12. A sopa no hospital: testemunho*

Gérard Maes

Dize-me o que comes, eu te direi quem és.

Brillat-Savarin

Nos anos que se seguiram à Libertação, os estabelecimentos hospitalares de longa estadia, sobretudo sanatórios, institutos ou centros de banhos de mar e helioterapia, precisaram acolher e colocar em forma inúmeros jovens que haviam sido mobilizados em 1939 e que tinham conhecido, dessa forma, todas as peripécias da guerra, deixando nela parte de sua saúde, minada pelas privações da Ocupação, pelos rigores da prisão ou pelos ferimentos da Resistência. Alguns deles tiveram que interromper os estudos, mas tinham conservado, ao longo de sua provação, toda a verve e um espírito crítico judicioso. Acostumaram-se também a retomar, por conta própria, parafraseando, a apóstrofe de Brillat-Savarin: “dize-me o que [dás] a comer e eu te direi quem és”. O alvo da crítica eram os responsáveis pela preparação e distribuição da ‘sopa’, a qual eram obrigados a engolir durante os longos meses de hospitalização.

É verdade que, nos hospitais – não importa a denominação: centro hospitalar, clínica, sanatório, casa de retiro –, quando o sofrimento diminui e a dor se acalma, a refeição é um momento de trégua e evasão, impacientemente esperado. Mas, assim que a sopa chegava ao estômago, os doentes mergulhavam nas suas lembranças, entregavam-se ao sonho e procuravam, no fundo da memória, as satisfações que a gastronomia hospitalar lhes recusava obstinadamente. Para fortificar a vontade de sarar e recuperar o mais depressa possível a saúde, eles se uniam a Júlio César, que afirmava, em Comentários sobre a Guerra na Gália, que o mau humor de um exército se media pela frugalidade de suas legiões. Essa frugalidade hospitalar que, com o tempo, beirava a ascese, alimentava a combatividade e lhes oferecia miragens que marcavam a interminável marcha em direção à recuperação da saúde.

A história das civilizações lhes havia revelado o caráter sagrado da alimentação: os egípcios não tinham a obrigação de preparar, para os funerais de seus faraós, refeições que deveriam sustentá-los durante a viagem ao além? A Bíblia, por seu lado, havia revelado claramente os ‘tabus religiosos das cozinhas hebraicas e cristãs’! E durante a longa marcha do povo judeu, retornando à Terra Prometida ao fim do cativeiro no Egito, é o próprio Yahveh que envia do céu o maná, alimento necessário para sustentar as fadigas do Êxodo. Os gregos e os romanos ofereciam sacrifícios aos deuses para abençoar suas ágapes, esses mesmos deuses que Clio, a musa da História, tinha por missão distrair durante os banquetes. E foi precisamente O Banquete que Platão escolheu, entre seus diálogos, para reunir uma assembléia de homens eminentes que discutem à mesa e dissertam demoradamente sobre o amor.

Assim, desde a mais alta Antigüidade, o momento da refeição, do banquete, da cena não deixou de ser considerado como um instante privilegiado de trocas e de confidências. É à mesa que refazemos indefinidamente o mundo e onde se tomam as grandes decisões. Brillat-Savarin (sempre ele!) pôde escrever, com absoluta razão, que a mesa é o único lugar onde nunca nos aborrecemos durante a primeira hora (Brillat-Savarin, 1982). É a pausa esperada com impaciência… impaciência bem legítima. Mas o que acontece quando, ao longo dos dias, ao longo dos meses, o mesmo cardápio retorna com uma regularidade desesperante: segunda… terça… quarta… dia e noite, a mesma ‘sopa’, a mesma sobremesa, o mesmo castigo! Ora, a repetição provoca rapidamente a saciedade, que engendra o tédio e suscita a aversão. O momento da refeição, quando a sopa ‘não desce’, torna-se uma obrigação insuportável que pode ser prejudicial ao restabelecimento da saúde.

Inventário

Na verdade, a indigência dessas refeições insípidas não era senão a manifestação mais perceptível da carência e dos limites de uma organização hospitalar que ainda não tinha compreendido que a ‘gastronomia’ era um elemento importante do tratamento e, portanto, do restabelecimento dos doentes. Rapidamente, tornase evidente que nos estabelecimentos hospitalares havia espaço – ‘do outro lado da trincheira’, na administração – para homens generosos e empreendedores, decididos a agitar, a modernizar e a humanizar as estruturas que haviam envelhecido mal, e a recolocar no centro das preocupações e no coração de todas as decisões aqueles que Monsieur Vincent, no século XVII, havia denominado ‘nossos senhores, os doentes’.

Nessa época, o ‘Concurso’ era o Sésamo incontornável para o acesso às responsabilidades da admissão e, depois, da promoção às funções de direção – o sucesso no concurso sendo, aliás, considerado um brevê definitivo de competência, até mesmo de eficácia, válido para toda a continuação da carreira.

Dessa forma, o laureado, saído há pouco das provas do concurso, o ecônomo (pois, nessa época, não se falava ainda de diretores nas funções econômicas), que tinha o cargo de gerente administrativo, encontrava-se mergulhado num universo que não havia evoluído nada, desde os tempos dos antigos hôtels-Dieu. O peso das tradições, a força do hábito – para não dizer a rotina –, as soluções fáceis ditavam o comportamento dos responsáveis.

A ‘sopa’ na Alsácia, no século XVII, era servida da seguinte forma:

As refeições são servidas duas vezes ao dia: o almoço, por volta das 9 ou 10 horas, e o jantar, entre 4 e 5 horas; comia-se carne três vezes por semana (domingo, terça e quinta-feira), meia libra por pessoa e por dia; a sopa de lentilha ou de ervilha era colocada à mesa em todas as refeições. Às sextas-feiras e nos dias de jejum, servia-se sopa, arenque ou bacalhau, queijo e pão branco. Em grandes ocasiões (como no Dia de Reis, ou na Páscoa), (…) as pessoas no hospital se regalavam com bolos e pudins (…). Em todos os lugares come-se à luz do dia para evitar abastecer inutilmente as luminárias e por medo de incêndios. (Arquivos do Hospital de Bouxwiller)

Dirigir o economato de um hospital nos anos 50 do século XX era se submeter às obrigações do decreto de 1899, que tinha traçado claramente o espaço e os limites da atividade do ecônomo: ‘comprar, estocar, distribuir’. Muito restritivo, mas a dignidade da função era simbolizada pela posse das chaves que lhe era reservada: somente o ecônomo conservava as chaves do depósito e prestava contas da sua gestão.

Nessa época, ainda marcada pelas dificuldades da guerra e da Ocupação, a vida hospitalar parecia paralisada. Prisioneira das tradições e dos hábitos antigos, estava como coagulada num esquema secular de ações caridosas que tinha se prolongado até o momento em que a Revolução proclama o sacrossanto dever de assistência. A preocupação, mas também a obrigação, de fornecer aos pobres e aos doentes – na falta de um serviço de saúde consolidado – o pão cotidiano havia conferido ao setor de alimentação um lugar preponderante na gestão dos estabelecimentos hospitalares. Além disso, inúmeros testemunhos nos lembram que a vida no hospital estava organizada em função da distribuição das refeições.

Para bem administrar o delicado percurso da ‘sopa’ até o seu encaminhamento ao leito dos doentes, o ecônomo deveria efetuar toda uma série de etapas intermediárias, indo das compras e do abastecimento ao cozimento, ao acondicionamento, para chegar à distribuição e ao serviço de refeições. Esse percurso deixou naqueles dentre nós que tiveram essa responsabilidade no início da carreira um bom número de imagens pitorescas e de lembranças inesquecíveis.

O abastecimento nessa época ainda era de uma simplicidade monacal. A maioria dos hospitais possuía sua horta, e os estabelecimentos mais importantes, sua fazenda e seu empreendimento agrícola, que lhes forneciam as provisões essenciais. O chefe do empreendimento agrícola e o jardineiro eram personagens importantes que exerciam toda a autoridade sobre a composição dos cardápios, impondo seus produtos: legumes diversos, alhos-porós, repolhos, cenouras, lentilhas, feijões, batatas, abobrinhas, dependendo da região. Além disso, duas vezes por mês sacrificava-se o pensionista da pocilga que mais tinha se beneficiado de um circuito bem organizado, já que os restos das refeições dos hospitalizados eram acrescentados às ‘águas gordurosas’, que constituíam a essência do regime de engorda da criação.

Quando os produtos da horta se revelavam insuficientes, recorria-se aos ‘amigos’, geralmente pequenos produtores, felizes em ceder ao hospital o excedente da sua horta ou pomar e, ocasionalmente, o que não fora vendido no mercado local. Esses fornecimentos anárquicos ocasionavam, inevitavelmente, um problema de conservação e de estoque. Os depósitos eram rudimentares, até mesmo inexistentes. Para guardar os frutos em boas condições, instalava-se para esse fim, num local batizado fruitier, todo um sistema de prateleiras com telas que deveriam permitir –sobretudo às maçãs – passar o inverno sem danos demasiados; mas isso era também fornecer aos ratos e a outros roedores um pitéu que eles não recusavam.

Quanto às batatas, que alguns hospitais compravam por toneladas, por ocasião da colheita, elas eram armazenadas, por falta de silos, nos subsolos cortados por tubos de calefação que propiciavam uma germinação rápida. Era então preciso requisitar os pensionistas, sobretudo os denominados ‘doentes trabalhadores’, para recortar as partes germinadas das batatas, dando-lhes uma aparência normal e tornando-as novamente aptas a serem consumidas.

Todas essas práticas tinham sobrevivido aos anos de guerra e ao período de racionamento e restrições; tinham também engendrado maus hábitos, difíceis de serem abandonados.

Novos métodos de gestão

Depois da instauração do Plan Comptable (Plano de Prestação de Contas) e da aplicação da contabilidade analítica, os ecônomos dispuseram, finalmente, de instrumentos confiáveis que permitiram introduzir na gestão o rigor indispensável para avaliar a previsão, verificar a execução e controlar o orçamento sob sua responsabilidade. Mais tarde, foram impostas as prescrições do Code des Marchés (leis do mercado que controlam os alimentos), a partir de sua publicação pelo decreto de 17 de julho de 1964.

Em cada departamento, a Direção Estadual de Preços (depois Direction da concorrência, do consumo e da repressão às fraudes) adquiriu o hábito de enviar aos hospitais inspetores encarregados de controlar as faturas, de comparar estas com as dos estabelecimentos vizinhos e depois formular – às vezes com certa ingenuidade! – piedosas recomendações de vigilância e de prudência. Esses controladores a posteriori eram insuficientes para controlar e regularizar as compras; por esta razão, a autoridade tutelar foi obrigada a criar, em cada departamento, a partir de 1971, um Grupo de Compras cujo coordenador era, na maior parte das vezes, o ecônomo do hospital mais importante. Ele tinha a missão de recensear as necessidades de todos os estabelecimentos do estado, redigir os cadernos de encargos, abrir concorrência e presidir a comissão de exame das ofertas. Comissão que se transformava, ocasionalmente, em sessão de degustação, penosa, quando se tratava de gêneros alimentícios (sardinhas ao chocolate, passando pela mostarda, compotas e outros mimos, em ordem ou desordem!).

Acontecia que, muitas vezes, esse ‘coordenador’ era nomeado, pelo prefeito, especialista em matéria de qualidade, membro do todo-poderoso Comitê Estadual de Preços. Assim se consagrava o papel proeminente do ecônomo comprador, investido da missão de velar pela qualidade das provisões do hospital. Aliás, o Ministério das Finanças não tinha se enganado sobre a importância dessa função, já que, desde 1962, havia apoiado sua criação, por iniciativa da Comissão Central das Mercadorias, da Associação pelo Aperfeiçoamento dos Fornecedores para os Serviços Públicos (APFSP), encarregada particularmente de aconselhar os ecônomos, informá-los, formá-los e lhes fornecer os meios de melhor levar a cabo sua missão. A APFSP tornou-se, em 1993, a Associação das Compras pelos Serviços Públicos.

Essa evolução nas modalidades de compra e procedimentos de abastecimento hospitalar é reencontrada nas etapas ulteriores da preparação e da distribuição das refeições.

A questão dos cardápios

A elaboração e a concepção dos cardápios é certamente o início desse longo processo que deve levar o doente ao caminho da cura e lhe devolver o prazer de existir. Ora, nos anos 50, a dietética não tinha ainda ‘lugar de direito’ no hospital – além disso, a palavra era praticamente desconhecida! – e a composição dos cardápios obedecia a uma fantasia que mal conseguimos imaginar atualmente. Quando não eram inspirados pelo gosto ou pelas tradições ancestrais da todo-poderosa Irmã cozinheira (polenta, nhoque, massa, risoto, batatas, ervilhas, feijão-branco ou chucrute, dependendo da região), os cardápios respondiam a estranhas considerações, entre as quais escolhi dois exemplos verdadeiramente vividos!

Nesse importante hospital do sudeste, alojado à sombra de arenas seculares, o chef espreitava toda manhã, na entrada da sua cozinha, a chegada do ecônomo cujo escritório estava situado do outro lado do pátio. Assim que o avistava, o chef lhe dirigia a palavra vivamente: “Patrão, o que vamos fazer hoje?”. E a resposta era lançada decididamente: “Ervilhas à francesa,” ou “carne ensopada,” ou “abobrinha à provençal”… E isso se repetia, de acordo com o dia e o humor. Esse diálogo incongruente continuou durante anos sem emocionar muita gente.

A alguns quilômetros dali, nos confins da Gascogne, o ecônomo recentemente nomeado teve a estranha surpresa de constatar que os cardápios eram regular e escrupulosamente redigidos pelo diretor. Todavia, eles se repetiam sistematicamente de uma semana a outra, o que não deixava de intrigar o recém-chegado. Particularmente, descobria-se, sob formas diversas, uma grande quantidade de carneiro, anormal para a região: sauté de cordeiro, navarin de carneiro, costeletas de carneiro grelhadas… Depois de uma investigação ditada por uma curiosidade bem natural, ele descobriu que no hospital, durante anos, haviam sido consumidos os melhores cortes do rebanho de cabras que um fazendeiro esperto – amigo do diretor – engordava com cuidado, antes de enviar os melhores espécimes à instituição.

Aliás, foi nesse mesmo estabelecimento que os doentes herdaram, durante vários meses, todas as sobras de presunto da região, porque os responsáveis pela direção, preocupados em variar o jantar, haviam decidido servir presunto aos hospitalizados, duas vezes por semana. Mas a encomenda era feita aos poucos – em fatias – no salsicheiro local, que não fazia nada além de recolher, entre os colegas, e enviar ao hospital os restos do que tinha sido deixado em consignação e não tinha sido vendido no comércio.

Alguns acharão, talvez, que esses exemplos são exagerados; mas na verdade são bem reais, e eu os vivi pessoalmente. Eles beiram a caricatura, mas ilustram perfeitamente o estado anárquico do setor de alimentação nos hospitais da França.

No campo da hotelaria, não poderia persistir nem a noção nem a hora da ‘sopa do doente’, realidades que sobreviveram por tempo demasiado e da qual permanecem fortes lembranças. Muitos dos antigos diretores dos hospitais se lembram do barulho do sino anunciando a refeição, do ruído dos carrinhos e das vasilhas nos corredores, dos caldeirões de sopa no meio da sala comunitária, tigelas e conchas permitindo distribuir a cada um sua porção. Permanecia, de alguma forma, um perfume de pensionato, até mesmo de caserna. (Rochaix, 1996)

Humanização

Foi preciso esperar os anos 1960-1970 para que surgisse a necessidade e se afirmasse a vontade de humanizar os estabelecimentos hospitalares. No campo da hotelaria, um primeiro passo tinha sido dado com a supressão das salas comunitárias e com a melhoria das condições de recepção dos doentes. Aliás, o hospital público tinha sido amplamente aberto ao conjunto da população desde a lei de 1941, validada pelo decreto de 1945: o doente tornou-se um cliente que convinha respeitar e tratar como um hóspede privilegiado. Dessa forma, em alguns hospitais, foram recrutados técnicos encarregados de formar o pessoal de serviço, as tradicionais serventes, de lhes ensinar a se tornarem atendentes, a tratar dos doentes como pessoas que estavam preocupadas, antes de tudo, em reencontrar, durante a permanência no hospital, condições de vida idênticas às que conheciam no ambiente familiar. A refeição, a sopa, tornou-se um momento privilegiado no caminho para o restabelecimento e para a recuperação da saúde.

Hoteleiros foram contratados para alguns serviços dos Asilos Civis de Lyon, especialmente no Hôpital Edouard Herriot. No Centre Hospitalier Regional de Nîmes, o diretor-geral, Maurice Rochaix, tomou a iniciativa de recrutar uma monitora de economia doméstica e conselheiros técnicos encarregados de formar os atendentes e de transformá-los em artífices dessa grande obra de humanização dos hospitais que acabava de ser sancionada pela circular ministerial de 1970.

Essa educação não demorou a frutificar, e desde 1970, em Nîmes, a direção decidiu reagrupar todos os elementos de ensino e publicá-los num pequeno livro: Técnicas Administrativas e Hoteleiras no Hospital (CHU, 1970), prefaciado por Monsieur Pierre Raynaud, inspetor-geral da Saúde, vice-presidente e delegado geral da Federação Hospitalar da França. Esse guia teve grande sucesso e foi reeditado muitas vezes. Permanece como testemunho de um modo de proceder que deve prosseguir incansavelmente para permitir ao hospital francês enfrentar os desafios do terceiro milênio.

Cozinhas e dependências

A preparação e o cozimento das refeições se efetuavam na cozinha, que foi, durante séculos, o templo sacrossanto de uma gastronomia hospitalar rudimentar. A grande sacerdotisa era a todo-poderosa Irmã cozinheira, guardiã do santuário e que regia igualmente toda uma série de ‘capelas’ adjacentes, onde se preparavam os legumes, as carnes, as massas e a limpeza.

A ‘capela’ dos legumes era, sem dúvida, um dos espaços mais freqüentados desse cenáculo. Desde cedo, era invadida por uma tropa animada de pensionistas do Hospital da Mulher que vinha descascar os legumes. Guardando as devidas proporções, era equivalente ao trabalho de ‘descascar’ que alguns dentre nós conhecemos e praticamos no serviço militar. Havia, entretanto, uma diferença apreciável: as tradicionais canções obscenas eram aqui substituídas por uma ladainha, orquestrada por uma respeitável religiosa ‘em descanso’, e que cuidava que as batatas fossem descascadas no ritmo das Ave-Marias, cuidadosamente cadenciadas.

Situado perto dos legumes, o açougue era um santuário exclusivamente masculino, onde trabalhavam – conforme a importância do estabelecimento – um ou vários operários especializados, encarregados de retalhar e preparar a carne que tinha sido comprada viva, diretamente dos abatedores, ou em pedaços, no açougue beneficiário da adjudicação. Na maioria dos casos, era um local bem equipado: armário frigorífico – alimentado diariamente por pedaços de gelo para conservar as carnes –, balcão, cepo, ganchos e toda espécie de facas, machados, tábuas e acessórios os mais diversos. Havia também um ‘cantinho de cozinha’ discreto onde os privilegiados preparavam os melhores pedaços (‘os pedaços do açougueiro’), tradicionalmente destinados à colação dos funcionários.

Progressivamente, reservou-se também um local para a preparação das sobremesas: bolos, doces, pudins, que enfeitavam as refeições e marcavam a solenidade dos domingos e dias de festa. Era o domínio dos confeiteiros, que se tornaram importantes personagens à medida que as refeições melhoravam e que, paralelamente, os restaurantes dos funcionários se generalizavam.

No final do circuito achava-se o local de limpeza, domínio aquático, parecendo, ao mesmo tempo, piscina e lavatório municipal. Em imensas tinas de imersão e enxágüe, e num barulho ensurdecedor de caldeirões e panelas batendo, os recipientes que haviam sido utilizados para a preparação e a distribuição das refeições eram limpos, lavados e enxaguados, antes de se alinharem sobre imensos balcões de madeira, esperando o próximo serviço.

Todo o trabalho efetuado nesses locais periféricos era destinado a facilitar a preparação de refeições de qualidade que cozinhavam a fogo lento, por longas horas, num fogão central – o ‘piano’, como se dizia então –, de vastas dimensões, onde ficavam expostos panelas, caldeirões, gamelas, recipientes e acessórios do perfeito cozinheiro.

Nos anos 50 do século XX, o carvão ainda era um combustível amplamente utilizado, o que exigia numerosas manipulações e contribuía para manter uma atmosfera empoeirada na cozinha. Só muito lentamente a eletricidade fez sua aparição. Assistimos, então, à instalação de fornos e de novos aparelhos elétricos, destinados a facilitar e melhorar as condições de preparação e de conservação em temperatura dos alimentos. De fato, à medida que o cozimento terminava, os cozinheiros guarneciam os suportes e travessas que, em seguida, eram colocados sobre uma ‘bancada’, de onde os serventes vinham pegá-los para encaminhá-los aos doentes. Eram então depositados nas despensas de cada unidade de tratamento, um local geralmente rudimentar, equipado, às vezes, com um bico de gás para, como fosse possível, manter ou restabelecer a temperatura.

Finalmente, chegava ‘a hora do carrinho’, veículo mítico encarregado de transportar a sopa até o leito do doente. Era ‘com a concha’ que se efetuava, então, a distribuição, sem nenhuma consideração com regime nem dietética. Entretanto, numa louvável preocupação de eqüidade, e para evitar que os mesmos doentes comessem frio todos os dias, o percurso do carrinho variava cotidianamente. Nos dias pares, a distribuição começava por uma das extremidades do corredor ou da sala comunitária; e nos dias ímpares, pela outra. Assim se verificava o preceito evangélico: “Os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros”.

Refeições

Instruções aos funcionários para a preparação dos doentes

1.      Instalação do doente

   –   pedir para lavar as mãos

   –   assegurar-se de que ele está com a prótese dentária

   –   ajustar a mesa (altura e proximidade)

   –   instalar o doente confortavelmente em função do seu estado

2.      Distribuição das refeições

a)      preparação dos carrinhos

   –   verificar bandejas e regimes

   –   classificar as bandejas por ordem de distribuição

   –   verificar o tempo de aquecimento

   –   completar a bandeja (pãozinho etc.)

b)      serviço aos pacientes

   –   apresentar a bandeja completa

   –   destampar os recipientes

   –   ajudar o doente

3.      Retirar os pratos

   –   retirar a bandeja, colocá-la no balcão de serviço

   –   levar as bandejas para a despensa

4.      Lavar os pratos em seguida

5.      Arrumar e limpar a despensa

(CHU, 1970)

Em direção à bandeja: refeição

É a partir de 1970 – e sob a influência, sem nenhuma dúvida, da circular ministerial sobre a humanização – que se pode situar o início da revolução hoteleira que deu o toque de finados ao serviço ‘com a concha’, progressivamente substituído por um serviço ‘na bandeja’, respondendo ao desejo dos doentes. Muitos elementos contribuíram para acelerar essa revolução: primeiramente, a tomada de consciência, pelas equipes da direção dos hospitais, da necessidade de terminar com os maus hábitos, com a rotina e o ascetismo herdados de outras épocas. Em seguida, anunciou-se a vontade de recrutar, para cada setor, técnicos qualificados e motivados: cozinheiros profissionais, que tivessem feito as provas necessárias na área; nutricionistas formados em técnicas de nutrição e conselheiros em economia social e familiar. E, coroando tudo, a instauração, bem antes da criação, em 1974, da Association Nationale pour la Formation du Personnel Hopitalier (ANFH), de sessões de formação e de cursos de aperfeiçoamento, oferecidos nos estabelecimentos e sancionados por exames profissionais, levando à obtenção do CAP (Certificats d'Aptitude Professionnelle), concedido por um júri da Éducation Nationale, associando professores dos liceus ou colégios técnicos e os responsáveis pelos hospitais. Dessa forma, criaram-se, nos grandes hospitais, verdadeiras equipes hoteleiras bem treinadas e perfeitamente aptas a dominar todo o setor de alimentação.

A partir de então, os cardápios seriam elaborados, cada semana, por uma comissão especializada que reunia, ao redor do ecônomo, o nutricionista, que balanceava os regimes; o chefe da cozinha, hábil em definir as rações e calcular as quantidades necessárias para a confecção dos pratos escolhidos para a semana; e o comprador, acostumado às técnicas de abastecimento.

As condições de trabalho na cozinha haviam melhorado consideravelmente. Os construtores e fabricantes de material, estimulados por esse dinamismo, haviam mobilizado seus técnicos e oficinas de estudo que desenvolveram novos materiais de cozimento (caldeirões, autoclaves, fornos elétricos, fornos a vapor…) e de distribuição: carrinhos com aquecedor, carrinhos mistos, permitindo encaminhar diretamente para os doentes – de uma só vez e no mesmo veículo – as entradas, as sobremesas e os pratos de resistência. Foi a morte definitiva dos suportes, marmitas e marmitas norueguesas que haviam, durante tantos anos, assegurado o transporte ‘a granel’ dos alimentos, desde as cozinhas até as unidades de tratamento. Todavia, era um espetáculo curioso e inesperado seguir o lento percurso do pequeno comboio se deslocando penosamente nos pátios, nos subsolos e corredores para levar a bom termo os carrinhos, na hora das refeições.

Mais tarde, a instauração do processo de cadeia fria (regulamentado por decreto do Ministério da Agricultura, em junho de 1974) permitiu transformar as cozinhas tradicionais em verdadeiras unidades industriais, oferecendo aos funcionários melhores condições de trabalho, permitindo a diversificação dos cardápios e garantindo a perfeita qualidade das refeições servidas aos doentes.

Mas nada pára a evolução nesse campo. Assim, desde o início dos anos 1990, vimos, nos grandes centros hospitalares, cozinhas se transformando em Unidade Central de Produção (UCP), instaladas sob pressão e com a cooperação das sociedades de restaurantes coletivos. Outros, e não eu, que se encontram atualmente no cargo de direção e de gestão de nossos hospitais, estarão mais qualificados para julgar e apreciar essa nova concepção do restaurante hospitalar que se prepara, depois da era da ‘concha’ e do tempo da ‘bandeja’, para servir aos doentes a ‘refeição informática’!

No regime alimentar, como nas solenidades da liturgia, os doentes encontravam um descanso da monotonia cotidiana (…). O menu das grandes festas se ornava de doces (…). Na Epifania e na festa de São João (…) celebrava-se tanto o Evangelista quanto o Batista, repintando suas estátuas (…) sem esquecer de melhorar a ração, regando-a com vinho. (Imbert, 1982)

Pesquisar a opinião dos pacientes

Qualquer que fosse o modo de distribuição utilizado, os responsáveis pelos hospitais logo sentiram a veemente obrigação de medir o grau de satisfação de seus hóspedes.

A procura pela avaliação – como se diz atualmente – é particularmente importante no setor da alimentação, campo que alguns responsáveis ainda consideram secundário e tratam sem desenvoltura. Entretanto, numerosos são os doentes que, ao termo da hospitalização, colocam no primeiro plano de suas lembranças e de suas críticas a qualidade das refeições que lhes foram servidas durante a estadia. Bem antes do surgimento do Regulamento do Doente Hospitalizado, promulgado em 1974, por Madame Simone Veil, ministra da Saúde, já era freqüente que o ecônomo, acompanhado do chefe de cozinha, fosse até as unidades de tratamento para recolher, ‘quentinha’, da boca do próprio doente, sua apreciação sobre a refeição do dia.

Sobre esse assunto, gostaria de relatar uma experiência significativa. Eu havia observado no meu chefe de cozinha uma forte predileção por pato – que, aliás, ele preparava muito bem –, mas que era guarnecido, invariavelmente, com nabos ou azeitonas. Sem pretender concorrer com a especialidade da Tour d'Argent,1 eu havia lhe sugerido, diversas vezes, variar o acompanhamento. Minha insistência foi recompensada no dia em que o cardápio de uma grande festa anunciou: pato com laranja. Quando o almoço terminou, convidei o chefe a me acompanhar, colher as impressões dos doentes e registrar suas reações. No início, aconteceu toda uma série de sarcasmos e de críticas venenosas sobre cozinheiros que, “com certeza, beberam antes de misturar a carne com a sobremesa…,” para consternação do chefe. Mas, felizmente, sua decepção foi rapidamente atenuada quando, num quarto vizinho, um modesto e tranqüilo idoso exclamou: “Felicitações! Toda a minha vida escutei falar do pato com laranja, mas é um prato de gente rica que nunca pude pagar, e foi preciso vir ao hospital para enfim poder prová-lo”. Esse passeio durante o almoço e a presença em campo se revelam, portanto, bem úteis para medir a fragilidade dos julgamentos humanos e apreciá-los no seu justo valor.

Esse modo de proceder é, principalmente, um convite aos responsáveis para que procurem, incansavelmente, as melhores maneiras de conciliar gastronomia e hospital, reconciliação que é hoje a maior preocupação de eminentes nutricionistas, pois a nutrição clínica e a alimentação são, evidentemente, importantes elementos da ação terapêutica e merecem figurar entre as prioridades do hospital.

Como está longe o tempo em que a única nutrição que se dava aos pensionistas dos antigos hôtel-Dieu era ‘o caldo, o pão e a eucaristia’… Talvez fosse suficiente para garantir a salvação das almas, mas não se considerava a saúde dos corpos. Felizmente, as coisas evoluíram bastante ao longo dos séculos. O ‘cliente’ de hoje, que recorre com confiança ao hospital, afirma em alto e bom som, como Chrysale em Les Femmes Savantes: “Vivo de boa sopa e não de bela linguagem”. De fato, a alimentação, hoje, é bem mais reconhecida como fator determinante de cura. Os responsáveis pelo hospital, conscientes da importância de sua missão, tiveram o grande mérito e a coragem de definir o itinerário e de traçar as vias que permitirão, daqui para a frente, a cada um de seus ‘clientes’, efetuar uma ‘viagem gastronômica’ ao país do hospital, durante sua hospitalização.

Nota

* Originalmente publicado em: MUSÉE DEL’ASSISTANCE PUBLIQUE-HÔPITAUX DE PARIS. L’Appétit Vient en Mangeant! Histoire de l’alimentation à l’hôpital. XVe-XXe siècles, 1998. Traduzido por Olivia Niemeyer Santos.

1 Tour d'Argent é um dos restaurantes de cozinha francesa mais famosos do mundo, fundado em 1582, considerado por seu padrão de excelência.

Referências bibliográficas

BRILLAT– SAVARIN, J. A. Physiologie du Goût. Paris: Flammarion, 1982 [1825].

CENTRE HOSPITALIER UNIVERSITAIRE (CHU). Consignes au Personnel pour le Service des Repas. Nimes. Techniques ménagères et hôtelières. Guide pratique, 1970.

IMBERT, J. Histoire des Hôpitaux en France. Paris: Privat, 1982.

ROCHAIX, M. Libres propos sur l'humanisation. In: MUSÉE DE L'ASSISTANCE PU-BLIQUE-HÔPITAUX. Catalogue de l'Exposition du Musée de l'Assistance Publi-que-Hospitaux de Paris. Depuis 100 Ans, la Société, l'Hôpital et les Pauvres. Paris: AP-HP/Doin, 1996.