Terça-feira, 27 de outubro, 14h37
M
esmo antes de abrir os olhos, Berger sabia que estava numa sala de interrogatórios.
A visão é o nosso sentido mais instintivo. Quando acordamos, queremos abrir os olhos de repente, é um instinto, e a nossa consciência recém-despertada raramente tem rapidez suficiente para nos fazer desobedecer a um instinto.
Mas, naquela ocasião, teve.
Berger estava acordado há alguns minutos e tentava reunir o máximo de informações possível sem abrir os olhos. Doía-lhe o corpo todo, mas isso não tinha grande interesse.
Em primeiro lugar, Berger estava sentado. Tinha sido posto, inconsciente, numa cadeira dura, e os antebraços repousavam no que pareciam ser braços de metal. Demorou algum tempo a perceber que os antebraços eram mantidos no lugar por correias de couro em torno dos pulsos. A cadeira parecia tão estável que poderia muito bem estar presa ao chão, e um ténue cheiro a adega estava a chegar-lhe ao nariz.
E tudo estava a girar. O mundo estava a girar.
Pouco antes de as sinapses de Berger se fixarem, o cérebro foi completamente avassalado pela gélida suspeita de que fora capturado pelo sacana.
Que estava sentado numa cave, à espera de torturas insuportáveis.
Que o cadáver mutilado de Ellen Savinger estava pregado na parede à sua frente.
Mas então recordou-se.
A última coisa de que se deu conta antes de decidir abrir os olhos foi que havia alguém na sala, alguém que com toda a probabilidade estava a observá-lo cuidadosamente.
– Molly Blom – disse Berger, e esperou três segundos antes de abrir os olhos.
E lá estava mesmo, sentada à sua frente. O mesmo cabelo loiro, o mesmo nariz arrebitado, os mesmos olhos azuis, mas uma expressão muito diferente neles.
– Sam Berger – respondeu a mulher, olhando fixamente para o inspetor.
A mulher com quem tinha estado a falar na sala de interrogatórios sob o nome de Nathalie Fredén estava agora sentada diante dele numa sala de interrogatórios muito diferente. Estariam no Comando da Polícia?
– Uma seringa no pescoço? – disse Berger. – Parece a gozar.
– Parece que o Sam estava a dar luta como se fosse um condenado à morte – disse Molly Blom em voz baixa. – E estava quase a demolir-me a casa. Que acha que teria sido mais apropriado? Uma discreta repreensão?
– Apropriado? Talvez uma tomada de consciência do efeito que pode ter uma manobra de diversão deliberada numa investigação de um homicídio em série?
– Bem formulado – elogiou friamente Molly Blom.
– Se não tivessem posto um engodo no sistema, este tempo poderia ter sido gasto a tentar resgatar a Ellen Savinger.
– E porque acha que pusemos um engodo no sistema? – perguntou Molly Blom.
A sala separou-se dela. Berger tinha estado a concentrar-se tanto em Molly Blom que o resto do seu campo de visão não existira até àquele momento, até a necessidade de pensar ter surgido. A sala era incaracterística, despida e, para além do cheiro a cave não havia indicação de onde poderia ficar. Berger podia ver uma mesa de apoio que era exatamente igual à da sua sala de interrogatórios, incluindo o aparelho de gravação e a luz vermelha.
A luz estava ligada.
Os olhos de Berger percorreram os próprios pulsos, que estavam bem presos por correias de couro, e pousaram na mesa à sua frente. A mesa que não conseguia alcançar ou tocar. Nela estavam – além do seu relógio, um computador portátil, algumas pastas e vários documentos e notas – duas molduras, de costas para Berger, uma delas de um azul brilhante e uma caixa. Uma caixa retangular com uma lingueta dourada.
Uma caixa de relógios.
– Olho por olho?
Molly não sorriu. E também não disse nada. Berger prosseguiu:
– Eu fui a sua casa e por isso você foi à minha?
– Espalhou sangue pelo meu sofá. Porquê?
– Porque era tão repugnantemente branco. Precisava de alguma cor.
– Hum.
– Enquanto você é tão negra como o pecado. O «recurso interno» oficioso da Polícia de Segurança. Grande porra. E então invadiu a minha casa e andou por lá a bisbilhotar.
– Mas, ao contrário de si, eu não destruí nada.
Berger ainda estava a pensar nela como Nathalie Fredén. Tinha de parar com isso. Além da aparência, havia poucas semelhanças entre Nathalie Fredén e Molly Blom.
Acima de tudo, o equilíbrio de poder era completamente diferente.
– Destruiu a minha vida – disse Berger. – Se calhar, isso é um pouco pior do que um sofá manchado.
– Mas não é pior do que uma rapariga de quinze anos maculada e destruída – disse Molly Blom.
– E o que é que isso quer dizer?
– Tudo, claro. Tudo o que isto é. Mas julgo que talvez não queira começar por aí, Sam Berger, acho que prefere começar por outro lado. Embora lhe garanta que vamos voltar a esse assunto.
– Os infiltrados tomam sempre as palavras das outras pessoas – disse Berger. – Porque não têm identidade própria. Agora provou que pode tomar as minhas. É esperta. Mas onde está a sua identidade, Nathalie Fredén?
– O Sam está em boa forma, tendo em conta que há um minuto estava inconsciente – disse Molly Blom. – É esperto. Mas tenha cuidado, as tonturas podem chegar a qualquer momento e tem umas grandes olheiras.
– O quê?
– «O quê?» é bem jogado. É uma tentativa razoável de conseguir mais tempo para pensar. Especialmente se por acaso tiver pensado que eu poderia fornecer uma resposta bastante longa. Já teve o tempo de que precisava, Sam?
– Não. Fale mais um bocado.
– Essas olheiras são mais do que isso, revelam muita coisa. Esteve acordado durante três minutos e oito segundos. Conseguiu descobrir onde estava?
– Sim – disse Berger. – Nas terras áridas.
– De certa forma, sim – afirmou Molly Blom. – Já nada é oficial. Agora estamos num sítio diferente. Num tempo diferente. Mas o Sam percebeu isso antes de abrir os olhos.
– Mesmo assim, há um grupo inteiro, a porra da Polícia toda, até, que já deve ter começado a sentir a minha falta.
– Sentir a falta é um termo com uma carga muito forte, Sam. Tem a certeza de que o Allan Gudmundsson e a Desiré Rosenkvist sentem a sua falta?
– Provavelmente, o Allan não vai sentir a minha falta, mas a Deer sim.
– A inspetora que está claramente a subestimar? Vai sentir a sua falta com aqueles olhos de veado dela, cheios de nostalgia?
– Okay, agora já me fartei disto – disse Berger, puxando as correias. – Foi divertido, uma boa partida, mas agora temos um maldito serial killer para apanhar. Solte-me!
– Hum – disse Molly Blom. – Quer dizer que agora tenho de deixá-lo ir, agora que já preguei a minha partida.
Os olhos dela estavam mais escuros do que Berger alguma vez vira.
O inspetor optou pelo silêncio. Parecia mais simples do que escolher palavras.
– Sim – acabou por dizer Blom. – Realmente temos um serial killer para apanhar. O mais depressa possível. E a maneira mais rápida de o fazer é através de si, Sam Berger. Estamos a observá-lo muito atentamente desde que se apoderou secretamente dos processos das investigações da Julia Almström e da Jonna Eriksson.
– Mas isso foi apenas há algumas semanas – exclamou Berger. – Você tem andado para aí naquela maldita bicicleta desde Sollentuna, há dois anos.
– Nunca estive em Sollentuna – afirmou Blom. – Apenas lhe disse que tinha estado.
– Porquê?
– Porque foi onde isto começou. Eu precisava de descobrir exatamente o que você, Sam Berger, sabia sobre o caso, de analisar as suas reações.
– Mas eu não sei nada.
– Foi muito rápido a identificar o centro comercial Helenelund, em Stupvägen, como se já soubesse.
– Conheço Helenelund – retorquiu Berger. – Cresci lá perto.
– E essa é uma das coisas que o torna tão interessante – disse Blom, folheando os papéis.
– Que aconteceu por lá? – perguntou Berger. – Há dois verões?
– Em abril daquele ano, uma quadrilha de rebeldes iraquianos cruzou a fronteira com a Síria para participar na guerra civil. O grupo já tinha começado a autointitular-se Estado Islâmico do Iraque e da Síria9.
– ISIS – disse Berger, atónito.
– Ou EI, como lhes chamamos hoje em dia. Ou Daesh, uma coisa que odeiam que lhes chamem. Muitos muçulmanos sunitas já estavam a dirigir-se para lá, para lutar contra o ditador sírio, Bashar al-Assad. Considerámos que não passavam de combatentes da liberdade ingénuos. Com o aparecimento do EI, tornou-se claro que os jovens que iam lá para baixo eram jiadistas e recebemos as primeiras indicações de que o EI estava a recrutar pessoas na Suécia e uma dessas indicações foi encontrada em Helenelund, em casa de uma família de apelido Pachachi. Um homem de vinte e um anos, Yazid Pachachi, nascido na Suécia de pais iraquianos, muçulmanos sunitas, foi uma das primeiras ligações confirmadas ao EI. Parecia que a irmã de quinze anos, Aisha, tinha ido com ele. Infiltram-nos no bairro e apercebemo-nos de que provavelmente não era isso que tinha acontecido e que, afinal, Aisha estava desaparecida, aqui na Suécia. Os pais ficaram paralisados pela radicalização e militarização inesperadas de Yazid, e o desaparecimento de Aisha foi apanhado na sombra do desaparecimento do filho, o que acaba por não ser muito surpreendente. Mas todos os indícios sugerem que a rapariga desapareceu na sexta-feira, dia 7 de junho, há dois anos e meio, depois do último dia de escola. Pura e simplesmente nunca voltou para casa depois da festa que marcou o final do ano letivo.
– Mas vocês só deram por isso quando já era tarde demais?
– Sim, demasiado tarde mesmo. De início, passámos várias semanas a acreditar que Aisha estava a viver na Síria como noiva-criança de algum monstro do EI. Depois perdemos demasiado tempo com a hipótese de se ter tratado de uma espécie de homicídio de honra. Tenho a certeza de que Aisha Pachachi foi a primeira vítima do serial killer.
– Mas por que raio não nos avisaram, a nós, a verdadeira unidade de investigação criminal?
– Porque a próxima vítima também era muçulmana.
– Oh, merda.
– Uma família curda chamada Berwari, de Vivalla, em Örebro. No final de novembro do mesmo ano, a filha, Nefel Berwari, de quinze anos, desapareceu sem deixar rasto, mas os pais também não informaram a Polícia, silenciaram o caso, aparentemente por razões de honra, e tentaram resolvê-lo internamente. Afinal de contas, Vivalla já era um dos principais centros islâmicos da Suécia e foi como resultado da nossa infiltração na mesquita de Örebro que soubemos que Nefel Berwari estava desaparecida. Só então é que voltámos a centrar-nos em Helenelund e em Aisha Pachachi, e começámos a suspeitar que estávamos a lidar com o mesmo criminoso. Um raptor em série ou um serial killer. Ou ambos.
– Que ou era…
– …racista ou muçulmano, sim. Ou foi algo interno, relacionado com a honra ou islamista, ou teve alguma coisa que ver com a extrema-direita – um maluco qualquer, tipo lobo solitário, ou algo mais organizado. Em ambos os casos, havia bons motivos para a Polícia de Segurança classificar a investigação como confidencial.
– Nem seis meses passaram entre Aisha e Nefel – disse Berger. – E depois quatro meses antes da Julia Almström, em Västerås. É rápido e está a acelerar. Mas a seguir há uma pausa, quase um ano até à Jonna Eriksson, em Kristinehamn. E depois oito meses até à Ellen Savinger. Não é costume os serial killers acelerarem as suas atividades quando ganham gosto pelo que estão a fazer?
– A menos que nos tenha escapado uma vítima – sugeriu Molly Blom.
Berger fez uma pausa e recostou-se o melhor que pôde. Olhou para a mulher do outro lado da mesa. Usava roupa diferente, uma T-shirt branca justa e desportiva, calças pretas, que eram praticamente de fato de treino, e ténis rosa-choque.
Uma pessoa completamente diferente.
Que se assemelhava muito mais à alpinista das fotografias que tinha no apartamento.
Berger decidiu não o mencionar. Em vez disso, prosseguiu:
– É isso que pensa, que ainda há mais vítimas por descobrir?
– Sim. E por isso é que está aqui sentado, Sam Berger.
O inspetor soltou uma gargalhada e disse:
– E eu para aqui a pensar que isto começava a soar a uma conversa verdadeiramente útil entre dois agentes talentosos! Mas claro que era bom demais para ser verdade.
– A sua contribuição para a conversa tem sido bastante insignificante até agora. Mas isso está prestes a mudar. Vamos esboçar uma premissa provisória. Vamos fingir que esta é a primeira vez que ouviu falar de Aisha Pachachi e de Nefel Berwari. Qual seria a sua conclusão, Sam Berger?
Berger olhou profundamente nos olhos de Molly Blom e disse, após uma reflexão prolongada:
– Até ao rapto da Ellen Savinger, trata-se apenas de ocultar o facto de uma rapariga ter desaparecido; é perfeitamente possível que haja realmente outras vítimas: foi pura coincidência terem descoberto Nefel Berwari e terem conseguido concluir que estavam a lidar com um crime recorrente. Eu não sabia nem de uma coisa, nem de outra. Quanto a esse ponto, a sua «premissa provisória» está correta. Contudo, apesar disso, consegui ver que estávamos a lidar com um serial killer. Mas, trabalhando a partir das suas suposições, cinco vítimas, a conclusão tem de ser que existem duas séries separadas. Por algum motivo, o sacana começa a assassinar especificamente raparigas muçulmanas de quinze anos: porquê, não sabemos, mas o principal objetivo é que os crimes permaneçam por descobrir. É possível que o tipo tenha algo que ver com uma cultura antiga, patriarcal e baseada na honra, mas é mais provável que tenha simplesmente acabado por descobrir que essa é uma boa maneira de ocultar os crimes; os crimes mais bem-sucedidos são sempre os que ninguém sabe que foram cometidos. Podemos até encarar as pobres Aisha Pachachi e Nefel Berwari como treino. O próximo passo é mais difícil. O sacana percebeu que, se uma rapariga imigrante desaparece, os media não entram em frenesim; os preconceitos sugerem que tal desaparecimento tem que ver com questões de honra e nem mesmo os tabloides vespertinos têm estômago para mexer nisso. Mas se uma rapariga sueca de quinze anos desaparece, as coisas animam-se consideravelmente. O público interessa-se muito mais facilmente por isso. O que significa que é mais difícil de esconder. Como se esconde o facto de uma rapariga sueca de quinze anos ter desaparecido? Fingindo que fugiu. Que é o que acontece com a Julia Almström. Encontraram o rapaz que trocou e-mails com ela? O que tinha estado preso e queria ir para o estrangeiro?
– Não – disse Molly Blom. – O rapaz não existe.
– Seis meses entre Aisha e Nefel. Quatro meses até Julia, um aumento de ritmo temporário.
– Quase um ano até à Jonna Eriksson. Eu sei, não faz sentido. Que acontece entretanto?
– Como hei de saber? – perguntou Berger. – Limitei-me a encontrar o rasto da Julia e da Jonna, mas agora vejo que a Julia e o bando de motards em Västerås marcaram uma mudança. Uma mudança por parte da Polícia de Segurança. Vocês romperam com a vossa estratégia anterior. Aperceberam-se de que isso foi o começo de uma nova fase, de uma mudança bem preparada? Porque é que apareceu na sua bicicleta precisamente nessa altura? Que raio é que era afinal aquela coisa da bicicleta? Porque falou com aquele repórter de televisão, porque deu o nome do seu bizarro alter ego, Nathalie Fredén? Eu vi-a hesitar, a sua testa ainda não completamente lisa franziu-se mesmo.
Berger olhou para a testa da sua interlocutora. Realmente não havia muita coisa a acontecer por ali. Mas, em contraste, havia muita coisa a acontecer no resto da cara. Era como se todo o seu sistema de marcadores emocionais se tivesse deslocado para baixo. Molly Blom acabou por dizer:
– Acredito que as coisas devam parecer um pouco confusas para si neste momento, Sam. Não foi há muito tempo que forçou a entrada no meu apartamento e foi espancado pelos meus homens. Mesmo assim, parece que ainda pensa que está sentado deste lado da mesa. Acabou de fazer-me cinco perguntas, não foi?
– Pelo menos responda a uma delas – disse Berger.
– Nathalie Fredén era uma identidade bem desenvolvida de que me servia ocasionalmente quando estava infiltrada. O Sam queimou-a.
– Para sempre, espero.
– Só ficou queimada em termos policiais e tanto Allan Gudmundsson como Desiré Rosenkvist sabem a quem são verdadeiramente leais. São ambos leais à autoridade, você não é, Sam.
– Mas porquê utilizar essa identidade lá, naquela altura? Em Västerås?
– O assassino conduziu-nos a um bando de motards numa tentativa consciente de nos despistar. Utilizámos uma bicicleta que eu tinha requisitado para um trabalho anterior, levámos a bicicleta na mala do carro até Västerås e tentei fazer-me parecer o menos possível com uma polícia. Havia uma hipótese de o assassino aparecer, por isso eu estava simplesmente lá para vigiar. Em seguida, o repórter apareceu e eu tive de tomar uma decisão rápida. Era vantajoso que o criminoso me visse na televisão e que, possivelmente, se interessasse por mim de alguma forma? Não era uma escolha óbvia dar o meu nome falso e correr o risco de dar cabo de um pseudónimo bem estabelecido, mas pensei que as vantagens superavam as desvantagens.
– Meteu-se em sarilhos por causa disso?
Molly Blom deu uma gargalhada.
– Eu não sou você, Sam. Não faça confusão.
– Não há muito risco de isso acontecer.
– E, acima de tudo, não me subestime.
Um olhar assassino. Berger apercebeu-se que era improvável que alguma vez subestimasse Molly Blom.
– A Deer sabe que estou aqui? – perguntou.
Molly Blom olhou para Berger, de maneira diferente. Talvez um pouco mais humana. Embora provavelmente não fosse essa a palavra certa.
– Eu estou aqui, não estou? – disse Molly Blom.
– Libertada, sim – respondeu Berger. – Mas a Deer sabe que estou aqui? E onde é aqui? Se calhar nem estou no Comando da Polícia! E estas malditas correias, que Guantánamo de merda é este?
– Acalme-se – disse Molly Blom, e olhou-o nos olhos.
E o estranho é que Berger se acalmou. Ou, pelo menos, foi ficando mais calmo. A curiosidade levou a melhor sobre a raiva. Berger podia muito bem nunca ter estado mais curioso na vida.
Onde raio estava?
Quem raio era ela?
Que raio estava a acontecer?
– Pelo menos diga-me que está a agir dentro da lei – pediu Berger. – Que é uma agente sueca.
– Tudo isto é perfeitamente legal – disse Molly Blom. – Não se preocupe. Lembra-se de eu lhe ter dito que voltaríamos ao ponto onde começámos?
– Sou detetive – respondeu Berger. – Lembro-me das coisas.
– De que se lembra?
– Eu disse: «Destruiu a minha vida. Se calhar, isso é um pouco pior do que um sofá manchado.» Você disse: «Mas não é pior do que uma rapariga de quinze anos maculada e destruída.» Portanto, a Polícia de Segurança suspeita que eu… Bem, que fiz o quê, exatamente?
Molly Blom franziu as sobrancelhas. A testa permanecia plana.
– Tem que ver com a altura em que fez aquilo – disse.
– A altura em que fiz aquilo? – perguntou Berger.
– Quando foi mesmo que sacou os processos das investigações sobre os desaparecimentos da Julia Almström e da Jonna Eriksson à polícia regional?
Berger ficou em silêncio. A pensar. Produziu pensamentos sem palavras. Tentou que tudo aquilo fizesse sentido.
– Se não se lembrar, eu explico-lhe – prosseguiu Molly Blom. – A Ellen Savinger foi raptada da sua escola em Östermalm a 7 de outubro, há três semanas, mas o Sam sacou os processos a 3 de outubro. Como se já soubesse que a Ellen ia ser raptada.
Berger continuava imóvel. Blom prosseguiu:
– Não consigo compreender, Sam. Como sabia de antemão que a Ellen Savinger seria raptada?
O inspetor permaneceu em silêncio. Blom observou-o. Intensamente.
A forma como o olhar de Molly Blom tinha mudado... O que era estranho não era apenas que estivesse a partilhar tantas informações com ele depois de ter feito com que alguém lhe espetasse a agulha de uma seringa no pescoço, mas que o olhar não estivesse cheio de ódio. Era antes um olhar interrogativo.
Visto mais de perto, tudo aquilo era realmente muito peculiar.
– É verdade que já foi atriz? – perguntou Berger.
Blom parecia desapontada.
Depois respirou fundo e disse:
– Quatro dias antes de a Ellen Savinger ter sido raptada, o Sam adquiriu secretamente os processos das investigações sobre o desaparecimento da Julia Almström e da Jonna Eriksson que estavam nos distritos policiais Central e de Bergslagen. Será que não percebe que esse ato é obviamente mais suspeito do que estar em diferentes cordões de segurança policiais com uma bicicleta entre as pernas?
– Isso não é verdade – disse Berger.
A sala começou a girar. Ou o sedativo da injeção ainda não abandonara completamente o seu organismo ou a realidade estava a ganhar terreno. Uma compreensão do motivo pelo qual estava realmente ali.
Não era por ter excedido a sua autoridade.
Era algo muito pior.
– Não é verdade? – perguntou Molly Blom.
– A reorganização – disse Berger, enquanto tudo girava.
– Agora não faço ideia do que está para aí a dizer.
– O caos no início do ano – prosseguiu Berger, mas as tonturas não paravam. Foi invadido por uma onda de náuseas.
– Sim, a Polícia de Segurança tornou-se um órgão independente e tudo o resto foi posto sob a alçada da Autoridade de Polícia. E?
– Tem água?
– Não – disse calmamente Molly Blom. – Continue.
– A Julia Almström não foi investigada pelo distrito policial central – disse Berger. – Aquilo do bando de motards em Västerås aconteceu antes da reorganização. Era o distrito policial de Västmanland que estava encarregado da investigação, mas um mês depois da reorganização, o recém-formado distrito policial de Bergslagen passou a encarregar-se do desaparecimento da Julia Almström.
– E conseguiu dizer tudo isso mesmo que toda a sala esteja a girar?
– Como sabe disso?
– Basta olhar para si – respondeu calmamente Molly Blom. – Que está a tentar dizer?
– Que no início de outubro era relativamente fácil extrair processos sem deixar vestígios, as coisas ainda estavam caóticas a seguir à reorganização.
– Mas o Sam deixou um rasto – disse Blom. – E não acho que estivesse sozinho.
– Eu estava sozinho – disse Berger com uma brusquidão inesperada.
– Voltaremos a isso – disse Blom, olhando intensamente para o inspetor. – Seja como for, descobrimos um rasto, os processos relativos às investigações foram retirados quatro dias antes de a Ellen Savinger desaparecer.
– Não – disse Berger, e a sala não parecia mesmo querer parar de girar. – Não deixei nenhum rasto, pelo menos em relação a datas, as coisas estavam caóticas, era bastante fácil. Se há algum rasto, foi lá posto por alguém.
– Foi lá posto?
– Sim. Não deixei nenhum rasto e saquei os processos cinco dias depois de Ellen ter desaparecido, na segunda-feira, dia 12 de outubro. Passei o fim de semana inteiro a procurar paralelismos. Com outras raparigas de quinze anos que tinham desaparecido.
– O fim de semana inteiro? – exclamou Blom a destilar sarcasmo. Dois dias inteirinhos?
– Não tive mais do que isso. Descobri duas novas vítimas. Se tivesse tido mais tempo, também teria encontrado a Aisha Pachachi e a Nefel Berwari, apesar das vossas tentativas de encobri-las. E foi você quem me informou que havia mais, Nathalie Fredén, ao reagir de modo tão eloquente quando eu disse «três sítios».
– Vamos pôr essa mentira peculiar de lado – disse Molly Blom. – É uma mentira que implica que alguém com acesso a todo o material policial, um agente, teria registado a sua incursão aos arquivos policiais distritais numa data anterior ao desaparecimento de Ellen. Uma mentira que é demasiado absurda para ser sequer considerada, por isso remeto-a para a categoria de desculpas absurdas. E é por isso que esse não é realmente o ponto principal. O ponto principal, como o Sam muito bem sabe, é este.
Ditas estas palavras, Moly Blom pôs a mão sobre a caixa de relógios. Moveu lentamente o pequeno fecho dourado para um lado, abriu a tampa, revelando os compartimentos revestidos a veludo, e disse:
– Aqui temos nada menos do que quatro relógios fabricados por Jaeger-LeCoultre, Rolex e IWC, todos dos anos cinquenta e sessenta do século passado. O quinto devia estar no seu pulso, mas assim não teríamos sido capazes de prender a correia de couro. Está à sua frente.
Berger olhou para a Rolex Oyster Perpetual Datejust na mesa da sala de interrogatórios. As minúsculas gotas de condensação tinham-se movido, por isso só conseguia ver o centro do mostrador, com os dois ponteiros a apontar em direções diferentes. Não havia como calcular quanto tempo estivera inconsciente.
Molly Blom olhou para Berger e disse:
– Numa investigação interna mais tradicional, teria sido de grande interesse o facto de o valor do total desses relógios exceder meio milhão de coroas.
– Foram herdados – disse Berger. – Do meu avô, que se chamava Arvid Hammarström.
– É bom saber que não perdeu o sentido de humor – disse Blom com voz inexpressiva. – Isso sugere que temos energia para a próxima sessão. Que será muito diferente, posso garantir-lhe. Mas, como eu disse, os seus relógios improvavelmente caros só teriam tido interesse se este tivesse sido um caso tradicional. O que, obviamente, não acontece. Não há mesmo nada de tradicional nisto.
– Tenho jeito para relógios – disse Berger, agarrando-se ao braço metálico da cadeira com as mãos meio imobilizadas.
– Tem jeito para relógios?
– Compro relógios avariados e arranjo-os.
– E acha que estou interessada no seu passatempozinho patético? Acha que é por isso que estou a falar nos seus relógios?
– Agora não percebi o que quis dizer com isso.
– Ah, percebeu, claro que sim – disse Blom, pegando num par das divisórias revestidas a veludo da caixa e puxando-as para cima.
No pequeno espaço por baixo dos relógios estava um amontoado de plástico. Molly Blom pegou num de vários sacos extremamente pequenos com fecho de correr e leu atentamente o rótulo que ostentava:
– «Ellen Savinger.» Ai, ai – disse Blom. – Que poderá isto significar?
Berger não disse nada. Mas a sua respiração era perfeitamente audível.
– A interpretação positiva é que isto é algo que o Sam encontrou na casa de Märsta e subtraiu à investigação. Vamos dar uma vista de olhos para ver o que é?
Blom abriu o pequeno fecho de correr e esvaziou o saco sobre a mesa, entre as duas fotografias emolduradas. O que caiu era uma minúscula roda dentada com não mais do que um centímetro de diâmetro.
– Onde encontrou isto? – perguntou.
Berger permaneceu em silêncio. Há muito tempo que não sentia as células cerebrais a esforçarem-se tanto.
– Okay – disse Molly Blom passado algum tempo. – Isto pode atribuir-se à tradicional arrogância de um inspetor esgotado. «Descobri uma coisa que mais ninguém descobriu e vou resolver isto muito mais depressa do que a investigação oficial resolveria.» Isso, obviamente, seria má conduta profissional, mas não má conduta profissional do pior tipo. Mas depois temos isto.
Mais dois sacos de plástico foram retirados. Exteriormente pareciam iguais, incluindo os rótulos com a minúscula letra escrita a esferográfica.
Molly Blom dispôs os sacos de modo a ficarem alinhados, o aberto marcado «Ellen Savinger» à direita, com a roda dentada à frente. Depois pegou no do meio e disse enquanto o abria:
– Jonna Eriksson.
E lançou uma pequena roda dentada semelhante sobre a mesa. Sem uma palavra, repetiu a mesma manobra com o último saco, rotulado «Julia Almström». Outra roda dentada, desta vez um pouco maior, rolou para fora. E, então, Molly Blom disse:
– Se se tiver dado o caso de ter roubado a roda dentada de Ellen da casa de Märsta, de onde vêm as outras duas?
O silêncio de Berger era tão audível na sala como um alarme de um automóvel.
Blom prosseguiu:
– Nenhum caso antes de Ellen Savinger deu azo a um cadáver ou a um local de crime. Houve duas tentativas fracassadas para encontrar a Julia e a Jonna, o ponto de encontro dos motards em Västerås e o alce enterrado em Kristinehamn, mas concluiu-se que nenhum desses locais de crime estava relacionado com os desaparecimentos. Deixe-me perguntar-lhe mais uma vez: De onde vieram estas rodas dentadas?
Porque o silêncio de Berger tinha entrado numa fase nova e aparentemente final, Molly Blom disse:
– Mas ainda não terminámos. Há mais. Está pronto para mais, Sam Berger?
Blom pegou no Rolex que estava em cima da mesa e colocou-o ao lado dos outros na caixa de relógios. Olhou-o fixamente.
– Seis compartimentos, mas apenas cinco relógios. Aquele compartimento vazio parece um pouco triste, não é?
Então, Blom inclinou-se e tirou um maço de papéis velhos da mala. Acamou-os sobre a mesa e disse:
– Cada relógio de qualidade como estes tem uma garantia individual. Vou contar as garantias. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis... Espere lá, isto não bate certo, só há cinco relógios. Vou voltar a contar. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis.
– Pare com isso – disse Berger.
– Dois Rolex – prosseguiu inexoravelmente Blom enquanto olhava para as garantias muito gastas. – Dois IWC, um Jaeger-LeCoultre e, aparentemente, um Patek Philippe. Onde está o seu relógio Patek Philippe, Sam?
– Foi roubado.
– Parece ser a joia da coroa, Sam. Um… que diz aqui?… Patek Philippe 2508 Calatrava. Hoje consultámos um relojoeiro conhecido por ser o maior especialista da Suécia em relógios de pulso, e o homem nem sequer estava preparado para arriscar uma suposição sobre o valor de um relógio correspondente à descrição. Disse que era inestimável.
Blom fez uma pausa e olhou para Berger. Parecia realmente muito fraco. Prosseguiu:
– Está mesmo a sugerir que este relógio inestimável foi roubado e que o Sam não se deu ao trabalho de fazer queixa à Polícia?
– É preciso um seguro especial – disse calmamente Berger. – Não tinha dinheiro para isso e por acaso sei muito bem como é que a Polícia lida com uma queixa de bens roubados.
– Então, onde e quando é que afirma que foi roubado?
– Há uns anos – respondeu Berger. – No ginásio.
– Dois anos e meio, talvez. Em junho de há dois anos?
– Por aí, sim.
Blom abanou a cabeça em sinal de assentimento por um momento. Depois disse:
– O relojoeiro em questão pode ter-se recusado a avaliar o seu desaparecido Patek Philippe 2508 Calatrava, mas disse uma data de outras coisas interessantes. Identificou por exemplo estas três rodas dentadas. Há uma alta probabilidade de pertencerem a um Patek Philippe 2508 Calatrava.
9 No original, the Islamic State of Iraq and Syria (ISIS). (N. do T.)