9

O pai de Beth bateu à porta do quarto.

— O carro já chegou.

— Estamos quase prontas, Arthur — disse a mulher dele. — Dá-nos só mais uns minutos.

Arthur olhou para o relógio. O motorista tinha ensaiado o percurso para a igreja nessa manhã e levara onze minutos. É claro que Arthur compreendia que toda a gente contava que a noiva se fizesse esperar, mas não ao ponto de deixar o noivo nervoso, já para não falar nos duzentos convidados.

Beth viu-se uma vez mais ao espelho. Nada mudara. Não podia ter imaginado um vestido mais bonito e sabia que nunca conseguiria agradecer convenientemente ao pai os sacrifícios que ele fizera para tornar aquele dia inesquecível.

— Será que todas as noivas têm dúvidas no dia do casamento? — perguntou, quase como se falasse consigo mesma.

— Eu tive — admitiu a mãe, enquanto lhe compunha o véu. — Por isso, acho que a resposta é sim.

Bateram novamente à porta.

— Receio que esta seja uma daquelas raras ocasiões em que não podem começar sem estares presente — recordou-lhes Arthur, que desceu as escadas e abriu a porta da rua, começando a andar de um lado para o outro no caminho de acesso à casa.

Passados alguns instantes, a filha apareceu ao cimo dos degraus e, como qualquer pai de noiva que se preze, ele sentiu-se o homem mais orgulhoso ao cimo da terra. Saiu para o passeio e abriu a porta de trás do Rolls-Royce — até isso tinha sido ensaiado —, e esperou que Beth entrasse antes de se lhe juntar no banco de trás. O Rolls arrancou lentamente e Arthur ainda pensou se devia dizer ao motorista para ir mais depressa, mas depois reconsiderou.

— Estás sensacional! — disse, virando-se para admirar a filha uma vez mais. — O William é um homem cheio de sorte.

— Estou tão nervosa — disse Beth. — Espero que não se note.

— E tens razão para estar, minha menina. Estás prestes a assinar um contrato de sociedade para toda a vida, sem cláusula de rescisão.

— Não sei como lhe agradecer, pai. Nada disto teria sido possível sem a sua extraordinária bondade e generosidade, não só hoje, mas durante muitos anos. Sei que deve ter havido alturas em que dei consigo em doido.

— Com alguma regularidade — replicou Arthur com uma risada —, mas tenho todo o gosto em passar essa responsabilidade para as mãos do homem que me tirou da cadeia e permitiu que eu voltasse a trabalhar, quando mais ninguém, a não ser tu, acreditava que isso era possível. — Pegou-lhe na mão. — Os pais estão sempre convencidos de que não há ninguém suficientemente bom para a sua filha, sobretudo quando se trata da única filha, mas eu não podia estar mais satisfeito por ter o William como genro. É claro que não é suficientemente bom para ti, mas serve…

Beth riu-se.

— A mãe disse-me que foi à despedida de solteiro no pub local.

— Não estive lá muito tempo.

— Não foi isso que ela disse.

— Não te preocupes. Estava lá metade da Polícia Metropolitana para o ter debaixo de olho. Tirando algumas piadas que não vou repetir e alguma cantoria horrivelmente desafinada, continuava sóbrio quando o levei a casa. Sabes qual é a alcunha dele? — perguntou Arthur, quando viraram para a High Street e a velha Igreja de St. Anthony ficou à vista.

— Menino de coro — replicou ela, mas não disse ao pai como lhe chamava em privado.

Ela e William tinham ido a dois ensaios durante a semana, e o padre da paróquia, o reverendo Martin Teasdale, um cavalheiro venerável, explicara-lhes lentamente a cerimónia, pondo grande ênfase na importância dos votos de casamento feitos na presença do Altíssimo. Terminou avisando-os de que havia sempre alguma coisa que corria mal no próprio dia.

Quando o Rolls parou à porta da igreja, Arthur voltou a ver as horas. Estavam sete minutos atrasados e ele desconfiava que William já começara a ficar nervoso, mas também sabia que a sua ansiedade se dissiparia assim que ouvisse o alegre repicar dos sinos e visse a noiva a caminhar em direção ao altar.

Arthur saiu do carro e segurou a porta para deixar a filha juntar-se a ele. Uma dama de honor precipitou-se para endireitar a cauda do vestido de Beth e depois fez sinal às outras, que se posicionaram rapidamente atrás da noiva. Beth deu o braço ao pai e entraram ambos na igreja ao som da Marcha Nupcial de Mendelssohn.

A congregação levantou-se em uníssono, enquanto Beth avançava lentamente em direção ao altar. À sua esquerda, estavam amigos dos tempos de escola e da Universidade de Durham, sentados entre um grande contingente do Fitzmolean.

Quando olhou para a direita, viu que os bancos estavam cheios com o que parecia ser uma convenção da polícia ou uma equipa de râguebi, intercalada com amigos de William dos tempos de escola e do King’s College de Londres. Sorriu ao ver Gino, recordando o seu primeiro encontro.

À medida que ia percorrendo a nave central, Beth viu Jack e Josephine Hawksby, Grace e Clare, que estavam de mãos dadas, Jackie Roycroft, Paul Adaja e Tim Knox, que lhe fez uma vénia. E depois viu William no degrau superior do altar, lindo com o seu fraque, camisa branca e gravata cinzento-prateada, e um cravo cor-de-rosa na lapela. Brindou-a com o mesmo sorriso nervoso que ela vira pela primeira vez quando ele visitara o Fitzmolean para ouvir uma palestra que devia ter sido dada pelo diretor do museu. Se Tim não tivesse adoecido, não teriam pedido a Beth que o substituísse à última hora e talvez nunca se tivessem conhecido. Ela não confessara a ninguém, nem mesmo a William, que tinha sido bastante difícil ter de dar uma palestra em público pela primeira vez, ainda por cima com um homem jovem e extremamente bem-parecido que nem sempre estava a olhar para os quadros.

Quando chegaram aos degraus do altar, Arthur Rainsford largou a filha solteira pela última vez, recuou um passo e juntou-se à mulher na primeira fila.

Beth subiu os degraus para se juntar a William, que estava a olhar para ela como se não conseguisse acreditar em tamanha sorte.

— Mal posso esperar para te tirar o sétimo véu — sussurrou-lhe.

— Comporta-te, homem das cavernas — replicou Beth, satisfeita por ele não conseguir vê-la corar.

Quando soou o último acorde e o órgão se calou, o padre começou por dar as boas-vindas aos noivos. A seguir, olhou para o espaço lotado e declarou:

— Queridos irmãos, estamos aqui reunidos perante Deus e esta congregação…

Beth sabia a cerimónia do casamento quase de cor, como uma jovem atriz à espera de que a cortina se erga para poder desempenhar o papel mais importante da sua vida. Por isso, não estranhou quando o padre entoou:

— Por conseguinte, se houver algum homem entre vós — porque não mulher?, pensara Beth durante o ensaio — que saiba de algum impedimento a este matrimónio, que fale agora ou se cale para sempre.

O padre informara-os durante o ensaio que, de acordo com a tradição, faria uma pausa antes de dizer a William: «Aceita esta mulher como sua legítima esposa?» Ele fez a tal pausa e então ouviu-se uma voz:

— Eu sei de um impedimento!

A congregação ficou momentaneamente aturdida e todas as cabeças se viraram à procura da origem daquela voz solitária. Um homem com quem Beth apenas estivera uma vez emergiu do público para a nave central e começou a caminhar com ar decidido em direção ao seu futuro marido. Quando chegou aos degraus do altar, disse:

— Este homem — e apontou para William — tem um caso com a minha mulher e provocou a rutura do nosso casamento. Ele não tem intenção de ser fiel a esta mulher, e eu posso prová-lo!

Um rumor de vozes chocadas transformou-se em clamor, ao mesmo tempo que Beth desatava a chorar. William deu um passo em direção a Faulkner e foi preciso o padrinho e dois dos acompanhantes do noivo para os manter separados.

Em mais de quarenta anos como oficiante, o reverendo Martin Teasdale nunca tinha sido interrompido durante uma cerimónia de casamento. Tentou desesperadamente lembrar-se do que devia fazer naquelas circunstâncias. Não podia telefonar ao bispo.

Foi Sir Julian quem veio em seu auxílio.

— Talvez as duas famílias, juntamente com o senhor Faulkner, possam acompanhá-lo à sacristia para resolver a situação — sussurrou ele do banco da frente.

— Será que as duas famílias e o cavalheiro em questão podem fazer o favor de vir comigo à sacristia, para tentarmos resolver o assunto? — disse o padre.

William e Beth abandonaram relutantemente os degraus do altar e seguiram-no até à sacristia. Quando os pais dos noivos se lhes juntaram, aguardaram em silêncio que o acusador de William aparecesse. Faulkner levou algum tempo até entrar na sala.

— Como é que o senhor se chama? — perguntou o padre.

— Miles Faulkner — anunciou ele, com o mesmo ar confiante que exibira recentemente no banco das testemunhas.

— Um homem que está presentemente a cumprir uma pena suspensa de quatro anos por fraude — disse Sir Julian. — O meu filho foi o agente que o deteve. Claramente, isto não é mais do que um homem quezilento a procurar vingar-se.

— É verdade que foi condenado por fraude, senhor Faulkner? — perguntou o padre.

— Sim, é — replicou Faulkner. — Mas tenho algo a dizer que não foi revelado durante o julgamento e irá provar que a alegação de Sir Julian de que este gesto é motivado pelo desejo de vingança não passa de uma tentativa para me silenciar, quando na verdade estou simplesmente a cumprir o meu dever cristão.

Toda a gente começou a falar em simultâneo, exceto o padre que, quando a torrente de acusações e contra-acusações amainou, disse simplesmente:

— Vamos ouvir o que tem a dizer, senhor Faulkner. Isto pode não ser um tribunal, mas estamos na presença de uma autoridade muito superior, que irá proferir a decisão final.

Faulkner baixou a cabeça, sugerindo estar bem ciente da gravidade da situação.

— Perante Deus — disse ele solenemente —, acuso este homem de ter um caso com a minha mulher enquanto estava noivo desta mulher. Um ato de infidelidade que provocou a rutura irreparável do meu casamento.

Aquilo pareceu demasiado ensaiado a Sir Julian, que não tinha dúvidas sobre quem escrevera o guião, embora não soubesse bem como poderia William provar a sua inocência.

— Encontrei-me com a senhora Faulkner em três ocasiões — protestou William — e apenas na minha qualidade de agente policial.

— E é capaz de negar que, numa dessas ocasiões, passou a noite com a minha mulher na nossa casa em Monte Carlo, enquanto eu estava bem longe, do outro lado do mundo?

— Passámos a noite na mesma casa — disse William com firmeza —, mas não na mesma cama.

— Vai negar na presença de Deus que a minha mulher foi ter consigo à cama nessa noite?

William não respondeu e, desta vez, Sir Julian não pôde ir em seu auxílio.

— Receio que seja verdade — disse uma voz ao fundo da sacristia.

Toda a gente se virou para ver quem pronunciara estas palavras. Christina Faulkner deu um passo em frente.

— Quando o William esteve como convidado em minha casa, depois de ter ido deitar-se, entrei no quarto dele sem ser convidada e enfiei-me na cama ao seu lado.

Christina não teria um público mais atento se estivesse a atuar numa noite de estreia em Albert Hall.

— Nenhuma mulher gosta de ser rejeitada — disse ela baixinho —, mas foi isso que o William fez e, literalmente, indicou-me a saída. Enquanto for viva, nunca me esquecerei das suas palavras. «Estou apaixonado por uma mulher extraordinária», disse-me ele, «e nem a promessa de devolver o Rembrandt roubado ao Fitzmolean me deixaria tentado a ser-lhe infiel.» Se acham que isso deve ter sido humilhante, imaginem o que estou a sentir agora, na presença de Deus e desta congregação. — Fez uma pausa, antes de dar a réplica final. — Há dois outros factos que podem ter interesse para si, padre. Eu tinha iniciado o processo de divórcio muito antes de conhecer o inspetor Warwick e, mais importante ainda, nunca mais nos encontrámos, como tenho a certeza de que o detetive privado do meu marido poderá confirmar.

Beth tomou William nos braços e beijou-o suavemente nos lábios.

— É bom saber que me consideras mais valiosa do que um Rembrandt — disse. — Não me ocorre melhor presente de casamento.

Toda a gente irrompeu em aplausos calorosos, à exceção de Faulkner. Arthur, que não tinha falado até aí, avançou, agarrou Faulkner pelo braço e torceu-lho até meio das costas com a perícia de um antigo pugilista amador, e arrastou-o até à porta das traseiras. Abriu-a com a mão livre e, com a ajuda de um sapato bem engraxado, pontapeou-o para o meio do cemitério.

Faulkner tropeçou, caindo sobre um joelho antes de conseguir recuperar o equilíbrio. Enquanto se afastava, ouviu Arthur gritar:

— Já fui preso uma vez por homicídio. Não me dê uma desculpa para cometer segunda vez o mesmo crime!

Depois bateu com a porta e juntou-se novamente aos outros, para ouvir o padre pronunciar:

— A vingança é minha, diz o Senhor.

Os noivos voltaram à igreja e retomaram os seus lugares nos degraus do altar sob uma ovação calorosa, revelando que o padre se esquecera de fechar a porta da sacristia.

— Onde é que nós íamos antes de eu ter sido tão grosseiramente interrompido? — disse ele, sendo recebido com gargalhadas e mais aplausos. — Ah, sim. Aceita esta mulher como sua legítima esposa?

Depois de William e Beth terem trocado votos, o padre declarou:

— Agora, pronuncio-vos marido e mulher. Pode beijar a noiva.

Uma ovação de pé acompanhou o senhor e a senhora Warwick enquanto percorriam a nave central, agora em sentido inverso.

A receção após o casamento deu oportunidade a toda a gente de exprimir a sua opinião relativamente à deselegante intervenção de Faulkner, embora os discursos que se seguiram não a tenham mencionado. Quando soaram as quatro horas, Arthur começou novamente a ficar ansioso e preocupado: se Beth levasse muito mais tempo a trocar o vestido de noiva pelo vestido escolhido para se ir embora, o senhor e a senhora Warwick perderiam o voo e teriam de passar a primeira noite de casados no banco de trás de um carro de aluguer.

Ele dissera várias vezes à filha que a viagem até Gatwick levava pelo menos uma hora e ela voltara a ignorar os seus avisos. Mas quando Beth voltou a aparecer com um vestido de caxemira azul-marinho e vermelho, complementado com um lenço de seda vermelho e uma malinha bege, tudo foi perdoado. Arthur deu uma gorjeta de dez libras ao motorista e disse-lhe para se assegurar de que eles não perdiam o voo.

— Segure-se bem, inspetor — disse o condutor quando eles entraram para o banco de trás. — Sou capaz de ter de exceder o limite de velocidade.

— Oh, não, tu não, Danny! — exclamou William. — O que mais pode correr mal hoje?

Chegaram ao aeroporto quarenta e seis minutos depois e, quando os recém-casados entraram de rompante na sala das partidas, foram saudados com um anúncio pelos altifalantes:

— Esta é a última chamada para o voo 019, com destino a Roma. Pedimos a todos os passageiros que se dirijam para a porta de embarque trinta e um.

O senhor e a senhora Warwick estiveram entre os últimos passageiros a entrar no avião e só conseguiram relaxar quando ele começou a rolar na pista. William estava a apertar a mão de Beth enquanto esperavam pela descolagem quando ouviram um anúncio vindo do cockpit:

— Fala o vosso comandante — disse uma voz amistosa. — Lamento ter de informar que o nosso engenheiro identificou uma pequena falha no motor de estibordo e, por conseguinte, teremos de regressar à porta de embarque e os senhores passageiros terão de desembarcar e esperar até localizarmos um avião disponível para vos levar a Roma.

A cabina encheu-se de murmúrios de desagrado, seguidos de centenas de perguntas, para as quais a tripulação não tinha resposta.

— Posso garantir-lhes — continuou o comandante — que a vossa segurança é a nossa prioridade. Espero que não demore muito até poderem retomar a vossa viagem.

— Não me surpreenderia — disse William enquanto tirava o saco de Beth do compartimento superior — se o engenheiro fosse o Faulkner.

Beth não se riu.

Os passageiros foram acompanhados de volta ao terminal, onde lhes ofereceram chá e biscoitos na sala de espera, enquanto aguardavam por novo anúncio. A promessa «Já não deve demorar muito», regularmente repetida por funcionários solícitos, tornou-se cada vez menos convincente até que, finalmente, surgiu o anúncio oficial da companhia aérea.

— Lamentamos informar que não há nenhum avião de substituição disponível nesta altura. Todos os passageiros terão lugar no primeiro voo para Roma amanhã de manhã.

— Bem, senhora Warwick, parece que vamos passar a nossa primeira noite de casados na sala de espera de um aeroporto — disse William, tomando Beth nos braços.

— Pelo menos, teremos alguma coisa para contar ao teu filho — disse ela.

— Ao meu filho?

— Ou talvez filha, senhor Warwick. Estou grávida.