Título II

DA TRANSMISSÃO DAS OBRIGAÇÕES

Capítulo I

DA CESSÃO DE CRÉDITO

1. A transmissão das obrigações

1.1. Noções gerais

A relação obrigacional admite alterações na composição de seus elementos essenciais: conteúdo ou objeto e sujeitos ativo e passivo. A mudança no conteúdo da obrigação aparece com a sub-rogação real e com a transação, que serão estudadas mais adiante.

De acordo com a antiga concepção romana da obrigação, entendida como vínculo de natureza pessoal, não podia ser esta transferida de um sujeito a outro sem que se considerasse modificado o vínculo jurídico. A mudança no polo ativo ou passivo ocorria unicamente em virtude da sucessão hereditária.

A ideia de um vínculo pessoal rígido cede, posteriormente, em favor da consideração do conteúdo patrimonial da obrigação como elemento essencial, em face do qual as pessoas do credor e do devedor, embora indispensáveis para a existência da relação, não têm influência decisiva na sua individualidade própria. Se a obrigação é um valor que integra o patrimônio do credor, poderá ser objeto de transmissão, da mesma forma que os demais direitos patrimoniais e, portanto, pode-se aceitar com certa facilidade a possibilidade de uma substituição na pessoa do credor em face da cessão do crédito.

O direito moderno admite, sem qualquer dificuldade, a livre transferência das obrigações, quer quanto ao lado ativo, quer quanto ao lado passivo, embora tenha sido mais demorada a aceitação desta última hipótese pelo fato de ser a obrigação um valor que deve ser realizado no patrimônio do devedor, interessando ao credor que o substituto ofereça, pelo menos, a mesma garantia pela propriedade de bens que assegurem o pagamento. Concorda-se hoje que a transferência pode dar-se, ativa ou passivamente, mediante sucessão hereditária ou a título particular, por atos inter vivos1.

Assinala Orlando Gomes2, a propósito, que o conceito de obrigação modificou-se profundamente, em comparação com o direito romano, afirmando que a substituição do credor, ou do devedor, na relação obrigacional, sem extinção do vínculo, é conquista do direito moderno, tendo sido longo o caminho percorrido para se chegar a essa conceituação.

Karl Larenz3 pondera que todos os direitos suscetíveis de avaliação pecuniária constituem o patrimônio da pessoa. Ora, é próprio dos direitos patrimoniais a transmissibilidade. Se o crédito representa um valor patrimonial, assim reconhecido pelo ordenamento jurídico, é evidente que pode ser objeto do comércio jurídico, do mesmo modo que outros bens integrantes do patrimônio do sujeito, que lhe pertençam por direito real.

A relação obrigacional é passível, portanto, de alteração na composição de seu elemento pessoal, sem que esse fato atinja sua individualidade, de tal sorte que o vínculo subsistirá na sua identidade, apesar das modificações operadas pela sucessão singular ativa ou passiva. Com a substituição de um dos sujeitos da relação obrigacional, não deixa de ser esta ela mesma, continuando, portanto, a existir como se não houvesse sofrido qualquer alteração.

O ato determinante dessa transmissibilidade das obrigações denomina-se cessão, que vem a ser a transferência negocial, a título gratuito ou oneroso, de um direito, de um dever, de uma ação ou de um complexo de direitos, deveres e bens, de modo que o adquirente, denominado cessionário, exerça posição jurídica idêntica à do antecessor, que figura como cedente4.

1.2. Espécies

A transmissibilidade das várias posições obrigacionais pode decorrer, presentes os requisitos para a sua eficácia, de:

a) cessão de crédito, pela qual o credor transfere a outrem seus direitos na relação obrigacional;

b) cessão de débito, que constitui negócio jurídico pelo qual o devedor transfere a outrem a sua posição na relação jurídica, sem novar, ou seja, sem acarretar a criação de obrigação nova e a extinção da anterior;

c) cessão de contrato, em que se procede à transmissão, ao cessionário, da inteira posição contratual do cedente, como sucede na transferência a terceiro, feita pelo promitente comprador, por exemplo, de sua posição no compromisso de compra e venda de imóvel loteado, sem anuência do credor.

O Código de 1916 tratava somente da cessão de crédito, em título autônomo (Título III), situando-o após as modalidades e os efeitos das obrigações (respectivamente, Títulos I e II). O Código de 2002 reestruturou o Livro das Obrigações, criando um título novo denominado “Da transmissão das obrigações”, no qual disciplinou a cessão de crédito (Capítulo I) e a cessão de débito, esta sob a denominação de assunção de dívida (Capítulo II).

2. Conceito de cessão de crédito

Cessão de crédito é negócio jurídico bilateral, pelo qual o credor transfere a outrem seus direitos na relação obrigacional. Trata-se de um dos mais importantes instrumentos da vida econômica atual, especialmente na modalidade de desconto bancário, pelo qual o comerciante transfere seus créditos a uma instituição financeira. Tem feição nitidamente contratual5.

O instituto em estudo pode configurar tanto alienação onerosa como gratuita, preponderando, no entanto, a primeira espécie. O terceiro, a quem o credor transfere sua posição na relação obrigacional, independentemente da anuência do devedor, é estranho ao negócio original.

O credor que transfere seus direitos denomina-se cedente. O terceiro a quem são eles transmitidos, investindo-se na sua titularidade, é o cessionário. O outro personagem, devedor ou cedido, não participa necessariamente da cessão, que pode ser realizada sem a sua anuência. Deve ser, no entanto, dela comunicado, para que possa solver a obrigação ao legítimo detentor do crédito. Só para esse fim se lhe comunica a cessão, mas sua anuência ou intervenção é dispensável.

O contrato de cessão é simplesmente consensual, pois torna-se perfeito e acabado com o acordo de vontades entre cedente e cessionário, não exigindo a tradição do documento para se aperfeiçoar. Todavia, em alguns casos a natureza do título exige a entrega, como sucede com os títulos de crédito, assimilando-se então aos contratos reais6.

3. Cessão de crédito e institutos afins

Como já exposto, a cessão de crédito pode ocorrer a título gratuito ou oneroso, sendo mais comum esta última modalidade. Pode caracterizar, também, dação em pagamento (datio in solutum), quando a transferência é feita em pagamento de uma dívida.

A alienação onerosa assemelha-se a uma venda, desempenhando papel idêntico a esta. A cessão, contudo, tem por objeto bem incorpóreo (crédito), enquanto a compra e venda destina-se à alienação de bens corpóreos. Nesta participam apenas um comprador e um vendedor. Naquela há necessariamente os três personagens citados.

A cessão de crédito distingue-se, também, da novação subjetiva ativa, porque nesta, além da substituição do credor, ocorre a extinção da obrigação anterior, substituída por novo crédito. Naquela, porém, subsiste o crédito primitivo, que é transmitido ao cessionário, com todos os seus acessórios (CC, art. 287), inexistindo o animus novandi.

Não se confunde ainda a cessão de crédito com a sub-rogação legal. O sub-rogado não pode exercer os direitos e ações do credor além dos limites de seu desembolso, não tendo, pois, caráter especulativo (CC, art. 350). A cessão de crédito, embora excepcionalmente possa ser gratuita, em geral encerra o propósito de lucro. A sub-rogação convencional, porém, na hipótese do art. 347, I, do Código Civil (“quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente lhe transfere todos os seus direitos”), será tratada como cessão de crédito (art. 348). Esta é sempre ato voluntário; a sub-rogação, todavia, pode ocorrer por força de lei.

Outras diferenças podem ser ainda apontadas: a) o cedente assume, em regra, a responsabilidade pela existência do crédito cedido, o que já não ocorre com o sub-rogante; b) o cessionário não será assim considerado por terceiros, a não ser a partir do instante em que se notifica a cessão; já o sub-rogado sê-lo-á perante terceiros, sem que seja preciso tomar qualquer medida de publicidade7.

Não se confunde a cessão de crédito, igualmente, com cessão de contrato, que abrange a transferência de todos os direitos e obrigações. Essa denominação tem sido criticada, pois o que se transfere, em rigor, não é o contrato, mas a posição subjetiva na avença8. A cessão de crédito, ao contrário, restringe-se exclusivamente à transferência de determinados direitos, passando o cessionário a ostentar, perante o devedor, a mesma posição jurídica do titular primitivo9.

Enfim, na cessão de contrato transferem-se todos os elementos ativos e passivos correspondentes, num contrato bilateral, à posição da parte cedente; na cessão de crédito, transferem-se apenas os elementos ativos, que se separam, a fim de que o cessionário os aproprie10.

4. Requisitos da cessão de crédito: objeto, capacidade e legitimação

Em regra, todos os créditos podem ser objeto de cessão, constem de título ou não, vencidos ou por vencer, salvo se a isso se opuser “a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor” (CC, art. 286).

A cessão pode ser total ou parcial, e abrange todos os acessórios do crédito, como os juros e os direitos de garantia (CC, art. 287). Assim, por exemplo, se o pagamento da dívida é garantido por hipoteca, o cessionário torna-se credor hipotecário; se por penhor, o cedente é obrigado a entregar o objeto empenhado ao cessionário.

Há créditos que não podem, porém, como visto, ser cedidos. Pela sua natureza, não podem ser objeto de cessão relações jurídicas de caráter personalíssimo e as de direito de família (direito a nome, a alimentos etc.). Menciona Alberto Trabucchi11, com efeito, que não podem ser cedidos os créditos que tenham caráter estritamente pessoal, como são o crédito de alimentos e o estabelecido em favor de uma pessoa determinada (p. ex., a obrigação de um músico de tocar em uma determinada orquestra).

Pela mesma razão não podem ser cedidos créditos atinentes aos vencimentos de funcionários ou os créditos por salários; os créditos decorrentes de direitos sem valor patrimonial; os créditos vinculados a fins assistenciais; os créditos que não possam ser individualizados, pois a cessão é negócio dispositivo, devendo ser seu objeto determinado, de forma que não valerá a cessão de todos os créditos futuros, procedentes de negócios etc.12.

Em virtude da lei, não pode haver cessão do direito de preempção ou preferência (CC, art. 520), do benefício da justiça gratuita (Lei n. 1.060/50, art. 10), da indenização derivada de acidente no trabalho, do direito à herança de pessoa viva (CC, art. 426), de créditos já penhorados (CC, art. 298), do direito de revogar doação por ingratidão do donatário (CC, art. 560) etc. Admite-se, porém, a cessão do direito do autor de obras intelectuais (Lei n. 9.610/98, art. 49) e do exercício do usufruto (CC, art. 1.393)13.

Por convenção das partes pode ser, ainda, estabelecida a incessibilidade do crédito. Mas “a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação” (CC, art. 286, segunda parte).

Como a cessão importa alienação, o cedente há de ser pessoa capaz e legitimada a praticar atos de alienação. Outrossim, é necessário que seja titular do crédito, para dele poder dispor. Também o cessionário deve ser pessoa no gozo da capacidade plena. Como para ele a cessão importa aquisição de um direito, é necessário que reúna condições de tomar o lugar do cedente. Exige-se de ambos não só a capacidade genérica para os atos da vida civil, como também a especial, reclamada para os atos de alienação. Para a cessão ser efetuada por mandato, deve o mandatário ter poderes especiais e expressos (CC, art. 661, § 1º).

Mesmo sendo dotadas de capacidade, algumas pessoas carecem de legitimação para adquirir certos créditos. O tutor e o curador, por exemplo, não podem constituir-se cessionários de créditos contra, respectivamente, o pupilo e o curatelado. O mesmo se dá com os testamenteiros e administradores, que também não podem adquirir créditos se sob sua administração estiver o direito correspondente, salvo se o contrato se constituir entre coerdeiros, em pagamento de débitos, ou para a garantia de bens já pertencentes a essas pessoas (CC, arts. 497 e parágrafo único e 498).

Por sua vez, os pais, no exercício da administração dos bens dos filhos menores, não podem efetuar a cessão sem prévia autorização do juiz (CC, art. 1.691), por se tratar de ato que ultrapassa os limites da mera administração.

Por outro lado, se o crédito envolver direito real de garantia, como a hipoteca, verbi gratia, necessário será o consentimento do outro cônjuge. O falido e o inventariante judicial não têm qualidade para efetivar cessão de crédito, salvo mediante autorização judicial14.

5. Espécies de cessão de crédito

A cessão de crédito resulta, em regra, da declaração de vontade entre cedente e cessionário. Diz-se que, nesse caso, ela é convencional e pode ser realizada a título oneroso ou gratuito, sendo mais comum a primeira modalidade. Na cessão a título oneroso o cedente garante a existência e a titularidade do crédito no momento da transferência. Nas cessões a título gratuito só é responsável se houver procedido de má-fé (CC, art. 295)15.

A cessão de crédito voluntária pode ser também total ou parcial, embora a lei não se refira diretamente, em nenhum dispositivo, à última espécie. Nela o cedente retém parte do crédito, permanecendo na relação obrigacional, salvo se ceder também a parte remanescente a outrem. Se o crédito for cedido a mais de um cessionário, dividir-se-á em dois, independentes um do outro. Como a lei não disciplina a cessão parcial, não se pode falar em existência de preferência em favor do credor primitivo, ou de alguns dos cessionários, no caso de haver cessões parciais sucessivas, embora nada impeça que convencionem entre si algum critério de prioridade no pagamento16.

Pode, ainda, a cessão de crédito ser legal e judicial. Em muitos casos, com efeito, a transmissão do crédito, do lado ativo da relação obrigacional, opera-se não por convenção entre as partes, como na cessão, mas ipso jure, ou seja, por força de lei, ou por meio de decisão judicial. Podem ser mencionados como exemplos de cessão legal:

a) Os de sub-rogação legal, especificados no art. 346 do Código Civil, pois o sub-rogado adquire os direitos do credor primitivo. Enquadram-se no inciso III do aludido dispositivo, como sub-rogação pessoal (em favor “do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte”): o caso do devedor de obrigação solidária que satisfez a dívida por inteiro, sub-rogando-se no crédito (CC, art. 283); o do fiador que pagou integralmente a dívida, ficando sub-rogado nos direitos do credor (CC, art. 831); o do mandante, em favor de quem são transferidos os créditos adquiridos pelo mandatário (CC, art. 668).

b) O de cessão dos acessórios (cláusula penal, juros, garantias reais ou pessoais), em consequência da cessão da dívida principal, salvo disposição em contrário. O art. 287 do Código Civil, que assim dispõe, aplica a regra de que o acessório segue o destino do principal, independente de expressa menção.

c) O de cessão ao depositante, pelo depositário, das ações que tiver contra o terceiro a que se refere o art. 636 do Código Civil.

d) O de sub-rogação legal, no contrato de seguro, em favor da companhia seguradora, que paga a indenização do dano decorrente de ato ilícito causado por terceiro (CC, art. 786)17.

Verifica-se a cessão judicial quando a transmissão do crédito é determinada pelo juiz, como sucede, por exemplo: a) na adjudicação, aos credores de um acervo, de sua dívida ativa; b) na prolação de sentença destinada a suprir declaração de cessão por parte de quem era obrigado a fazê-la.

O art. 298 do Código Civil trata de caso típico de transmissão provisória, por via judicial, para adaptar à penhora do crédito a solução válida para o pagamento efetuado pelo devedor, na ignorância da apreensão judicial do crédito.

A cessão de crédito pode ser ainda pro soluto e pro solvendo. No primeiro caso, o cedente apenas garante a existência do crédito, sem responder, todavia, pela solvência do devedor. Na cessão pro solvendo, o cedente obriga-se a pagar se o devedor cedido for insolvente. Nesta última modalidade, portanto, o cedente assume o risco da insolvência do devedor18.

6. Formas

Em regra, a cessão convencional não exige forma especial para valer entre as partes, salvo se tiver por objeto direitos em que a escritura pública seja da substância do ato, caso em que a cessão efetuar-se-á também por escritura pública. Nessa consonância, a escritura pública deverá ser utilizada na cessão de crédito hipotecário ou de direitos hereditários.

Para valer contra terceiros, entretanto, o art. 288 do Código Civil exige “instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do § 1º do art. 654”. O instrumento particular deve conter, assim, a indicação do lugar onde foi passado, a qualificação do cedente e do cessionário, a data e o objetivo da cessão com a designação e a extensão dos direitos cedidos, e ser registrado no Cartório de Títulos e Documentos (CC, art. 221; Lei n. 6.015/73, art. 129, § 9º).

Tais formalidades somente são exigidas para a cessão valer contra terceiros, sendo desnecessárias, porém, em relação ao devedor cedido. A sua inobservância torna o ato ineficaz em relação àqueles (CC, art. 288). O cessionário de crédito hipotecário tem o direito de fazer averbar a cessão no registro do imóvel (CC, art. 289).

O aludido art. 288 do novo diploma repete “o caput do art. 1.067 do Código Civil de 1916, simplificando-lhe o conteúdo, inclusive para eliminar a exigência de que o instrumento particular de cessão tenha que ser subscrito por duas testemunhas para ter validade. Também se substituiu a referência que se fazia à validade do ato, por ineficácia...”19.

A cessão legal e a judicial não se subordinam, obviamente, às mencionadas exigências. A cessão de títulos de crédito é feita mediante endosso. O posterior ao vencimento produz os mesmos efeitos do anterior (CC, art. 920). A aquisição de título à ordem, por meio diverso do endosso, tem efeito de cessão civil (CC, art. 919).

7. Notificação do devedor

Dispõe o art. 290 do Código Civil:

“A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita”.

A notificação do devedor, expressamente exigida, é medida destinada a preservá-lo do cumprimento indevido da obrigação, evitando-se os prejuízos que causaria, pois ele poderia pagar ao credor-cedente. O pagamento seria ineficaz.

Não pretendeu a lei dizer que a notificação é elemento essencial à validade da cessão de crédito, mas apenas que não é eficaz em relação ao devedor, isto é, que este só está sujeito às suas consequências a partir do momento em que tiver conhecimento de sua realização. A necessidade da notificação ganha relevo quando se admite que o devedor pode impugnar a cessão e opor as exceções cabíveis no momento em que tenha conhecimento da operação20.

Antunes Varela, refutando opinião contrária de Mancini, destaca esse aspecto da notificação ao devedor, dizendo que não constitui ela um requisito de validade da cessão, como poderia depreender-se da interpretação literal do texto, mas apenas uma condição da sua eficácia em relação ao devedor. Se este, “ignorando a cessão, pagar ao credor primitivo, o pagamento considera-se bem feito, em homenagem à boa-fé do devedor, que se considera definitivamente desonerado. Como, porém, a cessão é válida entre as partes, independentemente da notificação ao devedor, o credor primitivo que recebeu a prestação dispôs de direito alheio, enriquecendo-se ilicitamente à custa do cessionário. E terá, consequentemente, que restituir ao lesado tudo quanto indevidamente recebeu do devedor”21.

Qualquer dos intervenientes, cessionário ou cedente, tem qualidade para efetuar a notificação, que pode ser judicial ou extrajudicial. Diz Orlando Gomes que o normal é que cedente e cessionário se dirijam ao devedor para lhe dar ciência do contrato que celebraram22. Mas o maior interessado é o cessionário, pois o devedor ficará desobrigado se, antes de ter conhecimento da cessão, pagar ao credor primitivo (CC, art. 292).

Se não notificado, a cessão é inexistente para ele, e válido se tornará o pagamento feito ao cedente. Mas não se desobrigará se a este pagar depois de cientificado da cessão. Ficará desobrigado, também, no caso de lhe ter sido feita mais de uma notificação, se pagar ao cessionário que lhe apresentar o título comprobatório da obrigação (CC, art. 292). Se esta for solidária, devem ser notificados todos os codevedores. Sendo incapaz o devedor, far-se-á a notificação ao seu representante legal.

A notificação pode ser expressa ou presumida. É da primeira espécie quando o cedente toma a iniciativa de comunicar ao devedor que cedeu o crédito a determinada pessoa, podendo a comunicação partir igualmente do cessionário. Presumida é a que resulta da espontânea declaração de ciência do devedor, em escrito público ou particular. Dispõe o art. 290, segunda parte, do Código Civil que, nessa hipótese, por notificado se tem o devedor23.

Tem-se entendido que a citação inicial para a ação de cobrança equivale à notificação da cessão, assim como a habilitação de crédito na falência do devedor produz os mesmos efeitos de sua notificação. Alguns créditos dispensam a notificação, porque sua transmissão obedece a forma especial, como, por exemplo, os títulos ao portador, que se transferem por simples tradição manual (CC, art. 904), e as ações nominativas de sociedades anônimas, transmissíveis pela inscrição nos livros de emissão, mediante termo (Lei n. 6.404/76, art. 31, § 1º), bem como os títulos transferíveis por endosso.

O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente (CC, art. 294). Se o devedor, notificado da cessão, não opõe, nesse momento, as exceções pessoais que tiver contra o cedente, não poderá mais arguir contra o cessionário as exceções que eram cabíveis contra o primeiro, como pagamento da dívida, compensação etc. Poderá, no entanto, alegar não só contra o cedente como também contra o cessionário, a qualquer tempo, mesmo não tendo feito nenhum protesto ao ser notificado, vícios que, por sua natureza, afetam diretamente o título ou ato, tornando-o nulo ou anulável, como incapacidade do agente, erro, dolo etc.24.

Mas, se dela não foi notificado, poderá opor ao cessionário as que tinha contra o cedente, antes da transferência. Já as exceções oponíveis diretamente contra o cessionário podem ser arguidas a todo tempo, tanto no momento da cessão como no de sua notificação, pois se apresenta ele ao devedor como um novo credor. E todo devedor tem a faculdade de opor qualquer exceção contra a pretensão de seu credor. A mais comum é a exceptio non adimpleti contractus. Se o credor cedente, em contrato bilateral, não cumprir sua obrigação antes de ceder o crédito, o dever de cumpri-la transmite-se ao cessionário, de modo que pode o devedor recusar-se a efetuar o pagamento se este não satisfaz a prestação que lhe incumbe, opondo ao cessionário a exceção de contrato não cumprido25.

8. Responsabilidade do cedente

Preceitua o art. 295 do Código Civil:

“Na cessão por título oneroso, o cedente, ainda que não se responsabilize, fica responsável ao cessionário pela existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu; a mesma responsabilidade lhe cabe nas cessões por título gratuito, se tiver procedido de má-fé”.

A responsabilidade imposta pela lei ao cedente não se refere à solvência do devedor (nomem bonum). Por esta o cedente não responde, correndo os riscos por conta do cessionário, salvo estipulação em contrário.

Efetivamente, dispõe o art. 296 do mesmo diploma:

“Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor”.

Se ficar convencionado expressamente que o cedente responde pela solvência do devedor, sua responsabilidade limitar-se-á ao que recebeu do cessionário, com os respectivos juros, mais as despesas da cessão e as efetuadas com a cobrança. Nesse sentido, proclama o art. 297 do Código Civil:

“O cedente, responsável ao cessionário pela solvência do devedor, não responde por mais do que daquele recebeu, com os respectivos juros; mas tem de ressarcir-lhe as despesas da cessão e as que o cessionário houver feito com a cobrança”.

Assim, por exemplo, se o crédito era de R$ 20.000,00 e foi cedido por R$ 16.000,00, o cessionário (o banco, p. ex., no caso de título descontado) só terá direito a esta última importância, com os referidos acréscimos, e não ao valor do crédito. Em geral aquele que adquire um crédito paga menos que o seu valor nominal, visando lucro, mas assumindo o risco do negócio. Há uma álea no empreendimento, que o cessionário aceita. Se constar da avença apenas que o cedente assegura a solvência do devedor, entende-se que se refere ao momento da cessão. É admissível, porém, que se estipule que garante também a solvência futura.

A convencionada responsabilidade pela solvência do devedor tem mais natureza indenizatória do que satisfatória. Não se garante ao cessionário, diz Antunes Varela26, a prestação a que ele tinha direito ou o respectivo equivalente. Garante-se apenas a indenização do seu interesse contratual negativo, no caso de o devedor vir a ser declarado insolvente. Assim, a situação do cedente responsável pela solvência do devedor não se confunde com a do fiador; e muito mais difere ainda da posição do devedor solidário, de quem o credor pode exigir, em primeira mão, o cumprimento integral da prestação devida, enquanto o garante da solvência do debitor cessus só responde depois de provada a insolvência deste e apenas pelo interesse contratual negativo do cessionário.

Na realidade, a responsabilidade imposta ao cedente pelo retrotranscrito art. 295 diz respeito somente à existência do crédito ao tempo da cessão (nomem verum). Se o cedente transferiu onerosamente um título nulo ou inexistente, deverá ressarcir os prejuízos causados ao cessionário, da mesma forma que o vendedor deve fazer boa a coisa vendida e responder pela evicção nos casos legais. Se a cessão tiver sido efetuada a título gratuito, o cedente só responde se tiver procedido de má-fé, conhecendo a sua inexistência ou o fundamento da sua nulidade no momento em que o cedeu27.

Garantir a existência do crédito significa assegurar a titularidade e a validade ou consistência do direito adquirido. O cedente garante, pois, que o crédito não só existe, mas não está prejudicado por exceção, nem sujeito a impugnação ou compensação — fatos que comprometeriam a sua existência ou valor jurídico28.

Quando a transferência do crédito se opera por força de lei, o credor originário não responde pela realidade da dívida, nem pela solvência do devedor. Nos casos de transferências impostas pela lei, não se pode exigir do cedente que responda por um efeito para o qual não concorreu.

Edita, ainda, o art. 298 do mesmo diploma:

“O crédito, uma vez penhorado, não pode mais ser transferido pelo credor que tiver conhecimento da penhora; mas o devedor que o pagar, não tendo notificação dela, fica exonerado, subsistindo somente contra o credor os direitos de terceiro”.

O crédito, uma vez penhorado, deixa de fazer parte do patrimônio do devedor. Por isso, não poderá ser cedido, tornando-se indisponível.






1 Alberto Trabucchi, Instituciones de derecho civil, v. II, p. 88-91; Roberto de Ruggiero, Instituições de direito civil, v. III, p. 136-137.

2 Obrigações, p. 236.

3 Derecho de obligaciones, t. I, p. 445.

4 Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro, v. 2, p. 409; Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 236.

5 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 244-245; Silvio Rodrigues, Direito civil, v. 2, p. 91; Alberto Trabucchi, Instituciones, cit., v. II, p. 94; Sílvio Venosa, Direito civil, v. 2, p. 330.

6 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 245.

7 Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 2, p. 414.

8 Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 2, p. 90, nota 78.

9 Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, 29. ed., v. 4, p. 351.

10 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 256-257.

11 Instituciones, cit., v. II, p. 94-95.

12 Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 2, p. 415; Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 248.

13 Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 2, p. 416.

14 Washington de Barros Monteiro, Curso, cit., 29. ed., v. 4, p. 351-352; Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 2, p. 414-415; Sílvio Venosa, Direito civil, cit., v. II, p. 334-335.

15 Washington de Barros Monteiro, Curso, cit., 29. ed., v. 4, p. 353.

16 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 248; Antunes Varela, Direito das obrigações, v. II, p. 324; Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 2, p. 412.

17 Washington de Barros Monteiro, Curso, cit., 29. ed., v. 4, p. 353; Antunes Varela, Direito das obrigações, cit., v. II, p. 333; Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 2, p. 412-413; Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 255-256.

18 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 253.

19 Mário Luiz Delgado Régis, Novo Código Civil comentado, p. 271.

20 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 251.

21 Direito das obrigações, cit., v. II, p. 318-319.

22 Obrigações, cit., p. 252.

23 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 252.

24 Washington de Barros Monteiro, Curso, cit., 29. ed., v. 4, p. 356.

25 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 251.

V. ainda: “Exceção de contrato não cumprido invocada pelo devedor contra o portador. Admissibilidade. O endosso póstumo em nota promissória tem o efeito de cessão civil e ao endossatário podem ser opostas as exceções oponíveis ao endossador. Demonstrado que a cambial está vinculada a contrato de compra e venda de imóvel e que o endossante, em conluio com o endossatário (seu sobrinho), pretendia receber o título sem, antes, cumprir cláusula contratual que o obrigava a outorgar escritura definitiva do imóvel, julgam-se procedentes os embargos” (RT, 644/154).

26 Direito das obrigações, cit., v. II, p. 332-333.

27 Na mesma linha dispõem o § 523 do Código alemão, os arts. 171, III, e 248 do Código suíço, o art. 1.266, II, do Código italiano, e o art. 587º, 1, do Código português.

28 Vaz Serra, Cessão de créditos ou de outros direitos, 1955, p. 290, apud Antunes Varela, Direito das obrigações, cit., v. II, p. 331.