Capítulo III

DO PAGAMENTO COM SUB-ROGAÇÃO

1. Conceito

Na linguagem jurídica fala-se de sub-rogação, em geral, para designar determinadas situações em que uma coisa se substitui a outra coisa ou uma pessoa a outra pessoa. Há um objeto ou um sujeito jurídico que toma o lugar de outro diverso1.

Embora a prestação devida seja normalmente realizada pelo devedor, pode ocorrer, todavia, o seu cumprimento por terceiro, que tenha interesse na extinção da obrigação, como sucede, por exemplo, com o fiador. Neste caso, diz o art. 831, primeira parte, do Código Civil que “o fiador que pagar integralmente a dívida fica sub-rogado nos direitos do credor”.

Quando a obrigação é indivisível e há pluralidade de devedores, “cada um será obrigado pela dívida toda”, preceitua o art. 259 do Código Civil. Por isso, o que paga sozinho a dívida (a entrega de um animal ou de uma coleção de livros, p. ex.), “sub-roga-se no direito do credor em relação aos outros coobrigados” (parágrafo único), dispondo de ação regressiva para cobrar a quota-parte de cada um destes.

É também comum o fato de o adquirente de imóvel hipotecado pretender pagar ao credor o saldo devedor, para liberar o imóvel do gravame que o onera. Neste caso, a sub-rogação opera-se, de pleno direito, em seu favor, como proclama o art. 346, II, primeira parte, do Código Civil.

Em todos os exemplos mencionados temos caracterizada a sub-rogação pessoal, que consiste exatamente, segundo Antunes Varela, “na substituição do credor, como titular do crédito, pelo terceiro que paga (cumpre) a prestação em lugar do devedor ou que financia, em certos termos, o pagamento”2.

Mas a sub-rogação pode ser, também, real. Sub-rogação é, portanto, a substituição de uma pessoa, ou de uma coisa, por outra pessoa, ou outra coisa, em uma relação jurídica. No primeiro caso, a sub-rogação é pessoal; no segundo, real. Nesta, a coisa que toma o lugar da outra fica com os mesmos ônus e atributos da primeira. É o que ocorre, por exemplo, na sub-rogação do vínculo da inalienabilidade, em que a coisa gravada pelo testador ou doador é substituída por outra, ficando esta sujeita àquela restrição (v. CC, art. 1.911, parágrafo único; CPC, art. 1.112, II).

A sub-rogação real “supõe a ocorrência de um fato por virtude do qual um valor sai de um patrimônio e entra outro, que nele fica ocupando posição igual à do primeiro. O valor que se adquire é tratado como se fora o que se perde: passa a estar sujeito à mesma condição ou regime jurídico”3. Assim, por exemplo, no regime da comunhão parcial de bens entram na comunhão os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso (CC, art. 1.660, I). Todavia, se a aquisição foi feita à custa de bens particulares de um dos cônjuges, os bens adquiridos tornam-se também próprios desse cônjuge, porque ficam sub-rogados no lugar dos alienados (CC, art. 1.659, II).

Na sub-rogação pessoal, segundo Clóvis Beviláqua, ocorre a transferência dos direitos do credor para aquele que solveu a obrigação, ou emprestou o necessário para solvê-la. Aduz o emérito jurista nacional: “Em princípio, diz Laurent, ‘o pagamento extingue a obrigação de um modo absoluto, isto é, em relação a todas as pessoas interessadas, e com todos os seus acessórios, fianças, privilégios, hipotecas’ (Cours élémentaire, vol. III, n. 32). Um terceiro efetuando o pagamento, o resultado é o mesmo, a dívida extingue-se; mas o terceiro terá, em relação ao devedor, a ação de in rem verso, com que se possa ressarcir até a concorrência da utilidade, que o devedor fruiu”4.

Desse modo, o avalista, que paga a dívida pela qual se obrigou solidariamente, sub-roga-se nos direitos do credor, ou seja, toma o lugar deste na relação jurídica5. No capítulo concernente ao pagamento com sub-rogação, é desta espécie que trata o Código Civil.

O instituto em estudo constitui uma exceção à regra de que o pagamento extingue a obrigação. A sub-rogação é uma figura jurídica anômala, pois o pagamento promove apenas uma alteração subjetiva da obrigação, mudando o credor. A extinção obrigacional ocorre somente em relação ao credor, que nada mais poderá reclamar depois de haver recebido do terceiro interessado (avalista, fiador, coobrigado etc.) o seu crédito. Nada se altera, porém, para o devedor, visto que o terceiro, que paga, toma o lugar do credor satisfeito e passa a ter o direito de cobrar a dívida com todos os seus acessórios.

Esses acessórios podem consistir em garantias reais ou fidejussórias, em uma elevada taxa de juros ou em outras vantagens. Como o pagamento extingue a dívida e, em consequência, seus acessórios, a sub-rogação representa considerável vantagem, “pois transfere ao sub-rogado esses mesmos acessórios, sem haver mister de constituí-los de novo, pois é a própria relação jurídica original, em sua integralidade, que lhe é transmitida”6.

A sub-rogação também se mostra vantajosa para o credor, pelo fato de um terceiro pagar a dívida que o obrigado não tem condições de solver, ou conceder-lhe um empréstimo destinado a esse fim. Vantagem pode existir também para o devedor, que muitas vezes, em razão dela, livra-se de ações ou execuções pendentes ou iminentes. Pode-se afirmar outrossim que a “sub-rogação não prejudica terceiros, visto que não faz alterar verdadeiramente a situação. Nem o montante nem as garantias do crédito se modificam. Apenas muda a pessoa do credor”7.

A origem do instituto remonta ao direito romano, donde surgiu inspirado na ideia de conferir proteção a terceiro que salda débito alheio e, com isso, evitar enriquecimento ilícito do devedor8.

2. Natureza jurídica

O pagamento com sub-rogação tem acentuada afinidade com a cessão de crédito, como formas de transmissão do direito de crédito, a ponto de o art. 348 do Código Civil mandar aplicar a uma das hipóteses de sub-rogação convencional (art. 347, I) o disposto quanto àquela (art. 348). Alguns autores chegam a denominar o instituto ora em estudo cessão ficta9.

Todavia, os dois institutos não se confundem. O espírito da cessão de crédito é completamente distinto do que anima a sub-rogação. Aquela “destina-se a servir ao interesse da circulação do crédito, assegurando a sua disponibilidade como um elemento negociável do patrimônio do credor. A sub-rogação, por outro lado, visa proteger a situação do terceiro que, no seu interesse e forçado as mais das vezes pelas circunstâncias, paga uma dívida que não é sua”10.

O aspecto especulativo, o fim de lucro, é elementar na cessão de crédito, mas não o é na sub-rogação. A cessão de crédito é feita, em geral, por valor diverso deste, enquanto a sub-rogação legal ocorre na exata proporção do pagamento efetuado. Na sub-rogação, ocorre pagamento, enquanto a cessão de crédito é feita antes da satisfação do débito11.

O pagamento com sub-rogação também não se confunde com novação subjetiva por substituição de credor, por lhe faltar o animus novandi. Outrossim, enquanto na novação são as partes na relação original que convencionam a substituição, com a aquiescência do novo titular, na sub-rogação o vínculo prescinde dessa anuência, decorrendo precipuamente da lei. Mesmo quando é convencionada, inexiste a integração prévia de todas as vontades12.

Trata-se, na realidade, de instituto autônomo e anômalo, em que o pagamento promove apenas uma alteração subjetiva, mudando o credor. A extinção obrigacional ocorre somente em relação ao credor, que fica satisfeito. Nada se altera para o devedor, que deverá pagar ao terceiro, sub-rogado no crédito.

3. Espécies

A sub-rogação pode ser, ainda, legal ou convencional, conforme a fonte donde promane.

A sub-rogação legal é a que decorre da lei, independentemente de declaração do credor ou do devedor. Em regra o motivo determinante da sub-rogação, quando nem credor nem devedor se manifestam favoravelmente a ela, é o fato de o terceiro ter interesse direto na satisfação do crédito. Cite-se, como exemplo, o caso do codevedor solidário, como o fiador ou avalista, que pode ter o seu patrimônio penhorado se o devedor principal não realizar a prestação. Em situações como estas e outras semelhantes, o terceiro tem legítimo interesse no cumprimento, a que se encontra diretamente obrigado como codevedor e pelo qual responde com todo o seu patrimônio. Cumprindo, fica sub-rogado de pleno direito nos direitos do credor13.

O legislador, compreendendo que a sub-rogação em favor de terceiros que saldam débitos de outrem se mostra justa, contempla as várias hipóteses, determinando a substituição e incorporação do crédito no patrimônio destes, de pleno direito, independente de qualquer convenção entre os interessados.

A sub-rogação convencional é a que deriva da vontade das partes. A manifestação volitiva deve ser expressa, para evitar qualquer dúvida que possa existir sobre um efeito tão importante como a transferência dos direitos do credor para a pessoa que lhe paga. Pode decorrer de avença entre credor e sub-rogado ou de ajuste entre o mesmo sub-rogado e o devedor14.

3.1. Sub-rogação legal

A sub-rogação legal encontra-se regulamentada no art. 346 do Código Civil e se opera, de pleno direito, automaticamente, em três casos. Primeiro, em favor “do credor que paga a dívida do devedor comum” (inciso I).

Cogita o dispositivo da hipótese de o devedor ter mais de um credor. Se um deles promover a execução judicial de seu crédito, preferencial ou não, poderá o devedor ficar sem meios para atender aos compromissos com os demais credores. Qualquer destes pode, então, pagar ao credor exequente, sub-rogando-se em seus direitos, e aguardar a melhor oportunidade para a cobrança de seu crédito.

Pode o credor, com segunda hipoteca sobre determinado imóvel do devedor, por exemplo, preferir pagar ao titular do crédito garantido por primeira hipoteca sobre o mesmo bem, sub-rogando-se nos direitos deste, para posteriormente executar os dois créditos hipotecários e não ter de aguardar a execução do primeiro, e apenas contentar-se com o que restar.

O credor, que efetua o pagamento, procura defender os seus próprios interesses. Tem interesse em pagar dívida do devedor comum aquele credor que não possui nenhuma garantia, diante de outro que tenha direito de preferência, ou seja também credor quirografário mas promove execução, com penhora já efetivada, capaz de desfalcar substancialmente o patrimônio do primeiro. Igualmente tem interesse o credor que possui garantia mais fraca, diante de outro credor preferencial.

O Código Civil de 1916, no art. 985, I, limitava a sub-rogação à hipótese de pagamento a credor a quem competia direito de preferência. Entendia-se, por essa razão, que a sub-rogação pressupunha sempre dois requisitos: a) que aquele que paga fosse também credor do devedor; b) que o crédito pago tivesse preferência sobre o do solvens15. O novo diploma, todavia, suprimiu a expressão a quem competia o direito de preferência, ampliando destarte os casos de sub-rogação legal, visto que a enumeração constante do art. 346 reveste-se de natureza taxativa.

Desse modo, incluem-se no aludido dispositivo não somente as hipóteses em que o terceiro, que paga, tem em mira assegurar a consistência prática do seu direito, em face de um competidor mais forte, como também quando visa prevenir a sua perda. Abrange, portanto, a do credor quirografário que, sabendo ter o devedor comum patrimônio suficiente para responder por apenas uma das dívidas, paga a do outro credor, também quirografário, de menor valor mas que poderia impedir a satisfação de seu crédito. Pode convir ao primeiro tornar-se titular dos dois créditos para adiar a execução para momento oportuno, ou conduzi-la de modo a que possibilite a arrecadação, na hasta pública, de quantia suficiente para saldá-los.

Segundo Antunes Varela, não podem deixar de ser incluídos no dispositivo em estudo, por interpretação extensiva, o caso do sublocatário que paga os aluguéis devidos pelo locatário, a fim de evitar a caducidade da sublocação; o do credor pignoratício que paga a prestação em dívida do preço da coisa empenhada, para impedir a resolução da venda etc.16.

A sub-rogação legal opera-se também, em segundo lugar, em favor do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, bem como do terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel” (CC, art. 346, II).

Pode, eventualmente, alguém adquirir imóvel hipotecado, porque faltam poucas prestações a serem pagas ao credor, pelo alienante. Se este, no entanto, deixa de pagá-las, pode o adquirente efetuar o pagamento, para evitar a excussão do imóvel hipotecado, sub-rogando-se nos direitos daquele. Estando o imóvel onerado por mais de uma hipoteca, o adquirente, que paga a primeira, sub-roga-se no crédito hipotecário satisfeito, adquirindo preferência em relação aos demais credores hipotecários. Pode-se valer dessa posição para dificultar a execução que estes pretendam promover.

Pondera Antunes Varela17 que, pela mesma razão, não se deve negar o benefício da sub-rogação ao adquirente da coisa móvel que paga ao credor pignoratício ou ao credor caucionado. E de igual benefício deve gozar o adquirente de imóvel dado em anticrese, que paga ao credor anticrético, bem como o credor hipotecário que paga o crédito hipotecário com graduação prioritária.

O Código de 2002 ampliou as hipóteses legais com a previsão da sub-rogação em favor não só do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, como também do terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel. Esta última não constava do inciso II do art. 985 do Código de 1916. A inovação beneficia “aqueles que, por alguma relação contratual, ou mesmo por execução judicial, como na hipótese de vencedor em pleito indenizatório, tenham obtido direito, ou constrição, quanto ao imóvel do devedor, e, para a preservação e exequibilidade do direito, vêm a fazer o pagamento do débito hipotecário”18.

Em terceiro lugar, a sub-rogação opera-se, ainda, em favor “do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte” (CC, art. 346, III).

Terceiro interessado é o que pode ter seu patrimônio afetado caso a dívida, pela qual também se obrigou, não seja paga. É o que acontece com o avalista, com o fiador, com o coobrigado solidário etc., que pagam dívida pela qual eram ou podiam ser obrigados. Sub-rogam-se, automaticamente, nos direitos do credor. Embora extinta para este a dívida, subsiste ela em relação ao devedor, que deverá saldá-la ao terceiro interessado, que a pagou, investindo-se, em virtude desse pagamento, em todos os direitos e garantias do primitivo devedor19.

A assertiva vale também para o codevedor de obrigação indivisível, que, embora não seja um devedor solidário, se considera obrigado pela dívida toda, só por causa da indivisibilidade da prestação (CC, art. 259).

Esta terceira hipótese é a mais comum. Mas favorece somente o terceiro interessado. O terceiro não interessado, que paga a dívida em seu próprio nome, malgrado tenha direito a reembolsar-se do que pagou, não se sub-roga nos direitos do credor (CC, art. 305). Sendo estranho à relação obrigacional, não lhe assiste tal direito.

3.2. Sub-rogação convencional

A sub-rogação convencional decorre, como foi dito, da vontade das partes, podendo se dar por iniciativa ou declaração do credor e ainda por interesse ou declaração do devedor, nas hipóteses em que não se acham presentes os pressupostos da sub-rogação legal. É a que pode ser consentida pelo credor sem intervenção do devedor, ou por este sem o concurso daquele, pressupondo, porém, sempre a intervenção e o concurso de um terceiro20.

A regulamentação dessa espécie de sub-rogação está contida no art. 347 do novo diploma, que prevê duas hipóteses, correspondentes às situações mencionadas no parágrafo anterior. A primeira, “quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente lhe transfere todos os seus direitos” (inciso I).

O terceiro interessado já se sub-roga, automaticamente, nos direitos do credor. Não necessita, pois, dessa transferência feita pelo credor. Cuida o dispositivo, pois, da hipótese de terceiro não interessado. Mesmo o que não tem interesse direto no pagamento e cumpre a prestação no lugar do devedor pode ficar sub-rogado nos direitos do credor, desde que preenchidos os seguintes requisitos: a) que haja uma transferência expressa dos direitos do credor; b) que a transferência seja efetuada até o momento em que recebe a prestação. Justifica-se esta última exigência pelo fato de o pagamento extinguir a obrigação. Para que esse efeito não se produza, permitindo a sub-rogação, faz-se mister que esta se realize antes ou contemporaneamente àquele21.

A primeira hipótese de sub-rogação convencional configura-se, portanto, quando um terceiro sem interesse jurídico, embora possa ter outra espécie de interesse, paga a dívida e o credor manifesta a sua vontade no sentido de que o terceiro fique colocado na sua posição, adquirindo os respectivos direitos. O credor exterioriza o seu querer favorável à sub-rogação e faz, desse modo, com que ela se produza.

A transferência, por vontade do credor, pode ser feita sem a anuência do devedor. É uma espécie de cessão de crédito, embora não se confunda com esta, que tem características próprias. Mas, do ponto de vista puramente legal, ambas se regulam pelos mesmos princípios, dispondo o art. 348 do Código Civil que, “na hipótese do inciso I do artigo antecedente, vigorará o disposto quanto à cessão de crédito”.

Preleciona, a propósito, Antunes Varela que a sub-rogação efetivamente não se identifica com a cessão de crédito, embora uma e outra sejam formas de transmissão do direito e do crédito. Aduz o mestre português que os efeitos da cessão definem-se “pelos termos da convenção negocial acertada entre cedente e cessionário. Os efeitos da sub-rogação, como instrumento legal de proteção dos interesses do terceiro (solvens), medem-se em função do cumprimento ou pagamento22.

Caio Mário da Silva Pereira, igualmente, vê uma flagrante aproximação entre o pagamento com sub-rogação e a cessão de crédito, mas afirma que “não há confundir os dois institutos que se extremam por características peculiares”23.

Maria Helena Diniz, por sua vez, obtempera que os dois institutos não se confundem, apesar da semelhança existente entre eles e de serem regulados pelos mesmos princípios (CC, art. 348). A cessão, diz, “visa transferir ao cessionário o crédito, o direito ou a ação, ao passo que a sub-rogação objetiva exonerar o devedor perante o antigo credor. A cessão não opera extinção do débito, uma vez que o direito creditório, sem solução de continuidade, é transmitido de um titular a outro, enquanto a sub-rogação extingue a dívida relativamente ao credor primitivo. A cessão é sempre feita pelo credor e a sub-rogação poderá efetivar-se até contra a vontade deste. Na cessão por título oneroso, o cedente fica responsável perante o cessionário pela existência do crédito ao tempo de sua transferência (CC, art. 371), o que não se dá na sub-rogação”24.

Se os dois institutos não se distinguissem por características próprias não haveria necessidade de o legislador proclamar que, na hipótese do inciso I do art. 347, “vigorará o disposto quanto à cessão de crédito” (CC, art. 348). Na realidade, como observa Orlando Gomes25, quando a sub-rogação se verifica mediante acordo entre o accipiens e o solvens é rigorosamente convencional, tendo mecanismo semelhante ao da cessão de crédito, com a diferença apenas de que a transferência dos direitos do credor se opera por efeito do pagamento.

A segunda hipótese de sub-rogação convencional configura-se “quando terceira pessoa empresta ao devedor a quantia precisa para solver a dívida, sob a condição expressa de ficar o mutuante sub-rogado nos direitos do credor satisfeito” (CC, art. 347, II). Trata-se de sub-rogação realizada no interesse do devedor, independente da vontade do credor.

Segundo Orlando Gomes, trata-se de “um contrato forçado. Neste caso, a sub-rogação resulta da vontade do devedor. A fim de se desobrigar, o devedor pede a outrem que lhe empreste a quantia devida, estipulando que o mutuante se sub-rogará nos direitos do credor satisfeito. Troca vantajosamente de credor. Não é preciso que este consinta. Uma vez satisfeito, pouco lhe importa que o devedor passe a dever a outrem por ter feito empréstimo para lhe pagar”26.

Na hipótese ora versada, ou o terceiro paga ele próprio a dívida ou se limita a emprestar ao devedor dinheiro, ou outra coisa fungível se a dívida tem por objeto coisa dessa índole que não seja dinheiro, para que, abonado com tais meios e à custa deles, possa o devedor cumprir a obrigação. Em qualquer destas sub-hipóteses “o terceiro — pagador ou mutuante — fica sub-rogado nos direitos do credor desde que se verifiquem os mais requisitos previstos na lei”27.

Dispõe o art. 590º do Código Civil português que, se o pagamento é efetuado pelo terceiro, a vontade expressa do devedor no sentido da sub-rogação tem de ser manifestada até ao momento do cumprimento da obrigação. Sendo o pagamento efetuado pelo devedor com base em empréstimo feito pelo terceiro, a referida vontade tem de constar do próprio documento que titula o mútuo, onde, também por forma expressa, se deve declarar que o dinheiro ou coisa emprestada se destina ao referido pagamento (art. 591º).

A segunda hipótese de sub-rogação convencional, ora tratada, ocorre, com frequência, nos financiamentos regulados pelo Sistema Financeiro da Habitação, em que o agente financeiro empresta ao adquirente da casa própria (mutuário) a quantia necessária para o pagamento ao alienante, sob a condição expressa de ficar sub-rogada nos direitos deste. O devedor paga seu débito com a quantia que lhe foi emprestada, transferindo expressamente ao agente financeiro os direitos do credor (alienante) satisfeito. Assim, o adquirente da casa própria não é mais devedor do alienante, e sim do terceiro (agente financeiro), que lhe emprestou o numerário28.

4. Efeitos da sub-rogação

Prescreve o art. 349 do Código Civil:

“A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores”.

Denota-se que a sub-rogação, legal ou convencional, produz dois efeitos: a) o liberatório, por exonerar o devedor ante o credor originário; e b) o translativo, por transmitir ao terceiro, que satisfez o credor originário, os direitos de crédito que este desfrutava, com todos os seus acessórios, ônus e encargos, pois o sub-rogado passará a suportar todas as exceções que o sub-rogante teria de enfrentar29.

O efeito translativo da sub-rogação é, portanto, amplo. O novo credor será um credor privilegiado se o primitivo o era. O avalista, que paga a dívida, sub-rogando-se nos direitos do primitivo credor, poderá cobrá-la também sob a forma de execução30.

O dispositivo em tela aplica-se às duas modalidades de sub-rogação — legal e convencional. Nesta, porém, devido a sua natureza contratual, podem as partes limitar os direitos do sub-rogado.

Na sub-rogação legal, o sub-rogado não pode reclamar do devedor a totalidade da dívida, mas só aquilo que houver desembolsado (CC, art. 350). Assim, quem pagar soma menor que a do crédito sub-roga-se pelo valor efetivamente pago, e não pelo daquele.

Na sub-rogação convencional, em que predomina a autonomia da vontade e o caráter especulativo, como na cessão de crédito, pode ser estabelecido o contrário, ou seja, que haverá sub-rogação total, mesmo não tendo havido desembolso integral da importância necessária à satisfação do credor primitivo. Apesar da controvérsia existente a respeito do tema, não nos parece razoável entender que, no silêncio do contrato, a sub-rogação convencional será total, mesmo não tendo havido desembolso integral.

5. Sub-rogação parcial

No caso de pagamento parcial por terceiro, o crédito fica dividido em duas partes: a parte não paga, que continua a pertencer ao credor primitivo, e a parte paga, que se transfere ao sub-rogado. O art. 351 do Código Civil trata da hipótese de o terceiro interessado pagar apenas parte da dívida e o patrimônio do devedor ser insuficiente para responder pela integralidade do débito. Dispõe o aludido dispositivo:

“Art. 351. O credor originário, só em parte reembolsado, terá preferência ao sub-rogado, na cobrança da dívida restante, se os bens do devedor não chegarem para saldar inteiramente o que a um e outro dever”.

Silvio Rodrigues31 critica a solução, que já constava do art. 990 do Código de 1916, dizendo que ela desencoraja a sub-rogação, pelo menos a sub-rogação parcial. Por isso, prefere a adotada no Código italiano (art. 1.205), que no caso de pagamento parcial determina que o terceiro sub-rogado e o credor primitivo concorram, em face do devedor, proporcionalmente ao que lhes é devido, salvo pacto em contrário.

O nosso direito adota a solução do Código Civil francês (art. 1.252), que confere preferência ao credor originário, só parcialmente pago, sobre o terceiro sub-rogado, para a cobrança do restante do débito, aplicando na hipótese a consagrada máxima “nemo contra se subrogasse censetur”, segundo a qual se presume que ninguém sub-roga outrem (nos seus direitos) em seu prejuízo.

Essa mesma ideia é adotada no art. 593º, n. 2, do Código Civil português, quando esse artigo declara que, “no caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor ou do seu cessionário, quando outra coisa não for estipulada”. Interpretando o dispositivo, assinala Inocêncio Galvão Telles: “O credor originário goza de preferência sobre o sub-rogado, visto a lei declarar que a sub-rogação não prejudica os direitos daquele, quando outra coisa não tenha sido estipulada (art. 593º, nº 2). Por conseguinte, em caso de insolvência do devedor, aquilo que for afeto ao pagamento do crédito global destina-se em primeiro lugar ao credor primitivo: só o excedente, se o houver, aproveita ao sub-rogado. Tal solução baseia-se na vontade provável do credor. Este não pode ser constrangido a receber um pagamento parcial”32.

O Código Civil brasileiro não estabelece nenhum tratamento especial para a hipótese de mais de uma pessoa solver a dívida, em pagamentos parciais sucessivos — hipótese diversa da tratada nos parágrafos anteriores. Desse modo, têm os vários sub-rogados que sujeitar-se à regra da igualdade dos credores na cobrança dos seus créditos, seja qual for a data, a origem ou o montante destes33. Essa a regra constante do art. 593º, n. 3, do Código Civil português, verbis: “Havendo vários sub-rogados, ainda que em momentos sucessivos, por satisfações parciais do crédito, nenhum deles tem preferência sobre os demais”. O credor primitivo, todavia, terá preferência sobre todos os sub-rogados. Estes dividirão entre si o que sobejar, em pé de igualdade.






1 Inocêncio Galvão Telles, Direito das obrigações, p. 209.

2 Direito das obrigações, v. II, p. 335-336.

3 Inocêncio Galvão Telles, Direito das obrigações, cit., p. 209-210.

4 Direito das obrigações, p. 105.

5 “Execução. Nota promissória. Ação proposta contra avalista. Pagamento total do débito cambial e de honorários advocatícios e custas processuais. Sub-rogação legal que lhe permite cobrar do emitente do título todo o montante desembolsado” (RT, 642/197).

6 Silvio Rodrigues, Direito civil, v. 2, p. 176.

7 Inocêncio Galvão Telles, Direito das obrigações, cit., p. 212.

8 Carlos Alberto Bittar, Direito das obrigações, p. 117.

9 Gianturco, Istituzioni di diritto civile italiano, p. 17; Delvincourt, Cours de droit civil, n. 559; Toullier, Droit civil français suivant l’ordre du Code, VII, n. 119, apud Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça, Doutrina e prática das obrigações, t. I, p. 543.

10 Antunes Varela, Direito das obrigações, cit., v. II, p. 339.

11 Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 2, p. 177; Orlando Gomes, Obrigações, p. 140; Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça, Doutrina, cit., t. I, p. 543.

12 Carlos Alberto Bittar, Direito das obrigações, cit., p. 118.

13 Inocêncio Galvão Telles, Direito das obrigações, cit., p. 215-216.

14 Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 2, p. 179; Inocêncio Galvão Telles, Direito, cit., p. 213.

15 Clóvis Beviláqua, Direito das obrigações, cit., p. 105; Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, 29. ed., v. 4, p. 287.

16 Direito das obrigações, cit., v. II, p. 341.

17 Direito das obrigações, cit., v. II, p. 342.

18 Renan Lotufo, Código Civil comentado, v. 2, p. 301-302.

19 “Se a seguradora pagou à segurada os prejuízos ocorridos, em razão de perda total da mercadoria transportada, por força de contrato de seguro, cabe-lhe, como sub-rogada, reaver do transportador o valor despendido, porquanto este responde pelas mercadorias que lhe são entregues, desde o recebimento até a entrega em seu destino. Nesse caso, os valores desembolsados pela seguradora são corrigidos monetariamente a partir dos respectivos pagamentos. Súmula 188 do STF” (RT, 684/166, 685/153). “Fiador que ostenta a qualidade de devedor solidário com o inquilino. Purgação da mora pelo garante efetuada em ação de despejo por falta de pagamento. Admissibilidade. Terceiro interessado. Direito ao pagamento da dívida e encargos que lhe é assegurado pelo art. 985, III, do CC (de 1916, art. 346, III, do CC/2002), eis que os efeitos do inadimplemento poderiam atingi-lo” (RT, 647/149).

20 Inocêncio Galvão Telles, Direito das obrigações, cit., p. 212-213; Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça, Doutrina, cit., t. I, p. 553; Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 2, p. 182.

21 Antunes Varela, Direito das obrigações, cit., v. II, p. 343; Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 2, p. 182. Dispõe o art. 589º do Código Civil português: “O credor que recebe a prestação de terceiro pode sub-rogar-se nos seus direitos, desde que o faça expressamente até ao momento do cumprimento da obrigação”.

22 Direito das obrigações, cit., v. II, p. 339.

23 Instituições de direito civil, v. II, p. 131-132.

24 Curso de direito civil brasileiro, v. 2, p. 259-260.

25 Obrigações, cit., p. 141.

26 Obrigações, cit., p. 141.

27 Inocêncio Galvão Telles, Direito das obrigações, cit., p. 213-214.

28 “Empréstimo destinado à aquisição da casa própria. Contrato de valor específico e finalístico que caracteriza relação de consumo, subsumindo-se às regras do Código de Defesa do Consumidor” (RT, 800/277, 787/415). “Financiamento da casa própria. Ação em que se discute contrato, coberto pelo Fundo de Compensação de Variações Salariais. Julgamento afeto à Justiça Federal” (RT, 783/303). “Financiamento da casa própria. Hipoteca. Gravame que não incide sobre o imóvel adquirido por terceiro pela eventual inadimplência da construtora do empreendimento” (RT, 794/280).

29 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições, cit., v. II, p. 136; Maria Helena Diniz, Curso, cit., v. 2, p. 260-261.

30 “Cambial. Satisfação da dívida pelo avalista. Execução por ele proposta. Admissibilidade. Sub-rogação legal que enseja a via executiva” (STF, RT, 630/233).

31 Direito civil, cit., v. 2, p. 185.

32 Direito das obrigações, cit., p. 220.

33 Antunes Varela, Direito das obrigações, cit., v. II, p. 345.