Abril
Tinha-se passado mais de um mês desde o episódio em que eu perseguira Guida e em que vira Tsukuda pela última vez. Dediquei essas semanas ao trabalho e a tentar aquietar-me interiormente. Procurei deitar-me mais cedo e dormir mais, mas o resultado era o mesmo. Nas melhores noites, dormia quatro ou cinco horas; acordava cansado, amaldiçoava o espelho da casa de banho, sentia-me constantemente ansioso e lembrava-me muitas vezes de Henrique. A sua figura sucedia, amiúde, na minha imaginação, e julgava vê-lo nas esquinas, no silêncio da noite; num banco de jardim, ou encostado a um carro; a entrar numa viela recôndita. Por vezes, ao volante do carro, quase torcia o pescoço ao julgar que acabara de o ver a passar na rua, o corpo desengonçado tapado por um casaco preto e pardacento; noutras, assustava-me quando, ao cruzar uma praça (o Rossio, por exemplo), os pombos se erguiam em debandada, as asas espavoridas tingindo o céu de ferrugem, porque o imaginava numa bata de hospital, ensandecido, a perseguir as criaturas.
Uma noite, despertando às quatro da madrugada, fui para a sala e, ao espreitar pela janela, reparei num vulto que rondava a nossa rua, que espreitava para dentro dos caixotes do lixo, arrastando um saco atrás de si. Era um vagabundo, um pedinte, alguém que a vida destronara do patamar da humanidade. De rosto encostado ao vidro, ocorreu-me que eu podia ter sido aquele homem, a percorrer a cidade numa noite de Primavera em busca da sobrevivência. Ou que, um dia, Tsukuda acabaria assim – um luso-japonês sem terra, assombrado por demónios. Como seria uma vida daquelas? Em que a única preocupação era a sobrevivência diária, ou da próxima hora? Em que o único desafio era a saciedade, o abrigo de um temporal? Uma vida em tudo pré-histórica, o homem frágil no meio das bestas. Ri-me sozinho das armadilhas da minha mente. Assistindo às ruminações dementes do vagabundo – que saltava entre os caixotes do lixo, tapado por um casaco que pertencera a outrem, de ombros mais largos–, percebi que João tivera razão ao dizer-me as coisas que dissera. Mesmo na ausência, Tsukuda manipulava-me. Mesmo distante, escondido atrás das débeis paredes da consciência, ele representava a fronteira, o lugar entre a sanidade e a loucura, alguém que chorava num peep show e, ao mesmo tempo, possuía uma desmedida coragem de se expor ao ridículo e desafiar as leis universais da gravitação, da inércia, da dinâmica, da acção e reacção. Era um desgraçado e um rebelde, e isso fascinava-me.
Num domingo, fui ter com o meu filho a um jardim. Sentei-me num banco e respirei fundo, tentando assimilar o aroma de uma Primavera ainda tímida, com vergonha de despontar. Vi-o chegar, alto e bonito, com Prometeu pela trela. O cão farejava tudo, as folhas e os sapatos de quem passava, sempre a puxar pela trela. Apesar da velhice, continuava a ser um animal grande e forte; os anos na pasmaceira do apartamento de Alexandre tinham-no deixado sedento de gente, de experiência. O cão veio lamber-me as mãos, pousou a cabeçorra no meu colo. Lembrava-se de mim, das semanas que tínhamos passado juntos, quando ainda era um cachorro. Tinha o pêlo grisalho, igual ao meu. Afaguei-o e disse-lhe umas quantas palavras carinhosas. João sentou-se ao meu lado.
Já se habituaram um ao outro?, perguntei.
Antes de ir para o centro de tratamento, Alexandre confiara ao meu filho a guarda de Prometeu. Sabia o quanto João se afeiçoara a ele durante aquelas semanas remotas, e era evidente que se entendiam: o cão confiava nele, e ele confiava no cão.
Estamos em negociações, respondeu o meu filho. Por causa da Camilla.
Ah, ela não gosta da ideia?
Digamos que o plano dela para uma terceira criatura em nossa casa não incluía uma de quatro patas.
Devo ter olhado para ele com uma seriedade involuntária, porque começou a rir-se.
Apanho-te sempre com esta, gracejou.
Levou os dedos da mão esquerda ao ouvido e ajustou o aparelho. Reparei que, em vez do aparelho auditivo com que costumava andar, que era intra-auricular, trazia um outro, mais antigo, daqueles que dão uma volta completa à orelha.
O aparelho do costume avariou-se, explicou. E estes são mais baratos.
Eu posso ajudar-te a comprar um dos outros.
Ele fez uma festa ao cão, que salivava no seu colo.
Não te preocupes, serve-me perfeitamente.
É tão bom como o antigo?
João encolheu os ombros.
Não sei, respondeu. O que é que isso interessa, se serve perfeitamente?
Passámos uns instantes calados. Era o final da tarde, e os sinos da basílica tocavam. No jardim passeavam casais de namorados e velhos, outros cães. Uma rapariga de patins em linha desenhava círculos no asfalto. Não tive coragem de lhe perguntar, mas talvez o aparelho avariado fosse aquele que eu lhe oferecera havia tantos anos, no restaurante de hambúrgueres que deixáramos de frequentar (porque um dia, sem explicação, abandonamos as coisas que em tempos nos pareceram tão importantes). Senti-me profundamente nostálgico. Lembrei-me desses tempos, e percebi que a nostalgia não advinha do que vivera então, mas de como me sentira– ainda a descobrir o que era o mundo, com a perplexidade de uma criança tardia.
Tens medo?, perguntou João, como se me lesse.
Sim, respondi.
Perguntava-me por Alexandre, a sua ausência. Se eu temia que me acontecesse alguma coisa parecida.
Pior ainda é viver na sombra dessa possibilidade.
Como é que se sai dessa sombra?
Saindo da frente da luz, respondi.
Uma criança apareceu de lado nenhum, com um balão vermelho na mão. Era um miúdo pequeno, dois ou três anos, e parecia perdido.
Deve ser tramado viver assim, disse o meu filho.
Olhei para João, para a cabeçorra de Prometeu deitada no seu colo.
Se fosse fácil era para outros, respondi.
João riu-se. O miúdo com o balão deu um passo na nossa direcção. Depois olhou para os dois lados. Segurava a corda com muita força, o balão oscilava ligeiramente por causa do vento.
Estás angustiado, disse ele. É assim que as pessoas ficam quando não têm sexo há demasiado tempo.
Também me ri.
Tens razão, acho que já nem me lembro de como se faz.
Eu tenho medo disso, confessou ele. De acordar um dia sem desejo pela Camilla. Deixaste de sentir desejo pela Aurora?
Encolhi os ombros.
Acho que foi mais o contrário.
E também tenho medo de acordar um dia e de estar completamente surdo. Alguma vez fui completamente surdo? Disseram-me que sim, que nasci sem audição. Confirmas?
Hesitei, depois respondi:
Sim.
Então, os canais auriculares foram-se abrindo, parecidos com as artérias de um coração que bombeia o sangue com mais força, disse João. Deixaram passar os primeiros sons. Li num sítio qualquer que o som viaja a mais de trezentos quilómetros por segundo numa atmosfera ideal. Tempo seco, zero graus centígrados. Imagina como seriam as condições atmosféricas dentro dos meus ouvidos quando ouvi pela primeira vez, de certeza que não eram nada parecidas com as condições ideais, devia haver humidade e calor dentro da minha cabeça de criança. O som deve ter-se visto aflito para lá chegar.
É engraçado veres a coisa dessa maneira.
Deve ser tramado, repetiu ele, e pousou a sua mão na minha. Sorri, atrapalhado, sem saber o que sentir.
Prometeu, à maneira dos cães, acordou repentinamente da sua letargia e começou a ladrar, assustando a criança, que largou a corda do balão. Ficámos os três a olhar para o balão vermelho a subir no céu, pairando sobre as árvores. Cedo desapareceria de vista, engolido pelo azul. A criança não se apercebeu logo da perda. Levou alguns segundos até começar a chorar, o rosto gradualmente esmifrando-se numa careta de dor. João foi ter com ele e consolou-o, enquanto eu sossegava Prometeu, que se agitara com o choro do miúdo. Em breve surgiu uma mãe espavorida, preocupada com o filho. Culpou-nos pelo sucedido com olhares recriminatórios ao cão.
Fui para casa a pensar naqueles segundos que tardaram entre o acontecimento e a reacção– no tempo que sobrava entre uma coisa e outra: a perda, e a consciência da perda; o facto, e a manifestação da dor. Os adultos não são muito diferentes. Acontece simplesmente que esse tempo aumentou, existindo, entre o acontecimento e a reacção, um espaço ingrato a que chamamos esperança, antes de sermos confrontados com a inevitabilidade das coisas.
Nessa noite, dormi melhor do que em muito tempo.
Não tardei a encontrar Henrique, numa situação do mais inverosímil. Não foi um encontro feliz. Na manhã desse dia, um sábado, voltei para casa de um passeio matinal e deparei-me, na mesa da cozinha, com um dos post-its de Aurora: «Casamento. Leva isto.» Não me lembrava de lhe ter contado que tinha um casamento nesse dia; porventura mencionara o assunto, de passagem, mas o mais natural era que cada um fizesse os seus planos. Um divórcio pode levar anos, e ser ainda mais longo do que um matrimónio. Ainda assim, ela continuava a querer tratar de mim, com gestos carinhosos que tornavam a separação mais difícil. Deixara-me um fato preto, que eu usara duas vezes e depois esquecera no fundo do armário, dentro de um plástico transparente, em cima da bancada. Ao lado do fato estava um dos cadernos de Aurora, aberto nas páginas centrais, com a marcação cerrada das horas do seu dia. Notei algo estranho, que nunca tinha visto. No plano da semana havia um ponto de interrogação entre as nove e as dez da noite – às oito e meia era a hora de jantar, e às dez e meia o visionamento de uma série escandinava que passava todos os dias num canal de televisão por cabo e que ela acompanhava. Mas, entre as nove e as dez, nada. O que significava o ponto de interrogação? Talvez fosse uma coisa normal – que alguém deixasse um espaço em aberto nos seus dias para o acaso, para o que viesse a acontecer. Mas não era comum que Aurora inscrevesse esse espaço no caderno, na forma de uma incógnita.
Vesti o fato preto e pus uma gravata castanha. Era o dia do casamento de Jorge e de Agrião. Sentado na cama, a arranjar os botões de punho, lembrei-me do convite. «Boda Arriscada.» Comecei a rir enquanto calçava os sapatos. Todas as bodas eram arriscadas, as legais e as ilegais; todas as uniões entre pessoas (de índole sexual ou romântica, ou apenas de amizade) eram um risco que trazia consigo a expectativa da felicidade e o sofrimento da desilusão. Que fazer com a memória dos tempos passados juntos? Das mutações irreversíveis dos sentimentos? Que fazer da saudade e da ausência – da presença constante dos outros em nós, mesmo quando eram levados na voragem do tempo? Que fazer do doce fracasso que era o próprio tempo? Observei Aurora no pátio, sentada na cadeira de verga, a ler um manuscrito qualquer (provavelmente a tese de uma aluna sobre um artista obscuro da Europa de Leste), abstraída de tudo, excepto do que lhe importava naquele momento. Àquela distância, parecia ter os mesmos trinta e seis anos de quando nos conhecêramos. As rugas não eram visíveis, nem os pés-de-galinha, nem as covinhas do sorriso, nem a degradação da pele nas costas das mãos, nem as pequenas manchas da idade que lhe iam surgindo na testa, nem os cabelos grisalhos, teimosos, escondidos entre o cabelo preto natural e as madeixas pintadas.
O casamento acontecia no Jardim da Tapada das Necessidades. Estacionei abaixo da entrada do parque e fiz o resto do caminho a pé. Era um dia claro, nem quente nem frio, e um vento agradável, quase morno, atravessava a rua, embora, por cima do parque, viajasse uma nuvem que despejava um chuvisco inocente sobre Lisboa. Entrei pelo portão e subi a ladeira. Num banco à beira do caminho, avistei um homem solitário e magro, com um capuz a tapar-lhe a cabeça e um jornal na mão. A figura pareceu-me familiar, mas, distraído e ruminante, segui em frente. No centro do jardim, havia uma tenda branca que protegia os convidados. Durante a primeira hora, a chuva tornou-se mais forte, a água ribombava, dispersa e alvoroçada, no plástico que nos cobria. Depois, a partir das três da tarde, o sol regressou. Éramos cerca de oitenta pessoas, e eu conhecia um quarto delas: outros professores da escola, alguns funcionários (Eduarda; Armanda, já reformada; Euclides e a mulher), algumas pessoas da reunião de quarta-feira que, no decorrer desse ano, se haviam tornado amigas dos noivos. Passei algum tempo a conversar com Rosa –os sapatos de tacão faziam-na altíssima e realçavam-lhe o andar desajeitado–, que me contou que Noémia estava ausente porque viajara até uma cidade no Norte para conhecer a pessoa a quem o pai das duas deixara a herança.
A mulher diz que não se sente bem em ficar com o dinheiro, explicou Rosa.
A voz tremia-lhe. Desviara o olhar para um grupo de crianças que, vestidas como adultos, brincavam junto de um arbusto. Ao longo daquele tempo, tentara muitas vezes pôr-me no lugar dela, imaginar o que seria ver a pessoa que amamos morrer electrocutada em cima de uma bicicleta.
Acho que ela fez muito bem em ir lá, disse Santos, que entretanto se juntara a nós, com um copo na mão. Para pôr tudo em pratos limpos.
Santos era da opinião de que o pai delas tinha feito a pior coisa que um pai podia fazer. Sim, a sua morte aliviara Rosa de um fardo; mas aquele gesto de derradeira rejeição tinha sido demasiado cruel, e até a desconhecida que dele usufruiria o sentira assim, achando-se indigna da oferta do falecido. Santos e Rosa começaram a discutir baixinho, esgrimindo argumentos. De maneira inconsciente, quase inverosímil, Rosa defendia o pai. Santos começou a ficar irritado e, a certa altura, talvez para pôr cobro à discussão, disse a Rosa que aquela teimosia equivalia a dizer que todas as pessoas têm o que merecem, e que Teotónio tinha morrido naquele planalto escocês porque era assim que tinha de ser.
Estás a falar do meu marido, disse ela, profundamente magoada.
Era o meu irmão, respondeu Santos.
Rosa emitiu um som agudo que parecia uma palavra, mas que não chegou a sê-lo, e depois voltou costas e afastou-se de nós, a cambalear nos saltos altos. Santos bebeu água e respirou fundo umas quantas vezes. De mão na anca, olhou em volta, e depois para cima.
Esta tenda é um perigo, comentou.
Abanando a cabeça, afastou-se de mim e foi ter com a desconsolada Rosa. Os convidados iam-se juntando em grupos compactos, a chuva abandonava o parque. O sol voltara, e só então percebi que grande parte das pessoas estava vestida de branco ou de bege, ou de cores mais ou menos claras. Eu era o único de preto, mas agora não havia nada a fazer. Não podia tirar o casaco, restava-me ser a ovelha negra. Deambulei por ali e, porque não me apetecia falar com ninguém em particular, fui para junto da mesa das bebidas, pedi água tónica e comi alguns acepipes. O empregado que me serviu a água sorriu sem vontade, a suar numa camisa demasiado apertada, o lacinho esganando-lhe o pescoço. Ao fundo, na colina, vi aproximar-se um par de velhos. Quando chegaram à tenda, vi que era o senhor Mário, acompanhado de uma mulher de idade, que usava um chapéu de aba larga, cor-de-rosa, os lábios muito pintados. Caminhavam muito devagar, na lentidão da terceira idade. Apresentou-me a senhora. Era Leonor, a mãe da educadora de infância, a tal que gostava de ver telenovelas. Tinha sardas, como ele descrevera. O que Mário não dissera era que Leonor, embora septuagenária, tinha um rosto quase de rapariga, de olhos amendoados, um sorriso bonito. Era uma mulher atraente, apesar da idade. Mário, pelo contrário, parecia o velho que era, barrigudo e descontente. Trazia um livro na mão, um volume pequenino de poemas de Fernando Pessoa.
Então, começou a cerimónia. Não havia palco, apenas um par de microfones no exterior da tenda, à frente de duas colunas de pedra e um cenário de vegetação luxuriante. Agrião e Jorge apareceram vestidos de bege e roxo, com lenços na lapela. Agrião, que era o mais falador, agradeceu a presença de todos e recebeu uma salva de palmas. Jorge, cujo fato lhe ficava demasiado justo, suava, e o seu desconforto era visível. Seguiu-se o discurso de um homem que eu não conhecia e, depois, o senhor Mário dirigiu-se a um dos microfones e leu uns poemas curtos, meras estrofes:
«Eu não sei senão amar-te,/ Nasci para te querer./ Ó quem me dera beijar-te,/ E beijar-te até morrer.»
Durante a leitura olhou amiúde para Leonor, que, ao meu lado, soluçava baixinho. Os convidados bateram palmas sem entusiasmo. Um homem gordo resmungou alguma coisa desagradável acerca da leitura. A Leonor, porém, escorriam-lhe as lágrimas. Tirou da carteira um lenço para secar os olhos; no mesmo gesto, tirou da carteira também uma fotografia pequena, daquelas tiradas numa cabina automática, e mostrou-ma. Era o rosto de uma mulher nova, nos seus vintes. Os contornos do papel estavam gastos, era fácil de ver que a fotografia andava com ela há muitos anos.
É a minha querida Luísa, disse a senhora, e tornou a secar os olhos com o lenço. Que Deus a ajude.
Fiquei surpreendido com o comentário, mas também com a imagem. Luísa, igual à mãe, tinha sardas, o cabelo do mesmo tom, mas as parecenças terminavam aí. A filha era muito feia. Tinha o rosto demasiado alongado, a boca pequena e sumida; os olhos muito afastados do nariz. A mulher, enquanto fungava, contou-me, em voz baixa, que Luísa tinha um cancro, doença recém-descoberta, e que era uma injustiça muito grande uma mãe ver a filha naquele estado, que as pessoas deviam morrer por ordem de chegada, o Senhor era cruel e devia levá-la a ela primeiro, que se Luísa morresse ela partiria logo em seguida para estar com a filha no Céu. Fez uma referência qualquer a uma personagem de novela e continuou a chorar enquanto o senhor Mário terminava:
«Já não terei que falar-lhe/ Porque lhe estou a falar…»
Recebeu uma salva de palmas tépida. O gordo, entre dentes, chamou-lhe um nome; Leonor guardou cuidadosamente a fotografia. Seguimos todos para a boda propriamente dita, os convidados sentados em mesas improvisadas espalhadas pelo jardim. Fui dar os parabéns a Jorge e Agrião. Jorge cheirava a jasmim e suor; Agrião, muito mais composto, despira o casaco e arregaçara as mangas. Estava contente como sempre e mostrou-me um sorriso largo. Era a primeira vez que o via sem botas da tropa. Usava uns mocassins castanhos que os seus pés larguíssimos iam destruindo. Deu-me um abraço, agradeceu-me. Fiquei surpreendido, perguntei-lhe porquê.
Oh, pelas reuniões, disse ele. Sem elas, não teríamos casado. Provavelmente nem estaríamos juntos. Foram ideia sua, ou não?
A atenção dele desviou-se para outra pessoa que veio cumprimentar o casal, e eu atravessei o jardim, na direcção de uma casa de banho temporária, perdido num sentimento qualquer que carecia de identificação, arrebatado por uma alegria difícil de sentir, que eu nem sequer sabia se era alegria, por estar ensombrada pela vergonha. Entrei no compartimento a cheirar a urina. Quando ia levantar a tampa da sanita, reparei que, por cima do autoclismo, havia um objecto familiar, tão familiar que quase o ignorei. Do fundo da sua atribulada existência de barro, Santa Quitéria observava-me. Comecei a rir-me sozinho enquanto urinava. Imaginei Eduarda a entrar às escondidas no cubículo portátil, a pôr a santa em cima do autoclismo, a sair de mansinho. Imaginei-lhe o rosto de satisfação, o contentamento infantil. A fé é mesmo um lugar anterior à razão, às coisas que fazem sentido; só isso justificava a constante peregrinação das suas santas.
E depois Tsukuda apareceu no casamento.
Junho
Coitadinha, disse Ludmila.
Pegou no bolo seco e trincou-o. A massa esfarelada soltou-se e caiu no prato.
De quem?, perguntei.
Da senhora com filha que teve o cancro. Ela morreu?
Não, respondi. Ainda vive, depois de muita luta. Tiraram-lhe um dos seios, está a fazer quimioterapia.
Ludmila levou a mão à boca.
Oh. E eu sempre fui saudável, como se fosse de ferro. Na minha aldeia tínhamos expressão para mulheres e homens da Moldávia. «Mulher de ferro, homem de merda.» Não sei se é boa tradução, mas qualquer coisa parecida com isto.
Era o final da segunda semana que Henrique passava no hospital. Não havia melhorias, e os médicos aguardavam que o inchaço na cabeça diminuísse, que as lesões perdessem gravidade. Entretanto, Ludmila conseguira, junto da Embaixada do Japão, que entrassem em contacto com Saburo Tsukuda. Mas, até àquele dia, nada acontecera. Ninguém o visitara, excepto nós. Talvez, se soubesse do sucedido, o cônsul do cabelo prateado rejubilasse no seu pijama de linho, dando aleluias pela incapacitação do seu adversário.
Nesse dia o sol abrira-se sobre Lisboa, uma tarde azul. As janelas da cantina estavam inundadas de luz, e Ludmila parecia mais jovem– ou, quem sabe, arranjara-se para aquele encontro. Uma subtil camada de maquilhagem, o cabelo discretamente cortado. Usava um vestido e sapatos de salto. As pestanas pareciam mais longas, o sorriso mais demorado. Estaria a tentar seduzir-me? Senti um pânico repentino; depois concluí que não era nada disso, que era a chegada do bom tempo. A cantina começava a encher-se, era a hora do lanche no hospital, e, atrás do balcão, as empregadas compunham bandejas sem cessar. Recomecei, então, a contar-lhe a história do casamento. Atravessadas as cerimónias e os cumprimentos, sentámo-nos para a refeição principal, servida por empregados de lacinho azul que traziam os pratos de um serviço de catering que operava dentro de uma rulote. Sentei-me à frente de Rosa e de Santos. À minha esquerda, estava uma mulher ruiva e sorridente e, ao meu lado direito, uma criança de oito ou nove anos que jogava freneticamente num aparelho electrónico. O pai da criança, austero, barba por fazer, mandava-a incessantemente comer o que tinha no prato, mas a criança continuava a jogar. Ainda havia muita luz, era um jantar a desoras, mas, pela primeira vez desde que ali chegara, comecei a descontrair. Tirei o casaco, arregacei as mangas. A mesa era comprida e estava cheia. Ao fundo, Euclides dava a provar alguma coisa à mulher, que, de boca aberta, à espera do garfo, parecia um animal. O miúdo carregava nos botões, num frenesi. Perguntei-lhe que jogo era aquele. Não deu resposta. O pai deu-lhe um safanão –Responde ao senhor!–, e a criança despertou do transe. Explicou-me que era um jogo em que um pugilista russo chegava a Nova Iorque, onde se envolvia com uma mulher que era raptada pela máfia, por isso a missão dele era descobrir os raptores e matá-los um por um.
Quantos é que já mataste?, perguntei.
Aí uns duzentos, disse ele.
É preciso matar duzentas pessoas para resgatar uma mulher?
O miúdo pausou o jogo e olhou-me, muito sério.
É a máfia, insistiu.
E porque é que a máfia anda atrás dela?
Sei lá. Deve ser puta.
O pai deu uma chapada na parte de trás da cabeça do miúdo, que resmungou alguma coisa inaudível e continuou a jogar.
(Os Russos são pessoas muito agressivas, disse Ludmila. São bem capazes de matar umas centenas quando só é preciso matar uns quantos.)
Foi nessa altura que ouvi o burburinho ao fundo. Primeiro pareceu-me o grasnar de uns patos, ou coisa semelhante, vindo da mesa mais distante. Depois, as pessoas começaram a soerguer-se, voltando as cabeças na direcção do ruído. Não eram patos, eram os gritos de uma mulher, misturados com os urros selvagens de dois homens. A criança abandonou o jogo por uns momentos, deixando o russo sozinho em Nova Iorque, e pôs-se em cima do banco de madeira para ver melhor. Dois homens rebolavam no chão, a mulher gritava, alguns convidados acudiam à situação. Agrião e Jorge saíram disparados dos seus lugares; Santos levantou-se e, de guardanapo na mão, também foi a correr para onde a confusão acontecia. Quando me aproximei, descobri Henrique no chão, embrulhado com outro homem. Agarravam-se com violência, os dois a tentarem dar socos e pontapés, mas completamente inaptos, o mais que faziam era rebolar e grunhir. O adversário de Tsukuda era o gordo, aquele que desapreciara a leitura de Mário; a mulher que gritava, aos saltos em redor dos corpos caídos na relva, era Guida. Os convidados assistiam, estupefactos, àquela demonstração de brutalidade imatura, mas ninguém parecia ter coragem de interferir. Guida grunhia qualquer coisa incompreensível, parecia suplicar com o japonês que parasse, mas as palavras saíam-lhe entarameladas pelo estupor alcoólico. Usava um vestido branco, que lhe ficava demasiado curto, e tinha partido o salto de um dos sapatos. Tudo o resto aconteceu com rapidez. Agrião preparava-se para os separar e ouvi os passos resolutos de Santos, atrás de mim, a avançar para eles. Mas, antes de terem tempo de se meter, o gordo ganhou vantagem e sentou-se em cima de Tsukuda. Deu-lhe dois murros com muita força. O primeiro atingiu-lhe o nariz, que explodiu de sangue; o segundo atingiu-o em cheio na boca, e tive de desviar o olhar. Santos arrastou o gordo para longe de Tsukuda. Este, deitado no chão, encontrou-me no círculo das testemunhas e fitou-me. E, do fundo da sua insanidade, começou a rir-se, a boca toda vermelha, provavelmente um ou outro dente partido.
Eu e ele éramos as únicas pessoas vestidas de preto, dos pés à cabeça.
Russos e Japoneses, disse Ludmila. Gente violenta, não sabem quando parar. Suspirou, abanando a cabeça. Que tristeza, só de pensar em menino Henrique a fazer figuras dessas fico toda arrepiada.
Abraçou-se como se tivesse frio, apesar do calor daquele final de tarde. As mesas da cantina estavam quase todas ocupadas, as vozes e o tilintar dos talheres enchiam o espaço de ruído.
Depois de Santos os ter separado, Tsukuda foi carregado para fora do parque por dois homens que trabalhavam no catering. Fazia uma figura deplorável, de cabeça pendurada entre os ombros dos empregados. Guida foi atrás dele aos tropeções, sequiosa, a subir ainda mais a bainha do vestido para conseguir acompanhar a passada dos homens; as pulseiras a tilintar, o salto partido. Atravessei o relvado a correr e chamei por ela. Guida voltou-se para trás, tropeçou em si própria e ficou a olhar-me. Tinha, no rosto, aquela película que separa os alcoólicos do mundo. De cigarro aceso, a esclerótica tingida de vermelho, julgo que não me reconheceu logo. Ou teve de fazer um esforço para se lembrar de mim. Cruelmente, senti-me grato. Grato por estar sóbrio; grato por haver décadas que não conhecia aquela espécie de dor. Perguntou-me o que queria, e eu disse-lhe (mas sem acreditar no que dizia) que ela não tinha de continuar naquele caminho, que ainda estava a tempo de voltar para trás.
Ou o quê?, perguntou, rouca. Estou despedida, é isso?
Atirou o cigarro para o chão e cacarejou. Voltou costas e continuou a descer a colina, atrás de Tsukuda. Os homens largaram-no no banco à entrada do parque. Ela pegou no corpo do japonês e levou-o dali para fora, um par de bêbedos sem rumo.
Aquela cena deixou-me tão perturbado que liguei à minha mulher. Não sabia mais o que fazer: ao deixar, sozinho, o casamento de Jorge e Agrião, precisei de ouvir uma voz familiar dizer-me que o mundo era mais do que aquilo. Que alguém ainda se preocupava, que outro ser humano olharia por mim se eu me afundasse. Precisava de me sentir protegido, amado. E, portanto, fiz aquilo que os desesperados fazem quando já não sabem o que fazer, que é declarar amor para receber amor, fingir generosidade para que lhes devolvam um quinhão de conforto.
Eram nove e um quarto da noite, e Aurora atendeu. Não fazia nada, respondeu, estava sentada no sofá da sala, às escuras, a ver a noite instalar-se no mundo. O tal ponto de interrogação na agenda. Eu disse-lhe que a amava, mas não obtive resposta do outro lado.
Um enorme silêncio, dilacerante.
Pobrezinho, disse Ludmila, ternamente cobrindo a minha mão com a sua. Deve ter sido grande desilusão.