8. Azeite e Gengibre

Não sabemos o que é um sonho porque não sabemos o que não é um sonho. Foram muitos aqueles que, no decurso da história da literatura, insistiram nesta ideia. Tomemos, a título de exemplo, os versos de Edgar Allan Poe: «All that we see or seem/ Is but a dream within a dream.» Ou Shakespeare, dito por Próspero, ainda mais fracturante: «We are such stuff/ As dreams are made on, and our little life/ Is rounded with a sleep.» Porventura, a ideia mais pertinente é que o sonho e a vigília não são compartimentos estanques; misturam-se, fundem-se habilmente e, ao mesmo tempo, com imensa discrição, de tal maneira que é possível sonhar e saber que estamos a sonhar, e estar acordado sabendo que sonhamos. Talvez esta última ideia seja menos comum. Mas só o é porque, na vigília, que dura mais tempo (e apresenta maior consistência narrativa), existe a necessidade de nos assegurarmos do real, ou a vida seria uma panóplia de surpresas: rostos trocados, objectos desaparecidos, carros voadores.

Mas haverá alguém que nunca tenha acreditado, mesmo que por um breve segundo, que o sonho da noite anterior, ou o de há meses ou anos, foi realidade? Que era tão consistente como o chão ou as montanhas ou a chuva? É inútil esboçar argumentos ou tentar explicar esta ideia, mesmo a nós próprios. Seria como convencer Dom Quixote da sua loucura – e, portanto, remover-lhe o véu da ilusão, condenando-o a um aborrecido destino enquanto Alonso Quijano. Ou convencer um homem desperto de que, na verdade, está a sonhar: Vogler, o mudo-falante, demonstrando-lhe a inépcia das suas ilusões. Tudo isto faria sentido se soubéssemos a diferença.

A questão parece-me mais simples: se não sabemos o que é um sonho (porque podemos estar a sonhar), nunca saberemos se saímos dele.

Junho

Era nestas coisas que eu pensava quando conheci Ludmila Silva. Ela estava sentada ao lado da cama de hospital onde Tsukuda se encontrava deitado, entubado, com a parte superior do corpo enfaixada e uma perna partida, engessada, erguida no ar, sustentada por um atilho que pendia de uma estrutura por cima da cama.

Ludmila era uma mulher bonita e algo redonda. Sentava-se na cadeira, hirta, a segurar, em cima das pernas muito ­juntas, uma carteira azulão que contrastava com a roupa conservadora– saia pelo joelho, camisa branca e casaco azul-escuro. Tinha cinquenta anos, calculei, ou nem tanto; usava o cabelo preso no alto com dois ganchos.

O japonês tinha dado entrada há duas noites. Nesse fim de tarde, fui ver como estava, depois de, na noite anterior, ter informado os que iam habitualmente à reunião de quarta-feira do nome do hospital e do número do quarto onde podiam encontrar Henrique, caso desejassem visitá-lo. Até àquele momento, ninguém aparecera. Provavelmente, ninguém apareceria. Mas ali estava aquela mulher desconhecida. Era um dia de Junho, fazia muito calor, e eu acabara de percorrer os infindáveis corredores do Hospital de Santa Maria até ao piso dos internamentos. Cansado, suado, parei junto da porta do quarto e olhei pelas grandes janelas que enfrentavam o saguão do hospital. O Santa Maria é um hospital antigo, construído em pedra cinzenta, cuja estrutura, por vezes, faz lembrar uma prisão. É um produto do Estado Novo– linhas rectas e funcionais, pouca humanidade. O saguão era tristíssimo, um buraco negro enfiado entre quatro paredes altíssimas onde o sol nunca penetrava.

Fiquei ali parado a olhar para o céu azul que pairava sobre o hospital, a perguntar-me quem teria sido o arquitecto de um espaço de saúde onde a luz não entrava. Também estava ensonado: havia meses que não dormia bem. Sonhava recorrentemente com uma janela aberta, e eu a saltar do parapeito, o peso do meu corpo arrastando-me para a morte, de que despertava mesmo antes do embate final. Acordava com um salto, como se tivesse caído na cama de uma grande altura. Ao meu lado, Aurora, meio adormecida, perguntava-me se estava tudo bem. Eu respondia, ofegante, que tornara a morrer. Então, a cama é o teu caixão, dizia ela, e ria-se antes de voltar a adormecer, enquanto eu, ainda com a sensação da morte no peito (ou daquela espécie de morte que sucede em sonhos), abraçava a almofada e preparava-me para longas horas de vigília involuntária; de escuta sistemática dos ruídos no quarto, os sons estranhos e clandestinos que a noite traz, até que, cansado de não conseguir dormir, ia para a sala ver a manhã aflorar no horizonte e lembrava-me das insónias que tivera quando Tavares morrera, de como a oração me ajudara a sobreviver. Punha-me a orar de nariz encostado ao vidro da janela, rezando por desalojar a inquietação que tomara conta desde que Tsukuda aparecera na minha vida.

Respirei fundo e fechei os olhos por um momento. O cheiro do éter penetrou-me nas narinas, aquele cheiro que eu associava às coisas moribundas, quase defuntas. Que o teu deus seja misericordioso, pedi, numa prece silenciosa, e dei-me conta de que não pensava em mim, que pensava em Tsukuda.

Quando abri a porta do quarto e entrei, ao ver a mulher desconhecida sentada na cadeira ao lado da cama, reparei que tinha duas enormes manchas de suor debaixo dos braços, impossíveis de esconder. Ela apresentou-se, soerguendo-se. Confuso, perguntei-lhe quem era, e ela repetiu que se chamava Ludmila, com um tímido mas indisfarçável sotaque de Leste. Olhei para a cama. Henrique estava a dormir – ou, pelo menos, era o que parecia; tinha os olhos fechados e ressonava baixinho, o lado esquerdo do rosto era uma confusão negra e roxa do embate.

Encostei-me à parede junto da porta. Na cama ao lado da de Tsukuda, estava um homem deitado de lado, com a cabeça completamente enfaixada e uma expressão tristíssima no rosto, que nos contemplava com apatia, como alguém que vê um quadro num museu mas não consegue registar-lhe o ­sentido.

É catatónico, observou Ludmila, a confundir a forma ­verbal.

O quê?

Menino Henrique, respondeu. Acho que não ouve nada do que dizemos.

Cruzei os braços para esconder as manchas de suor. A janela estava aberta. Do lado da avenida, tudo o que chegava era o barulho distante dos carros, das buzinas; do bulício da cidade a preparar-se para o Verão. Nenhuma brisa.

O que quis foi saber que relação tem com ele, frisei.

Ah, respondeu ela, com um pequeno saltinho, ainda agarrada à carteira. Fui empregada doméstica de senhor Saburo durante muitos anos.

O pai.

Sim.

Que já morreu, afirmei, em tom de pergunta.

A expressão no rosto dela mudou, como se avistasse um fantasma.

Já morreu?, repetiu, num tom de enorme preocupação.

Durante um momento, fiquei confuso.

Não sei, respondi.

A mulher continuava a olhar-me sem entender, espavorida.

Está vivo, então, corrigi. Vivinho da silva. Desculpe. Fiz confusão.

Ludmila recostou-se na cadeira, e apercebi-me de que acabara de lhe dizer algo que podia não ser verdade.

Da Silva sou eu, disse ela.

O quê?

É meu nome. Ludmila Silva.

Ah.

Que alívio, concluiu ela. Que bom o senhor Saburo estar vivo.

A seguir, explicou-me que, na noite anterior, recebera o telefonema de um médico a informá-la do estado de saúde de Henrique. Aparentemente, o japonês, no dia seguinte a ser internado, tivera um momento de lucidez e pedira a uma das enfermeiras que ligasse a Ludmila.

O meu filho nasceu aqui, contei-lhe, para fazer conversa.

Aqui, neste quarto?, perguntou ela, olhando em redor.

Neste hospital. E, mesmo que tivesse sido neste quarto, seria assim tão mau?

Olhei para o homem na cama do lado e reparei que sangrava dos ouvidos. Mantinha os olhos abertos, mas um fio espesso de sangue escorria-lhe da orelha e começava a manchar as ligaduras que lhe enfaixavam a cabeça. Ignorante do que estava a acontecer, o homem sorriu-nos; faltavam-lhe alguns dentes da frente.

Credo, disse Ludmila. Vou chamar a enfermeira.

Ludmila saiu do quarto. Enquanto esteve ausente, um telemóvel tocou no interior da sua carteira, que tinha ficado ali. Era a imitação de um toque antigo, dos telemóveis que se usavam na década anterior. Tocou várias vezes, depois parou; tornou a tocar. Aproximei-me de Tsukuda. Já o tinha visto antes, mas, à luz do dia, aquele estado suscitou em mim uma inesperada raiva, a indignação alheia de ver um homem fazer aquilo a si próprio.

És um idiota completo, disse eu.

Tsukuda ressonava. Ao lado da cama, um tubo intravenoso ligado ao braço fornecia-lhe uma forte anestesia e, pro­vavelmente, uma dose considerável de tranquilizantes. Os médicos tinham entrado em contacto com o Júlio de Matos e, a qualquer hora, aguardavam a visita do psiquiatra.

Amigo, ouvi, e assustei-me.

Era o homem da cama ao lado, que me chamava. Aproximei-me dele, e o paciente estendeu o braço para me dar a mão. O meu primeiro instinto foi recuar, mas depois deixei que me agarrasse os dedos.

Amigo, repetiu, estou a ficar melhor. Não estou?

Olhei para o sangue que lhe escorria do ouvido.

Sim, menti, pela segunda vez naquela tarde. Está a ficar melhor.

As enfermeiras vieram e, depois de fecharem a cortina que isolava a cama dele do resto do quarto, começaram a tratar do paciente que sangrava. Como Tsukuda permanecia adormecido –e, segundo a enfermeira mais velha, assim iria ficar pelo menos até à hora do jantar–, acabei por convidar Ludmila para um café. Tinha uma reunião da irmandade às oito e meia, por isso sobravam-me duas horas. Ludmila abriu a carteira e olhou para o telemóvel, que tocava.

O meu marido ligou, disse ela. Olhou-me: tinha uma expressão meiga no rosto; havia algo nela que era apaziguador, uma qualidade que infundia calma.

Atenda, pedi.

É grande chato, disse ela.

Quem?

O meu marido.

Ela atendeu numa língua que eu não soube identificar, e pareceu falar asperamente com a pessoa do outro lado. Depois desligou. Estávamos sentados a uma mesa da cafetaria mais pequena do hospital, que ficava no final de um corredor, ao lado da Radiologia. Era um lugar triste, com mesas de zinco e tampos de madeira aplainada; duas senhoras, de aventais brancos e toucas na cabeça, serviam os pacientes e as famílias de café queimado e bolos secos.

De onde é o seu marido?, perguntei.

É português.

Ah. Falou com ele noutra língua, achei que não era.

Chama-se Silva e é grande chato, repetiu. Temos dois filhos. A Renata, que tem nome horrível, escolhido por ele, e o Vadim, que é nome lindo da Moldávia. Eu sou da Moldávia. Mas vivo aqui há tantos anos que já não sei o que é ser moldava, por isso em casa falamos a minha língua, faz favor.

Acho que faz sentido.

Mas olhe que o meu marido é um amor de pessoa.

Acredito.

Mas é grande chato.

Já sei.

Ludmila soltou um lamento resignado. Depois estalou a língua nos dentes e, pegando na chávena com as duas mãos –tinha mãos grandes e fortes, de pessoa que trabalhava arduamente–, sorveu o café.

O senhor estava lá quando ele saltou?, perguntou-me.

Eu e muitas outras pessoas.

Porque é que acha que ele saltou?

É complicado. Não sei se consigo dar uma resposta.

Pode tentar? Faz favor.

Respirei fundo. Sentia-me enjoado, indisposto; não conseguia deixar de pensar no homem que sangrava dos ouvidos e na sua ilusão de melhorar.

Um dia, ele disse-me que cada pessoa tem a sua maneira de acreditar no infinito, e que aquela era a maneira dos Tsukudas, respondi. Pelo menos, foi isso que me deu a entender: que levitar era algo que lhe estava no sangue. Acho que foi isso que ele tentou fazer quando saltou. Na cabeça dele, estava a levitar.

Levitar?, perguntou Ludmila. O que é?

É mais ou menos como voar, mas não exactamente. Levan­tar-se do chão sem outro meio de propulsão que não o próprio corpo, através do poder da mente. Ou do espírito, não sei… Qualquer coisa parecida com isso.

Ah!, exclamou ela, como se subitamente entendesse alguma coisa há muito envolta num enigma. Então era isso que menino Henrique tentava fazer quando era mais novo.

Fiquei curioso e pedi-lhe mais pormenores – o facto de ela o tratar por «menino Henrique» denunciava que se conheciam havia muito tempo. Ludmila explicou que começara a ­trabalhar para Saburo Tsukuda em 1985, quando ele fora nomeado embaixador do Japão em Lisboa. O apartamento, nessa época, era arrendado pela Embaixada, que também a contratara; o mesmo apartamento que Saburo, mais tarde, comprou para si e para a família. Curiosamente, Ludmila só o conheceu um mês depois de ter começado a limpar o apartamento.

Mas percebi logo que era homem muito especial, muito delicado, disse a mulher. Fazia coisas especiais, uma vez cortei-me na lâmina daquela espada que ele tinha…

… o sabre, disse eu.

… sim, o sabre. E, quando voltei a aparecer por lá, tinha um penso rápido em cima de mesa e flores. Um narciso, sim, deixou-me narciso e penso, porque deve ter reparado no sangue em fio da espada, se calhar umas gotas no chão. Tão atencioso, meu Deus. Noutra vez perdi brinco, deve ter caído enquanto limpava o armário, e ele deixou-me de prenda leque japonês, a coisa mais bonita que algum dia ofereceram-me. Sim, homem muito atencioso.

Quando é que o conheceu?

É história triste, disse ela, levando a chávena aos lábios outra vez. Tem certeza que quer ouvir?

Atrás dela, dois pacientes, vestidos nas batas deprimentes do hospital, refilavam com uma das senhoras de touca por causa da qualidade do café. Um deles não atara a bata devidamente, e conseguia ver-se o rabo peludo do homem, as nádegas flácidas a agitarem-se ao ritmo dos seus resmungos.

Tenho, respondi.

Foi nesse ano, em 1985, contou Ludmila, que a mulher de Saburo adoeceu. Era muito nova, não teria mais do que trinta e cinco, certamente menos do que quarenta anos, quando uma doença grave (qual, exactamente, ela desconhecia) a atacou. A família foi para a Suíça entregar-se ao cuidado dos melhores médicos, e, embora o embaixador viesse a Lisboa todas as semanas, por causa do trabalho, só regressou definitivamente depois da morte da mulher num hospital de Zurique. Saburo voltou para Lisboa, devastado, com o filho de doze anos – um rapaz sisudo e introspectivo que, nos primeiros meses após o retorno, não disse uma palavra a Ludmila sempre que ela entrava no apartamento, olhando-a com desconfiança, por vezes com agressividade.

Eu tinha medo de menino Henrique, confessou ela. Ainda hoje, ao vê-lo ali no quarto, mesmo adormecido, sinto calafrio da espinha. Ludmila olhou para o tampo da mesa. Como dizemos na Moldávia, é «rato na ceia de Natal».

Pensou durante um momento e depois perguntou:

Isto não faz sentido no português, pois não?

Ri-me da expressão dela.

Sabe que ele me disse que a mãe estava viva?, perguntei. Que vivia no Sul de França com o dinheiro do marido.

Ludmila mordeu o lábio e estalou a língua nos dentes.

Ele não faz por mal, coitado. Eu sei que não faz por mal.

O Henrique sempre foi assim? Um mentiroso patológico?

Ludmila demorou uns segundos a responder; parecia procurar, dentro de si, as palavras mais acertadas.

Não sei se mentiroso, disse ela. Sempre pensei que menino Henrique era criança muito infeliz, que nasceu sem luz. Sabe quando vemos pessoa na rua, ou num café, ou assim na paragem do autocarro… Agora que penso nisso, vêem-se muitas destas pessoas nas paragens do autocarro. Pessoas que parece que estão às escuras? A vida faz isso. Desliga as luzes e andamos para ali que nem uns tolinhos, à procura de interruptor. Acontece quando já sofremos imenso. Acho que menino Henrique sempre foi assim. Pobre rapazinho sem luz, sem caminho. Perdido, tão perdido. Pode ter sido da morte da mãe, sim. Há coisas que uma criança não devia passar. Que horror, que horror.

Sorvi o café, consciente de que ficava cada vez pior da indisposição. Na mesa atrás de Ludmila, os dois pacientes sentavam-se com o peso da derrota nos ombros: silenciosos, solitários. Tinham as peles amarelecidas, os braços enfermos. Sobre eles, pairava o estigma da doença crónica, que os afastava irremediavelmente da sociedade, do mundo dos vivos. Eu julgava entendê-los ou, pelo menos, conseguia identificar-me com aquilo que neles preferia estar à parte, com a rejeição inconsciente que faziam deste lado da vida que era a cores, onde havia esperança. A vida que ficava fora daquele hospital a feder a éter, por onde deambulavam os quase vivos, ou os quase mortos. Lembrei-me de Alexandre e do seu isolamento com Prometeu. E, claro, pensei em João, que por pouco não se tornara um quase vivo ou quase morto – porque tivera todas as razões para isso: pai alcoólico, defeito de nascença, lar desfeito. A ideia quase me fez chorar, e Ludmila deve ter reparado, porque estendeu o braço e agarrou o meu.

Gosta muito dele, não gosta?, perguntou ela.

Gosto, respondi, perguntando-me como é que ela sabia– ou por que truque de magia me lera a mente e adivinhara que eu estava a pensar no meu filho.

Ele vai recuperar, não se preocupe, garantiu, afagando-me o braço com ternura.

E percebi que falava de Tsukuda.

Claro, respondi, algo envergonhado. Claro que vai recuperar.

Parecia que, nessa tarde, tudo o que eu sabia fazer era mentir.

Não era a primeira vez que Tsukuda dava o nome de Ludmila como pessoa responsável. Havia pelo menos duas outras ocasiões em que a antiga empregada doméstica de Saburo recebera telefonemas a propósito do menino Henrique. Sempre que se metia em problemas, ela era o seu refúgio. Aparentemente eu entrara nesse lote restrito, porque também o fora buscar ao Júlio de Matos na suposta tentativa de suicídio. Chegámos à conclusão de que, de todas as pessoas que existiam no mundo, entre todos os possíveis candidatos, nos tinha saído a sorte grande.

Acho que ele precisava que as pessoas dessem por ele, disse Ludmila. Como quando era miúdo e se punha em cima de móveis, com os pés muito perto da beira, a dizer umas coisas esquisitas. Parecia que estava em transe, e depois caía, catrapumba!, e lá vinha senhor Saburo, do escritório, avisar que não fizesse disparates, que não atirasse-se dos móveis. Ou então, às vezes, quando eu entrava no quarto dele, e menino Henrique estava deitado na cama a tremer de pés à cabeça como se estivesse possuído do demónio. Tentava enrolar olhos e tudo, voltá-los ao contrário, assim…

Não faça isso, pedi-lhe, enquanto Ludmila tentava revirar os olhos para cima, mostrando apenas a esclerótica.

… e era tudo parvoíce pegada, mas ele levava sempre ­brincadeiras longe de mais. Uma vez, enfiou-se em armário que havia no corredor e não saiu o dia todo. Eu e senhor Saburo andámos à procura de rapaz por toda a parte, até ligámos para polícia, e ele metido ali dentro. Só saiu de armário à noite, quando já não conseguia respirar. E os dias que passava sem comer? Eu limpava casa mas também cozinhava. Aprendi a fazer tempura e sopa de miso e wakame. E nimono e tsukemono e udon. Meu arroz ao vapor era delícia, garanto. O marido achou muito estranho porque eu praticava receitas em casa, disse que eu estava cheia de chinesices. Depois, quando provou, até chorou por mais. É burro todos os dias, aquele homem. Desde então quer ir sempre aos restaurantes japoneses, aqueles dos centros comerciais. Até o meu filho se inscreveu em curso de culinária japonesa. O que eu fui fazer… Mas o que é que eu estava a dizer? Ah, sim. A comida. O senhor Saburo gostava do que eu fazia, mas o que ele gostava mesmo era dos bifes. Na frigideira, carne meio crua cheia de manteiga e de alho. Tinha vergonha de me pedir que fizesse os bifes, mas eu fazia sempre à sexta-feira, e deixava bifes quentinhos dentro do forno. Nunca sobrava nada. Depois descobri que era o pai que comia os dois bifes, que menino Henrique passava fim-de-semana todo em jejum. Às vezes, nem água bebia. Fechava-se no quarto e, quando eu chegava, na segunda de manhã, encontrava-o deitado em chão, magro que nem folha de papel, coitadinho, e lá tratava de o alimentar. Era tristeza tão grande.

Ele algum dia lhe explicou porque fazia essas coisas?

Se calhar era para levitar, pelo que o senhor me contou agora, respondeu Ludmila. Se ficasse mais leve, podia ser que tivesse sorte, não?

Não acha que era para chamar a atenção?

Pois, isso também.

Nesse momento, entrou na cafetaria o companheiro de quarto de Tsukuda. Vinha com uma nova ligadura na cabeça, acompanhado de uma enfermeira, que caminhava ao seu lado, muito devagar, ajudando-o passo a passo e segurando-lhe no cotovelo.

E mais recentemente? O que é que aconteceu?

Bom, continuou Ludmila, de uma das vezes ligaram de bombeiros, porque encontraram ele a pé em Ponte 25 de Abril. Era uma noite gelada, assim de Janeiro ou de Fevereiro, não lembro bem, mas foi estranho, porque eu já não trabalhava em casa de senhor Saburo há seis anos, desde que ele voltou para Japão, e de repente meu marido atende uma chamada e… Bom, consegue imaginar, não é? Ele passou-me o telefone com aquele ar de chatice, o Silva detesta Henrique, diz que é fedelho mimado, que eu fui mais do que mãe dele, e a verdade é que fui. Atendi, e depois lá pedi ao marido que me ajudasse, que tivesse paciência. Fomos buscá-lo aos bombeiros. Os homens disseram-me que descobriram ele nas câmaras de vigilância, sentado nos corrimões vermelhos de ponte, com as pernas à banda, os carros a passarem atrás a grande velocidade. Lembro-me da expressão dele, parecia criança malcomportada à espera que os pais ralhassem. Deixámos ele em casa e, nem uma semana depois, o telefone voltou a tocar. Dessa vez era polícia, alguém o tinha denunciado por raptar os pombos.

Pombos?

Sim. Esses animais nojentos que andam por cidade, disse ela. Sabe o que é que fazemos em Moldávia? Usamos pombos mortos para produzir estrume, servem para adubar campos.

A sério?

Ela ficou muito séria durante uns segundos e depois começou a rir-se.

Não. Inventei isto, faz favor. Mas, se fosse verdade, não era mal pensado. Ora, dessa vez, levaram-no para esquadra porque andava na rua a perseguir os bichos e a meter os que conseguia apanhar dentro de gaiola. Veja que disparate! Correr para apanhar pombos repelentes, que nojo. Deus me livre se eu algum dia tocava em pombo.

Ela tremeu dos pés à cabeça e estalou a língua nos dentes.

Mas dessa vez eu não disse nada ao marido, continuou. O telefone tocou, por sorte fui eu que atendi, e fui à esquadra sozinha. Polícia só queria alguém que o levasse para casa. Há muitos anos que não estávamos só os dois, e lembrei-me de quando menino Henrique era miúdo. Já reparou que há coisas que fazemos quando somos novos que, em crescidos, são proibidas, sinais de loucura? Andar a correr atrás de pombos, por exemplo. Ou escondermo-nos em armário.

Ela abanou a cabeça e olhou tristemente para o que restava do café, que esfriara havia algum tempo.

Quando somos crescidos, a vida fica muito séria, parece que perde metade da graça, disse Ludmila.

Olhei para o relógio: passavam quarenta e cinco minutos das oito; já não tinha tempo de ir à reunião. O vizinho de Henrique sentou-se na mesa ao lado da nossa. A enfermeira pousou-lhe um tabuleiro à frente, no qual repousava um prato de uma argamassa parecida com puré, ao lado de duas almôndegas tristíssimas, e um recipiente de metal com um pudim meio desfeito no interior. O homem olhou-me de soslaio e sorriu; tinha uma expressão curiosa no rosto, como se fosse divertido estar ali.

Eu disse-lhe que ia ficar melhor, afirmou ele, a olhar-me e começou a comer o pudim obsessivamente, abstraindo-se completamente de tudo o resto.

O que é que ele tem?, perguntou Ludmila à enfermeira, que parecia desconsolada.

É melhor nem lhe dizer, respondeu a mulher.

A conversa não durou muito mais. A noite chegara, e a moldava anunciou que tinha de voltar para casa, porque o marido já ligara mais de uma vez. Ainda lhe fiz algumas perguntas sobre a juventude de Henrique, e ela confirmou-me aquilo de que eu já desconfiava: que ele tinha sido acompanhado por psiquiatras desde que a mãe morrera, e que cedo começara a manifestar sintomas de grandiosidade, de descuido físico, de complacência com o próprio bem-estar –fechar-se num armário ou saltar de um móvel tinha sido apenas o princípio de uma longa e desastrosa carreira de acidentes, bebedeiras, lutas, insultos e um comportamento indigno, que desonrava o nome da família– facto que o senhor Saburo fazia questão de frisar sempre que o filho se metia em sarilhos. Ludmila não tinha a certeza, mas era possível que os psiquiatras, os hospitais e os medicamentos tivessem sempre feito parte da vida de Henrique; certamente faziam quando ela o conheceu, recém-regressado da Suíça e, mais tarde, quando o pai voltou para o Japão, entregando o filho à sua sorte.

E Saburo?, perguntei. Perdão: o «senhor Saburo»? Alguma vez o viu ser agressivo com Henrique?

Nunca, garantiu Ludmila, enfática. Já lhe disse que senhor Saburo é homem mais atencioso que conheci. Agora, que estava farto dele, isso estava. Quem é que não ia estar? O cansaço tomou conta de patrão, isso não posso negar. Não lhe bastava a mulher ter morrido, o filho era peste. Vi menino Henrique crescer, mas vi também senhor Saburo morrer um bocadinho todos os dias. De vergonha, de desilusão: passavam vida nos hospitais, nos médicos. Em polícia, por causa dos desacatos. Senhores médicos ligavam para saber da condição, enviavam receitas novas no correio todos os meses. Nada funcionava, era uma desgraça. Ele ficava cada vez pior. Todos os dias eram tragédia. Até que patrão fartou-se. Deve ter cansado-se de tudo aquilo porque, uma tarde, estava eu a regar limoeiro, veio até à varanda ter comigo e disse que ia embora para Japão. Nunca contei isto a ninguém, mas o meu primeiro pensamento foi: Então e eu? Como é que eu fico sem si? E depois lembrei-me, claro, que sou só empregada doméstica, não há direito a sentimentos destes.

Mas trabalhou muitos anos para ele, não foi?

Ui, disse ela. Dezoito anos. Quando me fui embora, na altura em que senhor Saburo regressou a Japão, menino Henrique já tinha uns trinta anos ou mais.

Acho que isso lhe dá direito a ter sentimentos.

Bom. Se calhar eu sou assim por natureza, continuou ela. Preocupo-me mais com os outros. Fiquei tão ralada com ele, nem imagina. Sozinho naquele apartamento com maluquice toda, sem ninguém para o ajudar.

Deve ter sido difícil deixá-los, passado tanto tempo.

Sim, respondeu, e alguma coisa dentro de Ludmila pareceu abrandar, uma expressão meiga tornou-lhe ao semblante. Chorei muito. Chorei tanto, que até meu Pedro deixou-me sozinha umas quantas noites, foi dormir para quarto dos miúdos enquanto eu despedia-me daquela vida. Nós, em Moldávia, somos pessoas muito duras. Mas, quando gostamos de alguém, damos o que temos e o que não temos.

Acredito, disse eu.

Mas ele nunca fez nada como isto, disse Ludmila. Fez muitos disparates, mas nunca fez uma coisa tão estúpida.

Encolhi os ombros.

Talvez ele acredite mesmo que os homens podem voar, reflecti. Ou, pelo menos, um lado dele acredita. Houve um filósofo qualquer que disse que todos os homens nascem inúmeros, mas que, quando morrem, são finalmente um só homem, íntegro, inteiro. Será assim? Se calhar é, e é disso que Henrique anda à procura: do homem que virá a ser na altura da sua morte.

Eu não percebo nada das filosofias, disse Ludmila, mas não acho que a pessoa precisa de morrer para saber quem é.

Olhou para o relógio.

Oh, não acredito nestas horas. Havia tanto para falar.

Pois havia, concordei. É uma pena.

Gostava que me contasse mais sobre menino Henrique, pediu. Há anos que não sabia nada. De repente, este acidente horrível. Pode dizer alguma coisa que me sossegue?

Bom, disse eu, sem conseguir pensar em nada de positivo, terei de lhe contar a história dos últimos seis meses. Aconteceram imensas coisas, até houve um casamento pelo meio. Quanto tempo é que tem? Podemos combinar noutra altura, se preferir.

Eu volto amanhã, disse ela. E conta-me tudo.

Está bem, respondi.

Ludmila levantou-se e, sorrindo, afastou-se na direcção da porta. Caminhava de maneira algo desajeitada, um pouco cambaleante, a perna esquerda parecia ter menos força do que a direita. Contudo, parecia não reparar no seu próprio desequilíbrio. Desapareceu em segundos. Quando olhei para o lado, reparei que o paciente da ligadura na cabeça estava muito quieto, de olhos fechados, com as mãos pousadas no colo. A cabeça tombava ligeiramente. Comera tudo o que havia para comer no prato e agora parecia dormitar, no sono dos proscritos.

Subi ao piso do internamento e entrei no quarto de Tsukuda, que permanecia deitado na mesma posição em que o deixáramos. Era uma constatação estúpida. Com duas pernas partidas, as costelas desfeitas e inúmeras lesões internas, a única coisa que poderia ter mexido era o braço direito (o esquerdo estava ligado ao tubo intravenoso).

Os olhos fechados, nenhum som.

Eram quase dez da noite. Imaginei os meus companheiros à porta da igreja, alinhados nos degraus que conduziam ao adro e ao corredor com as imagens dos santos; à sala dos fundos, onde cheirava a café, onde havia calor humano; na presença dessa força misteriosa que guarnecia a fragilidade humana. Imaginei-os –enquanto me sentava na única cadeira do quarto, os sinais vitais monitorizados pelas máquinas, o soro a correr, invisível, pelas veias do japonês– a conversarem em surdina, a trocarem confidências e cigarros. Tantos anos de sobriedade para alguns, e continuavam a ir às reuniões com a certeza de um relógio. Imaginei Alexandre no meio deles, mais silencioso, solitário por dentro; e então lembrei-me de que Alexandre já não estava, e percorreu-me um calafrio. Ali sentado, o zumbido surdo do quarto contrastando com os sons da rua, das ambulâncias, das vozes abafadas pela espessura das paredes, dei-me conta, finalmente, do quão vulnerável e à mercê Henrique estava, e senti-me mais próximo dele do que nunca; isso deixava-me zangado.

Cheguei-me à frente na cadeira, deixei a cabeça tombar nas mãos. Era muito tarde, e eu já não sabia por que razão ali estava. Aquele suplício começava a perder o sentido. O que é que te julgas, Tsukuda?, perguntei, em voz baixa, ao homem inconsciente. Um super-herói ou um santo? Julgas-te um quixote dos tempos modernos, alguém destinado à grandeza num mundo que castiga a audácia? Não, não és nenhum santo, disse-lhe, e reparei que subira o tom de voz, perdera o medo de que entrasse alguém no quarto e me julgasse louco. És um idiota como todos nós, continuei, encafuado nessa tua cápsula de sofrimento, és um inadaptado igual a todos os inadaptados deste mundo, não haverá milagre que te salve, és o Lúcifer de Doré, de asas quebradas, num Paraíso a que não pertences. Não voarás, idiota, não voarás nunca. Era isto que dizia a tua bola de cristal?, perguntei, quando já se ouviam passos no corredor, que acabarias no hospital a mijar por um tubo?

Respirei fundo, ergui a cabeça e olhei para o rosto negro de Tsukuda. Talvez ele sonhasse que levitava sobre aquele hospital-prisão, cinzento e deprimente. Perguntei-lhe, em voz alta, se acreditava nas suas próprias mentiras, ao que ele respondeu com o zumbido entrecortado pela máquina que lhe media a pulsação.

Podias ter morrido, acabei por dizer, se calhar devias ter morrido.

E depois, reunindo finalmente forças para me ir embora, levei a mão ao bolso do casaco à procura das chaves do carro, um gesto automático que fazia sempre que pensava em ir-me embora de qualquer sítio. Nesse gesto, encontrei um objecto antigo e esquecido. Era o frasquinho com as patas de escaravelho que frequentava a minha vida havia tantos anos. Como teria ido parar ao bolso daquele casaco? Talvez fosse uma brincadeira de Aurora, pensei; ou talvez aquele frasquinho tivesse mesmo os poderes mágicos que o burlão anunciara, vinte anos antes, quando arrancara as patas ao bicho à minha frente. A verdade é que, graças ao frasquinho abençoado, João foi com o tempo recuperando a audição. Graças ao frasquinho. Ri-me daquela ideia absurda e, antes de sair para a noite desconsolada, deixei-o na mesa-de-cabeceira do quarto de hospital.

Janeiro

Num dia muito frio do final de Janeiro, o meu filho ligou-me e convidou-nos para jantar com ele e com Camilla. Tinha chovido de manhã e eu encontrava-me no escritório a olhar pela janela que abria para o jardim, onde as plantas exultavam com a água recebida. No exterior, tudo era verde, e as gotas da chuva permaneciam no vidro, dando a sensação de que o aguaceiro não cessara.

Tapei o bocal do telefone e chamei, para o interior da casa, por Aurora, que estava no quarto a ler o jornal ou a dormitar, e perguntei-lhe se queria jantar fora. Respondeu negativamente, tinha um compromisso qualquer. Tornei ao bocal e disse a João que ela não podia, mas eu sim. Combinámos uma hora e, depois de desligar, fiquei a pensar no convite. O meu filho nunca tomava iniciativas daquelas – jantar fora a quatro era uma coisa formal, o género de compromisso que ele e Camilla nunca haviam mantido connosco (normalmente encontrávamo-nos a propósito do aniversário de alguém ou de algum evento), e portanto eu esperava uma revelação, algo de extraordinário. Julguei imediatamente que ia ter um neto e, sem saber se essa notícia me deixava feliz ou apreensivo (ou ambos), fui ter com Aurora ao quarto. Estava deitada, tal como eu a imaginara, mas não estava a ler; tinha um dos braços erguidos acima da cabeça e repousava o rosto nele; com a outra mão, coçava a barriga. Sentei-me na cama e partilhei a minha inquietação.

Ninguém faz anos, disso tenho a certeza, disse eu.

De onde se deduz que ela só pode estar grávida, ironizou.

O que mais poderá ser?

O anúncio do armistício na Somália, disse Aurora, com um ar muito sério.

A invenção da cura para o pé chato, disse eu.

Não, não, espera, riu-se ela, e agarrou-me no braço. Encontraram o coelho.

Qual coelho?

Um homem entra num bar com uma cartola na cabeça, começou Aurora, incapaz de esconder a satisfação prévia que a anedota lhe trazia. Pede uma bebida, o empregado serve-lha e quer cobrar, mas o homem combina com ele que, como pagamento, tirará, no final, um coelho da cartola. O empregado hesita, mas acaba por concordar. O homem bebe a noite toda. Quando o bar está prestes a fechar, o empregado aproxima-se dele e exige o truque de magia. O homem parece confiante mas, ao enfiar a mão na cartola, não acontece nada. O coelho fugiu, diz o homem, com pânico estampado no rosto, e leva a mão ao bolso das calças: E, além disso, roubou-me a carteira.

Aurora começou a rir-se sozinha. Encolhi os ombros e, embora tivesse esboçado um sorriso, estava demasiado apreensivo com o convite para achar graça à anedota ou matutar no seu significado.

Sim, deve ser isso, concordei. Encontraram o coelho.

Aurora estirou-se na cama e fechou os olhos; os dedos dela agarraram os meus.

Oh, não te preocupes, disse ela. Seja o que for, tenho a ­certeza de que encontrarás motivos para celebrar.

Nessa noite, saí de casa irritado com a minha mulher. Eu sabia o que era: a minha infindável necessidade de que os outros se preocupassem com as minhas preocupações, e o facto de ela, ao invés, ter contado uma piadola a que eu não achara graça. Entrei no carro de João e encontrei-o bem vestido, o cabelo arruivado penteado para trás; um aprumo que me deixou ainda mais inquieto. Apesar da sua invulgar maturidade, parecia-me que João não estava pronto para ter um filho, e eu não estava preparado para ser avô. Ele ganhava mal e, tanto quanto eu sabia, Camilla ganhava ainda pior. Anunciou que íamos buscá-la ao emprego.

Como é que está o teu amigo voador?, perguntou-me.

A pergunta desconcertou-me. Subíamos a Avenida da Liberdade muito devagar; ele conduzia sempre a baixa velocidade, e os carros que vinham atrás de nós buzinavam, ultrapassando-o. As luzes encandeavam-nos. Eu ficava sempre inquieto quando João estava ao volante, e tinha de me lembrar de que ele não era como as outras pessoas; que a audição diminuída fazia dele, no trânsito, um homem temeroso, excessivamente prudente. Tinha sempre o rádio ligado em alto volume numa estação de música clássica, que, naquele momento, passava «Le Jardin féerique», um andamento de Ravel (lento, grave).

Anda desaparecido, respondi, não o vejo há imenso tempo.

Depois, dei-me conta de que não era inteiramente verdade. Não o via há três semanas, desde aquela noite em que estivera em sua casa. E, contudo, uma vez que Henrique não regressara às reuniões, parecia-me que tinha passado uma eternidade. Por outro lado, era bom não ter o japonês nas imediações da minha vida; a sua presença desassossegava-me. E, ao mesmo tempo, faltava alguma coisa aos meus dias. Que contradição.

Contei a João, em tom de piada, que tivera de ir buscá-lo ao hospital psiquiátrico, e as desventuras com o sabre no apartamento de Henrique.

Oh, ele é o teu novo desafio, disse João, enquanto contornávamos, na faixa da direita, a passo de caracol, a rotunda do Marquês de Pombal. O teu novo brinquedo.

Sem saber porquê (ou talvez porque já viesse irritado de casa), aquela presunção magoou-me.

Não acho que trate as pessoas como se fossem brinquedos, respondi.

Entendeste mal, disse ele, enquanto um carro atrás de nós fazia sinais de luzes, acho que tu és mesmo assim: precisas de ter alguma coisa para te entreteres. Ou, melhor dizendo, para te preocupares, é isso.

Preocupo-me bastante contigo.

Sim, mas é mais do que isso, respondeu João, os máximos do outro carro reflectidos no espelho lateral. É mais ou menos como aquilo que fizeste comigo quando eu era criança. Levaste-me a todos os médicos, a curandeiros, a um vidente.

Nunca te levei a um vidente, ripostei. Podes baixar a música? É esquisito termos esta conversa ao som de Ravel.

João baixou o volume do rádio. Lentamente, fizemos a curva, e pedi ao meu filho que estacionasse. Ele fê-lo com a maior lentidão do mundo, o que irritou o condutor atrás de nós, que passou pelo nosso carro com uma enorme buzinadela.

Isto não te incomoda?, perguntei.

João não percebeu imediatamente. Depois olhou pela janela, para o trânsito invernoso que atravessava o asfalto; do outro lado, no passeio, os transeuntes lutavam contra o vento e a chuva.

Oh, não. Estou habituado a fazer as coisas ao meu tempo.

E não te chateia que os outros te buzinem desta maneira?

Ele encolheu os ombros.

Os outros que se lixem, disse ele.

Era isto que eu não compreendia no meu filho: a sua segurança, o seu «que se lixe». A sua certeza acerca de quem era, a sua enorme compaixão com as suas limitações. Era quase trágico que eu, trinta anos mais velho, fosse tantas vezes o contrário disto– alguém que se esforçava avidamente por ir contra si próprio, contra a sua natureza.

A tua mãe contou-te essas coisas?, perguntei-lhe.

Afinal, sempre houve um vidente?

Não. Quero dizer, houve algo parecido.

Respirei fundo.

Mas não é a mesma coisa, insisti. Tens razão, preocupo-me com o japonês. Se calhar, devia deixá-lo em paz, nem querer saber se está vivo ou morto. Contigo, foi diferente. Tu és meu filho.

E tu ainda bebias nessa altura, acrescentou João.

Sim, ainda bebia.

Com a quantidade suficiente de álcool, até um vidente parece boa ideia.

Cruzei os braços, a raiva desaparecera, fora substituída pela indisposição, uma vaga sensação de desconforto no fundo do estômago. Naquela conversa, sentia-me filho, não pai: um miúdo insatisfeito, queixoso, que ruminava demasiado na sua dor.

Vê lá se achas graça a esta anedota, disse eu, para aliviar o ambiente.

Contei-lhe a anedota de Aurora. João fez um compasso de espera no final e depois começou a rir-se.

A sério que é engraçada?, perguntei.

Não tenho a certeza, disse ele, ainda a agitar-se do riso, levando a mão, num gesto automático, ao ouvido onde tinha o aparelho auditivo. Mas a maneira como a contaste teve imensa graça, acrescentou.

Que maneira?

Contaste-a como se não tivesse graça nenhuma.

Houve um momento de silêncio dentro do carro. A chuva começou a bater no tejadilho, primeiro um tamborilar suave, depois um rufar de marcha. Olhei para o relógio no tabliê. Estávamos atrasados. João voltou à faixa principal.

Às vezes, disse o meu filho, passado algum tempo, o que está a acontecer é tão inaceitável que precisamos de acreditar no impossível.

Do que é que estás a falar?

Ele deu-me um exemplo, do qual Camilla lhe falava muitas vezes: os soldados italianos que, no Inverno de 1942-1943, tinham combatido na Segunda Guerra Mundial e que congelaram à saída de Estalinegrado enquanto caminhavam, a tentar fugir ao frio de morte e aos tanques soviéticos que se materializaram nas estepes russas.

Não entendo, disse eu.

Queriam voltar para casa, disse João. Queriam tanto o calor das suas cidades, de Veneza ou Palermo, de Siena ou Roma, que julgaram poder caminhar até ao destino, fugir à situação horrorosa que a vida lhes pusera pela frente. Acreditaram no impossível, e congelaram enquanto caminhavam, como estátuas no meio do gelo, em que o escultor e a obra são a mesma coisa.

Que história triste, comentei.

Não te ofendas com o que te vou dizer em relação ao teu amigo japonês, continuou. Tenho uma teoria acerca do assunto.

(Eu contara-lhe assim tanto sobre Tsukuda? Então, lembrei-me de que o fizera, sim, naquela tarde em que almoçáramos juntos, quando lhes oferecera a fotografia das crianças surdas do Instituto Tommaso Pendola. Contara-lhe que Henrique surgira do nada, que era um elemento disruptivo da reunião de quarta-feira; que era um homem perturbado e intrigante– e recordei-me do comentário que João fizera sobre a reunião do Liceu Camões: que, no fim de contas, fora ideia minha, a ideia de um homem ocupado em salvar tudo e todos à sua volta.)

O que é que vais dizer?

Acho que ele te manipula, avançou João. Porque tu és fácil de manipular. Basta mexer naquela coisinha em ti que também acredita no impossível. Que vais voltar para Itália a pé das portas de Estalinegrado, sem querer saber da incrível distância, da neve, do cansaço.

O carro entrou na Calçada das Necessidades e começou a subir a rua molhada. João reduziu a mudança, e o motor pareceu afogar-se por um segundo, mas logo ganhou embalo. Ele tornara a aumentar o volume do rádio, ainda ligado na estação de música clássica, e um andamento de piano gritava das colunas.

Na maioria das pessoas, é uma qualidade, prosseguiu. Esse sentido de responsabilidade pelos outros, pelo mundo inteiro.

Observou-me pelo canto do olho.

Em ti, é um fardo, concluiu.

Fiquei em silêncio. Senti, no coração, a dor da verdade.

Eu sei, respondi.

E esse tal de Tsukuda, que me parece um desvairado que precisa de ajuda profissional, toca nesse teu lado mais vulnerável. Mexe naquilo que eu sentia em ti quando era um miúdo e íamos almoçar ao restaurante americano dos hambúrgueres, lembras-te? Nessa tua crença, enraizada até ao fundo da tua alma, de que, se tentares muito, com imensa força, se fizeres trinta por uma linha, ainda salvas alguém.

Quis pedir-lhe que parasse, porque sentia-me afundar na raiva. Ele tinha razão, eu lutava em vão contra a impotência, era refém da compulsão de tentar consertar o mundo, os outros. Fazia-o cronicamente, até sufocar; até ser impossível distinguir entre o desejo e a possibilidade, a ilusão e a verdade.

É um fardo muito pesado, repetiu ele. Porque não vais conseguir salvá-lo, ninguém consegue salvar outra pessoa.

Filho da mãe, murmurei, pensando em Tsukuda.

Não é preciso chamares-me nomes, disse João, num gracejo.

Sim, eu e Tsukuda éramos semelhantes: dois tipos perdidos, caídos por engano no Paraíso. Quando os meus esforços, por fim, fracassassem, a única saída seria a libertação. E essa, viesse na forma de um par de asas de Ícaro ou da bebida, levar-me-ia novamente ao Inferno. Que paradoxo, concluí. Que maneira insuportável de existir.

Como é que está tudo em tua casa?, perguntou o meu filho, enquanto estacionava o carro.

Tenho tido estes sonhos, respondi. Estão a dar-me cabo do juízo. Às vezes estou a levitar, a pairar nas alturas. A voar sobre os telhados. É incrível. O fresco da noite, a sensação de leveza. Mas depois, às vezes, dou por mim a cair de uma grande altura, e é terrível, porque acordo cheio de medo.

Isso de sonhar que caímos é muito comum, disse João, enquanto desligava o carro.

Desapertei o cinto, sem coragem de lhe dizer (ou de dizer a mim próprio) que, nesses sonhos de queda, eu suicidava-me, saltava da janela da casa de banho de uma casa que ele não ­recordava, porque era um bebé acabado de chegar da maternidade. Subimos uns quantos metros até à porta do lugar onde Camilla trabalhava. A chuva transformara-se num chuvisco, mas fazia muito frio. Eu e João enfiámos as mãos bem fundo nos bolsos dos casacos.

Acordo a meio da noite, continuei, e fico para ali a perguntar-me sobre o sentido daquelas imagens, não chego a conclusão nenhuma, mas deixa-me angustiado. Deve ser igual a ser perseguido, sabes? O sentimento de que não nos conseguimos livrar de qualquer coisa que também não se consegue livrar de nós.

Parecido com o teu amigo japonês, reparou ele.

Na sala de aula do Instituto de Surdos-Mudos da Ima­culada Conceição, Camilla levou um dedo aos lábios quando nos viu entrar. Embora nos pedisse que não falássemos, sorria, e foi um gesto tão familiar (tão genuíno), que não pude evitar sorrir também. Defronte de Camilla, havia um pequeno grupo de meninos e meninas, entre os cinco e os dez anos, a quem ela gesticulava, ensinando-lhes os rudimentos da língua gestual. Ao fundo da sala, num banco demasiado pequeno, sentava-se uma freira velhíssima num hábito cinzento com uns óculos de lentes muito grossas, que parecia dormitar. Atrás de Camilla, havia um mapa de Itália e, ao lado, também pendurado de um quadro de ardósia, um de Portugal.

Encostado à ombreira da porta, com João ao meu lado, fechei os olhos por um momento. A quietude era agradável, e fui transportado para os enormes corredores e saguões e escadarias do instituto em Siena. A aula terminou passados cinco minutos. A freira, afinal acordada, foi ter com Camilla e pegou-lhe nas mãos em agradecimento, disse-lhe alguma coisa em língua gestual, e depois começou a ajudar as crianças a vestirem os casacos. A campainha do instituto começou a tocar; pouco depois, surgiram os primeiros pais a buscar os filhos. Um casal trocou algumas palavras com a freira em voz baixa e, a seguir, abraçaram e beijaram uma menina de cabelo claro, que, vestida num grosso casaco verde, se despediu de Camilla com um abraço. A italiana ajoelhou-se para acolher a menina e gesticulou-lhe qualquer coisa que não compreendi, mas que o meu filho traduziu, num sussurro:

É mais bonito o que está por dentro.

A freira veio ter connosco, enquanto as crianças se preparavam para sair, e disse-me que a minha nora era um prodígio, ao que respondi, apanhado de surpresa, que Camilla ainda não era minha nora.

Se não é, devia ser, disse a senhora, cujos olhos diminutos se afundavam na profundidade das lentes. Não vai arranjar outra melhor.

As crianças rodearam a freira enquanto nos despedíamos. Aquela mulher diminuta, raquítica e pitosga –imaginei que, se Teresa de Ávila tivesse vivido tanto tempo, seria mais ou menos parecida– era adorada por aquele grupo de meninos surdos. Uma menina encostava-se ao hábito da mulher, buscando consolo, um menino dera-lhe a mão, os outros orbitavam em torno da velhinha como se fosse uma mãe protectora.

Descemos as escadas em silêncio e, na rua, onde o chuvisco continuava a entoar a sua aborrecida lengalenga, Camilla esboçou uma série de gestos rápidos enquanto sorria.

Está a perguntar-me porque nunca a pedi em casamento, disse-me João.

Fomos jantar a um lugar barato na Rua do Poço dos Negros, um restaurante que servia iscas de cebolada e tiras de choco panadas. A comida era deliciosa, o serviço catastrófico e, apesar do mau tempo, encontrava-se cheio. Três empregados desenhavam uma dança de brutamontes pela sala com pouca atenção ao pormenor. Mas os convivas pareciam adorar aquele lugar, que, embora se parecesse com uma taberna (e soasse a uma), servia iguarias únicas com eficiência. Rapidamente entendi por que razão o meu filho e Camilla gostavam tanto daquele lugar. Ela não ouvia o barulho ensurdecedor de vozes que nos rodeava, e João, que desligara o aparelho auditivo, talvez escutasse um rumor à distância, parecido com o das ondas perdidas no cimo de uma falésia.

Antes de chegar a comida, João foi à casa de banho. Eu, como sempre, fiquei desconfortável, sem saber o que dizer ou como dizer aquilo em que pensava. Pus-me a observar discretamente a mulher do meu filho, à procura de sinais de gravidez: o peito maior, os pulsos inchados. Ou uma suavidade qualquer no olhar que vinha com a dádiva de um filho. Não reparei em nada de diferente, por isso pus-me a brincar com os pacotinhos de manteiga. Camilla parecia divertida com a minha falta de à-vontade. Perguntei-lhe, pronunciando as palavras de forma mais lenta do que o habitual, se gostava do novo trabalho. Ela franziu o sobrolho; o rosto denunciou que não me compreendera inteiramente, e tornei a repetir a pergunta ainda mais devagar. Ela aquiesceu com um sinal de aprovação e começou a responder-me em língua gestual muito rápida.

Tenho os melhores alunos do mundo, ouvi, na voz de João, que tornou a sentar-se nesse instante. Surdos que nem uma porta. E também são mudos, não chateiam ninguém.

Camilla e João começaram a rir-se. Fiquei a saber que ela conseguira o trabalho porque a freira, que se chamava Doroteia, vivera muitos anos em Itália, na Ordem das Irmãs da Visitação de Nossa Senhora, em Treviso, e aprendera a língua antes de dedicar a sua vida aos surdos-mudos por influência de São Francisco de Sales, cujo coração se encontrava santificado no ­mosteiro dessa ordem. Porque Camilla ainda não dominava completamente a língua gestual portuguesa –o seu progresso tinha sido, nos últimos meses, «extraordinário», segundo João–, Doroteia permanecia na sala durante as aulas e ia ajudando a corrigir as imperfeições.

Jantámos, conversámos sobre trivialidades. Era curiosa a quantidade de coisas que eu aprendia no tempo que passava com eles. O valor de um pensamento, o peso de uma frase. A importância (ou não) de um gesto. Um dos empregados, rapaz novo e espavorido, de rosto muito vermelho, deixou uma travessa de camarões cozidos na mesa.Viera ao engano, mas Camilla, que julgou que o prato era nosso, tirou logo um camarão e começou a descascá-lo. O empregado, dando conta do erro, voltou atrás e, com urgência, pediu para não tocarmos no prato; quando reparou no que Camilla estava a fazer, reagiu, no meio do suor e da exaustão do serviço, com um resmungo entre dentes. O tom foi menos do que simpático. João deve ter adivinhado o meu impulso de pôr o rapaz na ordem –de lhe explicar que ele não entendia nada, que ralhava com uma surda-muda– porque lhe senti a mão no antebraço, tranquilizando-me, como quem pede calma. Camilla olhava para o homem com candura, a comer o camarão descascado. João limitou-se a dizer que pagaríamos pela travessa, e o empregado afastou-se, ainda a resmungar. O incidente foi rapidamente esquecido.

Depois Camilla olhou-me com a intensidade do costume e gesticulou.

Ela diz que pareces angustiado, traduziu João. E pergunta onde está a tua mulher.

Angustiado?, repeti.

Camilla gesticulou.

Sim, continuou ele, tal como as pessoas ficam quando não têm sexo há muito tempo.

Fiquei um pouco atrapalhado, mas não tanto como nas primeiras vezes em que o descaramento dos surdos-mudos me deixara perplexo.

Digamos que o meu casamento não está num momento maravilhoso, justifiquei. Além disso, tenho dormido pouco, ou menos do que devia.

Camilla quis saber porquê, e João contou-lhe dos meus sonhos recorrentes.

Ela diz que, se passares mais tempo a dar atenção à tua mulher, se calhar a tua vida melhora um bocadinho, traduziu o meu filho, enquanto Camilla gesticulava. Eu estava cansado de ouvir conselhos, portanto desculpei-me e fui à casa de banho. Sempre que estava com eles, entendia a razão pela qual era tão pouco comum ver pessoas surdas-mudas a jantar com pessoas que não o eram: a comunicação tornava-se cansativa e periclitante, oscilava entre o mordaz e o incompreensível; por vezes, a sinceridade de um surdo-mudo é insuportável para uma pessoa com audição normal.

Na casa de banho, tranquei a porta e olhei-me ao espelho. Não vi nada de especial, apenas um homem cansado, irritável, carregado de olheiras. Agarrei a louça do lavatório e fechei os olhos por uns momentos. Nestas alturas de maior ansiedade, havia um pensamento que assomava, insistente, e que tantas vezes me tranquilizara durante os períodos negros, aquelas noites a tremer debaixo dos cobertores nas águas-furtadas da Rua de São Marçal: um dia, isto chegaria ao fim. Um dia, o constrangimento passaria. E também o prazer, mas a esse eu dava-o de barato; era suficiente que, no decurso de um dia, não me sentisse como uma marioneta presa por fios, espartilhada por leis cruéis que ditavam a minha angústia.

Devia ter uma expressão aziaga no rosto quando regressei à mesa, atravessando o restaurante, que, entretanto, começava a esvaziar. Camilla e João riam-se muito quando tornei a sentar-me.

Contei-lhe a anedota do coelho, disse o meu filho, enquanto Camilla tapava a boca e sacudia o corpo de riso.

Foi então que o meu telemóvel deu sinal. Tirei-o do bolso e vi que acabara de receber uma mensagem de Alexandre. Ele nunca escrevia mensagens e, portanto, estranhei a frase, que parecia ter chegado truncada e sem atenção nenhuma à pontuação; escrevera «urgência» com j. Pedia-me que fosse a sua casa o mais depressa possível. Fiquei preocupado e disse a João que tinha de me ir embora, que alguém precisava de mim.

Não me digas que é o maluco do japonês.

Irritado, peguei no guardanapo e atirei-o para cima da mesa, perante o olhar estupefacto de Camilla, que ainda se encontrava no rescaldo da anedota. Paguei a conta e já na rua pedi ao meu filho que me deixasse em casa de Alexandre, que ficava perto dali. Fizemos o caminho em silêncio, consequência da minha ridícula fúria, o que serviu para acentuar a lentidão com que João conduzia. Estacionou à porta de Alexandre, na Rua do Jasmim. Despedi-me e ia sair do carro quando, da porta entreaberta do prédio, emergiu um cão que desatou a correr rua fora, a ladrar.

Era o Prometeu, disse o meu filho.

Desligou o carro e anunciou que subiria comigo. Camilla não quis ficar sozinha e juntou-se a nós. Subimos dois andares e encontrámos a porta do apartamento escancarada. Chamei pelo nome de Alexandre, mas ninguém apareceu. Devagarinho, penetrámos, os três, a penumbra do corredor. A casa tinha um cheiro rançoso, de lugar que não era arejado havia muito tempo. Eu ia à frente, mas a escuridão era tanta que pus uma mão defronte do corpo, temendo esbarrar com um fantasma entediado. Uma luz trémula chegava-nos da divisão ao fundo do corredor, do lado direito, onde ficava a sala. Aproximámo-nos, chamando baixinho por Alexandre. E depois encontrámo-lo. Estava sentado no centro da sala, numa daquelas cadeiras confortáveis de trabalho com assento estofado e rodinhas. Tinha um martelo na mão. A sala estava caótica – pratos empilhados, copos por todo o lado, folhas de papel cheias de anotações caídas no chão, livros sobre xadrez espalhados em cima do sofá e em pilhas numa mesinha–, e a única luz provinha do ecrã de um computador, em cima da secretária.

Alexandre deve ter sentido a nossa presença, porque voltou a cabeça e olhou-me. Não o via há algum tempo, e tive dificuldade em reconhecê-lo. A barba crescera tanto que lhe chegava ao peito; o cabelo era um emaranhado grisalho, impenetrável; os olhos verde-água estavam carregados de uma dor que eu nunca lhe vira anteriormente.

Por favor, destrói aquilo, pediu-me. Destrói.

Voltou a cabeça para o computador enquanto eu entrava lentamente na sala, pé ante pé. Camilla e João permaneceram junto da porta. No ecrã do computador, via-se um jogo de xadrez. Era um daqueles jogos online onde as peças se movem sozinhas, uma competição virtual entre jogadores de diversas partes do mundo. Aproximei-me do ecrã e reparei que, no canto superior direito, havia um contador de dinheiro a marcar um saldo negativo de várias centenas de euros. Carreguei num botão, e o computador desligou-se. O ecrã ficou negro, a sala também. João acendeu a luz no interruptor. Uma lâmpada mortiça iluminou-se no tecto. Agora vagamente iluminada, a sala mostrava-se ainda mais caótica do que parecera à partida: mais pratos sujos, mais roupa largada no sofá, mais papéis rabiscados, espalhados pelo chão, todos eles com anotações características do xadrez, repletas de «C3» e «G7» e «Kt to Q4». Havia duas tigelas de metal no chão, uma delas com restos de comida de cão, outra com água suja, que pertenciam a Prometeu.

Há quanto tempo estás aqui dentro?, perguntei-lhe, em voz baixa.

Alexandre continuava a segurar o martelo na mão direita. Havia, nos seus olhos, um vazio que me era familiar de outros tempos, que eu conhecia sobejamente de o ter vivido na pele.

É preciso destruir aquilo, repetiu, apontando para o computador desligado.

Há quanto tempo?, tornei a perguntar.

Alexandre olhou-me. Parecia um miúdo, tão frágil e desprotegido.

Há dias, respondeu, a baixar o martelo. Ou semanas, não sei.

Ao dizer isso, olhou para a porta, onde viu Camilla e João.

O que é que eles estão aqui a fazer?

Mandaste-me uma mensagem, respondi. Parecia urgente e estávamos juntos.

Não quero que me vejam assim.

Eles vão-se já embora, garanti. Queres mesmo destruir o computador?

Gastei uma fortuna, disse ele. Se não o destruir, vou continuar a jogar e a gastar dinheiro que já não tenho.

Há quanto tempo não vais a uma reunião?

Alexandre ficou em silêncio. Depois, levantou-se e alcançou uma garrafa de vidro que estava em cima da mesa, repleta de pratos.

É água, disse ele, enquanto bebia.

Estava de boxers e com uma camisola grossa de malha, que não escondia a barriga enorme, as pernas raquíticas. Terminou de beber e respirou fundo; pousou a garrafa na mesa, atirou o martelo para cima do sofá.

Tens gasolina no carro?, perguntou-me.

Porquê?

Preciso que me leves para uma clínica em Azeitão. Vi na Internet, eles têm lugar para mim.

Tem calma, sugeri.

Ele resmungou e, sentando-se no sofá, perguntou pelo cão.

Vimo-lo sair do prédio, disse João.

Alexandre olhou para o meu filho.

É o teu filho? Meu Deus, está enorme.

Era um comentário estranho, porque Alexandre e João nunca se tinham visto.

Pronto, foi-se embora, disse Alexandre, rendido ao facto de Prometeu ter partido. Olhava para as mãos caídas sobre o colo, desconsolado. Pedi a João e Camilla que fossem buscar mais água e que abrissem as janelas da sala. Depois sentei-me à mesa de café, ao lado de um tabuleiro de xadrez a que faltavam muitas peças; tinha sido naquele tabuleiro que eu jogara com Alexandre nos primeiros tempos da minha recuperação.

Nem Steinitz, nem De Groot, disse ele. Nem Capablanca podia prever isto. Todos os génios juntos não podiam adivinhar esta merda. Talvez o Fischer. Sim, talvez ele tenha sentido o poder destrutivo deste jogo, e por isso afastou-se, deixou de jogar. Ele intuiu que acabaria viciado no xadrez, foi por isso que o abandonou.

Alexandre falava sozinho, sem me olhar.

Estás enganado, disse eu. Não é culpa do xadrez.

É, sim, insistiu.

Olha para mim, pedi. Ele ergueu o rosto lentamente. Qual é a lição de Nimzowitsch?, perguntei.

O centro não tem de ser ocupado com os peões nas aberturas, balbuciou, mecanicamente.

Esse é o facto, contestei. A lição é outra. Numa situação de crise, precisamos de nos afastar do centro para deixar que uma outra força intervenha, e abandonar a vontade de regressar ao centro. Certo?

Sempre aprendeste alguma coisa, disse Alexandre. Agora, liga para a clínica, por favor. Fez o pedido com voz firme, sem hesitação. Parecia, repentinamente, muito mais lúcido. Levas-me ainda esta noite?

Aquelas situações eram comuns na irmandade. Alguém deixava de beber ou de usar drogas e, pouco tempo depois, a doença manifestava-se de outra maneira: sexo, jogo, relações românticas ou sexuais, compras compulsivas. Um dos nossos companheiros perdera meio milhão de euros a investir na bolsa de valores; outro engordara trinta e oito quilos porque não conseguia parar de comer. O caso mais sério que eu conhecia era o de um alcoólico que foi encontrado dentro do carro, a meio caminho entre Portugal e Espanha, fulminado por um ataque cardíaco, porque trabalhava dezoito horas por dia numa empresa imobiliária e dormia apenas três, alimentando-se a fast food e privado de qualquer sustento emocional. Chamávamos a estas substituições «adicções paralelas», porque, à semelhança do álcool, tomavam conta da vida daqueles que não eram capazes de suportar a sobriedade.

Porém, Alexandre era a última pessoa que eu podia imaginar isto acontecer. Quando saí do apartamento acompanhado por Camilla, à procura de Prometeu (João ficara a olhar pelo meu amigo, que, entretanto, adormecera de exaustão no sofá), achei-me preocupado, assustado. Durante aqueles vinte anos, eu ­confiara em Alexandre. Confiara nas suas ideias, nas suas sugestões– a sua solidez constituíra amparo. A sua força era também a minha e, por consequência, a sua fragilidade deixava-me frágil. Era um homem estranho, sempre o fora. Isolado, silencioso; ruminava à margem da sociedade, apaixonado pelo xadrez, com um traço vincado de misantropia. Para ele, Prometeu seria o ser humano perfeito, se não fosse um cão: eternamente dedicado, nunca se revoltando contra quem o alimentava e lhe dava abrigo.

(Ou será que o próprio cão se revoltara?)

Caminhámos em silêncio pelo quarteirão. A chuva cessara, mas o frio intensificara-se. Nem eu nem Camilla estávamos preparados para o vento gelado que atravessava as ruas àquela hora. Tremíamos enquanto murmurávamos o nome do bicho, Prometeu, Prometeu, onde andas? Procurámos nas esquinas, debaixo dos carros, no pequeno jardim que ficava próximo, nos becos onde os restaurantes largavam os sacos de lixo durante a noite. Se o cão procurasse comida, era ali que a encontraria. Mas talvez não fosse essa a única causa da sua deserção. ­Alexandre tinha a porta de casa aberta, e Prometeu tinha fome, era inegável. Havia, contudo, a solidão. Talvez houvessem passado semanas sem que Alexandre lhe desse uma atenção, umas quantas festas, e o cão se passeasse pela casa, cada vez mais deprimido, enquanto o dono jogava obsessivamente, escusando-se a encher-lhe a tigela da mesma maneira que se escusava a reconhecer a presença do companheiro. Era o pior dos abandonos, aquele que acontecia num lugar que transcendia o visível.

Vasculhando as ruas, eu compreendia-o inteiramente, porque tantas vezes me sentira tentado a abandonar pessoas, situações. Desejava, por vezes, abandonar Aurora. Estávamos distantes havia muito tempo, vivíamos no repouso das coisas não ditas, cada um de nós a existir segundo um cauteloso plano de evitamento. Faziam sentido, os meus sonhos, então: levitar equivalia à fuga, planar num lugar aonde nada chegava– nem o sofrimento, nem o prazer. Nesse lugar, eu era intocável. ­Perdido em pensamentos, nem reparei que Camilla me observava. Tentava ler os meus lábios na escuridão. Estávamos na Praça das Flores, não havia vivalma. Nem pessoas, nem cão. Uma Lua de Inverno muito pálida, carregada de maus presságios, olhava-nos do alto do céu, clareado de nuvens. Ela tremia de frio, e eu também. Despi o casaco e ofereci-lho. Camilla aceitou-o, vestindo-o, depois ergueu a mão direita e desenhou rapidamente uma palavra no ar. A boca dela moveu-se, terminando com os lábios em círculo. O dedo apontou para o meu coração. Tocou-me duas vezes no peito, mas eu não compreendia o que aquilo queria dizer. Talvez que eu estava zangado, ou então que tinha uma dor antiga, que carecia de compaixão. No meu íntimo, culpava Henrique por tudo aquilo. Não havia razão objectiva para o fazer e, porém, o seu aparecimento na minha vida assinalara o fim de uma era marcada por alguma paz (ou um adormecimento) e inaugurara um tempo de desassossego, semelhante ao que eu conhecera havia muito e do qual não sentia a mínima falta.

Foi nesse momento que ouvi os passos. Voltei a cabeça, e Camilla também. Da esquina surgiu Prometeu, as patas calcorreando a calçada, faminto; o focinho baixo, quase rente ao chão, farejante. Fomos ter com ele. O cão estava sofrido e medroso, e foi preciso algum carinho até o convencermos de que éramos amigos, de que vínhamos em paz.

De que não o abandonaríamos.

Ao regressarmos a casa de Alexandre, encontrámo-lo a dormir no sofá. João tapara-o com um cobertor e começara a arrumar o apartamento, levava copos e pratos para a cozinha, tirava os livros do chão. Enchemos uma tigela de comida e outra de água, e Prometeu regressou ao seu canto, deliciado com a comida e o afecto. Apesar da insistência de Alexandre em ir para a clínica, resolvi não o acordar e deixá-lo dormir a sono solto. Era provável que não dormisse há vários dias por causa dos jogos de xadrez, e confiei que, na manhã seguinte, de cabeça menos quente, talvez as coisas não lhe parecessem tão dramáticas.

Saímos do apartamento por volta das três da manhã, deixando tudo em paz e silêncio. Reinava a placidez do ressonar de Alexandre e do cão, que, reconciliado com o lar, se deitara perto do sofá onde o dono dormia. No carro, entrei para o banco de trás. Camilla espreguiçou-se, enquanto João punha o cinto e bocejava. Depois, aproximou-se do meu filho e lançou-lhe os braços ao pescoço, beijaram-se. Na quietude da madrugada, o som dos lábios ecoou pelo veículo, e senti que assistia a algo demasiado íntimo. Então Camilla fez, com a mão direita, gestos semelhantes aos que fizera comigo nessa noite, e depois levou a mão ao peito de João; pensei que talvez o gesto significasse amor.

O que é que ela te disse?, perguntei, em voz baixa.

João olhou-me pelo espelho retrovisor, mas, em vez de responder, limitou-se a sorrir.

Passei o dia todo a achar que Camilla estava grávida, confessei. Que ias ter um filho e que eras demasiado jovem para ser pai.

João riu-se.

Ainda não é desta, disse ele. Mas é possível que um dia aconteça.

Ele bocejava enquanto conduzia pelas ruas adormecidas. Camilla encostara a cabeça ao vidro do carro e fechara os olhos.

Mas, quando acontecer, a responsabilidade não é tua, assegurou. É toda minha.

Eu sei.

Não tem de ser mais um fardo na tua vida.

Eu sei, repeti.

Já fora do carro, despedi-me dele com um abraço. Camilla dormia. Entrei em casa e, ao olhar o relógio da cozinha para ver as horas, apercebi-me de que o mês tinha mudado. Era 1 de Fevereiro. Aurora tinha razão, eu encontraria razões para celebrar. Passara precisamente um ano desde que fizéramos a primeira reunião no Liceu Camões, e um ano e treze dias desde que o professor Tavares se suicidara.

Fevereiro

Embora Tsukuda tivesse deixado de aparecer nas reuniões, isso não significava que estivesse ausente. Nesta vida, existem algumas pessoas cuja ausência é a forma mais forte de presença– aquelas que tememos ou que nos fazem sofrer; mas também aquelas que, pela sua imprevisibilidade (ou pelo seu fascínio, quando nos tornámos monótonos e previsíveis para nós próprios), exercem uma força parecida à da pressão atmosférica nas horas que antecedem uma tempestade, ou à tensão sentida num comboio de alta velocidade que atravessa um túnel muito escuro.

Inácio sabia-o. A sua experiência de vida, mais dura do que a minha, deixava-o na posição privilegiada de prever e prevenir catástrofes; certas pessoas, disse-me uma vez, eram mais perigosas nas sombras. Em meados de Fevereiro, quase na hora da reunião, o zelador entrou na sala com um manequim às costas, um daqueles bonecos de corpo inteiro feitos de plástico, com uma cabeça careca e desprovida de olhos, boca ou nariz. Pousou o boneco junto da baliza de andebol. Levou as mãos à cintura magrinha e olhou em redor com uma expressão desaprovadora. Aquela sala, depósito de objectos proscritos, pianos e tabelas de básquete, começava a tornar-se pequena, claustrofóbica. Reparou nas cadeiras em círculo, na mesa com os bolinhos e o café, e largou um suspiro de resignação. Perguntei-lhe o que era aquele boneco, e Inácio explicou que provinha da sala de Artes Visuais, os estudantes deviam ter andado a aprender a desenhar o corpo humano.

O senhor director sabe que aqui não temos modelos nus, disse ele, num tom de provocação.

Se nos primeiros anos eu gostara de Inácio –julgava que o seu lado reaccionário e antidemocrático poderia equilibrar a balança num ambiente onde o politicamente correcto imperava–, naquele ano que passara, viera a detestá-lo. A sua figura meio torcida, a farda largueirona, o ar de constante enfado, o repúdio que sentia pelos estudantes, pelos professores: tudo isto junto fazia de Inácio um ser humano desagradável, que pautava a sua existência pela censura, pelo gravoso escrutínio do comportamento alheio.

Eu sei que não temos modelos nus, respondi.

O que é que está para aí a fazer?, perguntou ele, aproximando-se.

Eu estava sentado numa cadeira a escrever a acta da reunião anterior.

A manter as coisas em ordem, retorqui, e fechei o caderno.

Sabe o seu amigo, o chinoca?, perguntou.

Deu uma entoação estranha à frase, qualquer coisa entre o repúdio e a confissão.

É japonês, senhor Inácio, corrigi, com a paciência a esgotar-se.

É tudo a mesma coisa, insistiu ele.

O hálito dele cheirava a alho. Tinha muitos pêlos nas narinas e o cabelo oleoso de quem se lava poucas vezes.

Diga lá o que quer, pedi-lhe.

O chinoca e a sua amiguinha do clube de solteiros, disse ele, juntando os dedos indicadores das duas mãos, andam metidos um com o outro. Uma pouca-vergonha.

Levei uns segundos a entender de quem ele estava a falar. E então percebi que era de Guida.

Lá em Angola, falava-se muito dessa coisa dos povos e das raças, sabe?, insistiu, sentando-se, sem ser convidado, numa das cadeiras. Falava-se dos Portugueses e dos pretos, mas também se falava das outras guerras, aquelas maiores, as grandes, aquela guerra que era para acabar com as outras guerras todas.

Começou a bater com a sola do sapato no chão, aquele tacão, de tamanho ortopédico, à mercê da perna agitada pelo nervoso miudinho.

Sabe quem eram os maiores cobardes de todos?, perguntou, baixando o tom de voz, até ser quase um sussurro mal-intencionado. Os chinocas. Eram os primeiros a voltar costas nos campos de batalha, a bater em retirada. Uns maricas. Fugiam do confronto com os outros homens, tinham cagufa. Aquela conversa da honra, e blá blá blá, e não-sei-quê, tudo uma aldrabice pegada. A única coisa que os chinocas sabiam fazer era afundar os próprios aviões, a merda dos kamikazes, um nome pomposo que davam aos pilotos todos borradinhos, e largar bombas. Depois os Americanos mostraram-lhes como era. A grande bomba, a bomba para acabar com todas as bombas, mesmo no meio da China. Pum!

Do Japão, corrigi.

É tudo igual.

Levei a mão à cabeça, cansado de tanta estupidez.

Isso é o mesmo que dizer que Portugal e Espanha são o mesmo país, contestei.

Ele ergueu-se, a farda largueirona a pingar-lhe dos ombros esquálidos.

Vai fazer alguma coisa?, perguntou.

Acerca do quê?

Da professora Margarida e do kamikaze.

Como é que o senhor sabe disso?

Toda a gente sabe, menos você.

Duvido. E é para eu fazer o quê, exactamente? Que eu saiba, as pessoas são livres de se envolverem.

Oh, essa conversa!, irritou-se Inácio, agitando uma mão no ar. O politicamente correcto, como se diz hoje em dia. A pergunta que toda a gente faz: «Qual é o mal?» Nunca ninguém se lembra de perguntar: «Qual é o bem?», porque essa pergunta não dá jeito nenhum, ou dá? Diga lá, reconheça.

Reconheço o quê, senhor Inácio?

Que não há bem nenhum em isto estar a acontecer, uma professora desta escola envolvida com um maluco daquela espécie.

Lamento, mas não vou discutir isso consigo.

Ele cruzou os braços e ficou a olhar-me com uma censura implícita, uma expressão intensa, quase criminosa, perpassando o seu rosto, de punhos cerrados. Depois, foi-se embora em silêncio, os tacões a ecoar no soalho de madeira carcomida.

No entanto, Inácio tinha razão. Guida e Henrique andavam envolvidos e, apesar da minha pretensão a liberal, não fui capaz de me manter à parte dessa história. Tsukuda deixara de aparecer nas reuniões e eu não o via desde aquela noite em que dormira no sofá do apartamento de Saburo, depois de o ter ido buscar ao hospital psiquiátrico. Porém, se tivesse estado atento aos sinais, teria reparado que algo mudara em Guida. Embora continuasse a estar presente em todas as reuniões, cumprindo com diligência o seu papel de secretária e coordenadora daquele grupo, o seu aspecto mudara, a disposição era diferente. Conseguira, impossivelmente, enfiar ainda mais pulseiras nos braços; as calças de ganga, as camisas e os casacos de cores mortiças tinham desaparecido, e usava agora saias curtas e justas. Substituíra as sabrinas por sapatos de salto alto. Esticara o cabelo, começara a usar perfume. Sorria mais do que nunca e falava ainda mais do que o habitual. Era um facto: Guida mudara a olhos vistos, e eu ignorara a transformação.

A minha atenção andava perdida noutras coisas. Alexandre deixara Lisboa e internara-se no centro de Azeitão. Da última vez que faláramos, ao telefone, disse-me que planeava ficar por ali pelo menos seis meses, quem sabe mais tempo. A sua partida deixou-me inquieto; não apenas por ele, pela sua deterioração tão súbita e inesperada, mas também porque, pela primeira vez desde 1987, eu perdera o meu companheiro de jornada, a pessoa em quem mais confiava.

Havia, porém, mais do que isso– um problema maior e mais próximo: uma década de relacionamento que, diariamente, perdia o sentido. Não há coisa pior no amor do que acordar solitário e pesaroso numa cama partilhada. Levantava-me normalmente antes de Aurora, o corpo desgastado pela insónia: seis da manhã, ou antes disso, o frio escondido no fundo nos meus ossos, Na casa de banho, ao espelho, um rosto de desalento, olheiras de Inverno, o desamparo. Continuávamos em frente, colando o passado ao futuro com cuspo, enquanto eu dizia a mim próprio, em surdina, que era só mais um dia. E, se esse dia fosse de tristeza, insistia na mesma ideia: só mais um dia, um de cada vez. Amanhã tudo será diferente, não será como hoje, nunca igual a ontem.

Até quando?

No final de uma das reuniões de Fevereiro, perguntei a Guida a razão para a sua mudança de visual (imaginei, enquanto conversávamos, que ela se vestira assim na juventude, antes de entrar para o ensino, quando ambicionara uma carreira nas imobiliárias, mais ou menos na época em que começara a beber).

Oh, arranjo-me melhor, não é?, respondeu. É porque tenho um namorado.

E começou a rir-se enquanto arrumávamos as cadeiras. Rosa aproximou-se e veio dar-lhe um abraço. As duas permaneceram agarradas durante uns segundos, embora o motivo me escapasse: nessa reunião, não ouvira nenhuma das partilhas, porque passara o tempo todo a pensar na minha situação intolerável e a culpar Tsukuda. Quando Rosa partiu, Guida confessou que andava a sair com o japonês.

Luso-japonês, corrigiu-se. Assim é que é.

Devo ter ficado tão perplexo com a confissão que Guida me deu uma palmada no braço.

Fecha a boca, advertiu.

Mas como é que isso aconteceu?

Oh, sei lá. Ele é muito mal-educado, e cheira mal, confessou. Mas é muito giro.

Ele vai dar cabo dela, pensei de imediato. Enquanto caminhava pelo corredor escuro, a chuva fustigando o telhado do antigo edifício, de olhos postos no chão, tive a certeza de que Tsukuda só iria descansar quando Guida estivesse de rastos. Ou quando saltasse da Ponte 25 de Abril, ou quando fosse apanhada a perseguir os pombos na Avenida do Brasil. Guida não era uma mulher como as outras, sofria de alcoolismo, tinha apetência pelo desastre, para as relações difíceis; com a agravante de que, no feminino, o amor era a droga de substituição mais comum. Guida não se afundara num casino, mas podia facilmente afundar-se no pântano da loucura de Henrique.

Uma tarde, apareceu na sala dos professores com um pendente ao pescoço que eu nunca lhe tinha visto. Sentou-se, sorridente, à mesa, sob o infeliz candeeiro que pendia do tecto, com um café e um croissant comprados na cantina do liceu. Exibia o pendente, embora pretendesse fazê-lo como quem não exibe coisa nenhuma. A sua felicidade era palpável, o que, curiosamente, incomodava os outros professores, que a evitavam, consumidos pelo trabalho intenso e pela ligeira depressão que se apoderava do corpo docente no pico do Inverno. Perguntei-lhe o que trazia ao pescoço. Guida, a fingir que a pergunta a surpreendia, segurou no pendente com a mão direita e mostrou-mo. Era a pequena imagem de uma santa, que só podia ter sido a dona Eduarda a oferecer-lhe. Guida sussurrou: Apolónia, a santa dos apaixonados, e tornou a mordiscar o croissant, enquanto, à nossa volta, os professores se preparavam para as primeiras aulas da manhã.

Nessa tarde, cruzei-me com Eduarda no corredor que conduzia ao ginásio. Pareceu-me mais pequena do que o costume, mais curvada, e também menos vivaça, os olhos postos no chão, as pálpebras a meia haste. Chamei por ela; perguntou-me o que queria e respondi que não queria nada, mas logo em seguida fui incapaz de conter a curiosidade, e confessei que me intrigava o pendente que ela oferecera a Guida.

Ah, gostou? Quer um para si?

Não, obrigado, respondi. Desconhecia que Santa Apolónia era a dos amantes.

Bom, essa parte inventei eu, confessou, baixinho. Não lhe diga nada, coitada, ela andava a precisar de uma ajudazinha.

Então, é a santa do quê?

Dos dentistas e das pessoas com dores de dentes.

Apesar do Inverno, nessa tarde havia sol e a luz entrava pelas antigas janelas, iluminando o chão de triângulos dourados, realçando o buço da velha contínua.

Deseja mais alguma coisa?, perguntou-me.

Acenei negativamente. Ela ia seguir caminho, mas tornei a chamá-la.

Pedia-lhe que não incentivasse a professora Margarida, roguei.

Porquê? Está com ciúmes?

Estou preocupado. O que é que ela lhe contou?

Contou-me que tem um namorado.

E o namorado tem dores de dentes?

Que eu saiba, não.

Então, para que lhe deu o pendente?

Ao sentir a minha irritação, Eduarda aproximou-se de mim. Creio que nunca tínhamos estado tão próximos. Ergueu a cabeça para me olhar e perguntou-me se eu me lembrava do primeiro ano em que ali trabalhara.

Sim, respondi.

Pois, nesse seu primeiro ano, eu já aqui trabalhava há uns vinte.

E então?

Dei-lhe um livrinho, lembra-se?

Claro que sim.

Deus respira em nós, não se esqueça.

Não me esqueço.

Também respira na sua colega Guida. Ela é tão frágil como você era quando aqui chegou, e precisa de ajuda. Nem que seja da santa errada, é o que se pode arranjar.

Dito isto, deu meia-volta e caminhou pelo corredor na direcção contrária. Fiquei a vê-la afastar-se com os seus passinhos curtos, o cabelo ralo, os braços arqueados, as chaves a tilintarem no bolso. E, embora soubesse que ela tinha razão (que Guida era frágil, que precisava de ajuda), havia um lado meu que continuava a menosprezá-la. Nessa noite, deitado ao lado da minha mulher adormecida, enquanto relembrava as palavras do meu filho –ou, melhor dizendo, consciente da minha necessidade ridícula de salvar os outros, da minha cansativa luta contra a impotência–, adormeci decidido a pôr o assunto de lado.

E depois acordei e fui fazer precisamente o contrário daquilo que decidira ao adormecer.