Introdução

O Ensaio sobre a transcendência do Ego[1] é a primeiríssima obra filosófica de Sartre. As únicas duas publicações que a precederam, de fato, não podem ser consideradas como pesquisas filosóficas propriamente ditas. Uma é um artigo sobre a teoria realista do direito em Duguit, publicado em 1927; a outra, A lenda da verdade (La legende de la vérité)[2], em que Sartre expunha suas ideias sob a forma de um conto, publicado em 1931 na revista Bifur.

Com este ensaio, Sartre inaugura, portanto, um trabalho de investigação que desembocará em O Ser e o Nada. Também a cronologia confirma a incontestável unidade de suas preocupações filosóficas nesse período: pode-se dizer que todas as suas obras dessa época foram, se não redigidas, ao menos concebidas, ao mesmo tempo. O Ensaio sobre a transcendência do Ego foi escrito em 1934, em parte durante a estadia de Sartre em Berlim para estudar a fenomenologia de Husserl. Em 1935-1936, ele escreveu ao mesmo tempo A imaginação (L’Imagination) e O imaginário (L’Imaginaire) publicados respectivamente em 1936 e 1940, e depois, em 1937-1938, A psique (La Psyché), que ele já havia idealizado em 1934. Da Psique ele separou o que se tornaria o Esboço de uma teoria fenomenológica das emoções (Esquisse d’une théorie phénoménologique des émotions) e que foi publicado em 1939. Lembremo-nos, enfim, que O Ser e o Nada (L’Être et le Néant) veio logo em seguida, e foi publicado em 1943. Nessa última obra, ele reteve explicitamente suas conclusões do Ensaio sobre a transcendência do Ego[3], completando e aprofundando, no entanto, a refutação do solipsismo, considerada insuficiente.

Sartre não renegaria esse ensaio da juventude se não em um único ponto que, ademais, encontra-se muito pouco desenvolvido: trata-se de quanto tange à psicanálise. Ele revisou totalmente sua antiga concepção – sua rejeição – do inconsciente e da compreensão psicanalítica e não defenderia mais suas prevenções anteriores nesse domínio.

Mas a teoria da estrutura da consciência em si, assim como a ideia fundamental do Ego como objeto psíquico transcendente, são sempre as suas.

A melhor apresentação desse denso, embora curto, ensaio foi feita por Simone de Beauvoir, e o melhor é reproduzi-la aqui. O Ensaio sobre a transcendência do Ego, escreve ela[4], “descreve, sob uma perspectiva husserliana, mas em oposição a algumas das mais recentes teorias de Husserl, a relação do ‘Moi[*] com a consciência; entre a consciência e o psíquico ele estabelece uma distinção que irá manter sempre; enquanto a consciência é uma imediata e evidente presença de si, o psíquico é um conjunto de objetos que não se distinguem senão por uma operação reflexiva e que, como os objetos da percepção, dão-se apenas como perfis: o ódio, por exemplo, é um transcendente que se apreende através das Erlebnisse e cuja existência é somente provável. Meu Ego é, ele mesmo, um ser do mundo, tanto quanto o Ego dos outros. Assim, Sartre fundava uma de suas crenças mais antigas e mais obstinadas: existe uma autonomia da consciência irrefletida; a relação com o eu que, segundo La Rochefoucald e a tradição psicológica francesa, perverteria nossos movimentos mais espontâneos, aparece somente em algumas circunstâncias particulares. O que lhe importava, sobretudo, é que essa teoria, e apenas ela, dizia ele, permitia escapar do solipsismo, do psíquico, do Ego existente para o outro e para mim da mesma maneira objetiva. Abolindo o solipsismo, evitavam-se as armadilhas do idealismo e, em sua conclusão, Sartre insistia no alcance prático (moral e político) de sua tese”.





[1]. Essai sur la transcendance de l’Ego, publicado pela primeira vez em Recherches philosophiques, em 1936, e nunca mais reeditado.

[2]. Cf. BEAUVOIR, S. La force de l’âge. Gallimard, 1960, p. 49.

[3]. Cf. O Ser e o Nada. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 155 e 221.

[4]. BEAUVOIR, S. La force de l’âge, p. 189-190.

[*]. Sobre a manutenção do termo francês Moi, cf. adiante a nota do tradutor, sob o título I “O Eu e o Moi”, p. 15 [N.T.].