24
Tinham escolhido cuidadosamente a hora.
Ele caminhou ao longo da parede sul da catedral até chegar à porta da sacristia. O coro tinha acabado de cantar as matinas e só voltaria na próxima cerimónia religiosa: um batizado às duas da tarde.
Agarrou no puxador, abriu a porta pesada e entrou na catedral. Sabia exatamente para onde ia, mas já efetuara aquele exercício por várias vezes, e para vários suplicantes diferentes.
— Bom dia, minha filha — disse ele a caminho do vestiário, ao passar por uma empregada da limpeza no corredor.
— Bom dia, padre — respondeu ela, fazendo uma pequena vénia.
Ele tinha aprendido ao longo dos anos que, se parecesse e falasse como se estivesse no seu habitat natural, ninguém questionava a sua presença.
Desapareceu no interior do vestiário, aliviado por ver que já tinham saído todos os coristas. Foi direito a um cubículo que tinha o nome do padre Michael Seed, o seu confessor e um velho amigo com quem tinha pouco em comum exceto serem mais ou menos do mesmo tamanho.
Tirou o casaco e a gravata e substituiu-os por uma longa sotaina preta, uma sobrepeliz e um colarinho eclesiástico que o transformaria de leigo em padre durante a próxima hora. Sentia-se um impostor, mas esperava que Deus Todo-Poderoso perdoasse a sua ofensa e aceitasse que era para um bem maior.
Ver-se de relance no longo espelho pendurado na parede só o fez sentir-se ainda mais culpado. Voltou para o corredor, atravessou a sacristia e entrou na nave da igreja. Manteve o passo firme enquanto passava pela Capela do Sacramento Abençoado, não desejando parar para falar com nenhum dos paroquianos, embora tivesse muita prática em fazer o papel de padre dedicado aos seus deveres pastorais, caso algum deles o interpelasse.
Quando chegou a um canto isolado debaixo de um relevo em bronze de São Bento, entrou no espaço escuro e exíguo e instalou-se à espera de ouvir a confissão do único pecador com quem tinha encontro marcado.
Passados instantes, a porta do confessionário abriu-se e alguém entrou e sentou-se. Ele correu a cortina vermelha.
— Bom dia, padre — disse uma voz que ele reconheceu de imediato.
— Bom dia, meu filho.
— Peço desculpa por ter passado tanto tempo desde a última vez que me confessei, mas a minha vida tem andado em polvorosa.
— Poderei ajudar de alguma maneira? — perguntou o comandante, respondendo à mensagem codificada.
— Como sabe, da última vez que me confessei, padre, o Tulip estava no hospital depois de ter engolido um invólucro de cocaína, numa tentativa para evitar ser preso. Confesso que esperava que ele morresse.
— Isso é na verdade um pecado mortal, meu filho, mas sinto que Deus manifestaria alguma compreensão, dadas as circunstâncias.
— Na ausência dele, tornei-me mensageiro de vários traficantes, cujos nomes sinto que devo partilhar consigo, para expiar as minhas ofensas.
— Que o Senhor te abençoe e guarde.
Uma tira de papel foi passada através do painel gradeado. O comandante deu uma olhadela rápida e ficou encantado por ver o nome de vários novos pecadores com que ainda não se deparara.
— Que o Senhor tenha piedade das suas almas — disse, enquanto guardava a tira de papel num bolso interior. — Mas já localizou o ninho da víbora?
— A detenção do Tulip pelo homicídio do Adrian Heath criou uma vaga na hierarquia, padre, e eu fui promovido, coisa que acontece com bastante regularidade quando se está num campo de batalha.
— E?
— Bloco A, Torres Mansfield, Lavenham Road, Brixton — foi a resposta imediata.
— Isso confirma a nossa própria informação. Estarei igualmente certo ao pensar que o quartel-general do Rashidi fica no topo do prédio?
— Nos últimos três andares. O vigésimo quinto é onde cultivam a canábis. O vigésimo quarto é onde preparam a droga para os traficantes de rua. Heroína, cocaína, comprimidos de ecstasy e canábis.
— E o vigésimo terceiro?
— É o centro de distribuição. O sítio onde os traficantes vão buscar o produto e entregam as receitas.
— Quem é o responsável?
— O Rashidi tem quatro adjuntos. Todos eles constam da lista que acabei de lhe entregar: um advogado expulso da Ordem, um contabilista proibido de exercer, um médico a quem foi retirada a cédula profissional e um antigo gerente de vendas que foi despedido da John Lewis por desfalque. Agora, ganha tanto dinheiro que já não precisa de fazer desfalques. O Rashidi também tem um braço-direito, mas não consegui descobrir o seu nome nem onde mora, mas tenho praticamente a certeza de que não é naquele prédio. A operação é tão bem gerida quanto qualquer instituição da City.
— E a segurança?
— Tem quatro guardas a vigiar o prédio dia e noite. Há duas entradas para o matadouro no vigésimo terceiro andar; a porta de entrada, que é feita de aço reforçado, só abre do lado de dentro e tem um ralo para o porteiro poder ver a pessoa que quer entrar. As portas estão protegidas por um ferrolho especial, um dispositivo de segurança inventado pela máfia para não deixar entrar visitantes indesejados. No entanto, esse não é o vosso maior problema. O Rashidi não utiliza essa porta. Tem a sua própria entrada e saída.
O comandante não interrompeu a confissão.
— Os blocos A e B encontram-se unidos por uma passagem no vigésimo terceiro andar. Como o Rashidi tem um grande apartamento no vigésimo segundo andar do bloco B, ao menor sinal de problemas, pode escapar antes de alguém conseguir chegar à porta de entrada do matadouro.
— E o elevador?
— Leva quarenta e dois segundos a chegar ao vigésimo terceiro andar e é operado permanentemente por um rufia chamado Pete Donoghue, que subiria imediatamente ao matadouro assim que algum dos vigias detetasse alguma coisa de suspeito. Muito antes de a equipa armada ter subido os vinte e três lanços de escada, deitado abaixo a porta de aço reforçado e entrado à força no matadouro do bloco A, já o Rashidi estaria a ver televisão no seu apartamento do bloco B e só voltaria a sair de lá quando o caminho estivesse livre.
— E os trabalhadores?
— A maior parte são imigrantes ilegais e pequenos criminosos, que o Rashidi acomoda em pequenos apartamentos miseráveis do bloco A. Se houvesse algum problema, teriam de sair pela porta principal e, por isso, seria possível apanhar alguns dos seus lacaios enquanto descessem, mas não o Rashidi nem o seu braço-direito.
— Com que frequência é que ele visita o matadouro?
— Vai lá à noite recolher o dinheiro entre as oito e a meia-noite, de segunda a quinta. Vai sempre acompanhado de dois ex-presidiários armados, que se asseguram que ninguém é apresentado ao chefe, a menos que tenha hora marcada.
— Preciso de saber quem é o proprietário dos dois blocos — disse o comandante.
— Não tenho maneira de descobrir isso, mas não ficaria surpreendido se fosse o próprio Rashidi. Ele é engenhoso e bastante organizado e, como todos os sociopatas, não se importaria se lhe matassem o melhor amigo. Agora que penso nisso, não tenho a certeza de que tenha amigos. — O informador fez uma pequena pausa e depois concluiu: — Não tenho mais nada a confessar, padre.
— Obrigado, Ross — disse o comandante. — Deu-me a mim e à equipa munições mais do que suficientes para avançar para a próxima fase do nosso plano.
— E haverá mais de onde estas vieram, porque estou decidido a estar lá na noite da rusga. Diga-me quando tiver escolhido a data.
— Assim farei, mas não corra riscos desnecessários. Já fez mais do que o suficiente. Assim que quiser sair, é só dizer. Surgiu uma vaga para inspetor-chefe em Hackney e eu teria todo o gosto em recomendá-lo.
— Não sei se conseguiria voltar a vestir uma farda ao fim de todo este tempo.
— É compreensível, mas se mudar de ideias diga-me através dos canais habituais.
— Sim, comandante — disse Ross. — Mas espero que seja o senhor a prender-me quando os rapazes invadirem o matadouro.
— Boa ideia, mas vou deixar que seja o menino de coro a fazer isso.
— Acha que consigo reconhecê-lo?
— Não conseguirá deixar de reparar nele — disse Hawk, com um sorriso que Ross não pôde ver do outro lado da divisória. — Agora, é melhor ir andando, enquanto eu fico por aqui mais uns minutos. Sei que é inadequado, mas mais uma vez obrigado, Ross.
Hawk ouviu a porta abrir e fechar. Estava a pensar como poderia levar os seus homens até ao vigésimo terceiro andar antes de Rashidi ter tempo para fugir, quando uma voz disse:
— Padre, pequei e procuro o perdão de Deus.
«Socorro», foi o que Hawk teve vontade de dizer, «não és o meu tipo de pecador.» Mas contentou-se em perguntar:
— Qual foi o teu pecado, meu filho?
— Cobicei a mulher do meu vizinho.
— E tiveste relações carnais com ela?
— Não, padre, mas a Bíblia diz-nos que o pensamento é tão pecaminoso como o ato.
«Nesse caso, sou culpado de vários homicídios», pensou Hawk, «e incluo o Faulkner e o Rashidi entre as minhas hipotéticas vítimas.»
— É verdade, meu filho. Cometeste um pecado grave e tens de rejeitar as tentações do Diabo e afastar esses pensamentos indignos da tua cabeça.
— E se não conseguir, padre? Serei condenado às trevas e à danação eterna?
— Não, meu filho. Tal não acontecerá se te arrependeres dos teus pecados e voltares ao caminho da retidão. Santa Maria, Mãe de Deus…
— Obrigado, padre — disse uma voz aliviada, antes de a porta voltar a abrir e a fechar.
Hawk não perdeu mais tempo, pois não desejava ter de lidar com mais pecadores inesperados. Saiu precipitadamente do confessionário e quase correu pela sacristia para voltar ao vestiário, mas teve de abrandar quando viu o cardeal-arcebispo de Westminster a caminhar na sua direção. Pôs um joelho no chão e beijou-lhe o anel. O cardeal fez o sinal da cruz e disse:
— Diga-me, comandante, esteve ocupado com a obra de Deus?
— Creio que salvei um pecador hoje, Eminência — replicou.
— Nesse caso, meu filho, esperemos que seja recompensado tanto na terra como no céu.
— Tendo em conta as mais recentes revelações do HM — disse Hawk quando presidiu à próxima reunião da equipa —, o comissário deu-nos luz verde. Podemos mobilizar quaisquer recursos no âmbito das competências da Polícia Metropolitana, e até conseguimos um orçamento realista. No entanto, há uma condição.
— Há sempre — disse Lamont.
— O comissário insiste em que a nossa prioridade é apanhar o Rashidi e o seu círculo mais próximo, garantindo ao mesmo tempo provas suficientes para os prender até serem velhos. O simples facto de fechar a fábrica de droga e apanhar uns quantos mensageiros, ou mesmo traficantes, não será suficiente. O Rashidi é bem capaz de se ir embora e abrir um estaminé noutra parte da cidade passadas semanas, possivelmente dias. O mais provável é que já tenha uma segunda fábrica montada precisamente com esse objetivo. Inspetor Warwick, informe-me em que ponto estamos na investigação.
— Eu e o inspetor estagiário Adaja temos passado as últimas semanas a trabalhar no terreno — disse William.
— Isso explicaria porque é que têm ambos a barba por fazer e esse ar desalinhado.
— Temos de passar despercebidos entre os habitantes locais — disse Paul.
— Não só confirmámos o bloco onde o matadouro se situa — disse William —, como, graças à informação pormenorizada fornecida pelo HM… e, já agora, peço desculpa por ter duvidado dele, comandante, porque se eu e a Jackie os tivéssemos detido, a ele e ao Tulip, em Felixstowe, ainda andaríamos às aranhas e…
O comandante interrompeu-o com um gesto da mão.
— Passemos ao aqui e agora, inspetor Warwick, e vamos esquecer o passado — disse, piscando o olho a Jackie.
William continuou:
— Visitei dois agentes imobiliários locais para saber se podia arrendar um apartamento no bloco A, para poder entrar e sair sem levantar suspeitas. Mas não é possível, porque o edifício está registado no nome de uma empresa de fachada, provavelmente detida pelo Rashidi.
— No entanto, há dois apartamentos desocupados no bloco B — disse Paul — que são arrendados pelo Lambeth Council. Um deles seria ideal para aquilo que temos em mente.
William levantou-se e foi até um grande quadro branco coberto de diagramas, setas e fotografias, uma das quais mostrava dois blocos de apartamentos com uma passagem entre eles.
— O apartamento que tenho em vista fica no vigésimo terceiro andar, não muito longe da passagem.
— Bom trabalho — disse o comandante. — No entanto, é melhor ser o inspetor estagiário Adaja, e não você, a arrendar o apartamento, porque se ele conseguir meter alguns dos nossos homens lá dentro sem ser notados, quando o Rashidi tentar fugir pela passagem, há de encontrar um grupo de boas-vindas à espera.
— Sem ser notados pode ser um problema, comandante — disse William. — Vamos precisar pelo menos de meia dúzia de homens para prender o Rashidi e neutralizar os seus guarda-costas, e não será fácil conseguir que toda uma divisão armada suba ao vigésimo terceiro andar do bloco B antes de o Rashidi ter tempo para fugir. Mas voltarei a esse assunto mais tarde.
— E o telhado? — perguntou Jackie. — Constitui outra possibilidade de fuga?
— É pouco provável — respondeu Paul. — A única forma de ele sair seria através da escada de incêndio e havia de nos encontrar a subir quando viesse a descer.
— Não — disse William —, a passagem será o caminho de fuga preferido porque, assim que estiver no seu apartamento, no bloco B, não haverá forma de o ligar a nada do que se está a passar no edifício ao lado.
— E o rufia que opera o elevador do bloco A? — perguntou Hawksby, olhando com mais atenção para o diagrama pormenorizado afixado na parede. — Conseguimos desarmá-lo e tomar conta do elevador?
— Pete Donoghue — replicou William, apontando para a fotografia de um homem que podia ter feito de figurante em The Sweeney sem se dar ao trabalho de passar pela caracterização.
— Cumpriu pena por ofensas corporais graves e assalto à mão armada — informou Lamont. — Da última vez que foi preso, foram precisos três agentes para o dominar enquanto eu o algemava.
— É impossível chegarem perto do elevador sem ele vos ver — disse Paul. — Vários homens que trabalham para o Rashidi prefeririam subir pelas escadas a partilhar um elevador com esse rufia.
— Mesmo que conseguissem chegar ao elevador, há sempre vigias colocados aqui, aqui, aqui e aqui — disse William, apontando para quatro cruzes na planta da rua. — Se um deles tiver dúvidas sobre alguém, o elevador sobe para o vigésimo terceiro andar e só regressa ao rés do chão quando for dado sinal de que a área está livre.
— Como uma sirene de ataque aéreo durante a última guerra — disse Hawk, denunciando a sua idade.
— Quanto a isso, vou ter de acreditar na sua palavra, comandante — disse Paul.
— Como é que conseguiram recolher tanta informação sem serem detetados por um dos vigias? — perguntou Hawk, ignorando o comentário.
— Viagens regulares na parte de cima de autocarros de dois andares — disse William. — As carreiras 3, 59 e 118 passam pelos dois blocos várias vezes por hora.
— Na verdade — disse Paul —, a carreira 118 para mesmo à porta do bloco A, e foi assim que conseguimos determinar onde é que os vigias estão posicionados. Também identifiquei vários traficantes, porque são as únicas pessoas que estão autorizadas a seguir diretamente para o elevador sem serem interrogadas. Mas continuo a não poder correr o risco de sair do autocarro nas proximidades daquilo que é praticamente uma fortaleza.
— Quanto tempo é que uma unidade de agentes armados levaria a chegar ao vigésimo terceiro andar se não conseguissem chegar ao elevador a tempo? — perguntou Lamont.
— O HM fê-lo em sete minutos e meio — disse Jackie —, mas lembrem-se de que o elevador chega lá em quarenta e dois segundos, dando ao Rashidi mais do que tempo para fugir pela passagem e estar de volta ao seu apartamento muito antes de o primeiro agente chegar à porta de entrada.
— Nesse caso, como é que chegamos ao vigésimo terceiro andar em menos de quarenta e dois segundos? — quis saber Lamont.
— Creio que o William é capaz de ter arranjado resposta a essa pergunta — disse Hawk.