Capítulo V

DA DAÇÃO EM PAGAMENTO

1. Conceito

A dação em pagamento é um acordo de vontades entre credor e devedor, por meio do qual o primeiro concorda em receber do segundo, para exonerá-lo da dívida, prestação diversa da que lhe é devida.

Em regra, o credor não é obrigado a receber outra coisa, ainda que mais valiosa (CC, art. 313). Já no direito romano se dizia: aliud pro alio, invito creditore, solvi non potest (uma coisa por outra, contra a vontade do credor, não pode ser solvida). No entanto, se aceitar a oferta de uma coisa por outra, caracterizada estará a dação em pagamento. Tal não ocorrerá se as prestações forem da mesma espécie.

Preceitua o art. 356 do Código Civil:

“O credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida”.

A dação em pagamento não se restringe, como no Código de 1916, à substituição de dinheiro por coisa. Ela se configura quando, por ocasião do cumprimento da obrigação, dá-se a substituição de seu objeto original1.

Segundo preleciona Alberto Trabucchi, com a dação em pagamento a obrigação se extingue mediante a execução efetiva de uma prestação distinta da devida. Neste aspecto se distingue precisamente a dação em pagamento da novação, pela qual a obrigação originária se extingue não pela satisfação do credor, mas porque este assume um novo crédito ao mudar a obrigação2.

Essa substituição conhece várias modalidades. Pode haver datio in solutum (dação em pagamento) mediante acordo, com substituição de dinheiro por bem móvel ou imóvel (rem pro pecunia), de coisa por outra (rem pro re), de uma coisa pela prestação de um fato (rem pro facto), de dinheiro por título de crédito, de coisa por obrigação de fazer etc.

O art. 995 do Código de 1916 não admitia o recebimento, pelo credor, de dinheiro, em substituição da prestação que lhe era devida. O novo diploma, todavia, eliminou a referida restrição, alargando com isso o âmbito de incidência do instituto, visto incluir também obrigações pecuniárias3. A obrigação se extingue mediante a execução efetiva de uma prestação, de qualquer natureza, distinta da devida (CC, art. 356).

Se a dívida é em dinheiro, obviamente não constituirá uma datio in solutum o depósito de numerário em conta-corrente bancária, indicada ou aceita pelo credor, porém pagamento normal. A conclusão é a mesma quando o devedor expede uma ordem de pagamento ou entrega um cheque ao credor. Todavia, o depósito, a ordem de pagamento e a entrega de um cheque podem configurar dação em pagamento, se a prestação devida era diversa (entregar um veículo ou um animal, p. ex.) e o credor concorda com as referidas formas de cumprimento, em substituição à convencionada.

A dação em pagamento pressupõe que o devedor tenha o jus disponendi da coisa, pois se não puder efetuar a transferência da sua propriedade inocorrerá o efeito liberatório. O accipiens, por sua vez, deve ter aptidão para dar o necessário consentimento. Se qualquer das partes estiver representada por procurador, este deve ter poderes especiais, seja para reconhecer o débito e alienar, seja para anuir em receber aliud pro alio. Sendo um acordo extintivo, tem de avençar-se depois de contraída a obrigação ou após o seu vencimento4.

2. Elementos constitutivos

Do conceito de dação em pagamento como acordo liberatório, em que predomina a ideia da extinção da obrigação, decorrem os seus elementos constitutivos: a) a existência de uma dívida; b) a concordância do credor, verbal ou escrita, tácita ou expressa; c) a diversidade da prestação oferecida, em relação à dívida originária5.

A existência de uma dívida é pressuposto básico, pois não há como solver dívida inexistente. A entrega de um bem a outrem, sem a preexistência de uma obrigação e o animus de extingui-la, configura uma liberalidade (animus donandi). O acordo de vontades também é essencial e constitui o elemento intrínseco da dação em pagamento. O elemento extrínseco consiste na diversidade da prestação oferecida em relação à devida6.

Admite-se que o credor dê ao devedor quitação parcial, ao receber coisa menos valiosa do que a devida, explicitando o débito remanescente, como pode também, não tendo dinheiro suficiente, dar parte em dinheiro e parte em espécie. Não se exige coincidência entre o valor da coisa recebida e o quantum da dívida, nem que as partes indiquem um valor. Pode, assim, o credor receber objeto de valor superior ou inferior ao montante da dívida, em substituição da prestação devida, fornecendo a quitação por um ou por outro. O que é da essência da dação pro solutio é a entrega de coisa que não seja a res debita, em pagamento da dívida7.

3. Natureza jurídica

Denota-se, pela redação do art. 356 do Código Civil, que a dação em pagamento é considerada uma forma de pagamento indireto. Entre nós, diferentemente do que ocorre no direito francês, não constitui novação objetiva, nem se situa entre os contratos.

A dação em pagamento é essencialmente contrato liberatório, diferentemente dos demais contratos, cujo efeito é gerar uma obrigação. Tem a mesma índole jurídica do pagamento, com a diferença de que este consiste na prestação do que é devido, enquanto aquela consiste no solvere aliud pro alio, no prestar coisa diversa da devida8.

O caráter negocial bilateral da dação em pagamento ressalta de forma hialina do enunciado feito no art. 356 do Código Civil, sabendo-se que o credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa (art. 313). Trata-se, efetivamente, de negócio jurídico bilateral de alienação, pois o devedor dá o objeto da prestação para satisfazer a pretensão do credor, havendo um plus, que é solver a dívida. Constitui, assim, negócio oneroso e, em regra, real, pois se aperfeiçoa com a entrega de um determinado bem em pagamento da dívida, com a finalidade de extingui-la por adimplemento, salvo quando a prestação substitutiva for de fazer ou não fazer9.

A datio in solutum não se confunde com a datio pro solvendo (dação em função de cumprimento), disciplinada no art. 840º do Código Civil português e que consiste na realização de uma prestação diferente da devida, com a finalidade de facilitar ao credor a satisfação do seu crédito, ainda que parcialmente. Pode consistir na entrega de uma coisa, na cessão de um crédito ou outro direito, na assunção de uma nova dívida ou na prestação de serviços (p. ex., na apresentação de um show, pelo devedor, cantor ou músico, na casa de espetáculos do credor, a fim de que este obtenha, por intermédio da referida prestação, mais facilmente, meios para a satisfação do seu crédito). Embora não prevista no estatuto civil, nada impede possa ser convencionada mediante o exercício da autonomia privada. A datio pro solvendo não acarreta a extinção imediata da obrigação, mas apenas facilita a satisfação do crédito10.

4. Disposições legais

Dispõe o art. 357 do Código Civil:

“Determinado o preço da coisa dada em pagamento, as relações entre as partes regular-se-ão pelas normas do contrato de compra e venda”.

Quando a prestação consiste na entrega de dinheiro e é substituída pela entrega de um objeto, o credor não o recebe por preço certo e determinado, mas apenas como satisfação de seu crédito (aliud pro alio). Todavia, se se prefixa o preço da coisa, cuja propriedade e posse se transmitem ao credor, o negócio se rege pelos princípios da compra e venda, especialmente os relativos à eventual nulidade ou anulabilidade e os atinentes aos vícios redibitórios e à interpretação.

Nessa hipótese a dação não se converte em compra em venda, mas apenas regula-se pelas normas que a disciplinam, pois se distinguem por diversas razões, como observa Judith Martins-Costa: “a) na compra e venda não cabe, em linha de princípio, a repetição do indébito, cabível na dação em pagamento quando ausente a causa debendi; b) o próprio objetivo, ou finalidade da dação em soluto, é a solução da dívida, o desate da relação; e, por fim, c) a dação exige, como pressuposto, a entrega, constituindo negócio jurídico real”11.

Segundo Pontes de Miranda, o que se tem de precisar, na interpretação do dispositivo em questão, são os casos de dação em pagamento em que não incidem as regras jurídicas sobre a compra e venda12. Obviamente, interpretando-se a contrario sensu o art. 357 do Código Civil retrotranscrito, conclui-se que, se não foi determinado o preço da coisa que substitui a prestação devida, não terão aplicação as normas concernentes à compra e venda. Quando a dação é rem pro re, assemelha-se à troca. Tal observação, porém, não tem consequências práticas, pois aplicam-se também a esta as disposições referentes à compra e venda (CC, art. 533).

A aplicação dos princípios da compra e venda conduz à ilação que deve ser proclamada a nulidade da dação em pagamento de todos os bens do devedor sem reserva de parte, ou renda suficiente para a sua subsistência (CC, art. 548), bem como da realizada no período suspeito da falência, ainda que em favor de credor privilegiado; e a sua anulabilidade quando feita por ascendente a descendente sem o consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante (art. 496), ou em fraude contra credores (arts. 158 e s.).

Prescreve o art. 358 do Código Civil:

“Se for título de crédito a coisa dada em pagamento, a transferência importará em cessão.

Se tal hipótese ocorrer, deverá o fato ser notificado ao cedido, nos termos do art. 290 do mesmo diploma, para os fins de direito, ficando o solvens responsável pela existência do crédito transmitido (CC, art. 295). A dação em pagamento, neste caso, sob a forma de entrega de título de crédito, destina-se à extinção imediata da obrigação, correndo o risco da cobrança por conta do credor.

Se, no entanto, a entrega dos títulos for aceita pelo credor não para a extinção imediata da dívida, mas para facilitar a cobrança do seu crédito, a dívida se extinguirá à medida que os pagamentos dos títulos forem sendo feitos, configurando-se então a datio pro solvendo, disciplinada no art. 840º do Código Civil português e mencionada no item anterior13.

Preceitua, por fim, o art. 359 do Código Civil:

“Se o credor for evicto da coisa recebida em pagamento, restabelecer-se-á a obrigação primitiva, ficando sem efeito a quitação dada, ressalvados os direitos de terceiros”.

Como ocorre, na dação em pagamento, uma verdadeira compra e venda, como foi dito, sendo-lhe aplicáveis as mesmas regras desta, responde o alienante pela evicção. Funda-se esta no mesmo princípio de garantia, aplicável aos contratos onerosos, em que se assenta a teoria dos vícios redibitórios, estendendo-se porém aos defeitos do direito transmitido. Constitui a evicção a perda da coisa em virtude de sentença judicial, que a atribui a outrem por causa jurídica preexistente ao contrato (CC, arts. 447 e s.).

Se quem entregou bem diverso em pagamento não for o verdadeiro dono, o que o aceitou tornar-se-á evicto. A quitação dada ficará sem efeito e perderá este o bem para o legítimo dono, restabelecendo-se a relação jurídica originária, inclusive a cláusula penal, como se não tivesse havido quitação, ou seja, o débito continuará a existir, na forma inicialmente convencionada. As garantias reais ou fidejussórias, como acessórias, seguem o destino da obrigação principal e, portanto, permanecem. A fiança, todavia, não se restabelece, como expressamente dispõe o art. 838, III, do Código Civil.

Na evicção comum, a coisa retorna ao patrimônio do verdadeiro dono, respondendo o alienante ao adquirente, que se tornou evicto, pelas perdas e danos, nos termos do art. 450 do Código Civil. Na dação em pagamento, diversamente, o efeito previsto no art. 359 do mesmo diploma, no interesse do credor, é o restabelecimento da obrigação primitiva, “ficando sem efeito a quitação dada”.

O novo diploma insere, como inovação, no final do retrotranscrito art. 359, ressalva aos “direitos de terceiros”, afetados pelo restabelecimento da dívida, como manifestação do princípio da confiança, expressão da diretriz da eticidade que marca o novo Código14. Protegem-se os terceiros de boa-fé, “adquirentes, por exemplo, de imóvel que já se liberara da hipoteca pela dação em pagamento da dívida. Se a evicção ocorre quando já estava liberado o imóvel no registro de imóveis, não podem ser prejudicados os terceiros de boa-fé”15.






1 Sílvio Venosa, Direito civil, v. II, p. 286.

2 Instituciones de derecho civil, v. II, p. 52.

3 Renan Lotufo, Código Civil comentado, v. 2, p. 331.

4 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, v. II, p. 140; Serpa Lopes, Curso de direito civil, v. II, p. 246-247, n. 200; Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça, Doutrina e prática das obrigações, t. I, p. 580, n. 333.

Tem a jurisprudência proclamado: “Dação em pagamento. Inadmissibilidade. Modalidade de pagamento não contemplada pelo art. 156 do CTN que é taxativo e, ainda, excludente, quando combinado com o seu art. 141” (RT, 791/439 e 776/402).

5 Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, 29. ed., v. 4, p. 297; Caio Mário da Silva Pereira, Instituições, cit., v. II, p. 141.

6 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições, cit., v. II, p. 141; Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça, Doutrina, cit., t. I, p. 580.

7 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições, cit., v. II, p. 141; Sílvio Venosa, Direito civil, cit., v. II, p. 287.

8 Serpa Lopes, Curso, cit., v. II, p. 247.

9 Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, v. 25, §§ 3000 e 3001, p. 4 e 6; Renan Lotufo, Código Civil, cit., v. 2, p. 331; Judith Martins-Costa, Comentários ao novo Código Civil, v. V, t. I, p. 485; Sílvio Venosa, Direito, cit., p. 287.

10 Mário Júlio Almeida Costa, Direito das obrigações, n. 98.2, p. 1021; Judith Martins-Costa, Comentários, cit., v. V, t. I, p. 489; Caio Mário da Silva Pereira, Instituições, cit., v. II, p. 142.

11 Comentários, cit., v. V, t. I, p. 494.

12 Tratado, cit., v. 25, § 3.001, p. 8.

13 Dispõe o art. 840º do Código Civil português: “Se o devedor efectuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito, e na medida respectiva”.

14 Judith Martins-Costa, Comentários, cit., v. V, t. I, p. 500.

15 Sílvio Venosa, Direito civil, cit., v. II, p. 289.