11. Alimentar-se no hospital: as dimensões ocultas da comensalidade*

Jean-Pierre Corbeau

O parente de uma hospitalizada: “Estou contente, hoje ela comeu bem;” uma enfermeira: “Faça um esforço, dona X, tome todo o leite;” uma ajudante (talvez de origem rural e certamente mais velha que a precedente): “Eu sei que não parece gostoso, mas o doutor faz questão que a senhora tome. Quer que eu acrescente um pouco de açúcar (ou sal, conforme a natureza do alimento que esteja sendo oferecido) para que o gosto melhore?;” um doente, exultante, a sua família: “O almoço estava bom e farto, eu não esperava isso!;” um professor: “Regime hipercalórico como suplemento;” o mesmo, em outra ocasião: “Toda espécie de gordura proibida!;” uma jovem nutricionista aos funcionários da cozinha: “A apresentação do prato e seu conteúdo devem dar prazer ao paciente;” amigos fazendo visita a um convalescente: “Sabemos que você não deve, mas trouxemos assim mesmo, mais um pouco e você vai poder aproveitar;” uma senhora idosa a um familiar que assiste à sua refeição: “Você quer a metade da minha sobremesa? Leve um pedaço de queijo para casa!”.

Paremos aqui essa enumeração, que evoca a importância do alimento, evoca simbólicos que lhe dão suporte, desde aquilo que denominamos ‘a seqüência do comer’ até as encenações de diferentes poderes afetivos e/ou institucionais, associados aos diferentes estatutos dos homens ou mulheres, clínicos ou íntimos que se aproximam do hospitalizado, participando da sua refeição ou do que corresponde a uma refeição…

Para analisar a dimensão simbólica e oculta dos comportamentos alimentares no hospital, procederemos em dois tempos. Primeiramente, indicaremos o que a seqüência do comer encobre, suas especificidades no meio hospitalar, aquilo que constitui, finalmente, o contexto dos rituais comensais e de convivência com os doentes. Poderemos, então, evocar, materializar formas de sociabilidade alimentar que resultem de uma interação entre características psicossociológicas e culturais do comer, a percepção do alimento proposto, seu aspecto e os simbólicos a ele associados, a situação na qual acontece o ato de consumo (o espaço, suas induções; os participantes atores e/ou espectadores).

Essas interações variam no tempo. E permitem apreender a história das ciências nutricionais, a variação dos discursos, a mutação das concepções de restaurante coletivo (na qual se inscreve o restaurante hospitalar), assim como as expectativas dos convivas, à mercê das mudanças de representação da saúde, da eficácia corporal e social, quer dizer, dos direitos do consumidor. Essas interações variam também no espaço, segundo a origem sociocultural, o sexo, a idade, o papel etc. do doente; segundo o tipo de refeição proposta e segundo a situação na qual esse encontro ocorre. Essas variações sincrônicas e diacrônicas serão ilustradas por meio de diferentes cenários que nos pareçam pertinentes. Elas representam a finalidade do nosso propósito.

A seqüência do comer no hospital

As iguarias não se apresentam espontaneamente ao consumidor. Preiswerk (1986), a partir de Lévi-Strauss (1966), lembra que o alimento não serve somente para comer, serve também para pensar. A cada estágio da concepção de um prato ou da decisão de produzir um dos ingredientes que o compõem correspondem rituais conotando o alimento, conferindo-lhe um valor afetivo, um certo grau de prestígio, permitindo degustá-lo com confiança ou apreensão.

Essas práticas são mais ou menos visíveis ou conhecidas do consumidor. Participam daquilo que denominamos ‘a seqüência do comer’ (Corbeau, 1992). Trata-se de considerar o comer como um fenômeno social total, começando com a decisão de cultivar ou de criar certos produtos em vez de outros; de fazê-lo de forma efetiva (no seio de uma autarquia ou de forma mais industrial e mais deslocada, seguindo o percurso da história humana); de transformá-los, conservá-los, estocá-los (não sendo essas fases obrigatórias, no caso de autoconsumo ou colheita própria); transportá-los e comercializá-los. Esse papel de transportador ou distribuidor cria simbólicos de prestígio do alimento. O exotismo do alimento (subentende-se o seu deslocamento no espaço) transforma o alimento em produto raro, a menos que seu envelhecimento (deslocamento no tempo) não aumente seu valor ou que as qualidades excepcionais não sejam significadas de múltiplas maneiras, às vezes mercantis (marca, rótulo, certificado etc.). A seqüência do comer se prolonga com a compra ou a decisão do cozinhar, depois com o ato culinário e as proibições, preferências e procedimentos aos quais obedece. Vem, então, o consumo propriamente dito… Solitário, comensal (com outras pessoas, sem que haja, necessariamente, uma troca) ou convival (a partilha inicia a comunicação que adquire, às vezes, a forma negativa de um conflito), regido por códigos e maneiras variáveis, segundo os tipos de consumidores e as formas de sociabilidade nas quais se inscreve.

Mas a seqüência do comer não se reduz a esse ato que vai da colheita ao garfo. Depois da ingestão, emergem impressões, lembranças, discursos que agem sobre nosso imaginário e sobre nossos comportamentos alimentares ulteriores. O que justifica não considerarmos a seqüência do comer como um vetor mecânico, mas como uma forma complexa na qual todas as fases da história do alimento, a identidade do consumidor, a situação de consumo e os discursos que pretendem normalizá-la estão em perpétua interação.

Compreende-se que, no meio hospitalar (como em outros contextos que não evocaremos aqui), essa seqüência do comer não seja nada transparente, que as dimensões simbólicas sejam difíceis de se representar e que uma certa ansiedade possa ser induzida em alguns consumidores, incapazes de identificar o alimento, que alguns tenham, às vezes, tendência a querer reduzir a um simples estatuto de nutriente!… Como atribuir uma dimensão simbólica positiva aos alimentos dos quais ignoramos a procedência real (os O.C.N.I. – objetos comestíveis não-identificados) – diria Claude Fischler (1990), cozidos por desconhecidos, de maneira ‘bizarra’, com textura e aspecto às vezes surpreendentes, propostos por uma instituição – o hospital – com a qual temos, às vezes, contas a acertar? Entretanto, Le Breton (1996:148) ressalta, com razão, que “a relação com a diferença é a pedra no meio do caminho do hospital […que] introduz, de repente, o conjunto dos pacientes, independentemente da sua condição social, num lugar e numa duração fora de qualquer familiaridade”. Isso é particularmente verificável, encenado, dramatizado quando se trata de nutrir consumidores inscritos em trajetórias plurais e desiguais. Assim, ao longo do tempo (particularmente nos três últimos decênios), a ‘seqüência do comer’ do restaurante coletivo hospitalar (como nos outros lugares) se transforma, por razões sanitárias, médicas, administrativas, éticas ou comerciais. Ela se reconstrói em torno de um compromisso, oferecendo, por um custo social suportável, os serviços e as garantias mais interessantes. Essa lógica, privilegiando a idéia central, é típica da democratização da alimentação e da conscientização dos direitos do consumidor durante os Trente Glorieuses.1 Ela permitiu, a uma parte da população, ascender a uma qualidade (e a uma quantidade) de produtos proibidos, até então, pela modéstia de suas condições de vida. Só podemos nos felicitar por isso. Entretanto, um efeito perverso desse compromisso, procurando reduzir os custos dentro de registros aceitáveis (e legais), ‘frustra’ um segmento da ‘clientela de elite’ que, doente, considera também a dimensão hoteleira de sua hospitalização. Ela julga medíocre, segundo seus critérios, o restaurante coletivo (pelo menos do ponto de vista organoléptico).2 Esse efeito perverso inquieta também uma clientela mais popular, habituada a fazer ou a comer uma refeição familiar na qual o ‘delineamento’ dos produtos é claro; lamenta-se, então, o desaparecimento da confecção artesanal dos pratos, distribuídos por uma cozinha central, preparados de modo industrial (que, no imaginário desses consumidores, sobrepõe-se e se confunde, muitas vezes, com o lado artificial dos O.C.N.I.).

Os seis S participam na distinção dos consumidores

As lógicas da seqüência do comer no meio hospitalar induzem, portanto, graus variados de satisfação ou de insatisfação. Os homens de marketing falaram, por muito tempo, de uma lei dos quatro S, aplicáveis (também) ao restaurante hospitalar. Corresponde à emergência de diferentes temas que regem a seqüência do comer desde alguns decênios… Primeiramente, a higiene; depois, a visão administrativa, colocando a melhor produtividade como finalidade; e, finalmente, a consideração de uma demanda múltipla do mercado, a valorização de um segmento cuja satisfação é gerar valor agregado.

O primeiro S é o do Seguro Social ou da Saúde Pública. No hospital, isto é evidente: à preocupação com a esterilidade do lugar corresponde a preocupação com a higiene da(s) cozinha(s). Isso se verifica tanto mais que torna-se raro, senão excepcional, sentir o cheiro de sopa, de temperos, de assado, ao se entrar num hospital.

O segundo S é o da Saúde, considerada como as virtudes dos alimentos dos quais podemos nos beneficiar quando os incorporamos. No meio hospitalar, a alimentação é dificilmente percebida como exterior ao tratamento. Seja qual for a iguaria servida, não escapa de ser vista, de certa forma, como um medicamento –o que permite, em caso de fracasso, aceitar o gosto desagradável de certos pratos. Mesmo quando o restaurante é franqueado a uma sociedade privada, o doente vê a comida como fornecida pela instituição.

O terceiro S representa o Serviço. Aí, sem dúvida, a equipe clínica – por um acordo com a equipe das cozinhas ou da sociedade de restaurantes, pelo papel maior da nutricionista apresentando a bandeja de forma mais atraente, pela organização do ritual da refeição, por levar em conta a identidade do doente e suas preferências alimentares, enfim, pela formação dos funcionários que apresentam a refeição – pode reintroduzir uma dimensão de prazer no universo hospitalar e reforçar o elo social que o alimento necessariamente significa.

O quarto S, o do Sabor, aparece nos anos 80. Corresponde ao início do desenvolvimento de estratégias de marketing do gosto: novo, tradicional, autêntico, extremo, gosto específico de uma determinada terra… Também nesse ponto poderíamos prescrever, de forma mais sistemática, corretores de sabor (que os cientistas conhecem) para os consumidores sob esta ou aquela terapia que pode criar, conservar ou recuperar o prazer de comer.

Nós propusemos, há alguns anos, acrescentar um quinto S, que seria precisamente o do Simbólico, resultante de todos os estágios da seqüência do comer. Isso permite ao consumidor reconstruir uma identidade, incorporando as características de uma terra, de uma paisagem, ou ascendendo a produtos que significam sua trajetória social, suas preferências, sua filiação sociocultural e afetiva, sua memória. Poderia também consumir alimentos ‘de prestígio’, reservados, desde a história das coortes, aos consumidores mais privilegiados. Ora, um duplo fenômeno, portador de ruptura, corre o risco de surgir no meio hospitalar… O espaço, os cuidados, a angústia ligada à doença ou ao ferimento dramatizam a crise de identidade. Ao mesmo tempo, a opacidade da seqüência do comer no hospital não torna nada fácil a incorporação de signos e símbolos tranqüilizantes, que permitam reencontrar sua matriz cultural e seus hábitos.

Atualmente, e talvez seja, infelizmente, uma nova característica do alimento, no início do terceiro milênio, proporemos um sexto S, que seria o do Simulacro. Ele permite a alguns utilizar signos de qualidade sem que estes existam realmente, e afirmar as virtudes muitas vezes não verificadas – ou, pelo menos, hipotéticas – de tal ou tal produto. Além disso, a condição de doente pode valorizar a credibilidade desse pensamento mágico, portador de desilusão, a longo prazo. Mas, sobretudo em nome de uma visão administrativa de diminuição dos custos, servem-se ao paciente (como a outros usuários da alimentação coletiva, em outros setores além do hospital) alimentos que não correspondem àquilo que realmente são: escalopes ou pedaços de carne, na verdade, reconstituídos; picadinho nos quais a parte do vegetal (desconhecido) é importante; sopas nas quais só sobrou o nome etc. Cada vez mais, o consumidor que se alegrava com a idéia do prato anunciado encontra-se decepcionado pela sua mediocridade e insipidez… Finalmente, ele pode se perguntar até que ponto a utilização de tais simulacros não exprime o desprezo pela sua pessoa.

Uma breve exposição da lei dos seis s permite compreender por que a alimentação coletiva engendra, para um mesmo ato, comportamentos positivos ou negativos em um consumidor pensado de maneira global e redutora. O hospital, lugar no qual se efetua esse tipo de alimentação, acentua essa tendência. Pensamos, como Le Breton (1996), que a instituição desenvolve certa dificuldade em relação à diferença… Esquematicamente, os três primeiros s seduzem os ‘clientes’ desfavorecidos ou populares que não os encontravam, necessariamente, no seu cotidiano anterior, embora sejam banais para uma população de nível econômico e cultural mais elevado. O quarto s, o do sabor, suscita o indiscriminável problema de uma população com preferências e hábitos alimentares plurais, mas que deve ser nutrida de maneira padronizada, o que engendra, aqui e ali, contestadores. O quinto S, o da dimensão simbólica, traduzindo, em alguns pacientes, a vontade de reconstruir uma identidade específica, vai de encontro à incorporação de um alimento anônimo e compartilhado por toda uma coletividade… O conformismo, do qual se quer escapar, encontra-se, por esse motivo, reforçado! Enfim, o simulacro, quando é descoberto, pode provocar a cólera dos consumidores.

O contexto no qual o alimento se apresenta ao paciente, as ‘dimensões ocultas’ da alimentação coletiva hospitalar e o enquadramento no qual se desenvolvem os rituais comensais ou convivais estão agora assentados. Falta ilustrar algumas interações, algumas formas de sociabilidade alimentar, que implicam um tipo de consumidor e um tipo de alimento numa situação particular. Com base em nossas observações e nossas investigações, conservamos os cenários mais pertinentes e didáticos. Todos imbricam três elementos: um consumidor, um alimento e uma situação de consumo. Para apreender essas interações, que constituem verdadeiros triângulos do comer, privilegiaremos um ponto: ora o consumidor, ora o alimento, ora o ritual comensal e seu contexto. Reencontraremos sempre os dois outros pontos, que não serviram de ‘entrada’, na compreensão global das formas de sociabilidade alimentar.

Fenômenos de sociabilidade alimentar no hospital

Indicaremos algumas formas de sociabilidade alimentar associadas a certos tipos de pacientes. Lembremos, inicialmente, que esses, antes de sua hospitalização, caracterizavam-se por preferências e hábitos alimentares diversos, segundo suas trajetórias socioculturais. Sem aceitar incondicionalmente a idéia de uma sobredeteiminação e sem estereotipar os comportamentos, é preciso sublinhar as lógicas de socialização que, estatisticamente, privilegiam o ‘nutriente consistente’ nas categorias populares e o ‘nutriente leve’ (Corbeau, 1977) nas categorias privilegiadas do setor terciário. Essa tendência é reforçada pela diferença de sexo (os homens comem de forma mais consistente) e pela idade (antes que uma prescrição médica coloque interdições): mais jovem a população, mais se confirma a tendência a refeições mais leves… Um ensopado de carneiro, acompanhado de arroz branco embebido em molho, pode satisfazer mais facilmente um operário de 50 anos do que um jovem executivo… Papillote de salmão com ervas e vagens crocantes induziria, sem dúvida, preferências contrárias. Não desenvolveremos esse aspecto. Ele prova que, se ‘todos os gostos são naturais’, eles estão também inseridos numa ‘cultura’ e supõem, da parte da alimentação coletiva hospitalar, um conhecimento e um reconhecimento intensificados da multiplicidade cultural dos comensais.

Nossa primeira materialização de triângulos de alimentação concerne a mulheres de origem rural, tendo ultrapassado 50 anos. Elas cumprem, em suas casas, quase todas as tarefas domésticas, particularmente os atos culinários, põem a mesa e lavam a louça (o que, infelizmente, é também a condição de outros segmentos da população feminina). Nas diferentes entrevistas que tivemos com elas, a importância concedida à inversão dos papéis no hospital nos espantou. A qualidade das iguarias é menos percebida do que o fato de estarem sendo cuidadas, de serem servidas, e de que ‘a sobremesa esteja presente em todas as refeições’. Com este último elemento, confirma-se uma espécie de feriado, quando a condição da paciente permite escapar dos papéis femininos tradicionais e permite, talvez (com os simbólicos do açucarado, mas também dos presentes oferecidos pelos mais próximos), ‘regressar’ em direção a um estatuto mais infantil, numa forma, aliás, que algumas delas nunca haviam conhecido… Em suma, nesse primeiro caso, a sociabilidade alimentar valoriza tanto a pessoa que, uma vez a hospitalização terminada, percebemos, nas conversas de algumas delas, uma espécie de nostalgia de uma ruptura no seu cotidiano, de uma aventura quase comparável àquela expressa por seus cônjuges quando evocam o tempo do serviço militar.

A segunda forma de sociabilidade alimentar considera também uma inversão de condição, mas somente na aparência, e mascara uma estratégia de manutenção de sociabilidades anteriores. Quando estamos hospitalizados, se formos conhecidos ou privilegiados, ou quando se apresenta uma “seqüência de acasos favoráveis” (Le Breton, 1996), desejamos um quarto individual ou dividido somente com uma pessoa. Paradoxalmente, reivindica-se o individualismo, enquanto que, anteriormente, se preferia uma convivência mais densa. Na verdade, esse desejo de obtenção de uma diretriz que garanta a hospitalidade não traduz uma vontade de isolamento, mas, ao contrário, a vontade de dispor de um espaço suscetível de ser apossado pelos amigos que assistem, ajudam ou dividem as refeições. Cada grupo familiar (ou um de seus membros) se instala, ao meio-dia e/ ou à noite, no recinto do quarto: de cada lado da cama, quando o paciente está só, criando, simbolicamente, um círculo divisório; à esquerda e à direita da cabeceira dos dois leitos, quando existe coabitação no quarto. O espaço comum baliza a fronteira da hospitalidade, geralmente utilizada somente pelos médicos e paramédicos. A presença dos parentes (que comentam, encorajam e instauram uma convivência) reforça a dimensão social do alimento, encobre o anonimato da seqüência do comer. O doente, incorporando os alimentos, reencontra ou perpetua um ato familiar que o inscreve, sob o olhar dos seus, numa comunidade, escapando da instituição hospitalar. Podemos descobrir aí o signo precursor da convalescença ou do retorno à ‘normalidade’, anunciadora de uma saída próxima… É pena que o tempo privilegiado da refeição seja, muitas vezes, justaposto ao da limpeza e que os odores de cloro venham perturbar a degustação de um produto que já não exala muito perfume.

O exemplo da pessoa idosa hospitalizada fornece um terceiro cenário. Permite demonstrar a imbricação do efeito geracional e do efeito de idade (Corbeau, 1996). Possibilita também definir, mais facilmente do que em outras categorias da população, dois comportamentos alimentares, dois sentidos opostos atribuídos ao comer.

O efeito geracional postula os comportamentos alimentares como resultado da história de uma geração. Assim, os idosos atuais, tendo conhecido as privações resultantes da Segunda Guerra Mundial, têm medo da falta e estocam mais do que o restante da população, sobretudo se eles são de origem modesta e rural. Além disso, valorizam a carne, signo de sucesso social, detestam o milho, alimento para animais cuja incorporação ‘associam a patos ou porcos’, e seriam atraídos pelos produtos ricos em lipídios, se não houvesse proibição médica, criando assim uma ambigüidade relativa à consubstancialidade (a gordura é boa e má). Essa geração também ama cozinhar para melhor identificar as matérias-primas que transforma, o que confirma ainda mais a concepção de gênero da arte culinária e dos regimes alimentares nas gerações futuras (o homem come menos sobremesa e mais carne; a mulher ingere menos – ou nenhuma – bebida alcoólica).

Um certo ascetismo pode ser atribuído ao efeito de idade, muitas vezes confundido com a solidão. Devemos também acentuar a importância dada ao vegetal cultivado pela própria pessoa e que, ornamental ou comestível, simboliza, visual ou consubstancialmente, uma forma de vitalidade, ajudando-a a se relacionar com a morte.

Finalmente, não esqueçamos a importância da qualidade e da freqüência das evacuações, que balizam o dia-a-dia a ponto de parecer, às vezes, estruturar todas as formas de incorporações alimentares ou medicamentais que a precedem… Todas essas características devem ser relativas à função de trajetórias socioculturais e econômicas diferentes, da permanência das ligações de sociabilidade e das situações de consumo.

O caso das pessoas de idade permite também compreender melhor dois sentidos diferentes do comer. Comer é comunicar. Demonstrando curiosidade, abertura, procuramos reencontrar e compreender o passado, a diferença, até mesmo o surpreendente. Apreendendo a alteridade, construímos melhor nossa identidade. Esse paradigma é um instrumento indispensável para uma partilha, para uma comunicação comensal ou de convivência.

Comer pode também significar a inflexão, o aprisionamento. Nesse caso, consumir o alimento não conduz mais à curiosidade intelectual, à acuidade e à mobilização dos sentidos susceptíveis de decodificar, reconhecer, apreciar, memorizar a emoção gustativa e os prazeres percebidos. Consumir o alimento se torna um ato solitário, de egotismo. Comer equivale a se fechar. Procura-se, então, fugir pontualmente – até de sua identidade –, isolando-se, recusando qualquer forma de comunicação no ‘aqui e agora’ do ato alimentar, exacerbando um individualismo autodestruidor. Essa negação de si pode chegar até a recusa de alimentação. Ruptura – suicídio, quando perdura por muito tempo – do último elo social, do suporte concreto de uma comunicação com o ambiente.

Na instituição hospitalar, encontramos todas essas características da sociabilidade alimentar. As datas festivas favorecem a troca e a evocação de lembranças, durante as quais cantamos, abrimo-nos aos outros. Ao mesmo tempo se encontra prazer no comer e no comunicar-se; reforça-se ou recupera-se uma identidade que talvez estivesse se dissipando. Os que têm dificuldade de se integrar fogem dessas ocasiões festivas e de encontros que reforçam para eles a imagem negativa que têm do grupo ou da instituição. A menos que seja uma recusa mais geral e mais fatal a se inscreverem numa inter-relação durável e percebida como inútil e muito cansativa.

Alguns pacientes escondem alimentos no quarto, sob o colchão. Biscoitos ou doces pilhados aqui e ali, mastigados às escondidas. O prazer da desobediência, da transgressão revivendo o ego. Tornam-se o centro do mundo; as fronteiras do universo em torno de si, de seus prazeres gustativos que compensam as dores, o controle e os medos de seus mecanismos intestinais, os quais estão subjacentes aos propósitos das relações de troca.

Poderíamos ainda evocar triângulos da alimentação significativos no hospital que seriam inicialmente percebidos a partir das refeições. Poderíamos então sublinhar que os doentes não compartilham, obrigatoriamente, a mesma religião –supondo que têm uma – e que respeitam, portanto, regras alimentares que, às vezes, a instituição ignora ou finge ignorar. Além da recusa de comer porco, comum ao judaísmo e ao islamismo, do desejo de comer alimentos koscher ou carne halâl, esquecemos muitas vezes a interdição de comer animais inclassificáveis (anfíbios, aquáticos sem escamas etc.), assim como a impossibilidade, para o judaísmo, de misturar, na mesma refeição, o lácteo e a carne (problema que perturba o regime padrão da alimentação); esquecemos também religiões étnicas com proibições que podem incluir coalhada, ou alimentos com gosto ‘considerado’ nocivo; esquecemos o aumento da população vegetariana. A alimentação hospitalar deve respeitar as crenças de seus doentes. Além da dimensão humanista, trata-se de melhorar a eficácia dos tratamentos.

Também poderíamos, a partir dos alimentos, analisar como se amplifica a tendência a propor texturas líquidas (misturado/diluído). O doente regressa ao estatuto de criança/assistido/dependente incapaz de cortar ou mastigar seu alimento; ao mesmo tempo, reforça uma dimensão mágica das bebidas/poções reconstituintes, do líquido associado à vitalidade, quando não à imortalidade.

Preferimos terminar evocando um último exemplo que valoriza a situação, o ritual. Trata-se da visita ao hospitalizado e do presente que, freqüentemente, é oferecido. Deixaremos de lado os objetos, os bens culturais (fora do nosso propósito), não nos alongaremos sobre as flores (postula-se que o paciente recupere as forças ao mesmo tempo que as flores perdem o viço) e, sobretudo, sobre as plantas que significam vitalidade (cf. a seguir o comportamento das pessoas idosas). Preferimos os presentes alimentares. Diversos cenários surgem.

O da hospitalização que concerne a um nascimento ou que não apresenta nenhum caráter dramático (fratura sem complicação de um membro, com alta previsível em pouco prazo etc.) dramatizando até um certo ordálio:3 “Você escapou por pouco!”. Nesse caso, são ofertadas bebidas ou guloseimas (chocolates, bombons, biscoitos). A garrafa (muitas vezes um vinho efervescente) não é consumida na hora (a não ser no rito familiar, por ocasião do nascimento), mas fica a promessa de fazê-lo quando chegar em casa. A bebida, invocadora de uma situação futura, permite escapar virtualmente do espaço constringente do quarto do hospital. Se são doces, o hospitalizado se inscreve imediatamente na lógica do ‘contradom’ (Mauss, 1950). Abre a caixa, ou o pacote, para oferecer aos que trouxeram o presente. Integra, assim, um papel que valoriza o agente que não mais recebe, e que inverte o sentido da relação.

A hospitalização é, às vezes, mais longa, mais angustiante. Oferecem-se igualmente alimentos, e o cenário precedente se reproduzirá. Mas pode-se também, quando se trata de íntimos, imaginar outros presentes que afirmam mais intensamente uma identidade territorial ou afetiva. Frutos do jardim, queijos da fazenda (no caso de agricultores), até mesmo bebidas alcoólicas (às vezes proibidas, e que é preciso esconder, transgredindo, com a cumplicidade dos amigos, a representação coerciva que se faz da instituição); um pedaço da sobremesa do domingo que se oferece para afirmar, além do espaço, a instituição da refeição familiar. A velha amiga do enfermo também traz o lanche, perpetuando o ritual anterior, por meio de um bolo comprado na confeitaria preferida de ambos.

Finalmente, a hospitalização pode, infelizmente, significar um acompanhamento até a morte. O presente alimentar (essencialmente oferecido pelos íntimos, nesse caso) consiste em dar prazer ao doente, de forma gustativa e simbólica. Pode também representar uma tentativa última de esperança que atribui uma dimensão mágica ao alimento (produtos exóticos contendo vitaminas, famosos por aumentar o sistema imunológico etc.). Sempre significa o amor e o elo social dos amigos com aquele ou aquela que sofre.

Fizemos um apanhado das dimensões ocultas da alimentação no hospital. Por um lado, a alimentação coletiva – que se inscreve na seqüência do comer, opaca para os pacientes – deve aprender a conhecer melhor e respeitar a pluralidade da população hospitalar, lembrando-se de que a alimentação não é redutível aos nutrientes, é fonte de prazer até o fim da vida e faz parte integrante da manutenção ou da reconstrução da identidade do hospitalizado. Por outro lado, a alimentação, fato social total, é um meio de comunicação com os que cercam o paciente, com uma instituição (aceitos ou não). A equipe clínica que o estuda de maneira pluridisciplinar, incluindo ciências humanas e sociais, deve obter informações que permitam compreender melhor o paciente, que é, antes de tudo, um homem total.

Notas

* Originalmente publicado em: MUSÉE DEL’ASSISTANCE PUBLIQUE-HÔPITAUX DE PARIS. L’Appétit Vient en Mangeant! Histoire de l’alimentation à l’hôpital. XVe-XXe siècles, 1998. p. 101-122. Traduzido por Olivia Niemeyer Santos.

1 Les Trente Glorieuses: o período entre 1945 e 1975, caracterizado por um grande crescimento econômico.

2 Propriedades dos corpos ou substâncias que impressionam os sentidos: ‘os efeitos organolépticos do vinho’. (N.T.)

3 Prova jurídica usada na Idade Média, juízo de Deus. (N.T.)

Referências bibliográficas

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