência irrefletida de piedade. É a apreensão intuitiva de uma qualidade desagradável de um objeto. E, na medida em que pode acompanhar-se de um desejo, ele deseja não suprimir a si mesmo, mas suprimir o objeto desagradável[41]. De nada adianta, portanto, colocar por trás da consciência irrefletida de piedade um estado desagradável que se transformará na causa a prova funda do ato compadecido: se essa consciência de desagrado não se volta sobre si mesma para colocar-se por si como estado desagradável, ficaremos indefinidamente no impessoal e no irrefletido. Assim, portanto, sem sequer dar-se conta, os teóricos do amor-próprio supõem que o refletido é primeiro, original e dissimulado no inconsciente. É quase desnecessário demonstrar o absurdo de uma tal hipótese. Mesmo que o inconsciente exista[42], quem acreditaria que ele oculta espontaneidades de forma refletida? A definição de refletido não supõe ser posto por uma consciência? Mas, além disso, como admitir que o refletido seja primeiro em relação ao irrefletido? Sem dúvida, pode-se conceber que uma consciência apareça imediatamente como refletida, em certos casos. Mas, mesmo então o irrefletido possui a prioridade ontológica sobre o refletido, porque ele não tem nenhuma necessidade de ser refletido para existir e a reflexão supõe a intervenção de uma consciência de segundo grau.

Chegamos portanto à seguinte conclusão: a consciência irrefletida deve ser considerada como autônoma[43]. É uma totalidade que não tem necessidade nenhuma de ser completada e nós devemos reconhecer sem mais que a qualidade do desejo irrefletido é de transcender-se apreendendo do objeto a qualidade de desejável. Tudo se passa como se vivêssemos em um mundo em que os objetos, além de suas qualidades de calor, odor, forma etc. tivessem qualidades de repulsivos, atraentes, agradáveis, úteis etc. etc., e como se essas qualidades fossem forças que exercessem sobre nós alguma influência. No caso da reflexão, e unicamente nesse caso, a afetividade é posta por si mesma como desejo, temor etc.; somente no caso da reflexão eu posso pensar “Eu odeio Pedro”, “tenho pena de Paulo etc.” Portanto, ao contrário do que tem sido afirmado, é sobre esse plano que se situa a vida egoísta, e sobre o plano irrefletido que se situa a vida impessoal (o que, naturalmente, não quer dizer que toda a vida reflexiva seja necessariamente egoísta, nem que toda a vida irrefletida seja necessariamente altruísta). A reflexão “envenena”, o desejo[44]. No plano irrefletido eu presto socorro a Pedro porque Pedro tornou-se “devendo-ser-socorrido”. Mas se meu estado se transforma de repente em estado refletido, eis-me então no ato de me olhar agir no sentido em que se diz que alguém se ouve falar. Já não é mais Pedro que me atrai, mas minha consciência compassiva que me aparece como devendo ser perpetuada. Mesmo que eu pense apenas que devo realizar minha ação porque “isso é bom”, o bem qualifica minha atitude, minha piedade etc. A psicologia de La Rochefoucauld conserva seu lugar. Contudo, ela não é verdadeira: não é culpa minha se minha vida reflexiva envenena “por sua essência” minha vida espontânea, além do que a vida reflexiva supõe em geral a vida espontânea. Antes de ser “envenenados” meus desejos eram puros; é o ponto de vista que assumi sobre eles que os envenenou. A psicologia de La Rochefoucauld só é verdadeira para os sentimentos particulares que extraem sua origem da vida reflexiva, quer dizer, que se dão inicialmente como meus sentimentos, em vez de se transcender inicialmente rumo a um objeto.

Assim, o exame puramente psicológico da consciência “intramundana” nos leva às mesmas conclusões que nosso estudo fenomenológico: o Moi não deve ser procurado em estados de consciência irrefletidos e nem por trás deles. O Moi aparece somente com o ato reflexivo e como correlativo noemático[45] de uma intenção reflexiva. Nós começamos a entrever que o Eu e o Moi formam uma unidade. Tentaremos mostrar que esse Ego, do qual o Eu e o Moi não são mais que duas faces, constitui a unidade ideal (noemática) e indireta da serie infinita de nossas consciências refletidas.

O Eu é o Ego como unidade das ações. O Moi é o Ego como unidade dos estados e das qualidades. A distinção que se estabelece entre esses dois aspectos de uma mesma realidade nos parece simplesmente funcional, para não dizer gramatical.





[*]. Sartre utiliza as duas formas de “Eu”, presentes na língua francesa, como substantivos invariáveis: respectivamente “Je” e “Moi”, que são indistinguíveis em português, correspondendo ambos ao pronome e substantivo “Eu”. Ao fazê-lo, diferencia “duas faces” do Ego que, afinal, compõem uma unidade (cf. adiante, p. 39. Cf. tb. a distinção do uso desses dois termos pelo autor explicada por Sylvie Le Bon à nota de rodapé 12, p. 19,). Observa-se que nas traduções das obras de Sartre tem-se recorrido a diferentes formas de lidar com essa dificuldade para distinguir o “Eu-Je” do “Eu-Moi”. O mais comum tem sido usar “Eu” e “Mim” respectivamente (cf. O Ser e o Nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 221). No entanto, entendemos que o uso de “Mim” não corresponde ao “Moi”, aqui substantivo, mas o enfraquece, pois o “Moi” francês não é apenas um pronome oblíquo que poderia ser traduzido por “mim” ou “me”, mas uma forma substantivada que, no uso corrente, equivale ao pronome pessoal reforçando a individualidade e a distinção do sujeito que fala. Seria algo como “Eu-mesmo”, “Meu-eu” ou “Eu-quanto-a-mim”... Assim, na falta de um correspondente à altura, e à substituição por uma forma menos densa que não corresponde ao original, preferimos aqui manter o termo original Moi, convidando o leitor a adentrar-se no sentido filosófico do conceito começando pela compreensão de seu significado primário [N.T.].

[1]. Critique de la Raison pure, seconde éd., Analytique transcendantale, L. 1, ch. 2, 2e section, § 16: “De l’unité originairement synthétique de l’aperception”. Cf. igualmente § 17-18 (Traduction Tremesaygues-Pacaud, p. 110-118).

[2]. O neokantismo é representado por Lachelier e Brunschvicg; o empírio-criticismo por Mach; quanto a Victor Brochard (1848-1907), ele não era apenas historiador da filosofia antiga: foi o autor de uma tese: De l’Erreur (Sobre o erro – 1879) e de diversos artigos de filosofia ou de moral recolhidos ao final da obra: Études de philosophie ancienne et de philosophie moderne (Estudos de filosofia antiga e de filosofia moderna. Vrin, 1954).

[3]. BOUTROUX. La philosophie de Kant (A filosofia de Kant), curso proferido na Sorbonne em 1896-1897. Paris: Vrin, 1926.

[a]. Empregarei aqui o termo “consciência” para traduzir a palavra alemã “Bewusstsein” que significa tanto a consciência total, a mônada, como cada momento dessa consciência. A expressão “estado de consciência” me parece inexata por causa da passividade que ela introduz na consciência.

[4]. Em L’Imagination (PUF, 1936), a propósito do problema singular da imagem, Sartre separa os traços gerais da revolução filosófica que foi o surgimento da fenomenologia. Como aqui, ele insiste na fecundidade de um método que se quer descritivo, mesmo se os “fatos” que lhe apresenta a intuição são essências. “A fenomenologia é uma descrição das estruturas da consciência transcendental fundada sobre a intuição das essências dessas estruturas” (cap. IV: “Husserl”, p. 140).

[5]. Husserl desenvolve esse projeto em La philosophie comme science rigoureuse (A filosofia como ciência rigorosa) (1911).

[6]. “Nos atos de intuição imediata, temos a intuição da ‘coisa em si mesma’, Idées directrices pour une phénoménologie (Ideias diretrizes para uma fenomenologia) (que designaremos por Ideen I), § 43 (Trad. Ricoeur, p. 139).

[b]. Husserl diria: uma ciência de essências. Mas para o ponto de vista em que nos situamos isso dá na mesma.

[7]. “Ciência de fato” e “ciência de essências” – ou ainda “ciência eidética”, essas expressões, aqui, dão na mesma. Com efeito, Sartre não está se referindo, nesse momento, à oposição – em outros locais essencial – entre fato empírico e essência, mas à oposição, mais global, entre problemas de fato e problemas de direito. Ora, fato e essência aparecem em bloco como dados, e o essencial (aqui) é precisamente que a fenomenologia seja a ciência de um dado (material ou ideal, pouco importa por enquanto), face à perspectiva kantiana que coloca a questão do puro direito. É porque ela visa um dado, um conjunto de fatos, que a fenomenologia é uma ciência descritiva. Por outro lado, se é verdade que Husserl quis fundar uma “ciência de essências” ou “eidética”, é necessário considerar sobretudo aqui que essas essências são apresentadas com certeza, em uma vista imediata, exatamente como o seriam os objetos. Desse ponto de vista, elas são fatos (ideais).
“A essência Eidos é um objeto de um novo tipo. Assim como na intuição do indivíduo ou intuição empírica, o dado é um objeto individual, assim também o dado da intuição eidética é uma essência pura. [...] A intuição das essências Wesens-Schaung ela também é uma intuição, e o objeto eidético, também ele um objeto”, Ideen I, 1re section, ch. 1: “Fait et essence”, § 3 (Trad. Ricoeur, p. 21).

[8]. A ἐποχή (epoché), a redução fenomenológica, é a colocação entre parêntesis da atitude natural, sempre marcada por um realismo espontâneo; Sartre designa também, seguindo Husserl, essa consciência natural pela expressão “consciência intramundana”. Sobre isso ou sobre as reduções, cf. Ideen I, cap. IV da 2ª sessão, § 56 a 62 (Trad. Ricoeur, p. 187 a 208); e as Méditations cartésiennes, § 8 (Trad. Levinas, p. 17-18).

[9]. Aquelas das Ideen I, principalmente.

[10]. “Para mim, sujeito meditante, situado e persistente na έποχή, e colocando-me assim como fonte exclusiva de todas as afirmações e de todas as justificações objetivas, não existe, portanto, nem Eu psicológico nem fenômenos psíquicos no sentido da psicologia, quer dizer, compreendidos como elementos reais de seres humanos (psicofísicos)”, Méditations cart. § 11 (Trad., p. 22).

[11]. O problema se encontra colocado em Husserl, no § 11 das Meditações cartesianas já citadas, e intitulado “O Eu psicológico e o Eu transcendental”. Com efeito, na passagem citada na nota 10, Husserl acrescenta imediatamente: “Pela ἐποχή fenomenológica, eu reduzo meu Eu humano natural e minha vida psíquica – domínio de minha experiência psicológica, interna – ao meu Eu transcendental e fenomenológico”. Ora, desse Eu transcendental, ele afirma que não se pode jamais reduzi-lo.

[12]. Sartre designa por meio do conceito de “Eu” a personalidade em seu aspecto ativo; por “Moi”, ele entende a totalidade concreta psicológica da mesma personalidade. É bem-entendido que o Eu e o Moi compõem uma unidade, eles constituem o Ego, do qual são as duas faces (cf. nota 52).
O estatuto do Ego, aqui discutido, é adquirido em O Ser e o Nada, p. 221ss.

[13]. As consequências enumeradas constituem o fundo da tese que Sartre irá defender, em oposição aos últimos trabalhos de Husserl.

[14]. Recherches Logiques. Tomo I, 2a. parte, V, § 8: “O eu puro e o ter consciência” (Trad., p. 159ss.). A evolução de Husserl é perceptível no interior das próprias Recherches Logiques. Com efeito, Husserl escreve: “Além disso, eu devo reconhecer, é verdade, que não posso absolutamente chegar a descobrir esse eu primitivo enquanto centro de referência necessário”. Ao que ele (infelizmente) acrescentou na segunda edição, de 1913, a seguinte nota: “Desde então, eu aprendi a encontrá-lo, ou compreendi antes, que não era preciso deixar-se reter, na apreensão pura do dado, pelo temor de cair no excesso da metafísica do eu”.

[15]. Cf. Ideen I, § 80, para a imagem do raio e, sobretudo, § 57: “O Eu puro é colocado fora de circuito?” (Trad., p. 188). Cf. tb. a 4ª Meditação cartesiana, relativa aos problemas constitutivos do ego transcendental.

[16]. Para Sartre, a hipótese de um Eu transcendental como morada pessoal unificadora e fundadora de toda consciência é supérflua. Para ele existe apenas um campo transcendental pré-pessoal ou impessoal. Transcendente e transcendental não assumem para ele um sentido kantiano, mas antes um sentido husserliano, tal como é definido por exemplo pelo § 11 das Meditações cartesianas. É transcendental o campo constituído pelas consciências originárias fornecedoras de sentido. Devemos observar que Sartre abandonará esse termo (por demais kantiano?), que não se encontrará mais, por assim dizer, em O Ser e o Nada. A consciência é considerada conforme ela é irrefletida ou reflexiva, posicional ou não posicional de si. Não existe mais Ego nem mesmo campo transcendental. Por outro lado, a transcendência do Ego permanece uma tese fundamental. As noções de transcendência e de intencionalidade, com efeito, são correlativas. “A transcendência é estrutura constitutiva da consciência” (cf. O Ser e o Nada, p. 34), quer dizer que, de improviso, a consciência sai de si mesma para dirigir-se aos objetos. É o que significa a famosa afirmação “Toda consciência é consciência de alguma coisa”. Correlativamente, são denominados transcendentes à consciência o mundo e seus objetos (físicos, culturais etc.), enquanto eles estão, por definição, fora da consciência, e são para ela o Outro absoluto.

[17]. Sobre a intencionalidade, confira Ideen I, § 84, 3ª seção, cap. 2: “A intencionalidade como tema capital da fenomenologia” (Trad., p. 282); bem como o artigo de Sartre publicado nas Situações I: “Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade” (p. 32-35).

[18]. Sobre a autoconstituição do tempo fenomenológico, veja as Lições sobre consciência interna do tempo (1904-1910), § 39 (Trad. Dussort, p. 105ss.), intitulado “A dupla intencionalidade da retenção e a constituição do fluxo da consciência”, onde Husserl explica que “O fluxo da consciência constitui sua própria unidade”.

[19]. Cf. 4ª Meditação cartesiana, § 37: “O tempo, forma universal de toda gênese egológica” (Trad. p. 63).

[20]. “Por substância eu entendo aquilo que existe em si e é concebido por si, ou seja, aquilo cujo conceito não precisa do conceito de uma outra coisa para ser formado” (Ética. 1ª parte, definição III).
Sartre diz: “A consciência é consciência de ponta a ponta. Ela só poderia, pois, ser limitada por si mesma” (O Ser e o Nada, Introdução, p. 27).

[21]. “Por se tratar de absoluto de existência e não de conhecimento, escapa à famosa objeção de que um absoluto conhecido não é mais um absoluto por se tornar relativo ao conhecimento que dele se tem. Realmente, o absoluto, aqui, não é resultado de construção lógica no terreno do conhecimento, mas sujeito da mais concreta das experiências. E não é relativo a tal experiência, porque é essa experiência. E também é um absoluto não substancial” (O Ser e o Nada, p. 28).

[22]. “A transcendência é estrutura constitutiva da consciência, quer dizer, a consciência nasce tendo por objeto um ser que não é ela. [...] A consciência implica seu ser um ser não consciente e transfenomenal. [...] A consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este ser implica outro ser que não si mesmo” (O Ser e o Nada, p. 34-35).

[23]. “Toda consciência posicional do objeto é ao mesmo tempo consciência não posicional de si” (O Ser e o Nada, p. 24).

[24]. “Na esfera psíquica não existe nenhuma distinção entre aparecer e ser. [...] Essas aparências em si não constituem um ser que apareceria, também ele, com a ajuda das aparências pelas quais ele apareceria”. Husserl, La philosophie comme science rigoureuse (p. 83 da tradução de Q. Lauer).
“O pensamento moderno realizou um progresso considerável ao reduzir o existente à série de aparições que o manifestam. [...] O dualismo do ser e do aparecer não pode encontrar legitimidade na filosofia. [...] O ser de um existente é exatamente o que o existente aparenta. Assim chegamos à ideia de fenômeno como pode ser encontrada, por exemplo, na “Fenomenologia” de Husserl ou Heidegger: o fenômeno ou o relativo-absoluto. [...] (O fenômeno) pode ser estudado e descrito como tal porque é absolutamente indicativo de si mesmo” (O Ser e o Nada, p. 15-16).

[25]. Orientação que indicam a 4ª Meditação cartesiana, que trata da “plenitude concreta do Moi como mônada”, e a 5ª Meditação, intitulada “Determinação do domínio transcendental como intersubjetividade monadológica”.

[26]. As dificuldades decorrentes da concepção husserliana da consciência transcendental como arquirregião foram recentemente evocadas em um artigo de M. Derrida publicado nos Études philosophiques (Estudos filosóficos) (1963: “Phänomenologische Psychologie. Vorlesungen Sommer-semester 1925, por Ed. Husserl”. M. Derrida escreve em particular: “Meu Eu transcendental é radicalmente diferente, precisa Husserl, de meu Eu natural e humano; e contudo não se distingue em nada dele. [...] Eu (transcendental) não é um outro. Não é, sobretudo, um fantasma metafísico ou formal do eu empírico. Isto levaria a denunciar a imagem teorética e a metáfora do Eu espectador absoluto de seu próprio eu psíquico, toda essa linguagem analógica de que, às vezes, temos que nos servir para anunciar a redução transcendental e para descrever esse ‘objeto’ insólito que é o eu psíquico diante do Ego transcendental absoluto”.

[27]. Por exemplo, no Suplemento XII: “A consciência interna e a apreensão das vivências” (p. 179ss. da tradução).

[28]. Com o “Eu sou”, eu apreendo uma evidência apodítica, diz ainda Husserl nas Meditações cartesianas.

[29]. Para resumir, uma análise fenomenológica da consciência discernirá três graus de consciência:
1º) Um primeiro grau no nível da consciência irrefletida, não posicional de si, porque é consciência de si enquanto consciência de um objeto transcendente.
Com o Cogito:
2º) Um segundo grau: a consciência reflexiva é não posicional de si mesma, mas posicional da consciência refletida.
3º) Um terceiro grau, que é um ato tético ao segundo grau, pelo qual a consciência reflexiva torna-se posicional de si.
Dito de outra forma, no nível do segundo grau existem atos irrefletidos de reflexão.
Quanto à autonomia da consciência irrefletida, ela é fortemente afirmada na introdução de O Ser e o Nada.

[30]. Na introdução às Ideen I, Husserl declara que a fenomenologia “exige o abandono das atitudes naturais ligadas à nossa experiência e a nosso pensamento, ou seja, uma mudança radical de atitude” (Trad. p. 6); e no § 31, intitulado “Alteração radical da tese natural” (Trad. p. 96), ele explicita essa afirmação.

[31]. Husserl apela a recordações não téticas de consciências não téticas nas Lições sobre a consciência interna do tempo.

[32]. Titchener (1867-1927) é um psicólogo anglo-americano. Aluno de Wundt, ele se dedicou à psicologia experimental e influenciou sobretudo a psicologia anglo-saxã.
Pode-se citar dele: An outline of psychology (1896); Lehrbuch der psychologie (citado aqui) (1910-1912); Experimental psychology (1927).

[33]. Sartre se refere aqui à teoria fenomenológica da percepção por “perfis” ou “esboços”, em alemão “Abschatttungen” . Cf. Ideen I, § 41 (Trad. p. 130-134). “Em virtude de uma necessidade eidética, uma consciência empírica da mesma coisa percebida sob “todas essas faces” e que se confirma continuamente em si mesma de maneira a formar somente uma única percepção, comporta um sistema complexo formado por um diverso ininterrupto de aparências e esboços; nesses diversos vem esboçar-se eles mesmos sich abschatten, por meio de uma continuidade determinada, todos os momentos do objeto que se oferecem na percepção com o caráter de dar-se a si-mesma corporalmente” (Trad. p. 132-133).
Sartre opõe pensamento e percepção por exemplo em O imaginário, 1ª parte, p. 18ss.: “Trata-se de fenômenos radicalmente distintos: um, saber consciente de si mesmo, que se situa de uma vez no centro do objeto; outra, a unidade sintética de uma multiplicidade de aparências, que faz lentamente sua aprendizagem” .

[34]. Husserl parece tê-lo pressentido, mas ele não se detém nessa intuição. Contudo, no § 54 das Ideen I ele escreveu: “É certo que se pode pensar uma consciência sem corpo e, por mais paradoxal que isso pareça, sem alma, uma consciência não pessoal, quer dizer, um fluxo vivido em que não se constituiriam as unidades intencionais empíricas denominadas corpo e alma, sujeito pessoal empírico, e onde todos os conceitos empíricos, inclusive, consequentemente, o do vivenciado no sentido psicológico (enquanto vivência de uma pessoa, de um eu animado) perderiam todo ponto de apoio e, em todo caso, toda a validade” (Trad. p. 182).

[35]. Algo que Husserl jamais reconhecerá.
“Entre os traços distintivos gerais que apresentam as essências do domínio do vivenciado após a purificação transcendental, o primeiro lugar é dado expressamente à relação que une cada vivência ao eu ‘Puro’. Cada cogito, cada ato tem um sentido especial; caracteriza-se como ato do eu, procede do eu, nele o eu vive atualmente. [...] Nenhuma suspensão pode abolir a forma do cogito e suprimir por um ato o ‘puro’ sujeito do ato: o fato ‘de ser dirigido sobre’, ‘de estar ocupado com’, ‘de posicionar-se em relação a’, ‘de fazer experiência de’, ‘de sofrer de’, envolve necessariamente em sua essência de ser precisamente um raio que emana do eu, ou em sentido inverso que se dirige para o eu; esse eu é o puro eu; nenhuma redução tem influência sobre ele” (Ideen I, § 80 (Trad. p. 270): “A relação do vivido como eu puro”).
Igualmente, 1ª Meditação cartesiana, § 8, p. 18: após a redução, “Eu me encontro como ego puro com o cotidiano puro de minhas cogitações”.

[36]. As diversas espécies de evidências são definidas nas Ideen I, § 3, e também na primeira Meditação cartesiana, § 6.

[37]. FINK. Die phänomenologische Philosophie E. Husserls in der gegenwärtigen Kritik. Kantstudien (1933).

[38]. “O amor-próprio é o amor de si mesmo, e de todas as coisas para si; ele torna os homens idólatras de si mesmos, e os tornaria tiranos dos outros se a fortuna lhes desse os meios; ele jamais repousa fora de si, e não se detém nos sujeitos alheios senão como abelhas sobre as flores, para tirar deles o que lhes é próprio. Nada mais impetuoso do que seus desejos, nada de mais oculto do que seus desígnios, nada mais hábil do que suas atitudes: suas flexibilidades não se podem representar, suas transformações superam as das metamorfoses, e seus refinamentos, os da química. Não se pode sondar a profundeza nem perceber as trevas de seus abismos” (LA ROCHEFOUCAULD. Maximes. Suplemento de 1693).

[39]. Sobre a dupla forma de existência sempre possível para uma consciência e garantia da autonomia do pré-reflexivo, cf. O Ser e o Nada, Introdução.

[40]. A descrição fenomenológica do desejo é desenvolvida em O Ser e o Nada (p. 473-511).

[41]. Igualmente a emoção é um comportamento irrefletido, não inconsciente, mas consciente de si mesma não teticamente, e sua forma de ser teticamente consciente de si mesma está em transcender-se e apreender-se no mundo como uma qualidade das coisas. A emoção é uma “transformação do mundo”, segundo o Esboço de uma teoria das emoções (p. 32-33).

[42]. Sobre o problema colocado pelo inconsciente freudiano, veja, em O Ser e o Nada, o capítulo “A má-fé”, p. 92-100; e a 4ª parte, cap. 2, 1: “A psicanálise existencial”, p. 682-703. Dirigir-se também à nota 74, adiante.

[43]. Sartre insistirá sempre nessa autonomia da consciência irrefletida, que encontra seu fundamento na intencionalidade essencial das consciências. Essa concepção da prioridade ontológica do irrefletido sobre o refletido permanece central em suas obras posteriores, particularmente O imaginário (a imagem é uma evidência antepredicativa), a Teoria das emoções, O imaginário, e O Ser e o Nada, pois ela constitui o único meio radical de eliminar todo idealismo.

[44]. Da mesma maneira que o perverso, substituindo seu desejo em si como desejável por este-objeto-desejável, evenena-o por isso mesmo, imediatamente. De qualquer modo, o faz sofrer uma alteração fundamental em relação ao desejo ingênuo (cf. O Ser e o Nada, p. 479).

[45]. Os termos “noême” (noemático) e “noèse” vêm da fenomenologia de Husserl. Cf. Ideen I, 3ª seção, cap. 3. Sartre dá aos termos uma definição voluntariamente simplificada em L’Imagination (A imaginação), cap. 4. p. 153ss.: “A fenomenologia, tendo colocado o mundo entre parêntesis, não o perdeu por isso. A distinção consciência-mundo perdeu seu sentido. No presente, o corte se faz de outro modo; distingue-se o conjunto dos elementos reais da consciência (a hylé e os diferentes atos intencionais que a exprimem) e por outro lado o sentido que habita essa consciência. A realidade psíquica concreta será denominada noèse e o sentido que vem habitá-la noême. Por exemplo, “árvore-em-flor-percebida” é noême da percepção que tenho neste momento. Mas esse sentido “noemático” que pertence a cada consciência real não é, em si, nada de real”.